Lições Andinas

1781394_Z8dDc“O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica”

M. Foucault in ‘Microfísica do Poder’

Somos ricos, somos cultos. Fora os imbecis corruptos“. 

Grito de guerra de um grupo de médicos em manifestação em frente ao Ministério da Saúde ontem.

As práticas de saúde constituem um segmento estratégico para qualquer governante que se preocupe com o bem-estar da população pela qual é responsável. Dentre as possíveis práticas nessa área, se destaca a medicina que, na sua forma ocidental clássica, é a que vem obtendo os resultados mais espetaculares tanto no sentido de aliviar o sofrimento causado por moléstias que acometem o ser humano, como evitar seu aparecimento, seja no âmbito público/populacional ou privado/individual.

Entretanto, as relações entre os governos e a força médica de trabalho, aqui entendida como sendo a constituída pelos profissionais médicos que exercem a medicina, nem sempre coincidiram em ideais e pontos de vista. Tendo como horizonte o atrito contemporâneo entre governo e associações médicas brasileiras, talvez seja interessante relembrar experiências de outros países com problemas semelhantes para que não tenhamos que repetir retóricas ultrapassadas e fúteis, improvisações atabalhoadas e perigosas e discussões desgastantes e contraproducentes, nas quais quem sempre acaba perdendo é o paciente. Tome-se, por exemplo, o papel que os médicos desempenharam no Chile na época do golpe militar.

Salvador Allende Gossens era médico. “A oposição e os conflitos com os quais se defrontou em suas tentativas de modificar o sistema de saúde chileno refletem em miniatura os problemas que conduziram a queda de seu governo”, afirmam Howard Waitzkin e Hilary Modell, esta última, de corpo presente durante o turbulento período do golpe militar, em interessante artigo de 1974 no New England Journal (abaixo). Allende, socialista, foi ministro da Saúde e tentou introduzir amplas mudanças estruturais na redistribuição dos serviços médicos à população pobre do Chile, principal problema da época. Vale ressaltar, que ele “escrupulosamente evitou medidas compulsórias que limitariam a livre escolha de profissionais da saúde e pacientes” (grifos meus).

A maioria dos médicos chilenos era proveniente de uma elite burguesa e preferia a prática privada, em especial nos grandes centros urbanos, onde era mais valorizada. Allende propôs uma série de mudanças para melhorar a distribuição dos serviços médicos que, inicialmente, não incomodaram as associações de classe dado que era permitido que os médicos escolhessem trabalhar no LHC (um tipo de SUS) ou permanecessem na vida privada. Interessante notar que, em determinadas situações, os médicos poderiam, juntamente com sua carga horária normal no LHC, usar os hospitais públicos para assistir seus pacientes privados, num esquema de “fee-for-service”. Quase 90% dos médicos trabalhavam no LHC, mas dispendiam mais tempo e energia cuidando de seus pacientes particulares em razão disso. Apesar dessas distorções, não foram feitas tentativas de eliminar a medicina privada. O governo continuou subscrevendo-a, mantendo as faculdades de medicina gratuitas e o trabalho privado dos médicos inalterado, mudando concretamente muito pouco a situação geral.

Porém, alguns fatores fizeram com que a Associação Chilena de Medicina iniciasse, em 1972, uma vigorosa campanha contra a Unidad Popular (UP, colizão que dava sustentação a Allende), entre elas, são citadas principalmente: a proposição do governo de treinar mais paramédicos, alteração do currículo das faculdades de medicina com vistas à uma visão mais social do problema da saúde, a falta de insumos devido ao boicote imposto ao governo socialista do Chile, em especial, pelos EUA. Em Outubro de 1972, os médicos chilenos entraram em greve. Entretanto, os outros profissionais da saúde (enfermeiras, parteiras, técnicos de laboratório, administrativos, etc) não apoiaram o movimento e os hospitais da LHC continuaram funcionando devido a um esforço conjunto de funcionários, residentes e médicos pró-governo. Essa situação emergencial não pôde se sustentar por muito tempo. “Durante as semanas imediatamente anteriores ao golpe militar de Setembro de 1973, uma nova greve dos médicos desestabilizou o sistema de saúde chileno. A profissão médica, ameaçada pela redistribuição do poder e incomodada pela instabilidade econômica, ajudou a pavimentar o terreno para ditadura”, argumentam os autores do estudo.

Após o golpe, vários diretores de hospitais da NHC (neighborhood health center – hospitais de comunidade) foram detidos no estádio nacional. Trinta e cinco médicos foram torturados e mortos. Professores de medicina, médicos praticantes e trabalhadores da saúde em geral, foram presos, regularmente torturados e classificados como “confiáveis”, “incertos” ou “politicamente perigosos”, conforme suas convicções políticas. Médicos entregaram médicos à polícia do governo. Médicos militares auxiliaram torturas. O sistema de saúde foi reformatado inteiramente com prejuízo às classes mais desfavorecidas. Departamentos de medicina preventiva, saúde pública e de ciências sociais na área médica foram fechados. Médicos comunitários e voluntários nestas atividades, sumariamente demitidos. O regime militar chileno ainda viveria seus piores momentos e o paradeiro de muitos médicos, ainda hoje, é objeto de investigação.

Waitzkin e Modell concluem o artigo citando três lições gerais tiradas da experiência chilena.

1. Em todas as sociedades, mas especialmente as de países em desenvolvimento, a Saúde é intimamente ligada aos sistemas econômico e político da nação.

2. Conflitos no sistema de saúde tendem a refletir em miniatura os conflitos inerentes de uma sociedade estratificada.

3. A experiência chilena mostra que reformas progressivas no sistema de saúde têm pouco significado sem mudanças na ordem social. Profissionais da saúde e usuários devem entender que o esforço conjunto em busca de um sistema de saúde mais humano e justo não terá sucesso sem que haja um esforço concomitante para uma mudança na ordem social.

Atualização: Em 2008 chamei a atenção para o encarecimento da medicina chilena após a implantação do modelo neoliberal, bastante elogiado na época pelo Banco Mundial. Veja só.

ResearchBlogging.orgWaitzkin, Howard; Modell, Hilary (1974). Medicine, Socialism, and Totalitarianism: Lessons from Chile New England Journal of Medicine, 291 (4), 171-177 DOI: 10.1056/NEJM197407252910404

Johns Hopkins

Johns Hopkins

Fig 1. Johns Hopkins (1795-1873)

Johns Hopkins (1795 – 1873) (figura 1) nasceu e viveu em Maryland, EUA. Filho de uma família de fervorosos quakers, seu pai, proprietário de uma fazenda de tabaco, seguiu a determinação da Sociedade dos Amigos local e libertou os escravos que trabalhavam em sua lavoura em 1807. Johns, então com doze anos, interrompeu seus estudos e foi trabalhar na roça. Aos dezessete anos, um tio o chamou para uma sociedade em seu relativamente já bem sucedido atacado de bens de consumo em Baltimore. Lá, Johns conheceu Elizabeth, sua prima, por quem apaixonou-se. O romance, entretanto, não vingou pois não foi permitido por questões religiosas concernentes à consanguinidade que eles se casassem. Johns e Elizabeth juraram, então, não se casar e, de fato, assim o fizeram, não deixando descendentes; fato importante para o que se segue.

Ao longo dos anos, Johns acabou por divergir do tio (que chegou a afirmar que “não podia fazer negócios com alguém que gostava mais de dinheiro que ele próprio”) – mas não exatamente por causa do romance frustrado com Elizabeth: ele queria vender uisque. O tio, quaker, não. Ao, finalmente, romperem a sociedade, o tio deu-lhe dez mil dólares, que ele juntou com mais alguns que outros membros da família lhe adiantaram, contratou três de seus irmãos como vendedores e abriu a Hopkins & Brothers que ficou famosa, entre outras coisas, por distribuir no nordeste dos EUA o Hopkins’ Best (popular destilado de milho que poderia muito bem ter sido degustado pelo nosso Doc Josiah). Quando Johns se retirou da sociedade com os irmãos aos cinquenta anos de idade, já era um homem rico. Lançou-se, então, ao promissor mercado financeiro de Baltimore. Emprestou dinheiro, comprou ações (em especial da Baltimore & Ohio Railroad) e, com um tirocínio incrível para os negócios, amealhou uma enorme fortuna.

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Fig 2. Mapa da Guerra Civil dos EUA (1861-1865). O “Norte” (azul) e o “Sul” (cinza) com os border states (vermelho). Maryland (MD) e Delaware (DE) são representados a leste. Clique na figura para ver o original.

Foi quando a Guerra Civil irrompeu em 1861. Maryland era um border state. Os border states constituíam o “meio de campo” da guerra (estados em vermelho na figura 2, acima) e, por esta razão, eram estratégicos, tanto politicamente (nenhum deles apoiara a eleição de Lincoln), quanto por questões geográficas: exércitos de ambos os lados tinham que passar por eles. Maryland, particularmente, tendo Baltimore, sua capital, a apenas sessenta quilômetros de Washington DC, foi palco de sangrentas batalhas. Além disso, tinha uma economia escravagista, baseada no plantation (como a família de Johns), hostil a Lincoln, dominada por republicanos ferozes, sendo a maioria dos marylanders, por essas razõesfavoráveis às causas sulinas. Mas, Maryland tinha também Johns e outros influentes cidadãos apoiando o Norte. Tudo isso explica o fato de que o estado contribuiu com tropas para o dois lados da guerra e deu origem ao nome Brother against Brother War para descrever a situação absurda em que a guerra colocou os border states. Johns era abolicionista e um grande defensor da União. Sua casa de veraneio (hoje um belo parque) chamada de Clifton, era palco de reuniões frequentes dos simpatizantes do Norte a despeito de represálias frequentes. O auxílio da Baltimore & Ohio Railroads no transporte de tropas e mantimentos foi fundamental para a União, tendo Johns empenhado-se pessoalmente na campanha. Seu envolvimento na Guerra Civil foi tamanho que ainda hoje tal divisão “ideológica” tem seus desdobramentos[1].

Segundo o verbete na Wikipédia, Johns Hopkins era amigo de George Peabody, outro solteirão milionário da época. Peabody é considerado o pai da filantropia americana moderna (chamada de wholesale por razões que veremos em breve). Peabody começou a construir uma escola de arte e música em 1857 mas, devido a guerra, o projeto só foi completado em 1866, não sem certa dificuldade. Segundo conta a história, Peabody iniciou Johns nas atividades filantrópicas. Não se sabe exatamente porque Johns escolheu fundar uma universidade. O fato da elite marylander sulista ter sido derrotada e politicamente cassada por Lincoln após a vitória do Norte, inclusive com a promulgação de uma nova constituição estadual, dado que a anterior era republicana radical, terminou por deixar a cidade em frangalhos. Além disso, a necessidade de um hospital era premente. Epidemias de febre amarela, febre tifóide e cólera eram frequentes, tendo o próprio Johns contraído esta última. O fato é que em 1867 ele escreveu seu testamento. Não deixaria filhos, sua família estava bem. Presenteara Elizabeth com uma bela casa…

Johns morreu na véspera de natal de 1873, dormindo, aos setenta e oito anos. Seus bens foram utilizados postumamente para fundar, pela ordem por ele mesmo estabelecida (segundo a Wikipédia), um orfanato (Johns Hopkins Colored Children Orphan Asylum), em 1875; a Johns Hopkins University em 1876; a Johns Hopkins Press, a editora acadêmica de maior longevidade ainda operando nos EUA, em 1878. Em 1889 foram duas instituições: o Johns Hopkins Hospital e a Escola de Enfermagem (Johns Hopkins School of Nursing). A Faculdade de Medicina (Johns Hopkins University School of Medicine) só viria em 1893. A Escola de Saúde Pública (Johns Hopkins School of Hygiene and Public Health) só no final de 1916, mas já com dinheiro da Fundação Rockefeller (que, logo após, em 1918, iniciou o que seria o Instituto de Higiene de São Paulo, veja só).

O hospital da Johns Hopkins tem sido apontado como o melhor dos EUA por vinte e um anos consecutivos, segundo o U.S. News & World Report. A faculdade de medicina, o hospital e sua escola de saúde pública moldaram a educação médica norte-americana e mundial já a partir do começo do século XX, tendo sido tomados como exemplo pelo Relatório Flexner. Por quê? Quais elementos presentes tão precocemente em sua estrutura acadêmica a puseram à frente de seu próprio tempo? Vivemos ainda sob um modelo “hopkinsniano” de medicina? É o que tentaremos responder a seguir.

 

~ o ~

 

[1] Todo mês de janeiro, como noticiou em 2008 o Baltimore Sun, descendentes de soldados sulistas viajam a Baltimore para prestar homenagens a dois generais lendários dos Estados Confederados da América: Robert E. Lee e “Stonewall” Jackson. Do Wyman Park, local dos monumentos, a multidão caminhava até a Johns Hopkins University, bem próximaonde utilizavam parte das acomodações para lanches e para hospedar-se a preços acessíveis. A direção da universidade, entretanto, informou a divisão de Maryland das Filhas Unidas da Confederação (United Daughters of the Confederacy) e os Filhos de Veteranos Confederados (Sons of Confederate Veterans) que não ia mais alugar o espaço a eles pois não tinha a obrigação de ver a bandeira confederada circulando no campus da Johns Hopkins.

Medicina, Capitalismo e Esquizofrenia

FMUSP

Prédio da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Quem passa pela avenida Doutor Arnaldo vindo da Heitor Penteado em direção à avenida Paulista tem, logo após a rua Cardeal Arco Verde, à sua esquerda, o cemitério do Araçá e suas bancas de flores; à sua direita, pela ordem, o Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza, a Faculdade de Saúde Pública, o cruzamento da rua Teodoro Sampaio, o Instituto Oscar Freire,  a Faculdade de Medicina (acima), o Instituto Adolfo Lutz, o moderno prédio do Instituto do Câncer, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas e finalmente, a ponte sobre a Rebouças que dá acesso à rua da Consolação e à Paulista. A depender do trânsito, sempre muito intenso na região, não é raro perder quinze ou vinte minutos neste trajeto de quinhentos metros tendo como visão algumas das mais antigas instituições estatais da Saúde Pública do estado de São Paulo. Isso sem esquecer que tal fachada esconde o complexo gigantesco do Hospital das Clínicas que se estende até a rua Artur de Azevedo, tendo como limite a Teodoro Sampaio e a Rebouças. Tal como uma parada na qual quem se move são os espectadores, desfilam diante nós instituições centenárias ao lado de modernas instalações hospitalares numa paisagem que tem sido descrita como local “onde a tradição se junta à inovação tendo como objetivo a saúde da população”. É uma demonstração de poder. Público.

Quando entrei a primeira vez no prédio da Faculdade de Medicina, lembro-me bem, tive um tipo de dispneia (vale a visita, agora que está restaurada). “Nem parece que estamos no Brasil” – diziam com orgulho. O intróito é de mármore italiano. A escadaria central é imponente e, ao mesmo tempo, discreta. As salas de aula, tradicionais e belas. Vitrais, janelas, o relógio. As salas da diretoria e da Congregação são máquinas do tempo de austeridade e estilo. Obras de arte. Apenas lá pelo terceiro ou quarto ano da faculdade, a memória agora me falha, descobri que nossa belíssima casa fora construída com capital privado dos EUA proveniente da Fundação Rockefeller, por meio de acordos que se iniciaram no longínquo ano de 1916. Também o prédio do Instituto Oscar Freire, da Faculdade de Saúde Pública, do Hospital das Clínicas, além da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, ou receberam incentivos, ou foram totalmente construídos com verbas da mesma fundação. Demorei algumas décadas para me dar conta de tal extravagância. Na medida em que fui me inteirando dos fatos, questões foram surgindo. Por que cargas d’água uma fundação norte-americana com capital gigantesco proveniente da refinação monopolizada do petróleo e outras commodities (como carvão), forjada no pós-guerra civil (presumivelmente um conflito anti-escravidão), financiaria uma faculdade de medicina em um país sul-americano que, apenas algumas décadas antes do início das negociações, era uma monarquia escravagista? Por que o Brasil, e especificamente, a cidade de São Paulo? A medicina praticada aqui e lá era assim tão diferente para haver uma “exportação de tecnologia” dessa monta? Por que a Fundação Rockefeller acatou integralmente o tal relatório Flexner sobre ensino médico financiado por outra instituição (abastecida pelo capital da exploração também monopolizada do aço norte-americano) a Fundação Carnegie? Qual seria a relação entre esses eventos e a vinda de médicos norte-americanos ao Brasil, como Alan Gregg?

Desta vez, tive um tipo de cefaleia; e vertigem também. Isso sempre acontece quando tenho que pensar uma coisa muito grande e acho que minha cabeça não vai dar conta de pensar tudo, até o fim. Me foi inevitável relacionar os discursos de vários colegas e entidades médicas de hoje, expostos que estão por força de atitudes governamentais (vide Ato Médico, Programa Mais Médicos, etc), com as bases da estruturação do ensino médico no Brasil e, particularmente, em São Paulo. Haveria algo assim como uma “ideologia médica” alienante, esquizofrenizante? Algo que misturasse o humanismo visceral que os verdadeiros médicos carregam em suas entranhas com um vício de pensamento egocentrado e auto-referente? O que seria isso e como o diagnosticamos? De onde vem? Ao trazermos, com força, ao debate acalorado de hoje, a ciência que nos embasa e nossa própria sabedoria prática médica como argumentos inelutáveis ao criticismo “laico”, não estaríamos também invocando os fantasmas de um certo “conservadorismo sofisticado”, autoritário e paternalista, aos moldes dos grandes filantropistas à frente de suas poderosas fundações? Teria tudo isso alguma relação com a enorme crise na saúde norte-americana e seu encarecimento sem precedentes, com a interação, por vezes, promíscua dos médicos com as indústrias farmacêutica e de tecnologia médica, com o teor do que é publicado como ciência médica nas revistas especializadas, com as regras do jogo que transforma alguns de nós em professores titulares?

Tomei um grama de dipirona e fiquei com seu(?) gosto amargo na boca.

O Filho do Pastor e o Padre

Allan Gregg

Alan Gregg (cerca de 1919). Do Profiles in Science (public domain). Clique na foto para o original.

Esse moço de chapéu, cachimbo, trajando longas botas e aquelas calças de explorador usadas em filmes de aventura, nasceu em 1890 na cidade de Colorado Springs, no Colorado – Estados Unidos da América. Seu nome: Alan Gregg. Filho de um pastor congregacionalista e uma musicista, logo partiu para estudos em Boston, tal como seus três irmãos mais velhos, cidade onde sua família vivia antes de seu pai ser transferido para o Colorado. Na época em que a foto foi tirada, ele tinha por volta de vinte e nove anos de idade. Alan, se assim podemos chamá-lo, tinha um espírito muito aventureiro. Em 1914, quis alistar-se para a Primeira Guerra Mundial (1914-18), mas pelo Canadá, já que os EUA ainda não havia enviado tropas para o confronto, o que, de fato, só ocorreria em 6 de Abril de 1917. Foi convencido que seria muito mais útil se terminasse a faculdade que ora cursava. Seguiu, então, o conselho de seus tutores graduando-se em medicina pela Harvard em 1916 e, ao final do ano seguinte, após um internato breve, integrou a equipe médica britânica em território europeu (mesmo destino, aliás, do cirurgião brasileiro Benedito Montenegro [pdf], formado em 1909 pela Universidade da Pensilvânia. Montenegro, entretanto, serviu do lado francês do conflito). Mas, voltando ao Alan, no período que seguiu ao seu retorno da Europa, não sabia ao certo qual rumo dar a sua carreira, profundamente impactada pela experiência da guerra. De conversa em conversa, encontrou algumas pessoas interessantes e a uma específica solicitou um “serviço que qualquer outro médico recusaria”. Um serviço que fosse o “mais selvagem e mais difícil” que um médico pudesse ter em tempos de paz. A pessoa a quem ele pediu tal missão escreveu, anos depois, que diante de tal solicitação, tentou fazer exatamente o que lhe foi pedido.

Em Março de 1919, então, Alan Gregg desembarca na cidade do Rio de Janeiro. A foto é desse período.

Mas por que viria Alan a terras brasileiras? “Depois de trabalhar em laboratórios no Rio de Janeiro e estudar a ancilostomíase (“amarelão”) e mosquitos transmissores de malária, Alan foi enviado a rincões remotos do país onde trabalhou em campanhas com equipes de saúde pública locais, tanto diagnosticando, como tratando aldeões infectados pela endemia.”

MiltonConduziu pesquisas e escreveu relatórios técnicos sobre a ancilostomíase e sobre as condições sanitárias gerais do país. Durante os três anos em que ficou no Brasil afirmou ter mudado consideravelmente sua visão da medicina entendendo que a prática médica de então só teria sucesso em sua vertente “preventiva” posto que a “curativa” não tinha, como vimos, um êxito técnico muito significativo; além disso, sua própria carreira de médico teve seus horizontes ampliados ao adquirir aqui a base para a apreciação de outras culturas. “No Brasil de então”, ele relembra em uma de suas cartas a amigos nos EUA, “após descer de um trem, você volta no tempo. Nos jogos infantis, as crianças entoam música gregoriana porque as pessoas não dispõem de melodias mais recentes.” (Eu, cá com os botões do meu avental, pressuponho que Alan possa ter cruzado com algum “parente” desses moleques de cara suja da foto ao lado, a cantar, pelo interior das Minas Gerais, o que seria, neste caso, um avanço no tempo, mas… isso jamais saberemos de fato).

Alan teve dificuldades no trato com a cultura brasileira. Certa vez, conta, ao chegar a um vilarejo, não estava conseguindo convencer os moradores a deixarem-se examinar pela equipe médica. Ele apelou então ao padre da igreja local, um polonês, também em missão. O padre perguntou a Alan se ele vinha levando uma vida dúbia e a razão de desperdiçar dinheiro com aquela pobre gente não seria a de fazer uma “oferenda pacífica” a seu Deus. Alan retrucou perguntando se deveria haver algum motivo para dar comida e dinheiro a pessoas fracas e famintas. Quando o padre disse que seus motivos deveriam ser caridade ou mesmo uma sensação de culpa, Alan sentiu um sufocante desejo de concordar mas, ao invés disso, disse que seu patrão acabara de doar uma quantia de 3 milhões de dólares à Polônia. Isso aparentemente convenceu o padre que concordou em intervir, favoravelmente a Alan, junto a seu rebanho.

O fato é que, depois de tantas experiências, Alan Gregg estava pronto para deixar o Brasil em 1922. Seus nada misteriosos patrões americanos o chamaram de volta aos EUA para integrar a diretoria adjunta da recém-fundada Divisão de Educação Médica da Fundação Rockefeller. Ele tinha um trabalho a realizar. Ao redor do mundo.

O Ethos Médico e o Espírito do Capitalismo

Dr Josiah “Doc” Boone por Thomas Mitchell em “No tempo das Diligências” (Stagecoach-1939)

A medicina do final do século XIX não tinha o discurso empoderado, nem tampouco o status atual (se bem que este último anda bastante combalido, convenhamos). Abrigava em sua “maleta” múltiplas teorias de doença que a dividiam em escolas beligerantes; era tecnicamente ineficaz; não tinha nenhum tipo de controle governamental e, por isso tudo talvez, era também mal remunerada e pouco reconhecida como profissão.

No Brasil, um exemplo que talvez tipifique tal situação é a Revolta da Vacina (1904) iniciada por uma  decisão do médico brasileiro de maior prestígio nacional e internacional de então, Osvaldo Cruz, em vacinar contra a varíola, compulsoriamente, os habitantes da cidade do Rio de Janeiro. Sem conseguir convencer as pessoas dos benefícios de sua decisão, a revolta terminou por deixar trinta mortos e cento e dez feridos, sendo centenas de pessoas presas, muitas delas depois “deportadas” para o Acre. (O episódio foi recentemente reconstituído por uma novela.)

Na América do Norte a situação não era diferente. Os médicos norte-americanos do começo do século XIX não tinham lá muito boa fama. Tal arquétipo, encarnado pelo premiado (Oscar de melhor ator coadjuvante em 1939) Thomas Mitchell que interpretou um médico alcoólatra no filme “No tempo das diligências” de John Ford, com John Wayne no elenco, estava mais para um fracassado que para bom partido. Seu enorme coração e sua coragem não garantiam ao Dr. Boone os bons resultados. Sua especialidade eram mesmo os destilados de milho do Velho Oeste.

Na década de 30, contudo, a medicina norte-americana já era uma profissão organizada em sociedades médicas de caráter econômico e científico. Os médicos passaram a ascender socialmente, aumentando seus ganhos financeiros e também sua importância no cenário político das cidades. Faculdades de medicina e hospitais tornaram-se o centro da prática médica concebida como atividade tecnológica e voltada para obtenção de resultados objetivos. O que teria ocorrido? Qual mudança foi responsável por esse salto de qualidade? Que onda de modernidade daria conta de passar a limpo a medicina e tornar os EUA a potência biomédica que são hoje? Conta a história oficial que, no início do século XX, grandes reformas na educação médica foram instauradas e ajudaram a organizar o grande caos que reinava no Canadá e nos Estados Unidos. Abraham Flexner, educador e professor americano, foi o mentor dessa reforma. Visitou 155 escolas de medicina (131 dos EUA e 24 do Canadá) e produziu um relatório que é seminal nas discussões sobre ensino médico (em pdf) até hoje. Nesse relatório, ele define o que seria um currículo ideal para as faculdades de medicina tendo como modelo a faculdade de medicina da Johns Hopkins. Foram fechadas quase uma centena de faculdades que não se adequaram ao procedimento padrão. Feita a “poda”, a medicina poderia então, florescer e dar bons frutos na América do Norte.

Mas, algumas questões sobre esse mainstream histórico têm sido levantadas. Em especial, porque muitas das causas da brutal crise que se abate sobre a medicina em vários lugares do mundo podem ter sua origem nesse período extremamente turbulento da história da humanidade. Tal transição a que me referi acima e o consequente ethos médico que se deu a partir de então, foram forjados no espírito do capitalismo agressivo e esfomeado do início do século XX e que tomou de assalto, não só a medicina e outras ações humanitárias, mas também, todo o sistema de ensino norte-americano, dado que a mão de obra especializada se constituía no grande óbice à formidável expansão econômica que logo se seguiu. Não se discute a inovação tecnológica e científica da medicina atual, discute-se sua forma de ser nessa tecnociência. Em tempos nos quais a importação de médicos – alegadamente objetivando preencher vazios assistenciais que os esculápios autóctones não conseguem (ou não querem) preencher -, parece iminente e, em meio a medidas atabalhoadas do governo federal contra um establishment de branco, algo demonizado até, em que pese sua óbvia responsabilidade sobre a situação atual, uma leitura histórica parece se impor mais do que nunca.

Espero que tal abordagem ajude a clarificar a diferença entre medicina e ciência, que alguns ainda insistem em não ver. A medicina e seu hibridismo epistemológico atávico, não é ciência e o tecnicismo atual que transforma médicos em tecnólogos da saúde já tem sido suficientemente criticado. Por outro lado, sua importância nas políticas de saúde faz dela uma atividade estratégica ao poder estatal. Reduzir a medicina a um instrumento político é perigoso e ineficaz, e a história é pródiga em exemplos que mostram que quem mais sofre com isso sempre são os mais indefesos. Vivemos as vicissitudes de um modelo médico que escolhemos há duzentos anos. Achar que as responsabilidades desse modelo recaem apenas em seus executores de branco é um ato de pusilanimidade. Aos leitores médicos, não reconhecer nossas responsabilidades sobre tal situação é covardia.

Um passo atrás, por favor. Que outros possam me ajudar a recontar essa história. Talvez assim, possamos entender o presente caótico e planejar um futuro melhor.

Carta-Resposta do Prof. Maurício Rocha e Silva

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Segue a carta do prof. Maurício Rocha e Silva sobre a suspensão de revistas médicas brasileiras pelo JCR, conforme publicado neste blog. As opiniões do autor não são necessariamente as mesmas do editor do blog. Esperamos, entretanto, que isso possa fomentar um debate salutar sobre as publicações científicas brasileiras, debate de importância maior para amadurecermos no nosso papel de relevância científica que conquistamos a duras penas. Todas as perguntas dirigidas ao autor do texto lhe serão encaminhadas por email e me comprometo a publicar integralmente, tanto as questões, quanto suas respostas. (Me reservarei, contudo, no direito de editar eventuais textos ofensivos e em “caps lock” abusivo).

Ainda a propósito da suspensão de revistas pelo JCR

Mauricio Rocha e Silva

Editor, Clinics

Clinics foi suspensa por um ano do Journal Citation Reports (JCR) 2012. A suspensão foi provocada por dois artigos publicados em 2011. A suspensão significa que CLINICS não teve Fator de Impacto divulgado para 2012 pelo JCR. Este é responsável pela publicação do fator de impacto de 8.841 periódicos científicos mundiais. Mas não é a única agência avaliadora no mundo, como veremos adiante.

O Hospital das Clínicas e a Editoria de Clinics estão examinando determinados aspectos do ato de suspensão e entendem que não existem fundamentos dentro das regras JCR em vigor que justifiquem esse ato.

Há que notar que, até hoje, o site JCR continua a afirmar que “Suppressed titles were found to have anomalous citation patterns resulting in a significant distortion of the Journal Impact Factor.” (Títulos suprimidos apresentaram padrões anômalos de citação, que resultam numa distorção significativa do Fator de Impacto da Revista). Isto só pode significar que a condição obrigatória para suspensão é uma distorção significativa do Fator de Impacto.

E qual foi a distorção significativa provocada em nosso fator de impacto? Clinics foi suspensa pela publicação de dois artigos na Revista da Associação Médica Brasileira sobre pesquisa científica brasileira em áreas específicas do conhecimento: aparelhos cardiorrespiratório e locomotor. Estes artigos citam 330 artigos brasileiros, dos quais 127 publicados pela CLINICS. Estas 127 citações representam apenas 18% de todas as citações recebidas pela CLINICS em 2011 (total 704 citações) Como consequência, o Fator de Impacto de Clinics elevou-se em 22% (de 1,687 para 2,058). Como é que esta distorção de fator Impacto é comparada com outras no sistema ISI? Para isso realizamos uma avaliação por amostragem pesquisando 200 revistas não suspensas pelo JCR e escolhidas randomicamente. Convidamos qualquer leitor a fazer o mesmo: escolha o seu método de randomização e veja o que aparece. Esta análise revelou 31 revistas (15,5%) com elevações de Fator de Impacto iguais ou superiores aos 22% da Clinics. Estendendo esta amostragem para o universo de 8841 revistas pode-se esperar encontrar cerca de 1300 revistas com “distorções” iguais ou superiores às da CLINICS. Nenhuma dessas foi suspensa. Entenda-se: não estou acusando de distorção estas revistas semelhantes à CLINICS e não suspensas. Estou simplesmente mostrando que o que não é infração ética para tantas, subitamente virou infração para Clinics.

Como notei, o JCR não havia instituído essa modalidade de impropriedade de citação em 2011, quando os artigos foram publicados. As primeiras revistas suspensas por stacking o foram em Junho de 2012. Três revistas foram suspensas por citações circulares. Só então é que se ficou sabendo que esta modalidade passara a existir. Consequentemente, a nova regra foi aplicada retroativamente à Clinics. Mesmo agora, junho de 2013, as regras continuam obscuras e dão a JCR margem para ações discriminatórias.

Vale repetir: o JCR não detém monopólio mundial de avaliação de impacto. Duas outras grandes instituições também o fazem. (1) A editora científica Elsevier, a maior do mundo, sediada na Holanda, possui um site  www.scimagojr.com, que divulga um impacto entendido pela CAPES, pela FAPESP e pelo CNPq como equivalente ao da JCR. Continuamos ali representados e quem quiser saber quanto será o nosso impacto Scimago 2012 só precisa esperar até o próximo mês de julho. (2) SCIELO, uma das mais importantes experiências de catalogação científica do mundo, sediada em São Paulo, publica também um Fator de Impacto. Continuamos ali representados. A suspensão de Clinics no JCR choca de frente com a não suspensão no Scimago e na SCIELO.

Mesmo que comentaristas inseridos neste e noutros blogs prefiram discordar de nossa posição, seria muito mais conveniente evitar a indecorosa e anônima pressa de criminalizar um evento entendido pela própria JCR como mera decisão técnica. CLINICS foi apenas excluída do JCR em 2011. Tudo o mais referente a ela continua incluído no sistema JCR e decorre normalmente.

Aproveito para reafirmar e renovar nosso compromisso com a informação ética e verdadeira da ciência, dentro do conceito de dignidade da atividade científica.

Ainda sobre as Revistas Suspensas

Este texto é a continuação desse e, de certa forma, também um esclarecimento sobre alguns conceitos que, ou foram colocados de forma errônea no anterior, ou ficaram ambíguos. Então, vamos lá.

BlockedAparentemente, no dia 19/06/13, a Thomson Reuters publicou uma nota na qual suspendia 4 revistas brasileiras de sua principal metapublicação: o Journal Citation Reports® (JCR). Isso significa que as publicações ficarão sem o fator impacto do ano de 2012, conforme esclarece carta enviada pelos editores a assinantes e revisores das revistas, publicada no post anterior. As revistas, mais uma vez, são, em ordem alfabética: Acta Ortopédica BrasileiraClinics, Jornal Brasileiro de Pneumologia e Revista da Associação Brasileira de Medicina.

A razão alegada para suspensão parece ter sido a prática de stacking, mas a nota da Thomson Reuters não deixa isso claro, falando apenas “em padrões de citação anômalos que resultaram em distorção dos respectivos fatores impacto”. Entretanto, os editores das revistas devem ter recebido uma notificação mais específica, dado que a prática de stacking foi citada na carta e também pelo prof. Maurício Rocha e Silva em comentário neste blog.

Autocitação e stacking são práticas condenadas pela Thomson Reuters porque aumentam o fator impacto das publicações artificialmente, dando a elas uma relevância irreal. Segundo Paul Jump do portal britânico THE (Times Higher Education) sobre educação superior, a Thomson Reuters começou a procurar no ano de 2012 o que ela chamou de “citation stacking“. Marie McVeigh, diretora do JCR, definiu a prática como “um específico e anômalo padrão de troca de citações entre dois jornais”, ou seja, “O Jornal A cita excessivamente um Jornal B” durante o período do cálculo do impacto. Naquele ano, três revistas – Cell Transplantation, Medical Science Monitor e The Scientific World Journal – foram excluídas do JCR referente a 2011 devido a tais comportamentos. Em 2012, a lista aumentou para 66 publicações de países como Espanha, China, EUA e Brasil. A Autocitação é uma prática considerada mais grave e é punida pela agência com dois anos de banimento.

Os editores das quatro revistas brasileiras contestam a validade da suspensão, talvez por intermédio de recurso enviado à Thomson Reuters; não sei. Do ponto de vista ético, tudo isso é muito desagradável. O Brasil teve uma ascensão grande no cenário científico mundial nos últimos anos e nossas revistas ganharam muito em importância. Situações como essa só vêm confirmar o preconceito que sofremos quando tentamos publicar nossos estudos em revistas internacionais, em especial, as anglófonas. Nesse caso, o melhor é esclarecermos tudo, doa a quem doer. Por isso, aguardo ainda manifestações dos editores das revistas, a quem ofereço o espaço deste humilde blog, de pessoas envolvidas nas publicações ou de qualquer um que possa nos ajudar jogar um pouco de luz nessa escuridão desconfortável.

 

PS. Agradeço aos leitores Sibele Fausto, Raptor e Suzana Silva pelos esclarecimentos.

Suspensão de Revistas Médicas Brasileiras

Bandeira Vermelha

Em um documento datado de 18/06/2013 (não consegui checar a data com certeza), a Thomson Reuters, proprietária de índices cientométricos como o Fator Impacto (FI), por meio do seu Journal Citation Reports®, divulgou uma lista de jornais suspensos de sua principal indexação. A lista pode ser vista aqui, no item Editorial Information, Title Suppressions. Uma apresentação em pdf (de onde tirei a foto acima) que explica as razões da “supressão” pode ser baixada aqui e por qualquer um que digitar “suppression journals” no oráculo buscador. A explicação para a punição vai abaixo, em tradução livre do inglês.

As métricas para os títulos listados abaixo não são publicadas no JCR 2012. Foram encontrados padrões de citações anômalos resultando em uma signifante distorção do Fator Impacto de revistas, de modo que o rank não reflete precisamente a performance da respectiva publicação na literatura. O fator impacto proporciona uma medida importante e objetiva da contribuição da revista na comunicação acadêmica e sua distorção e concentração excessiva de citações é uma questão séria. A equipe do JCR monitorará tais revistas que poderão ser incluídas em edições vindouras quando o problema das citações for resolvido. A cobertura das revistas na Web of Science e outros produtos da Thomson Reuters não será imediatamente afetada pela suspensão no JCR entretanto, o títulos podem ser objeto de revisão no intuito de determinar se os padrões de qualidade e publicação necessários para inclusão na Web of Science são atingidos.

Em outras palavras, as revistas foram suspensas por auto-citação. Uma estratégia que faz com que o FI aumente artificialmente. No exemplo da apresentação, uma revista teria FI 10, caso fossem consideradas as auto-citações. Ao retirá-las, o FI cai para 2. A tabela abaixo (clique para aumentar) mostra as 4 revistas brasileiras “suspensas” do repositório (CLINICS, J BRAS PNEUMOL, ACTA ORTOP BRAS e REV ASSOC BRAS MED).

tabela clinics

A primeira delas é a antiga revista do Hospital das Clínicas da FMUSP, agora denominada CLINICS, cujo FI é maior que 2. Na lista há ainda outras revistas brasileiras importantes na área médica como os Arquivos Brasileiros de Cardiologia e o Jornal Brasileiro de Pneumologia. O texto ficou ambíguo e devo enfatizar que os Arquivos Brasileiros de Cardiologia não foram suspensos do repositório, caso não tenha ficado claro.

Ainda não localizei manifestações das revistas defendendo-se ou justificando-se, nem sei quantificar o quanto isso prejudicará a imagem delas e a nossa. Também não sei se dá para colocar todas as revistas no mesmo balaio. Vou monitorar isso e se houver novidades, publicarei. Se algum leitor mais bem informado tiver algo a acrescentar, por favor, faça-o. Se precisar sigilo, é só pedir.

Atualização 24/06/13 23:15

Publico, na íntegra, carta dos editores das 4 revistas que acabei de receber.

24-Jun-2013

Dear Dr,

As you may know, Acta Ortopedica Brasileira, Clinics, Jornal Brasileira de Pneumologia and Revista da Associação Médica Brasileira have been suspended for one year from the Journal Citation Reports (JCR) 2012. This means these journals have no published Impact Factor for 2012. However, they continue indexed in the ISI Web of Science and consequently, all citations to and from articles in these journals continue to be counted by ISI. The suspensions do not affect the Impact Factor of any other JCR periodical. It should also be noted that we are indexed in Scimago (www.scimagojr.com) with impacts similar to those normally posted in JCR. A new edition of Scimago is scheduled for July, 2013.
According to information provided by Thomson Reuters, the four journals have been suspended for allegedly performing “stacking”, defined by Thomson Reuters as an accumulation of citations to one journal in articles published in a different journal. This was instituted by ISI as a form of inappropriate usage of citation in 2012. The alleged breach occurred in 2011. Therefore, ISI has used this retroactively to suspend the four journals. We confirm that we published articles to highlight specific aspects of Brazilian Science in 2011. These articles covered topics in the highlighted theme published by a large number of different Brazilian Science Journals. This is a common practice in the entire world and comes under the name of review articles. Unfortunately this new modality of ISI policy prevents us from continuing to perform this service to the community, namely the reporting of information relating to recently published Brazilian Science. We regret the inconvenience caused by this new ISI policy. Acta Ortopedica Brasileira, Clinics, Jornal Brasileira de Pneumologia and Revista da Associação Médica Brasileira wish to take this opportunity to reaffirm and renew their commitment with ethical and truthful reporting of science, within the dignified concept of scientific activity.

Olavo Pires de Camargo
Editor, Acta Ortopedica Brasileira

Mauricio Rocha e Silva
Editor, Clinics

Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho
Editor, Jornal Brasileiro de Pneumologia

Bruno Caramelli
Editor, Revista da Associacao Medica Brasileira

Parece que o problema são os artigos de revisão e/ou de comentários sobre artigos publicados por/em revistas brasileiras que, na nova política, são considerados auto-citações. Aguardaremos os novos desdobramentos.

Transplante de Fezes

Parece* que nascemos mesmo livres, ao menos dos germes. Estéreis ou, como os cientistas gostam de dizer, gnotobióticos. Logo após o nascimento, entretanto, no período neonatal, somos já colonizados. O tipo de colonização é bastante influenciado pelo contato materno mas é, sob alguns aspectos, uniforme. Há mais de cinquenta filotipos de bactérias mas apenas quatro nos adotaram como lar. São eles os Firmicutes, os Bacteroidetes, as Actinobacterias e as Proteobacterias (parece Game of Thrones, né?). Mas, por que só quatro? Essa especificidade sugere uma interação de poderosas forças seletivas que permitiram eliminar algumas e manter outras espécies em co-evolução.

microbiota11

Fig. 1 – Esquema de distribuição dos filos bacterianos em um ser humano saudável. A área de cada setor do gráfico está relacionada ao número de diferentes espécies bactérias do filo no determinado sítio do hospedeiro. (copiado com permissão do Meio de Cultura)

Apesar de seguirmos esse padrão geral, cada ser humano parece ter uma combinação própria de bactérias desses filos, tornando a microbiota quase uma assinatura microbiológica de cada pessoa. As regras que governam a co-existência de humanos e bactérias de acordo com esse modelo ainda não são bem elucidadas, mas o fato é que alguns estudos em animais de laboratório gnotobióticos mostraram que tais bactérias não são fundamentais para o desenvolvimento normal desses bichos. Por outro lado, a gnotobiose não ocorre de forma espontânea na natureza. Então, parece realmente que obtemos alguma vantagem de nos deixar ocupar. No nosso caso específico, a microbiota que nos habita facilita a incorporação de vitaminas e nutrientes, ajuda no desenvolvimento e manutenção da integridade dos tecidos, em especial da mucosa intestinal, além de estimular em muitos aspectos as defesas contra invasores causadores de doenças, para citar alguns exemplos. Um desses invasores tem tirado o sono de médicos e microbiologistas: o Clostridium difficile. Vamos conhecê-lo mais de perto.

Clostridium difficile (C diff)

Fig. 2 – Fotografia de microscopia de população de Clostridium difficile no intestino sem microbiota nativa. (Copiado do The Guardian Foto de Dr David Phillips/Getty Images). Clique na foto para ver o original.

O Clostridium difficile é um bacilo (forma de bastão) anaeróbio obrigatório (não utiliza oxigênio), gram-positivo, que faz parte da microbiota intestinal e produz duas toxinas (A e B). A toxina A é uma enterotoxina que causa aumento da permeabilidade intestinal e secreção de fluidos, enquanto a toxina B é uma citotoxina que causa intensa inflamação dos cólons. Por isso, o clostrídio causa uma colite que chamamos de pseudomembranosa devido ao seu aspecto macroscópico à colonoscopia. O Clostridium difficile pode provocar até 20% dos casos de diarreia associada a antibióticos e é uma das causas mais comuns de diarreia adquirida em hospitais, em geral, em pacientes já debilitados o que além de dificultar o tratamento, aumenta o número de complicações. O tratamento para a colite por C. difficile consiste na administração oral de antibióticos (metronidazol ou vancomicina). Além disso, a taxa de recidivas é muito alta (15 a 26% dos pacientes). Nenhum tratamento efetivo contra as recorrências está disponível e o que temos é a prescrição de vancomicina prolongadamente. Isso, além de diminuir progressivamente sua eficácia, pode também ser a causa do problema. O que fazer?

Cascao ideia

Foi quando alguém teve a brilhante ideia que dá título a esse texto.

Ora, se o problema é um desbalanço na microbiota intestinal, vamos tentar restabelecê-la. Inicialmente, foram tentadas bactérias como os próbióticos (lactobacilos, etc). Não deu certo. Quando se tem pacientes morrendo e não se dispõe de terapias adequadas, a necessidade cria alternativas, muitas vezes desesperadas ou mesmo inusitadas.

“Por que não passamos as bactérias de um indivíduo saudável para um doente?” – pensou algum médico desesperado. “Sim. Mas como faremos isso?” – respondeu seu amigo pragmático. “Ora, infundimos um lavado de fezes do intestino do saudável para o doente… Simples!”.  Foi o que fez o grupo de pesquisadores holandeses liderados por Els van Nood, citados abaixo. Por mais nojento que possa parecer, a coisa funcionou. E muito bem. O estudo teve que ser interrompido em sua análise interina pois, com apenas 43 pacientes randomizados, foi possível demonstrar uma nítida melhora no grupo tratamento com 16 pacientes. Qual tratamento? O intestino dos indivíduos com clostrídio era lavado e após isso, infundia-se, por meio de uma sonda nasogástrica, 500 ml de solução constituída de material fecal de um doador saudável (ver metodologia original no final do texto). Paralelamente a isso, foi tentado o tratamento convencional com vancomicina e ainda, uma mistura dos dois. A figura 3 mostra a taxa de cura de cada tratamento.

van Nood

Fig. 3. Gráfico mostrando a taxa de cura de acordo com os tratamentos instituídos com as respectivas significâncias (p) de cada grupo comparado com os outros. Para mais explicações, ver o texto.

O primeiro grupo, representado na coluna mais a esquerda, mostra a taxa de cura com uma infusão única. Se isso não resolvesse, era tentada uma nova infusão com fezes de um doador diferente. Esses resultados são agrupados na segunda coluna do gráfico da figura 3. A vancomicina sozinha ou associada às infusões parece realmente ser inferior. Interessante também avaliar a diversidade da microbiota dos pacientes após as infusões.

microbiota

 Fig. 4. Gráfico mostrando a variação da microbiota intestinal nos pacientes antes e após a infusão de fezes, comparando com os doadores de acordo com o índice de recíproco de Simpson. Para mais explicações, ver o texto.

A microbiota intestinal foi avaliada por análise de DNA usando microarray filogenético (Human Intestinal Tract Chip – HITChip) e a diversidade das comunidades bacterianas antes e depois da infusão de fezes usando uma escala chamada de Simpson’s Reciprocal Index of Diversity, que vai de 1 a 250, com os maiores valores indicando maior diversidade. É nítida a mudança após a infusão, ficando os pacientes com uma microbiota tão diversa quanto a dos doadores.

A conclusão é que o tal transplante de fezes funciona para o tratamento de infecções recorrentes pelo Clostridium difficile. Dito isto, podemos começar a imaginar algumas coisas. Muitas afecções atuais, que vão desde a obesidade até doenças cardíacas passando por fibromialgia, pancreatite e autismo, estão sendo atribuídas a alterações da microbiota (figura 5).

Microbiota2

Fig. 5 – Esquema de possiveis doenças e/ou complicações associadas a alterações da microbiota intestinal. Clique na foto para ver o original.

Será que os futuros tratamentos vão ser…? Sei lá. Melhor nem pensar… Espero que alguém imagine uma cápsula deglutível que nos traga colonizadores saudáveis e nos livre de tais procedimentos pouco aprazíveis. Seria o caso de instituirmos um tipo de microhiperneocolonialismo do bem? Sim, porque a abordagem convencional de partir pra porrada e dar “veneno” para as bactérias, dividindo-as entre boas e más, parece não surtir mais efeito (como em tudo, aliás).

*Atualizado em 23/06/2013

 

Referências

Blaser, M., & Falkow, S. (2009). What are the consequences of the disappearing human microbiota? Nature Reviews Microbiology, 7 (12), 887-894 DOI: 10.1038/nrmicro2245

van Nood, E., Vrieze, A., Nieuwdorp, M., Fuentes, S., Zoetendal, E., de Vos, W., Visser, C., Kuijper, E., Bartelsman, J., Tijssen, J., Speelman, P., Dijkgraaf, M., & Keller, J. (2013). Duodenal Infusion of Donor Feces for Recurrent New England Journal of Medicine, 368 (5), 407-415 DOI:10.1056/NEJMoa1205037

Apêndice

Infusion of Donor Feces – methodology

Donors (>60 years of age) were volunteers who were initially screened using a questionnaire addressing risk factors for potentially transmissible diseases. Donor feces were screened for parasites (including Blastocystis hominis and Dientamoeba fragilis), C. difficile, and enteropathogenic bacteria. Blood was screened for antibodies to HIV; human T-cell lymphotropic virus types 1 and 2; hepatitis A, B, and C; cytomegalovirus; Epstein–Barr virus; Treponema pallidum; Strongyloides stercoralis; and Entamoeba histolytica. A donor pool was created, and screening was repeated every 4 months. Before donation, another questionnaire was used to screen for recent illnesses.

Feces were collected by the donor on the day of infusion and immediately transported to the hospital. Feces were diluted with 500 ml of sterile saline (0.9%). This solution was stirred, and the supernatant strained and poured in a sterile bottle. Within 6 hours after collection of feces by the donor, the solution was infused through a nasoduodenal tube (2 to 3 minutes per 50 ml). The tube was removed 30 minutes after the infusion, and patients were monitored for 2 hours. For patients who had been admitted at referring hospitals, the donor-feces solution was produced at the study center and immediately transported and infused by a study physician.

Eu, Procarioto

Certa vez atendi uma paciente no ambulatório do hospital e solicitei a ela, entre outros exames, um protoparasitológico de fezes. No retorno, os resultados não mostravam nada digno de nota, exceto a presença de Entamoeba coli detectada no fatídico exame. Como se sabe, esse protozoário vive de forma amistosa no organismo humano e não é causador de doenças (diferentemente de seu primo a Entamoeba histolytica). Disse a ela, então, que estava tudo bem e que poderia continuar com a medicação atual. Ela, indignada, perguntou se eu não iria tratar “aquilo”, apontando o exame com o indicador e uma cara de nojo. Eu repeti que não era necessário. Ela insistiu: “Dr. Eu não quero isso dentro de mim. Pode tratar…”

E. coli

Escherichia coli

Mal sabia ela – e eu também – que há muito mais coisas nos intestinos – e no nosso organismo, de forma geral -, do que todo nosso conhecimento recente poderia supor. Não só amebas boazinhas, mas também uma infinidade de bactérias vivem em nós. Muitas bactérias. Aliás, mais bactérias que células constituintes (sim, alguém já fez essa conta!): em um indivíduo normal, existem aproximadamente 10 bactérias para cada célula humana. Isso significa que 90% das células presentes em nosso organismo pertencem a outro domínio biológico ou super-reino chamado procariotas. Número certamente suficiente para causar uma crise de identidade em minha “insegura” paciente e me fazer lembrar de Asimov no título do post.

Os estudos prosseguiram. A quantidade de bactérias abrigadas no corpo humano era tão supreendentemente gigantesca que os cientistas começaram a utilizar o nome microbioma ou microbiota, aludindo a uma possível interação ecológica entre os seres envolvidos e isso virou um projeto do Instituto Nacional de Saúde dos EUA em 2007. Ao estudar pessoas de vários lugares do mundo, descobriu-se que os respectivos microbiomas tinham diferenças significativas, tanto de pessoa para pessoa, como entre pessoas nas diversas regiões do globo. Isso lembrou os estudos “ecogenômicos” iniciados no final da década de 90. Ecogenômica, Genômica Ambiental ou Metagenômica foram nomes dados para o sequenciamento genético e identificação de microrganismos em seu habitat natural, permitindo a identificação de várias espécies que não eram vistas nas culturas clonais realizadas até então.

A presença de um “meta-organismo” geneticamente distinto dentro de nosso organismo começou a gerar perguntas sobre como seria a interação, leia-se troca de informação, entre os dois sistemas genéticos bastante diferentes e passamos a ser considerados seres metagenômicos (ou superorganismos, como preferem alguns autores) no sentido ecológico mesmo do conceito. Mas, se a “distinção galtoniana entre a genética e o meio ambiente como mecanismos geradores de nossas características fenotípicas é considerada hoje uma dicotomia simplista e (…) o meio ambiente e os genes podem interagir de múltiplas maneiras diferentes desafiando a noção de que possam agir indepententemente um do outro”, como afirma Joseph Loscalzo, editorialista do New England Journal, então, a presença desse riquíssimo material genético interagindo com o nosso deve provocar algum tipo resposta. Para descrever esse novo modo de interação, o modelo de relação hospedeiro/parasita já não parece ser suficiente porque as mesmas bactérias que nos ajudam em determinados momentos, podem nos prejudicar em outros.

Surge então, um novo mecanismo fisiopatológico. Algo com o qual não nos tínhamos defrontado antes e que, para além de quaisquer dualismos, reside na interação entre duas “forças” viventes. Antes de vencer o inimigo é preciso, agora mais do que nunca, aprender a conviver com ele.

 

Pflughoeft, K., & Versalovic, J. (2012). Human Microbiome in Health and Disease Annual Review of Pathology: Mechanisms of Disease, 7 (1), 99-122 DOI: 10.1146/annurev-pathol-011811-132421

Loscalzo, J. (2013). Gut Microbiota, the Genome, and Diet in Atherogenesis New England Journal of Medicine, 368 (17), 1647-1649 DOI: 10.1056/NEJMe1302154

Recomendo os textos do Meio de Cultura sobre o assunto. Superorganismos 1, 2 e 3. E o especial da Nature (em inglês, para assinantes).

Agradecimentos ao Luiz Bento do Discutindo Ecologia pela revisão do manuscrito.