Fenomenologia da Elegância III

Ver os posts anteriores aqui e aqui.

Provavelmente o leitor(a) já teve alguma experiência de estranhamento. Não? Se não, tente fazer o seguinte. Vá em uma reunião, um coquetel ou coisa que o valha, onde as pessoas não estejam falando muito alto. Uma música ambiente, daquelas que tocam em elevador chique ou sala de espera de dentista, ajuda. Tente aproximar-se de um grupo de pessoas conversando, mas não pode ser muito perto porque assim, você vai acabar prestando atenção no conteúdo da conversa e não é isso que queremos agora. Mantenha, portanto, uma distância de dois ou três metros do grupo, suficiente para que você possa ouvir as pessoas conversando. Finja agora, que eles estão falando uma língua que você não domina. Preste atenção na musicalidade, entonação, nos ruídos emitidos pelos falantes, não nas palavras. Alguns chamam isso de prosódia da língua. Dizem que a do português, em especial do brasileiro, é belíssima (será que o “paulistanês” também?). Com algum treino você passará a “desentender” completamente o português e atentar para a forma como ele se apresenta a seus ouvidos. Depois de um tempo, você aprende a “virar a chave”, passa “escutar a língua” ou a “entender o discurso” conforme sua própria vontade. Essa é uma experiência de estranhamento da língua que permite apreciar algo de sua forma que o conteúdo embarcado nela normalmente nos oculta. (É possível também, com algumas restrições, fazer o mesmo com músicas, obras de arte e até com textos). O estranhamento é um dos tipos de possibilidade do cuidado. Guardemos, por ora, conosco essa experiência.

Em 1966, a polêmica escritora e crítica americana Susan Sontag, então com 33 anos, publica um ensaio chamado “Contra a Interpretação“[1]. Nele, Sontag argumenta que o mundo ocidental vê a arte ainda sob um ponto de vista platônico. Para Platão, como é sabido, a arte é mímese representação, afastada três graus de uma realidade dita ideal e, por isso, longe de comunicar qualquer tipo de verdade; muito pelo contrário. Vários dos “problemas” da arte em nossos dias decorrem desse raciocínio, surgindo então, a necessidade de justificá-la. Foi essa necessidade de justificação que criou a “falsa impressão de que algo que aprendemos a chamar forma é separado de algo que aprendemos a chamar conteúdo” [1]. Para Sontag, há uma tendência contemporânea muito forte em abordar uma obra de arte interpelando-a em busca de sua significação. É a primazia do que é considerado “conteúdo” sobre o que é considerado “forma”. Mas a crítica americana avança ainda mais: o “furor interpretativo” moderno não apenas sobrescreve a forma, é ainda capaz de escavar o significado das obras de arte a ponto de destruí-lo por completo. Entender, hoje, é interpretar. Nas palavras dela “a pletora de interpretações da arte hoje envenena nossa sensibilidade. Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto às custas de energia e capacidade sensuais, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte. Sobre o mundo”. Não se trata, portanto, apenas do predomínio do conteúdo sobre a forma, mas a tomada de assalto da própria essência da obra pela via da interpretação, esgotando-a completamente na análise de seu significado. Por isso, para Sontag, interpretar é empobrecer. Retenhamos, então, a última frase do ensaio: “No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.

A elegância nos vem de encontro como modo do ser-aí que nos caracteriza. Não é um ente, um “a mão”. É pré-ontológica e, estando um passo aquém da interpretação, é pré-interpretativa também. A elegância é uma ocasião. Algo como uma adequação transcendental entre a forma e o conteúdo mas, ressaltemos, num instante imediatamente anterior à analítica que o intelecto (ou sujeito, alma, espírito, ego, res cogitans, o que queiram) promove para separá-los. Nessa “sopa primordial” de afetos, forma e conteúdo se confundem. Não há ainda linguagem ou signo ou nomes e não há, ainda, transmissão de informações e, portanto, não pode haver interpretações. Há a vivência (Erlebnisdo ser-aí em uma ocasião tempestiva. É exatamente esse momento erótico, porque prenhe, que Sontag clama por que habitemos.

Dessa “adequação” pré-historicista (o tempo ainda não caminha), amórfica e desprovida de conteúdo, entre o que virá a ser a forma de uma vivência e o que virá a ser seu conteúdo próprio, derivarão as noções já conscientes agora de completude, economia, simplicidade e justeza, características da elegância, mas não já sua noção de beleza. Para que a noção de beleza surja na vivência da elegância é necessário por em marcha o tempo pois é ele quem dá o estofo existencial necessário e próprio do conceito.

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“Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte“, Paloma (menina). A Elegância do Ouriço. Muriel Barbery. (Foto do filme “O Ouriço“, baseado no livro)

tempo humano que “passa” rápido ou devagar conforme nossa intenção/atenção: cuidado, preocupação ou cura. E aqui devemos retomar nossa habilidade de “estranhar”. Cura vem do latim quaero (procurar), mesma raiz de curiosidade (curiositas). Intencionar a elegância, curá-la ou cuidar dela é, ao mesmo tempo, ter consciência de sua movimentação no tempo, de sua existência fática, de sua duração e de sua finitude. Ao “estranharmos” a ocasião temos o transe cognitivo quebrado. Nos chama a atenção, desperta nossa curiosidade – o tempo pára. Pertence apenas ao Homem (thnetos – θνητός) a capacidade de morrer, ser finito, e saber disso. O que pode ser maldição para uns, é a definição de humano para outros. A ocasião da elegância é a apreensão do momento oportuno onde o pré-sentido anuncia-se potencialmente justo, belo e bom. Tudo o que de-correr (o tempo agora marcha) a partir desse ponto, seja forma, conteúdo ou adequação de uma ao outro, será na justa medida, bom e belo, consolidados. E daí, a possibilidade da saída estética da aporia existencial que ela permite. Daí também, sua captura epistêmica pelas ciências. Daí, enfim, seu valor (humano) em-si.

A Elegância é um pré-sentimento do Bem. E-terno.

[1] Sontag, S. “Against Interpretation” [link]

Medicina com Fronteiras

O título do post é, obviamente, um trocadilho com uma das coisas mais fantásticas e sublimes que a medicina já produziu, a Medecins Sans Frontièreentidade humanitária com ações globais em áreas de vulnerabilidade social e o tirei da excelente entrevista de Juliana Sayuri d’ O Estado de São Paulo com o médico Mário Scheffer, coordenador de estudo Demografia Médica no Brasil, patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Pretendo, nas próximas linhas, explicitar minha opinião sobre a notícia, veiculada em 06/05/2013, da vinda de 6.000 médicos de Cuba, e de outros tantos de Portugal e Espanha, para trabalhar em regiões carentes do Brasil.

Suponhamos que venham então. Seis mil pessoas de um país estranho venham, de fato, exercer medicina nos ermos do Brasil. O Governo Federal especificaria suas áreas de atuação, sua remuneração e seu modo de trabalhar. Não temos dados concretos sobre esse plano, o que me dá um certo calafrio na espinha dado o déjà-vu de pirotecnia administrativa, como sói acontecer em políticas públicas no Brasil. Vamos então, especular.

Sobre a validação. “O médico pode ser definido como o ser humano pessoalmente apto, tecnicamente capacitado e legalmente habilitado para atuar na sociedade como agente profissional da Medicina – o que lhe assegura o direito de praticar todos os atos que a legislação permite ou obriga”, e a submeter-se às normas classistas bem como a seus princípios éticos. A definição se baseia em 3 quesitos que, faltantes, descaracterizariam a profissão de médico. É necessário ser: 1) Humano apto; 2) Capacitado tecnicamente; 3) Habilitado legalmente. A capacitação técnica é difícil de avaliar dada a relação intrínseca da medicina com a prática, mas a realização de exames frequentes e os programas de educação médica continuada ajudam a minimizar isso em várias localidades do mundo. A habilitação legal, por mais discutível, vinculada à capacitação técnica, politicamente influenciável e provincianamente conduzida que seja, é necessária. Aqui, a comparação com a habilitação de motorista é plenamente válida.

É sob essa lógica que o CFM tem atuado. A necessidade de ordenar a profissão, controlá-la e estabelecer normas para sua estruturação cabe ao conselho classista. Acho muito engraçado articulistas, palpiteiros, políticos, pacientes, e pessoas em geral, acusarem a corporação chamada CFM de “coorporativista”. Isso soa um pouco como acusar o Exército de ser bélico. O CFM está no seu papel e a discussão não deve ser desarticular sua argumentação, mas criar opções a ela. O próprio CFM está elaborando propostas para fixação do médico brasileiro nos tais “vazios assistenciais”. Uma crítica que caberia aqui é mas por que não fizeram isso antes? Por que esperar o anúncio da contratação dos médicos estrangeiros para lançar tal proposta? Nesse sentido, o chacoalhão veio em boa hora.

Países como EUA, Canadá, Reino Unido têm médicos estrangeiros em proporções variadas que beiram os 20%. Todos têm também, sem exceção, regras para validação dos diplomas (habilitação) e verificação da capacidade por meio de programas específicos. Não vejo problema nenhum com isso e a vinda de médicos que cumprissem tais condições – e isso também está sob discussão – é uma decisão de quem elabora as políticas de saúde.

Sobre as estratégias de assentamento. Uma das coisas que tem intrigado a opinião pública é o fato de que, mesmo com bons salários, os médicos não são capazes de “interiorizar-se”, o que mostra que a questão não é, nem de longe, meramente econômica. Setores do pensamento de esquerda acusam as faculdades de medicina de uma formação elitista e tecnologizada, fazendo com que o médico se sinta “nu” na ausência de sua tecnologia, impedindo-o então de trabalhar em locais onde ela fosse precária. Para resolver isso, propõem a vinda de médicos formados em faculdades voltadas para a atenção primária, como por exemplo, a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) em Cuba. Em que pesem as enormes dificuldades em se estudar medicina em Cuba e a manifestação contrária do senhor ministro da saúde, a proposta se apoiaria no fato de que tais médicos seriam desprovidos dessa arrogância tecnológica e mais aptos a trabalhar em condições difíceis. Não descarto, a priori, esse raciocínio.

Mas, como evitaríamos que tais médicos abandonassem seus postos? Por mais ideologizado que seja, a necessidade de formação, crescimento e ascensão na carreira é inerente ao bom profissional, ao que recusa-se a estagnar e, no caso dos médicos, ao que sabe da responsabilidade que tem e da possibilidade de que um erro pode equivaler à morte. Quais ações seriam implantadas para que tais médicos fixassem-se nos locais onde o governo necessita? A pergunta procede. Criar um sistema nos moldes do Judiciário e programas de assentamento do médico que incluem a educação continuada são possibilidades. Mas por que raios, esses programas não poderiam funcionar para os médicos tupiniquins também?

Em suma, o assunto é bastante complexo. Particularmente, não sou contra a vinda de médicos estrangeiros desde que se mostrem capacitados a exercer a profissão de acordo com as regras estabelecidas pela sociedade brasileira. Pode-se discutir as regras sempre, dificultar ou facilitar de acordo com um plano de ação. Por outro lado, não acredito que a vinda de tais médicos resolva o problema. A saúde da população transcende as fronteiras da atuação do médico que está contida nela. Ao voltarmos nossos olhares para as áreas carentes de atendimento em saúde veremos que a necessidade é muito maior que a vã lógica “medicalista” poderia supor.

Remédios não curam o abandono.

Angola © Atsushi Shibuya/MSF 2001

Angola © Atsushi Shibuya/MSF 2001

Fenomenologia da Elegância II

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Mão com Esfera Espelhada – M. S. Escher 1935

Recomenda-se ler antes esta introdução.

Dorothy Walsh [1] defende que existem, ao menos, dois tipos distintos de elegância: uma elegância que pode ser chamada de comum, aquela dos objetos perceptuais, das vestimentas e do design, dos modos e das coisas do cotidiano; e uma outra elegância dita intelectual, que deve ser apreendida por meio de um insight intelectual, seria aquela das teorias e hipóteses científicas, dos objetos matemáticos e outros entes virtuais. Ambas têm ainda em comum o fato de coabitarem o mesmo campo semântico da simplicidade e da parcimônia.

As relações entre simplicidade, parcimônia e as “elegâncias” talvez sejam mais claras no âmbito da filosofia da ciência [2]. São relativamente comuns textos onde a simplicidade, como um atributo de teorias, é apresentada como tendo duas noções principais: simplicidade sintática (relativa ao número e a complexidade das hipóteses); e a simplicidade ontológica (relativa ao número e a complexidade das coisas postuladas). Esta última é chamada de parcimônia. A primeira, de elegância; intelectual, por suposto. Walsh argumenta que o princípio teórico da navalha de Ockham seria uma ferramenta da elegância intelectual e que ela pode sim ter valor epistemológico como muitos autores já vêm sugerindo.

Mas o que as “elegâncias” têm em comum? Será possível encontrar um denominador ou mesmo essência comuns que as possa reunir? Antes até, será que é possível perguntar por isso? Parece pairar sobre as duas  “elegâncias” uma certa aura de virtude. Em outras palavras, do ponto de vista axiológico, não seriam elas juízos valorativos positivos emitidos sobre algo ou alguém? Ambas não seriam experiências estéticas? Não poderiam também portar certa conotação moral, no sentido de representarem, por exemplo, o Bem e o Belo, no sentido grego arcaico desses conceitos? Perceber o elegante parece ser algo “positivo”, parece “fazer bem”, agradar aos “olhos e ao coração”. De quem? De quem percebe, oras. Até mesmo de quem se percebe como elegante também. Talvez o segredo esteja então, não em estudar os tipos de elegância, mas os tipos de observadores com olhos para ela. Se o que supomos está correto, ou seja, que a elegância não está na “coisa” elegante, mas nos “olhos” ou no “intelecto” de quem a observa, é porque ela se manifesta de algum modo a esse observador e há pelo menos duas maneiras de estudar tais “manifestações”, que passo agora a chamar de fenômenos.

Aqui vamos fazer um grande parênteses e por isso, peço a paciência do leitor. A primeira dessas formas de estudo pode ser exemplificada pelo excerto abaixo retirado do ensaio “O escopo e a linguagem da ciência” de Willard Van Orman Quine (1908 – 2000).

Eu sou um objeto físico situado em um mundo físico. Algumas das forças desse mundo físico colidem contra minha superfície. Raios de luz atingem minhas retinas; moléculas bombardeiam meus tímpanos e as pontas de meus dedos. Eu revido, emanando ondas concêntricas de ar. Essas ondas tomam a forma de uma torrente de discurso sobre mesas, pessoas, moléculas, raios de luz, retinas, ondas de ar, números primários, classes infinitas, alegria e sofrimento, bem e mal.[3]

Quine foi um dos mais importantes filósofos norte-americanos do século XX. Teve alunos famosos como Hillary Putnam, Donald Davidson, Daniel Dennett, Thomas Nagel, entre outros. Suas ideias sobre epistemologia – grosso modo, a teoria do conhecimento -, seguem uma escola de pensamento que pode ser chamada de “naturalista”. Uma das coisas que o naturalismo propõe é a ideia de que conhecemos o mundo por meio do impacto de várias formas de energia em nosso sistema sensorial, como fica claro no fragmento acima. Porém, Quine se pergunta, como partimos dos estímulos sensoriais e chegamos ao monumento intelectual que é a ciência? Quine acha que nosso conhecimento é, ao menos na sua maior parte, incorporado pela linguagem. A linguagem por sua vez, veicula o conhecimento de forma bastante indireta, mas se analisarmos com cuidado, poderemos traçar uma ligação entre os estímulos sensoriais e a produção de certezas por meio de construtos linguísticos progressivamente mais elaborados. Falar/escrever sobre as coisas que sentimos elabora o conhecimento do mundo. Além disso, Quine leva bastante a sério a ideia de que “é na ciência, e não em alguma filosofia precedente, que a realidade deve ser identificada e descrita” [4]. Nossa melhor teoria em um dado momento nos diz tudo o que podemos saber sobre a realidade daquele dado momento. E isso basta.

Uma abordagem bastante diversa de analisar os fenômenos que se nos apresentam é exemplificada pelo excerto abaixo retirado de um texto de Edmund Husserl (1859-1938)[5]:

Sou consciente de um mundo infinitamente estendido no espaço, infinitamente se transformando e tendo infinitamente se transformado no tempo. Eu sou consciente dele: isso significa, sobretudo, que intuitivamente eu o encontro imediatamente, que eu o experiencio. Pela minha visão, tato, audição e assim por diante, e nos diferentes modos de percepção sensível, coisas físicas corpóreas com uma distribuição espacial ou outra estão simplesmente aí para mim, “a mão” no sentido literal ou figurativo, esteja eu ou não particularmente atento a elas e ocupado com elas em meu considerar, pensar, sentir, ou querer. Entes animados também – entes humanos, vamos dizer – estão imediatamente aí para mim: eu olho; eu os vejo; eu os ouço se aproximarem; eu aperto suas mãos; falando com eles eu entendo imediatamente o que pretendem dizer e pensam, que sentimentos os movem, o que eles desejam ou querem.

Husserl é um dos filósofos mais importantes do século XX. É considerado o fundador da escola de pensamento filosófico chamada de Fenomenologia e seus estudos se desdobram em vários de seus alunos e seguidores como Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre e Paul Ricoeur. A diferença mais importante entre os dois fragmentos é que, enquanto para Quine a percepção é algo totalmente passivo – ele é “bombardeado” pelo mundo que o cerca e reage a isso -, para Husserl, não. As coisas e pessoas, entes em geral do mundo, estão aí para ele. O que isso quer dizer? Quer dizer primeiro que, para Husserl, há um mundo inesgotável de coisas dado cuja variação temporal gera uma facticidade (produz um filme ou conta uma estória) que é percebida por nós e, segundo, há uma intenção da consciência (posso prestar atenção ou não no filme ou estória) em conhecer esta ou aquela coisa desse mundo. Sem essa intenção originária não há como iniciar o processo do conhecimento. Se não temos acesso às coisas-em-si do mundo, temos, ao menos, acesso direto aos fenômenos manifestos por elas na nossa consciência.

Se Quine lança mão de um recurso altamente complexo e intelectualizado (linguagem) para compor sua teoria do conhecimento possível a partir das sensações recebidas do mundo externo, Husserl se apega às sensações elas mesmas. Não sob o ponto de vista neurofisiológico, mas às sensações tal como elas se apresentam à nossa consciência, cruas e nuas, o que Husserl chama de realidade imanente. Para ele, “toda consciência é consciência de alguma coisa”! O que ele mesmo desdobra nas fórmulas “toda percepção é percepção do percebido”, “todo desejo é desejo do desejado”, etc. Não há percepção nem desejo e, portanto, nem consciência, vazios. Em outras palavras, a partir do momento que a intenção se abre ao “querer”, se cria um espaço para que o “querido” apareça. A velha constituição fundacional do conhecimento na relação do sujeito com seu objeto, na fenomenologia, é posta entre parênteses. Suspensa, como todas as teorias que a estruturam, e que Husserl chama de hipostasias, na “atitude natural” que a ciência deve pressupor antes de descrever o mundo. Tanto o conhecedor quanto a coisa conhecida são elementos da e na experiência. Sem o ato (intencional) de atribuir significados à experiência, não há sujeito nem objeto, o que a teoria quineana/naturalista deve pressupor.

Por isso, parece que estudar a elegância sob um ponto de vista fenomenológico se justificaria por meio de tais argumentos. De fato, com isso já conseguimos de antemão escapar da divisão – agora é mais fácil dizê-lo – artificial entre elegância intelectual e perceptual, pois ambas são fenômenos de uma mesma natureza e nos afetam de modo idêntico. Parece ficar evidente também que essa divisão está ainda presa ao cânone tradicional da divisão entre “corpo e mente”, justamente aquele que não dá conta de explicar o que queremos entender. Se considerarmos ainda que o mundo fáctico da vida é a “casa” onde mora o que é elegante, seja ele um terno, um vestido ou uma teoria científica, e que estão-aí, “a mão”, talvez a fenomenologia nos ajude a entender como ao “intencionarmos” a elegância, criamos imediatamente um espaço para que o “elegante” se nos apareça.

 

1. Walsh, D. Occam’s Razor: A principle of intellectual elegance. American Philosophical Quarterly. V 16 N 3 Jul 1979.

2. Baker A. Quantitative parsimony and explanatory power. The British Journal for the Philosophy of Science. Br Soc Philosophy Sci; 2003;54(2):245–59. (pdf)

3. Quine, W.V. The Ways of Paradox and Other Essays. Cambridge, MA: Harvard University Press. Citado por Cerbone, D. R. Fenomenologia. Trad Caesar Souza. Petrópolis, RJ. Vozes (Série Pensamento Moderno) pág 21.

4. Hylton, P., “Willard van Orman Quine”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.) [link]

5. Husserl, E. Ideias I: § 27. Citado por Cerbone, D. R. Fenomenologia. Trad Caesar Souza. Petrópolis, RJ. Vozes (Série Pensamento Moderno) pág 23.

Fenomenologia da Elegância

andrea-laliberte-femme-elegante-iiiPor que não costumamos dizer que cachoeiras ou praias são elegantes? Quem pode ter o atributo da elegância? Seria a elegância um modo-de-ser exclusivo das coisas do humano? Um terno ou um vestido não são elegantes em si. Tornam-se (ou não) quanto vestem alguém. Já um móvel pode ser elegante mesmo que não haja ninguém por perto. Uma floresta não é elegante. Um jardim pode ser. Mas por quê? Qual característica (humana?) singulariza a nós e nossas coisas como candidatos à elegância?

E por fim, mas não menos importante: o que é elegância e qual a importância em ser elegante? É possível uma atividade humana, por exemplo, a ciência ou a medicina, ser desempenhada de forma elegante? Se sim, como isso se dá? Um artigo recente em uma importante revista de nefrologia (ver abaixo) ressalta a importância de uma ciência elegante. Basicamente, os autores defendem a ideia de que a elegância teria um valor epistemológico em si dado que pode emergir na forma de síntese (organização de dados de uma forma diferente que permita ver algo novo, como no exemplo da descoberta da vacina da varíola por Jenner); na forma de uma combinação entre simplicidade e equilíbrio (como na hipótese do trade-off de Bricker & Slatopolsky para o equílibrio entre cálcio e fósforo nos mamíferos); ou, finalmente, na forma de simplicidade e linearidade (como na hipótese dos supernéfrons de Barry Brenner). Seria um tipo de Navalha de Ockham estética e parcimoniosa. Em algumas áreas da matemática, isso parece mesmo ser o método. A conclusão do artigo, que reproduzo agora em tradução livre do inglês, me parece reveladora.

Um estudo sistemático da elegância requer uma abordagem interdisciplinar que envolva a pesquisa biomédica contemporânea, uma perspectiva histórica e uma compreensão filosófica das bases da ciência. Como na famosa frase de Kuhn: “é especialmente em períodos de reconhecida crise que os cientistas voltam-se às análises filosóficas como dispositivo para decifrar os enigmas de suas atividades”. Nós acreditamos que a história e a filosofia têm um papel na prática cientifica cotidiana, não apenas nos momentos de crise. A perspectiva histórica e a reflexão filosófica não são elementos tangenciais mas componentes fundamentais da pesquisa científica. Em especial, elas nos permitem desenvolver características da ciência que a tornam elegante e melhor compreender porque uma mente elegante é um propulsor do progresso científico.

Se essa fórmula é válida ou não, podemos tentar discutir mais adiante. A elegância contudo nos afeta cotidianamente e provoca em nós um vislumbre do sublime. Antes de saber o que seria uma “medicina elegante” por exemplo, é preciso entender como algo elegante, pessoa, objeto ou ação, se apresenta a nós. Como se destacaria tal elegância no mundo que me cerca visto que a discrição, e não a ostentação, e a parcimônia, e não o excesso, são características do que é elegante? Que impressão causa em mim tal fenômeno é um trabalho que pode ser abordado de múltiplas formas. Tentarei, com todos os riscos inerentes a um amador (no sentido forte do termo) no assunto, a via fenomenológica. O tema me é caro e mereceria uma abordagem menos diletante dado que pode constituir a “via estética” como uma alternativa concreta como perceberam os colegas do artigo abaixo. Mas considerem como um exercício. (Se eu errar, corrijam, por favor!).

Ver Fenomenologia da Elegância II e III.

ResearchBlogging.org

Nathan MJ, & Brancaccio D (2013). The importance of being elegant: a discussion of elegance in nephrology and biomedical science. Nephrology, dialysis, transplantation : official publication of the European Dialysis and Transplant Association – European Renal Association PMID: 23378419

DEK – A Cura

Matteo23.12.05 095

O Homem de Barro (húmus) moldado pelo Cuidado

Já contei sobre o diálogo do clínico com o cirurgião. Nele, está envolvido um dos conceitos de cura na medicina contemporânea. Há outros tantos. Este é o DEK e o verbete cura nos trás de volta à letra C. Outros verbetes podem ser vistos aqui (ou procurando pela tag “DEK”).

Como nos referimos ao estado subsequente a uma moléstia não-fatal? Sem entrar nas complicadas análises ontológicas em relação ao ser da doença e sua nomenclatura específica, podemos dizer que no indivíduo doente são investidas práticas que visam reverter os processos alterados do organismo para que assim se possa restabelecer seu status pré-patológico. Tais práticas, em grego, podem ser agrupadas sob o termo θεραπεία (therapia), utilizado em várias línguas. Em alemão, há o termo Behandlung que contem a palavra “mão” e apesar de poder ser traduzido por “tratamento”, adapta-se melhor ao nosso “manuseio” que é a forma de lidar com certas doenças e inclui várias técnicas e procedimentos da terapia. “Tratamento”, em português, tem a mesma raiz de “tratado” ou “trato” (sm. Do lat. tractus) que significaria “con-trato, ajuste, pacto”. O que não deixa de ser bastante interessante já que ao tratar alguém, o médico também deveria tratar com alguém, sem destratar ninguém. O tratamento é, ou pelo menos poderia ser, um tipo de acordo.

Deixando um pouco de lado o processo pelo qual se reconduz o enfermo de seu estado mórbido para um outro “novamente” saudável, passemos agora a investigar como nos referimos a esse estado de “nova saúde”. Há um processo envolvido nisso. Um ciclo: saúde -> doença -> terapia -> restabelecimento -> saúde de novo. Pra mim, um dos termos que melhor define esse restabelecimento (e também um de meus preferidos) é convalescência. Se não, vejamos, con-valescere é latim e quer dizer “prosperar, ganhar saúde, ficar forte”. Garotos na puberdade “valescem”, crescem, ficam fortes e valorosos. É a mesma raiz de “valete” e de alguns nomes germânicos como Valter e Waldo. Em alemão se diz Genesung, restabelecimento. Portanto, “convalescer” é restabelecer-se, ficar forte de novo. Sarar também é latino (sanare) e descreve igualmente a fase de restabelecimento. Em grego moderno, a palavra utilizada para “cura” é επούλωση (epoulossi) que também quer dizer “cicatrização” ou seja, semelhante ao heal do inglês e ao heilen do alemão. Tanto o termo inglês como o alemão tem a mesma raiz que parece ser proto-germânica *hailjan (cf. saxônico antigo helian, que quer dizer literalmente “fazer-se inteiro”). Daí derivam os termos utilizados nessas línguas para designar saúdeHealth e Gesundheit. A propósito, o nosso “saúde” (Do lat. salusutis; estado de são, salvo) originou também a palavra “saudação” e seus derivados que significam, portanto, “desejar saúde a alguém”; que é exatamente o que fazemos quando cumprimentamos outras pessoas. Isso não deixa de ser um exemplo de como as moléstias podem moldar o comportamento ético dos homens.

Após o indivíduo doente ter-se restabelecido completamente, o que sobra da doença? É o tal “saúde de novo” do esquema acima. Podem restar cicatrizes físicas e não faltarão as espirituais. Esse é o processo de healingheilungepoulossi do qual falamos. Em português utilizamos a palavra cura. A raiz latina parece acrescentar algo mais, dado que cura também quer dizer cuidado, como nos termos curador (jurídico ou artístico), queijo ou peixe curadoscurativo, etc, mas também preocupação, como no ato de velar um enfermo. Sêneca e os estóicos utilizavam o vocábulo μέριμνα (mérimna) para designar esse tipo de “atenção preocupada”. Μérimna vem de merízō, (“dividir”, parte separada do todo) e adquiriu, em sentido figurado, o significado de preocupação, ansiedade, pois uma pessoa nessas condições está dividida entre o agir e a não-ação. Não deixa também de se relacionar com a ideia de “inteireza” que o termo “saúde” evoca. Platão utilizava o termo melete (μελέτη). Melete era uma das 3 musas da Beócia e representava a “ponderação”, a “contemplação”, donde se depreende sua associação com “preocupação”. Este termo originou επιμέλεια (epiméleia): o “cuidado de algo ou alguém”, correspondente à cura latina.

Segundo Irene B. Duarte [1] “o campo semântico de “cuidar” e de “cuidado” guarda, no português atual, o sentido original de uma etimologia inesperada: a do latim cogitare, pensar. Na forma transitiva, “cuidar” é pensar: atender a, refletir sobre – e, por isso, interessar-se por, tratar de, preocupar-se por, ter cautela”. Como no grego, duas palavras de origens diferentes são necessárias para cobrir esse campo semântico: cura e sollicitudo. Cura evoluiu para “uma acepção predominantemente relacionada ao âmbito da saúde: curar é sanar, tratar de restabelecer a saúde perdida”. Cura provém de quaero (procurar) mas num contexto bem vasto, indo da medicina até a administração (como em cura rerum publicarum) e religião (cura deorum). Sollicitudo, em contrapartida, continua Duarte, emprega-se de maneira mais precisa: é “cuidado” no sentido de “estar movido (citus, part. de ciere, mover) ou comovido por inteiro (sollus)”, isto é, sentir inquietude, pena. É “solícito”, pois, quem se aflige por algo ou alguém. Digamos que em cura parece predominar o “mover-se numa certa direção”, em sollicitudo o “ser movido por” aquilo que nos assalta ou se nos apresenta.”

Em alemão, o termo utilizado é Sorge e aqui cabem algumas considerações filosóficas. Na primeira parte de “Ser e Tempo”, Heidegger dá grande importância ao cuidado como fundamento do ser, como o ser da própria Existência. O homem pertence ao Cuidado, conforme conta a fábula 220 de Higino (ver abaixo), citada por Heidegger no parágrafo 42 de sua obra máxima. Com isso pretende-se, grosso modo, dizer que o homem é marcado por sua abertura ontológica. É uma possibilidade, um vir-a-ser. O homem, enquanto permanecer como ser vivente, é uma tarefa.

Por isso, Cura (ou Cuidado), como diz C. Dünker [2],  “não implica apenas o retorno da saúde, mas também a experiência legada por seu processo, a integração, à história dos envolvidos, da cicatriz formada, dos conselhos recebidos e do sentido do evento … ou sua falta de sentido”. Vista dessa forma, a Cura está, portanto, fora do âmbito do médico. Pertence ao paciente na sua tarefa de si, de recriar-se e de encontrar no processo novas possibilidades de (vir-a-)ser. Tudo o que o médico pode fazer é provocá-la.

 

[1] DUARTE, IB. A fecundidade ontológica da noção de Cuidado. (pdf)

[2] DUNKER, Christian I.L. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica. Uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo, Anna Blume, 2011.

 

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Fábula do Cuidado

“Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. O Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter o proibiu e exigiu que fosse dado ao invés disso, seu próprio nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (Tellus) reivindicando que o nome fosse o seu, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes resolveram então, tomar Saturno como árbitro. Saturno pronuniou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como porém foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver.”

Lorraine II

lorraine2Lorraine estava agora com fome. Seu estômago doía porque a última coisa que colocara na boca fora na longínqua madrugada de hoje, antes de sair para o trabalho e sentir-se mal com as tais dores abdominais. Já passava das dez. Perguntei como estavam agora as dores e ela disse que haviam sumido quase completamente. Restava uma dor na região epigástrica, misto de queimação com um tipo de pontada, que poderia muito bem ser interpretada simplesmente como “fome”.

Perguntei sobre seu futuro. Ela me contou que gostaria de cursar a Faculdade de Direito, mas achava que era muito concorrida para ela. Não falou sobre cotas, nem sobre como pagar a mensalidade. Isso ela resolveria com a tia, ou por si mesma. Falou que esperava muita dificuldade com os vestibulares dada a base teórica muito frágil que tinha desde os anos em que cursava a escola pública. O ensino médio não ajudou muito porque, na época, não tinha o prazer de “estudar para conhecer”. Apenas “apagava os incêndios das provas e trabalhos”. Palavras dela. Por tudo isso, pensava em fazer Educação Física para pagar a faculdade de Direito! Apesar de não entender a lógica imediata dessa afirmação, preferi continuar ouvindo sem dizer nada.

Na verdade, percebi que ouvi-la falar me acalmava. Mas acalmar do quê? Ou acalmar o quê? Uma moça que fala sobre suas agruras cotidianas sem queixas piegas ou lugares-comuns, que conta como sua vida é sofrida e difícil mantendo uma distância confortável da emoção dos fatos e que, estóica e elegantemente, tolera cólicas e um desagradável desconforto abdominal durante a narrativa, talvez seja mesmo alguém a quem se deva ouvir. O fato de tudo isso me acalmar é que me deixou um tanto intrigado. Quando um paciente inicia uma narrativa de algum grave problema pessoal o que, convenhamos, na minha profissão não é coisa difícil de surgir em conversas com pacientes, ouço de forma profissional e quando julgo ser importante, procuro caminhos que possam ser úteis tanto para o diagnóstico quanto para o paciente. Aprendi na prática diária a não estimular excessivamente narrativas catárticas sobre catástrofes pessoais e isso tem sido uma boa alternativa. Mas o que ocorria ali era outra coisa. E queria ouvi-la “contar histórias”.

O ultrassom não resultou em nenhuma anormalidade. O laboratório, tampouco. Talvez Lorraine tivesse “apenas” o que chamamos de intestino irritável. Após algumas explicações sobre a doença, eu disse a ela para se conformar já que alguma coisa tinha que ficar irritada na sua vida pois, para ela, os humanos e as coisas do mundo eram como simples produtos que precisavam ser meticulosamente organizados numa gôndola de supermercado. Foi quando rimos juntos pela segunda vez. Pensando bem, acho que essa foi a razão de apreciar tanto ouvi-la. Ao contar as histórias da sua vida, Lorraine parecia também colocar algo em ordem na minha.

Lorraine

lorraineA enfermeira me deu duas fichas de pacientes para atender. Atendi primeiro uma senhora de setenta e cinco anos com náuseas. Resolvi rápido, nada de mais. Depois a chamei. – Lorraine? – Sim, sou eu.

Uma moça de vinte anos de idade, negra, esguia, portando um óculos de lentes grossas respondeu. Os dentes brancos e perfeitos esboçaram um sorriso social. Bonita. Após entrarmos no consultório, comecei a perguntar. O problema era uma diarreia crônica, desde há cinco meses. Teve cinco episódios. Emagreceu cinco quilos. Perguntei se havia alguma relação com a menstruação. Ela pensou um pouco e concluiu que a diarreia vinha aproximadamente uma semana após as regras. Sorriu virando levemente a cabeça mas com os óculos focados em mim. Ela ainda não tinha reparado nesse detalhe e pareceu contente com minha pergunta. Disse que ficava de cama durante o período menstrual, por cólicas e muito sangramento. Perguntei se já havia consultado um ginecologista e ela respondeu que ainda não tinha tido relações sexuais. Ouviu minha argumentação em tom de leve bronca sobre incongruência entre os dois fatos, em silêncio. Disse que ia procurar um, ao final.

Comecei a perguntar mais. Sobre o emprego, estudos, dados familiares e ela foi me contando sobre sua vida com extrema naturalidade. Disse que trabalhava em um supermercado no centro da cidade, organizando as prateleiras de biscoitos e papel higiênico, e que seu salário no contra-cheque era de novecentos reais. Mas, com a infinidade de descontos, recebia um líquido de pouco mais de trezentos. Fez o ensino médio no Colégio Mackenzie porque conseguiu uma bolsa por intermédio da tia, mas que teve muita dificuldade em acompanhar o ritmo da classe. Nessa época, trabalhava no McDonald’s no turno da madrugada. Saía da lanchonete às seis horas da manhã para entrar no colégio às sete. Dormia um pouco na estação de trem. Seu salário então, era de fato novecentos reais, mas ficava muito cansada e também dormia durante as aulas. Um dia a diretora a chamou e disse que dessa forma não seria possível continuar, tinha que escolher entre a escola ou o trabalho. Ela optou pela escola e saiu do emprego, terminando o ensino médio, “aos trancos e barrancos” (sic).

Quando a mãe ficou desempregada, teve que trabalhar novamente e arrumou o tal emprego no supermercado. Mora em Itaquera (extremo da zona leste de São Paulo) e vem de metrô todos os dias para o centro. O metrô é muito lotado e recentemente acabou ficando na “caixa” (afastamento do trabalho por motivos de saúde) porque um rapaz prensou seu joelho direito contra as barras de apoio do trem provocando uma lesão ligamentar. A mãe é divorciada do pai, que não ajuda em casa. Ele ajudava com cento e cinquenta reais mensais mas reclamava muito e ela mesma tomou a iniciativa de fazer um acordo no qual ele foi liberado de ajudá-los logo após completar vinte anos. “Não gosta de homem chorão”. Tem dois irmãos. Um teve problemas com a polícia e esteve preso por alguns meses. Ao sair da prisão, envolveu-se em um acidente motociclístico comprometendo o quadril direito. Agora ele movimenta-se com dificuldade e não trabalha. Ela não gosta muito dele também. “Nunca trabalhou” – primeira frase em tom de queixa que disse desde então. O outro irmão tem depressão e também não trabalha. Ela, portanto, sustenta toda a família com o salário espoliado do supermercado, mas não reclama. Só acha que lhe falta tempo. Inclusive para namorar; e foi quando rimos juntos a primeira vez.

A essa altura, eu me dei conta de que havia esquecido completamente do fato de estar no meio de uma consulta médica. Como quem de súbito fecha um livro envolvente mas leva aquele tempo necessário para livrar-se do universo paralelo criado pelo autor, comecei a me desvencilhar da trama tecida pela Sherazade negra e de óculos e tentei pensar fisiopatologicamente. Solicitei exames e pedi um ultrassom. Receitei-lhe um antiespasmódico intravenoso (sim, toda essa narrativa foi feita sob o jugo de cólicas abdominais). Esperei que ela melhorasse e, depois de disfarçar atendendo mais um ou dois pacientes, sentei-me ao seu lado para “ter certeza de que a medicação estava fazendo efeito”. Eu queria ouvir.

 

(continua)

O Filme

filme2Vou dar só um exemplo, macaco pelado. Só um. Então, agarre-o com as suas mãozinhas glabras e suadas de desespero, com toda a força que puder. Veja só.

Pegue uma boa câmera de filmar. Pode ser celular com câmera também, óbvio. Mas bom. Nossa, como você se prende a detalhes irrelevantes, não? Depois de pegar a câmera, desça pelo elevador e ganhe as ruas. Nas ruas mora o monstro do cotidiano. Mora a vida comum. Nas ruas há vitrines e galerias e é onde está o mundo da vida. Escolha um lugar movimentado qualquer. Ligue a câmera e comece a filmar o que você vê ao seu redor. Filme tudo; vá filmando. Filme os carros, os prédios, as pessoas. Filme-as conversando, paradas ou simplesmente andando. Filme ABSOLUTAMENTE tudo. Até acabar a bateria.

Macaco pelado, você sabe manipular esses aparelhos, não? Sabe sim. Só não sabe muito bem o que fazer com eles, mas vou lhe dizer. Chegue em casa e passe o que você filmou para o computador. Assista. Passe horas, dias, assistindo até quando não aguentar mais ver o filme e me responda com toda a sinceridade – sinceridade com a qual você normalmente não está acostumado a lidar – me responda, macaquinho pelado – à pergunta que farei e que sei, sim, que é a pergunta que você mais teme que eu faça. Na verdade, é a pergunta que você luta para não se fazer!

Pobre macaco pelado… Não vou poupá-lo porque você tem andado meio arrogante nos últimos tempos, viu? É isso mesmo. Então lá vai. Depois de ter filmado tudo o que podia lá fora – no mundo da vida – depois de ter visto esse filme várias e várias vezes, me diga macaco pelado, qual é o sentido desse filme que você acabou de fazer e que viu tantas vezes? Qual é, diz? NENHUM?! Como assim? Mas você filmou o mundo REAL, coisas REAIS, pessoas REAIS, com uma câmera boa, não foi? O que foi que você captou, então? Não foi a REALIDADE? Por que isso tudo não faz sentido, macaco? Será que a realidade não faz sentido?

Nenhum sentido. A  r e a l i d a d e  n ã o  f a z  n e n h u m  s e n t i d o. Descrever a realidade o mais fielmente possível NÃO GARANTE que haja sentido! Explicar é diferente de compreender. Por melhor que seja a câmera, por mais tempo que se filme, por mais longe que se vá, ainda assim, nada fará sentido.

Essa é a sua Ciência, macaco pelado. Uma câmera. Cuidado com os filmes que você faz e principalmente com os que você vê. Agora, quer saber um jeito de como dar algum sentido para as coisas que você filma? Quer sim, eu sei. É fácil. Da próxima vez, conte uma história. Não precisa nem de câmera. Esse é o exemplo. Sacou?

O Instinto da Dança

O Velho entrou na sala e havia uma aluna dançando de costas, em meio a uma roda com outros alunos, que a acompanhavam com palmas tímidas. Sorrateiro, ele até parou de respirar para não ser notado. A forma como ela mexia as mãos e os quadris; havia algo de indiano e sensual. O Velho deixava que sua condição de homem o conduzisse pelos meandros ancestrais e ardentes dos instintos, quando, de repente, a música parou. Como que quebrado o encanto, a presença do Velho se fez notar e os alunos, todos ali, se voltaram para ele, alguns com olhar de espanto, enquanto outros entravam pela porta sem saber o que estava acontecendo.

Depositou suas anotações e livros na mesa e mal-fingiu não notar o que ocorria, ele mesmo, refazendo-se de suas incursões extra-racionais. Mandou que todos se sentassem com o indicador direito apontado para baixo, girando em círculos, acompanhado da carranca característica, sem dizer uma palavra. O cabelo longo e branco movimentava-se também e os alunos sabiam que ele não estava com muita paciência.

– Sabem por que o ser humano dança? – perguntou. Alguém corou na plateia e varreu o ar com a mão para pedir que se desviassem os tantos olhares para lá repentinamente dirigidos, mas isso só foi possível com um novo brado do Velho: – Sabem?!! Silêncio e atenção.

Continuou: – Humanos têm a capacidade de memorizar melodias e, com treino, harmonias. É possível cantar e assobiar melodias. Harmonias, também, de certa forma. Não os ritmos. Gosto de pensar que o instinto do ritmo é a dança. O ritmo, diferentemente dos outros atributos da música, é percebido com propriocepção, receptores de posição, articulares, musculares, ósseos, que nos informam de nossa relação com o espaço. É menos elaborado, menos córtex cerebral, mais primevo e primordial. Nossa relação com o espaço é a forma mais primitiva de ec-sistir. Ser-para-fora. Não é à toa que, na mitologia hindu, Shiva Nataraja é o deus dançante que, de dentro de seu círculo de fogo, cria, conserva e destroi o universo por meio de sua dança. O ritmo cria a vida e também pode destrui-la. O coração tem ritmo. A respiração tem ritmo. Ritmos que podem ser entretecidos, interferindo uns com os outros, ora destruindo, ora construindo outros ritmos. O “andar” tem ritmo. “Copular” tem ritmo. Até o “pensar” tem ritmo. – e colocou os indicadores nas têmporas, recuperando-se da catarse do discurso.

O Velho fez uma longa pausa. Respirou profundamente e passou os olhos pela classe. A aluna que dançava o olhava fixamente. – Professor!? – finalmente disse. – Sim? – ele respondeu com mansidão incomum. Ela hesitou. – Professor. Por que dançamos? – ao que seguiu-se um certo rumor de conversas paralelas, carregadas de surpresa, dada a ousadia da pergunta que o professor acabara de parecer ter respondido. O Velho tinha humor instável e não convinha testar sua capacidade explosiva. Ele respondeu com a agressividade de sempre, mas dessa vez, ela soou um tanto diferente, estranhamente aconchegante apesar de conter um quase imperceptível lamento.

Porque o corpo quer rir. Porque estamos leves. Porque com a dança, trocamos de posição e vemos outras possibilidades de ocupar o espaço no qual ec-sistimos e assim, compreendemos também outras formas de ser. Só um deus que sabe dançar é capaz de criar… Eu só acreditaria em um deus dançante… E, com o riso raro, rodopiou no centro das carteiras. E começou a bater palmas de lado, ao modo dos dançarinos espanhóis, em ritmo sincopado, no que foi seguido pelos alunos com batuques assíncronos na fórmica e reco-recos improvisados com bics em espirais de caderno. Pelos pés, alguns alunos pre(s)sentiram. Outras, Dioniso.

shiva nataraja

Kehl, Freud e o Processo da Verdade

Craig Kiefer no Street Anatomy - clique para ver os créditos

Craig Kiefer no Street Anatomy – clique para ver os créditos

A verdade social não é ponto de chegada, é processo

Maria Rita Kehl

Maria Rita Kehl é dessas mulheres fascinantes. Sou seu fã desde há muito e adoro ouvi-la falar de qualquer assunto. Também adoro lê-la. Não foi à toa que li com carinho seu artigo na Folha de SP no último domingo – 24 de Março de 2013 – data emblemática desde que a ONU a escolheu como o Dia Internacional do Direito à Verdade. Para “rememorá-lo”, como membro integrante da Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita escreveu, sobre Psicanálise e Estados Totalitários, um artigo com o título sugestivo de “A verdade e o recalque“.

No artigo, Maria Rita associa o conceito freudiano de “recalque” – interdição de fragmentos de lembranças e/ou fantasias sexuais, por exemplo – à repetição de sintomas neuróticos que, como uma válvula de escape, permitem dar vazão ao que foi aprisionado à força, no inconsciente. Freud propõe a quebra desse binômio esquecimento/sintoma psíquico pela elaboração do trauma. Até aqui, esse seria, talvez, o pensamento padrão de um psicanalista.

O problema, na minha humilde opinião, está na seguinte frase: “Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintoma sociais”. Bom – pensei -, ao juntar psicanálise e sintomas sociais vamos acabar na Frankfurt do pós-guerra e sua mistura “explosiva” de Freud com Marx de seu Instituto para Pesquisa Social. Depois de uma aproximação pacífica, já em “Eros e Civilização” (1955), Marcuse articula uma crítica ao conceito freudiano de uma repressão orgânica e biológica com a qual teríamos que conviver. No lugar desse “biologismo” freudiano, ele afirma com Marx, que “a submissão efetiva das pulsões através de regras repressivas não é imposta pela natureza, mas pelo homem”[1]. No texto, Maria Rita chega a afirmar que “Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história”. Se Freud leu Marx eu não sei, mas n’ “O Futuro de Uma Ilusão” chega a esboçar uma luta de classes (em livre tradução do espanhol de [2]):

Mas quando uma cultura não superou a situação na qual a satisfação de um número de seus membros tem como pressuposto a opressão de outros, quiçá de uma maioria – e este é o caso de todas as culturas atuais -, se compreende que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra essa cultura que tornam possível com seu trabalho, mas de cujos bens têm escassa participação.

Horkheimer e Adorno, a partir de sua volta a Frankfurt depois de exílio forçado nos EUA, Marcuse, que ficou por lá, e em especial, Habermas alguns anos depois, reformulam suas interpretações públicas das teorias freudianas[2], mas mesmo as críticas da Escola de Frankfurt se tornaram obsoletas quando se viram obrigadas a lidar com a dissolução dos conceitos de totalidade postulados por Marx e Hegel. O próprio Habermas constatou que sua “‘teoria da história da espécie’, elaborada no texto Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), também continuava presa, a exemplo da teoria marxiana, a categorias da filosofia do sujeito e da reflexão, porquanto entendia que os processos de aprendizagem da história mundial se concretizariam em classes sociais e povos, isto é, sujeitos superdimensionados“.[3] (grifos meus). Daí em diante, vem o “Giro Linguístico” e todos os seus desdobramentos, em especial, no que se refere a dissolução do paradigma do sujeito.

Acho problemático que a teoria freudiana do recalque, tão criticada, seja aplicada a um contexto sociológico atual com intuito de estabelecer uma explicação da doença social causada pela interdição da verdade; em que pese a nobreza da causa. Não sei bem porque Maria Rita escolheu esse caminho. Poderia ter usado algo da Teoria Crítica ou mesmo de Hannah Arendt, sei lá. Talvez por objetivos didáticos, já que Freud “pega na veia” e esses autores não são popstars como Freud e ela quisesse causar impacto. Ou talvez por familiaridade com o tema; fico pensando se o não dito, ou no caso, o não citado, também não falaria por si. Também acredito que para dizer, como ela disse lindamente no artigo, que “é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva” pudesse prescindir de Freud. Esse “coletiva” a que ela se refere parece não estar ainda na obra do médico vienense. Essa ligação entre os desejos individual e o coletivo na construção da sociedade moderna talvez só viesse anos depois com a Teoria Crítica. Já a belíssima frase que epigrafa o post demanda algo mais. A verdade como processo é aquisição kafkiana recente da sociedade. Livre.

Por isso, Maria Rita é essencial.

 

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PS. Sensacional, diga-se de passagem, o elegante cruzado de direita que ela dá em Contardo Calligaris pelo famigerado artigo sobre tortura.

 

[1] Souza, MA. Eros e Logos: Marcuse, crítico de Freud. Filosofonet. Publicado em 11/11/2007.

[2] McCarthy, T. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. 4a ed. Tecnos. 1998. pp 230-51.

[3] Siebeneichler, FB. Apresentação à edição brasileira da “Teoria do Agir Comunicativo” de Jürgen Habermas. Martins Fontes. 2012. pp XVIII- XIX.