Abortamentos e Cesarianas

Parto Cesárea

– Nasceu?! Que legal! Foi parto normal?

– Normal…. Pro médico, né?

Diálogo entre uma puérpera e o editor deste blog.

Foi manchete este fim-de-semana a informação do Ministério da Saúde dando conta de que, pela primeira vez, o Brasil registrou mais cesarianas do que partos normais num ano: 52% no total. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, no setor privado, a taxa de cesarianas é estável desde 2004 e gira em torno de 80%. No Sistema Único de Saúde (SUS), o número vem aumentando e passou de 24% para 37% na última década.

Os termos cesárea ou cesariana não parecem ter a ver com Júlio César, supostamente nascido deste procedimento, como me foi ensinado na faculdade. Como o professor Joffre ressalta “a palavra cesárea e as expressões parto cesáreo operação cesariana vinculam-se ao verbo latino caedocaesum, caedere, que equivale ao grego témno, cortarDele derivam caesus,a,um, cortado; caeso, onis, ceso ou cesão; caesura, corte;e caesar, aris, com o mesmo sentido decaeso, onis, isto é, aquele que é tirado do ventre da mãe, ou “qui caeso matris utero nascitur”. As palavras cisão e ciso vêm da mesma raiz. (Não confundir com siso, do latim sensum, que originou o tal dente do juízo).

É conhecido o fato de o Brasil ser o campeão mundial de cesarianas tendo, inclusive, sido bastante criticado por isso (uma pequena compilação de links: unnecesarean, guttmacher com uma referência brasileira, outra referência em pdf, outro estudo do Lancet [assinantes], entre outros tantos). Mas, como o título do post sugere, gostaria de fazer um paralelo aqui entre abortamentos e cesarianas.

Vamos aos conflitos de interesse primeiro. Não acredito no abortamento como método anticoncepcional em saúde pública porque ele não funciona bem para isso. Mas, quer queiram setores da igreja, o Estado Teocrático Brasileiro, sociologistas, médicos e etc, etc, ele é uma prerrogativa feminina. O abortamento deve ser “acessível, seguro e extremamente raro”, como já se disse. É um dos sinais do abismo existente entre as classes sociais brasileiras a maneira como sua prática permeia os vários segmentos da população feminina do país: de agulhas de tricô, citotecs e o seja-o-que-deus-quiser, a clínicas altamente aparelhadas e com mordomias de grandes hospitais. (Não vou nem discutir sobre as questões dos fetos mal-formados e do risco de morte da mãe, porque aí já seria muito para esse post. Veja minhas posições sobre o assunto aqui, aqui e aqui).

Voltando ao espanto causado pelas cesarianas. O parto cesárea seguiria o mesmo raciocínio do abortamento. É uma prerrogativa da mulher querer ter seu bebê por via vaginal ou cirúrgica. O problema é que essa decisão nunca é totalmente esclarecida e aqui entra o papel do médico. Eu fiz 5 partos normais durante meu curso médico. Em alguns, passei a noite ao lado de moças se contorcendo de dor sem alívio nenhum. Se não houvesse alternativa, tudo bem, o presente da maternidade sempre vai compensar qualquer coisa, pelo menos é o que elas dizem. Mas se há uma forma diferente na qual a relação risco/benefício é aceitável, por que não tentar? Quem decide? O médico e a mãe, mais ninguém.

O médico entretanto, deve fazer o mesmo papel que faria quando se lhe apresenta alguém querendo retirar um feto indesejado. Expor, com a maior isenção moral possível, os riscos dos procedimentos e posicionar-se. Essas não são decisões que cabem apenas ao paciente. Dizer que não faz ou prescreve procedimentos abortivos é totalmente legítimo. O paciente deve saber que isso é proibido no Brasil e que o médico que o faz está em importante risco de processo. Com a cesárea, a situação é atenuada, mas semelhante. Não há proibição, mas há indicações clínicas mais ou menos precisas. Se a gestante quer uma cesariana, o médico deve expor os riscos e posicionar-se. O problema é que há um viés do médico favorecendo o procedimento. Aí junta a fome com a vontade de comer. E com isso, eu não posso concordar.

Vamos colocar uns dados nessa discussão. Os obstetras e a Organização Mundial de Saúde estimam que aproximadamente 15% dos partos devam ser cesarianos por complicações relacionadas aos mesmos. Se nos hospitais privados de São Paulo – capital, a taxa está em torno de 80%, segundo a Folha, temos que explicar o excesso de 65% em favor das cesarianas. Há uma entidade batizada em inglês com a sigla CDMR para Caesarean delivery on maternal request (cesárea por solicitação da mãe). Existem fortes indícios, segundo o estudo do Lancet citado acima, de que esse “movimento” tenha se iniciado no Brazil e disseminado-se para outros países. Estima-se que esse tipo de “indicação” possa responder por até 20% dos casos de partos cirúrgicos. O estudo de Zhang (abaixo) avaliou 1,1 milhão de partos não-gemelares durante 13 anos no sudeste da China e mostrou um aumento significativo no número de partos cesarianos em grande parte devidos a CDMR. Em alguns locais, as indicações por solicitação das mães chegaram a 50% das cesáreas. No Brasil, Osis e colegas (abaixo) foram tentar entender porque tanta cesárea. Avaliaram 656 mulheres de São Paulo e Pernambuco, usuárias do serviço público, e as dividiram em 2 grupos. O primeiro constituído de mulheres que tinham a experiência de um parto vaginal prévio e que depois tiveram um cesariano. O outro, constituído apenas de mulheres com parto cesariano. 90,4% das mulheres que tinham tido pelo menos um parto vaginal consideraram-no melhor, contra 75,9% entre as que só tinham cesárea (o número das que tinham tido apenas partos normais é muito pequeno no estudo e isso se constitui num viés importante). Se as que tinham cesárea tivessem entrado em trabalho de parto, o resultado ficava semelhante (45,5% e 42,8%). 47,1% das que tiveram parto vaginal disseram que ele não tinha desvantagens, contra 30,3% das que não tiveram. Por outro lado, 56,7% das mulheres que só tiveram cesarianas referiram que não ter contrações era a principal vantagem do método, contra 41,7% das outras. A conclusão do artigo é que a dor é importante mas as mulheres avaliam-na como secundária. Em primeiro lugar a saúde da criança e o pós-operatório. Além disso, no Brasil é muito importante a possibilidade de realizar uma laqueadura (“amarrar as trompas”) para esterilização e isso pesou na escolha da via para o parto. Isso se constitui numa falha grave das políticas de Saúde Pública desses dois estados no que se refere ao controle da natalidade, segundo outro artigo. Não se pode substituir um erro por outro.

Para concluir esse longo post, eu diria que:

1. É legítimo uma mãe querer uma cesárea (CDMR), assim como é legítimo uma mãe não querer levar adiante uma gravidez indesejada – prerrogativas dela, exclusivamente – desde que ela esteja totalmente esclarecida das consequências que tais procedimentos realmente implicam.  (Há quem discuta sobre o que é estar “totalmente esclarecido” afirmando ser impossível ao leigo esclarecer sobre procedimentos com consequências tão complexas, o que gera implicações no tal consentimento informado, instrumento sem o qual não se faz NENHUMA pesquisa clínica, só para se ter uma ideia do tamanho do problema com o qual estamos a lidar).

2. O médico tem um papel fundamental na escolha da via do parto e deve despir-se de suas preferências individuais para aconselhar a gestante. Dada a enorme dificuldade em se fazer isso (até porque, um médico confia nas suas habilidades tanto para um como para o outro procedimento), não é totalmente descabido ouvir uma segunda opinião sobre o assunto. Isso diminui, com certeza, o viés. Mas aumenta a insegurança; outra escolha difícil.

3. O excesso de cesáreas é um dos exemplos de medicalização da medicina. Como a calvície, a timidez e a agitação infantil, nos mostra como transformar “desvios” arbitrários da normalidade em patologias manipuláveis tecnicamente.

Foto tirada do blog Parir é Nascer.

ResearchBlogging.orgZhang, J., Liu, Y., Meikle, S., Zheng, J., Sun, W., & Li, Z. (2008). Cesarean Delivery on Maternal Request in Southeast China Obstetrics & Gynecology, 111 (5), 1077-1082 DOI: 10.1097/AOG.0b013e31816e349e

ResearchBlogging.orgOsis MJ, Pádua KS, Duarte GA, Souza TR, & Faúndes A (2001). The opinion of Brazilian women regarding vaginal labor and cesarean section. International journal of gynaecology and obstetrics: the official organ of the International Federation of Gynaecology and Obstetrics, 75 Suppl 1 PMID: 11742644

Abortamento e o Debate Político no Brasil

O Brontossauros publicou um post com a maioria das ideias que compartilho e recomendo fortemente sua leitura antes de prosseguir aqui.

Aprendi na faculdade que “aborto” é o produto de um “abortamento”, que consiste no ato de abortar. O Conselho Regional de Medicina escreve:

“Artigo 42 – É vedado ao médico: “Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do país”.
Artigo 43 – É vedado ao médico: “Descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento”.

Assim, fica evidente que o médico deve respeitar a legislação em vigor. Para isso é preciso conhecê-la, até porque “a ninguém é dado o direito de descumprir a lei sob o argumento de desconhecê-la”. E o artigo 128 do Código Penal, que trata de crimes contra pessoas, diz que “não se pune o aborto praticado por médico se:

I – não há outro meio de salvar a vida da gestante (Aborto necessário);
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando menor ou incapaz, de seu representante legal. (Aborto no caso de gravidez resultante de estupro)”.

Entretanto, conheço alguns colegas que praticam curetagens — procedimento cirúrgico, relativamente simples, mas que requer certa habilidade e experiência, que consiste, grosso modo, na raspagem do interior do útero — com fins abortivos, seja para retirada de fragmentos fetais e/ou placentários do útero de mulheres que fizeram uso do misoprostol (CytotecⓇ), seja como procedimento primário, em geral, antes do primeiro trimestre de gravidez. Mesmo com toda essa legislação ética e penal! A discussão entre os ginecologistas é simples: a enorme maioria não faz, mas acha extremamente necessário que alguém o faça e indicam tais médicos, sem criticá-los ou julgá-los moralmente. A necessidade de alguém que faça o procedimento é gigantesca. De preferência com segurança, boa técnica e discrição.

Estou falando, entretanto, de pessoas que pertencem a classes sociais mais favorecidas e podem pagar por isso. Mesmo nessa faixa da população a incidência é maior do que deveria e os números são bastante camuflados por razões óbvias. A coisa complica muito nas classes mais pobres da população porque alternativa não há. É aqui que o problema toma proporções de saúde pública. A hipocrisia de nossa sociedade se faz sentir em outras instâncias. No Brasil, mesmo o abortamento legal é bastante difícil de ser conseguido o que, em geral, provoca traumas difíceis de serem superados.

Não acredito no abortamento como método contraceptivo. Ele deve, como foi comentado, ser “seguro, acessível e extremamente raro”. Deve haver uma saída para mulheres que não se julgam capazes de manter uma criança, o que, convenhamos, é comum no Brasil. A saída passa, necessariamente, por educação, assistência médica e psicológica, programas de adoção e, sim, a possibilidade do abortamento, até para que ele não se repita! Fechar os olhos para esse  problema é jogar uma grande parte de nossa miséria social para debaixo do tapete.

Será?

Tenho sido interpelado sobre meu posicionamento quanto à excomunhão dos médicos de Recife que participaram do abortamento da menina de 9 anos com uma gravidez gemelar de altíssimo risco. O argumento é sempre o de que a Igreja está agindo coerentemente com seus estatutos e direito canônico. A excomunhão é automática.

Entretanto, essa semana o Osservatore Romano publicou um artigo do Monsenhor Rino Fisichella (foto ao lado). Trata-se de um arcebispo bastante ligado a Ratzinger e que criticou Obama por seu posicionamento sobre o aborto (ver aqui). Segundo nota da BBC, Fisichella teria escrito que “são outros que merecem a excomunhão e nosso perdão, não os que lhe permitiram viver e a ajudarão a recuperar a esperança e a confiança, apesar da presença do mal e da maldade de muitos“.

Duas coisas apenas a comentar. Em primeiro lugar, cobrei e cobro ainda, um posicionamento do conselho regional de medicina de Pernambuco (CREMEPE), sobre o assunto. Reitero que a excomunhão, por mais irrelevante que seja atualmente, é uma reprimenda pública. Entidades civis, como o CREMEPE, são humanitárias e têm uma outra visão sobre um mesmo assunto e deveriam se manifestar, quase como um direito de resposta. Por que não?

Em segundo lugar, o artigo de Fisichella mostra que a interpretação de uma lei, mesmo que canônica, não é tarefa fácil. A aplicabilidade prática de uma regra depende de uma racionalidade fronética. É o mesmo tipo de problema que um médico, por exemplo, enfrenta ao ter que decidir se determinado artigo científico se aplica ao paciente que se lhe apresenta ou não. A novidade é essa dissensão tornar-se pública num orgão hierárquico e obscurantista como a Igreja Católica. Palavras de Fisichella “Como agir nesses casos? É uma decisão difícil para os médicos e para a própria lei moral. Não é possível dar parecer negativo sem considerar que a escolha de salvar uma vida, sabendo que se coloca em risco uma outra, nunca é fácil. Ninguém chega a uma decisão dessas facilmente, é injusto e ofensivo somente pensar nisso.” Viva Aristóteles!

Numa fala que poderia muito bem ser de um bispo brasileiro, Fisichella arremata: “Não era, portanto, necessária tanta urgência em dar publicidade e declarar um fato que se atua de forma automática, mas sim um gesto de misericórdia“.

Será?

Excomungai-me, Dom José!


Logo de espetáculo teatral divulgado no site do CREMEPE

A excomunhão pelo arcebispo de Olinda dom José Cardoso Sobrinho da equipe médica  – que inclui, além dos médicos, enfermeiros, instrumentadores e circulantes da sala cirúrgica – que curetou a criança de 9 anos com uma gestação gemelar decorrente de intercurso sexual não consentido com o padrasto (também conhecido como estupro), diga-se, com a devida autorização judicial, está gerando grande polêmica nos meios de comunicação e, a partir de excelente post no Idéias, resolvi me manifestar. A sucessão de absurdos parece não ter fim. O advogado da Arquidiocese de Olinda, Márcio Miranda, planejava apresentar ao Ministério Público de Pernambuco, denúncia de homicídio contra a mãe da menina  que autorizou o abortamento. O Vaticano concordou com tudo o que o arcebispo decidiu. Isso inclui a não-excomunhão do padrasto, apenas da mãe que autorizou o procedimento e da equipe que o realizou.

Esse post vem denunciar o silêncio do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (CREMEPE) e cobrar um posicionamento urgente. Até o momento, apenas o Sindicato dos Médicos se manifestou oficialmente. Um conselho de medicina tem o dever de representar seus associados perante a sociedade, por mais insignificante que uma excomunhão católica possa ser. A repercussão internacional do caso e sua penetração na imprensa já seriam motivos suficientes para tal. A foto acima é de uma peça de teatro realizada pelo CREMEPE com intuito de esclarecer a população quanto ao problema que, em especial na área de Recife, é de saúde pública.

Além disso, em solidariedade a Sérgio Cabral, o gerente médico do centro de saúde que participou da cirurgia e a toda a equipe de médicos, enfermeiros e auxiliares que salvaram a vida dessa criança, gostaria profundamente de ser excomungado. A excomunhão é uma punição pública exemplar. Uma pecha. Um rótulo, quase uma maldição, mas que nesse caso se transformou numa das maiores vitrines da miséria de nossa sociedade e das mazelas de nossas instituições. Se lutar contra as injustiças e desigualdades ancestrais merece como pena a excomunhão então, quero ser excomungado já. Por essa razão, um de meus maiores ídolos é Espinoza: Excomungado de duas religiões!

Excomungai-me, Dom José! Pelo amor de Deus.