Design Pulmonar – Projeto Tabajara?

Esse é o último post da série que começou 1, 2, 3 e 4

Se alguém for visitar um parente ou amigo em uma unidade de terapia intensiva verá que todos os pacientes estão ligados a monitores multiparamétricos. Os batimentos cardíacos, a oxigenação, pressão arterial e outros dados vitais são monitorizados continuamente e ao mesmo tempo. A imensa maioria estará com bombas de infusão de medicamentos a seu lado. Drogas para manter a pressão, antibióticos e soros de todo o tipo. Muitos desses pacientes estarão conectados a ventiladores mecânicos. Um ventilador mecânico é um gerador de fluxos de mistura gasosa que “reconhece” o pulmão humano como um complexo complacente/resistente. Se levarmos em conta que o início de cada ciclo pulmonar pode ser desencadeado pelo paciente ou pelo aparelho; que o ventilador pode ir a favor ou contra o esforço do paciente e que a pressão nas vias aéreas pode ser controlada do começo ao fim do ciclo bem como o volume insuflado, temos uma enorme gama de possibilidades de regulagem, o que faz da ventilação mecânica uma subespecialidade da terapia intensiva.

Um paciente pode necessitar de ventilação mecânica devido a seu nível de consciência muito baixo (coma). Nessas situações, o risco de aspiração é enorme como vimos, além do fato de que o paciente não dá conta de suas necessidades ventilatórias. É a mesma razão pela qual um paciente que se submeterá a anestesia geral também precisa ser conectado a um ventilador. Outras causas dizem respeito a insuficiência respiratória propriamente dita. É quando o sistema respiratório não dá conta de oxigenar o sangue, nem de retirar o gás carbônico dele. A insuficiência respiratória é causada por várias formas e graus de colapso alveolar. É impressionante a facilidade com que o pulmão humano (não só o humano, mas de vários mamíferos!) colapsa. Se há uma reação inflamatória (infecção ou inflamação), acúmulo de líquidos, obstrução de vias aéreas, paralisia dos músculos respiratórios ou distensão abdominal, o resultado final é colapso alveolar.

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A Figura A acima mostra um esquema de um bronquíolo terminal com seus “cachos” de alvéolos. É uma estrutura bastante complexa e organizada funcionalmente. Quero chamar a atenção para o quadradinho ampliado ao lado onde vemos a estrutura microscópica do septo. Lá podemos ver o pneumócito tipo II – uma célula estrutural -, o macrófago alveolar – célula de defesa -, e linfócitos. Estes últimos são células associadas à resposta inflamatória. Quando os cachos de alvéolos murcham dizemos que há uma atelectasia. É um termo estranho, originário do grego que quer literalmente dizer “não-dilatação da ponta”.

Atelectasia.jpgA Figura B mostra atelectasias de unidades alveolares. Mais que isso mostra como a atelectasia desencadeia uma feroz resposta inflamatória. O pulmão murcho inflama, e bastante! Aquele inocente linfócito intersticial chama uma turma de células inflamatórias que fazem um verdadeiro estrago no tecido pulmonar. Note-se que isso pode ocorrer mesmo na ausência de infecção. A coisa fica bem pior quando o paciente que por alguma razão começa a apresentar atelectasias pulmonares piora a ponto de necessitar de um ventilador mecânico. Nesse caso, a pressão positiva do aparelho pode acabar por encher alvéolos que estão abertos, hiperdistendendo-os. Os fechados, assim continuam. Por um mecanismo muito interessante, a área de fronteira entre os “abertos” e os “fechados” sofre uma força chamada de cisalhamento e o resultado é fratura (isso mesmo!) de septos alveolares o que, por sua vez, provoca mais inflamação e o círculo vicioso se fecha.

Fui questionado em outro post sobre o fato de que essa vulnerabilidade do pulmão dos mamíferos é equivalente à vulnerabilidade do pulmão das aves às infecções. Aves ao contrairem infecções severas morrem “feito passarinho” literalmente. Não sou especialista em biologia comparada. Posso falar apenas da minha experiência em terapia intensiva. A insuficiência respiratória e suas inúmeras causas são a maior causa de internação em uma unidade intensiva. Nosso pulmão é exposto a gigantescas agressões diariamente. Se abrirmos cada um dos 300 milhões de alvéolos que existem em cada pulmão, vamos estendê-los em uma superfície de 100 m2, o que equivale a uma quadra de tênis. Toda essa superfície está em contato com o ar do meio externo. Aspiramos tudo quanto é poluente e microorganismos do ar e, não fora pelos mecanismos de defesa que temos, estaríamos constantemente infectados.

Nosso sistema respiratório, pela forma como é “projetado” na vigência de doença graves, tem desempenho inferior ao pulmão de uma ave, que não colapsa, não precisa de pressão positiva e mesmo que infecte, não prejudica as áreas de troca.

As figuras foram retiradas do artigo de Duggan & Kavanagh Anesthesiology 2005 Apr;102(4):838-54. Sob licença deClick here to read

Susan Boyle, Diagnóstico e Preconceito

Fiquei sabendo no Amigo de Montaigne. Susan Boyle é um fenômeno. Ele a usou para lembrar Eco e Gould – esse último já havia lido – que escreveram contra a fisiognomia e antropologia criminal. Hoje consideradas pseudociências, mas levadas bastante a sério num passado recente.

Vou usá-la para lembrar aos médicos que diagnóstico por reconhecimento de padrão é bom, é cômodo, é rápido, mas que estamos inseridos em uma sociedade que tem seus preconceitos e pré-julgamentos e que a melhor maneira de minimizar seus efeitos é saber que eles existem.

É emocionante!

Prova de Ausência vs Ausência de Prova

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Reproduzo a pergunta proposta pelo PaIMD do WhiteCoat Underground:

“Se você tivesse a oportunidade de fazer uma pergunta a um defensor de medicinas alternativas em um fórum público, o que você perguntaria?”

Ele mesmo fez essa, a título de exemplo:

“Você poderia dar exemplos de teorias da medicina alternativa ou modalidades que foram abandonadas por serem ineficazes?”

Orac do Respectiful Insolence formulou a seguinte questão  “Qual evidência específica convenceria você de que a homeopatia (ou qualquer que seja a crença do “alternativo”) é ineficaz? e pressionaria por exemplos.”

A pergunta é um direto no estômago não só de quem defende a medicina alternativa, mas de qualquer pessoa que acredita em alguma coisa. Uma possível tradução seria: Que tipo de evidência faria você mudar totalmente suas convicções e visões de mundo? No final, pode ser tudo uma questão de fé, mesmo que seja “apenas” fé no método científico.

Eu perguntaria também porque alguns procedimentos e medicamentos, tendo suas indicações e usos respaldados por artigos científicos, não são prescritos por grande parte dos médicos (descontados a ignorância do assunto, que é relevante). (Posso citar vários exemplos disso). O que é preciso para que eles acreditem, já que o método científico não parece ser suficiente?

Qual seria a sua pergunta? (Aqui vale perguntar para os dois “lados”!)

Tirei a caixa de truques daqui.

Ademar e Ademir

“Seu” Ademar era funcionário aposentado do Banco do Brasil. Tinha 85 anos. Viúvo. Entrou para o “Banco”, como costumava dizer, ainda rapazola. O Banco foi sua vida, como já os empregos não são mais. Não há mais empregos, há trabalhos. (Tem gente até mudando o nome para job). Enfim, “Seu” Ademar era um tipo de pessoa muito gentil. De um linguajar delicado e no limite entre a formalidade e a impessoalidade. Como muitos de sua geração que tenho a oportunidade de assistir, tinha um extremo respeito pela figura do médico. Obedecia cegamente às recomendações, o que me gerava uma enorme responsabilidade. Eu tratava de sua hipertensão e um leve diabetes. Quem me trouxe a vê-lo fora seu filho Ademir. Ele mesmo meu paciente. Excesso de peso, hipertensão provavelmente herdada, ansiosíssimo.

bullous.jpgUm belo dia, Ademir e Ademar na sala de espera. A secretária entrou no consultório comigo. “Melhor atendê-lo primeiro!” Quando ele entrou entendi porquê. Ao tirar sua camisa percebi que seus membros, tórax e dorso estavam cobertos de bolhas em vários estágios de evolução. As secas faziam com que a pele descamasse em pequenas “casquinhas” de pele que logo cobriram a mesa de exame. O diagnóstico não deixou muitas dúvidas. Era um penfigóide bolhoso. Uma doença que causa um aspecto repugnante mas que não provoca nenhum outro problema de maior importância e também não é transmissível. Na verdade, a doença faz parte das chamadas sindromes paraneoplásicas. Os médicos chamam assim doenças associadas a tumores de vários tipos. Quando tratamos o tumor, a doença desaparece. Fui procurar o tumor e achei. Infelizmente, metástases de câncer de próstata nos ossos. “Seu” Ademar já era prostatectomizado mas estava tendo uma recidiva do tumor. Encaminhei-o a um oncologista que disse que a única coisa a se fazer era o bloqueio hormonal. O câncer de próstata necessita de hormônio masculino (testosterona) para crescer. Quando bloqueamos o hormônio, bloqueamos seu crescimento. Assim foi feito.

Passados alguns meses, Ademar e Ademir na sala de espera. Entraram, conversei, examinei, orientei, fiz as receitas. O penfigóide já completamente curado, as metástases sob controle, assim como a hipertensão e o diabetes. Quando terminei, “Seu” Ademar me abordou de uma forma incisiva, como nunca antes: “Doutor, o Sr. já terminou?” “Sim” eu disse. “Por quê?” Nesse momento, Ademir, 65 anos disse “Pai, o Sr. quer que eu saia?” “Seu” Ademar, sem tirar os olhos de mim e com a mão espalmada, respondeu: “Você já tem idade para ouvir essas coisas. Pode ficar!” Eu, estático, acuado, e confesso, um pouco apreensivo, disse “Mas, o que é que foi “Seu” Ademar?”.

Ele então me olhou dentro da alma e disse “Doutor, esse remédio que estou tomando, de alguma forma, altera a potência sexual?” Ademir, sem jeito, “Pai, o Sr. não quer mesmo que eu saia?” Quase caí da cadeira. Inspirei bem fundo e, me aproveitando do ótimo relacionamento que tinha com ele, disparei “Por que, “Seu” Ademar, tem alguém reclamando?” A pergunta parece tê-lo pego de surpresa. Ele recostou-se na cadeira, fez uma cara de “meio sem-jeito” e disse “Sim, Doutor”.

(Me foi irresistível aproveitar da vantagem recém-adquirida na conversa para explorar a situação. Um senhor de 85 anos, com prostatectomia radical (o que por si, já causa um certo grau de disfunção erétil), com diagnóstico de adenocarcinoma de próstata metastático, o problema com o penfigóide, começa a usar um bloqueador de testosterona e reclama de disfunção erétil?! Era demais. Eu não poderia perder a oportunidade.) “E quem é a felizarda, “Seu” Ademar?” O Ademir entortou a boca em sinal de desaprovação.

A essa altura, Seu Ademar já tinha retornado ao seu fleugma habitual e com aquela doçura que só homens de sua geração podem demonstrar sem nenhum preconceito, ele disse “Doutor, tenho uma amiga; 50 e poucos anos. Ela mora sozinha. Ás vezes, eu a visito.” “Sim?” encorajei-o. “Então, Doutor. Posso dizer ao Sr. apenas que ela me recebe muito bem!” Ademir, de braços abertos, Ademar fingindo cutucar as unhas e eu, boquiaberto. Suspendemos a medicação, até porque ele também apresentou problemas hepáticos relacionados a seu uso.

“Seu” Ademar faleceu há alguns anos de complicações cardíacas e decorrentes do tumor. Cuido de Ademir e de sua esposa até hoje. Ele me disse depois que a “amiga” de “Seu” Ademar deu um “certo trabalho” em relação ao espólio do ex-funcionário do Banco do Brasil.  Ademir sente sua falta. Eu gostava de conversar com ele, aquele jeito meio “english”, a camisa abotoada até o colarinho. O “Banco” deve ter ficado triste. Não se encontram muito mais funcionários assim. Pacientes assim, homens tampouco…

Merleau-Ponty, o Corpo, a Cabeça e os Transplantes

Fiz uma provocação. Depois, fiz outra. O 100nexos, com a categoria de sempre, respondeu com fatos. Eu, sem saber se consigo, responderei com uma reflexão. Reflexão que a ciência teima em não fazer para si. (Recomenda-se fortemente a partir daqui, a leitura dos textos anteriores antes de prosseguir).

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O transplante de cabeça ou de corpo é um paradoxo apenas se encararmos o ser humano como uma dualidade corpo-mente, corpo-alma ou qualquer que seja.

A idéia de um transplante dessas proporções vai no âmago da questão de onde está o nosso “eu”. A tradição filosófica ocidental pensou o corpo mais como um instrumento, um sinal imperfeito da própria alma. Esse pensamento atingiu seu apogeu em Descartes como mostra a passagem abaixo (in “Ética e Corpo Próprio em Merleau-Ponty” – Maria Edivânia Vicente dos Santos):

“Há uma grande diferença entre o espírito e o corpo, pelo fato de o corpo, por sua natureza, ser sempre divisível e de o espírito ser indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo na medida em que sou somente uma coisa que pensa, nele não posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa única e inteira. E, conquanto todo o espírito pareça estar unido a todo o corpo, todavia, estando separados de meu corpo um pé, ou um braço, ou alguma outra parte (poderia ser todo o corpo!), é certo que nem por isso haverá algo suprimido do meu espírito. […] Mas é exatamente o contrário nas coisas corporais ou extensas: pois não há uma que eu não ponha facilmente em pedaços com meu pensamento, que meu espírito não divida com muita facilidade em várias partes e, por conseguinte que eu não conheça ser divisível.” (Descartes, Meditações Metafísicas, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 128).

É essa a concepção de corpo que faz o transplante de cabeça ser um paradoxo. Se a ciência nos habitua a ver o corpo como uma reunião de partes, quando as separamos, simplesmente tornam-se partes separadas de um todo. O problema só surge quando resolvemos separar o que seria a “sede do espírito”: a cabeça. Esta, outra percepção originária da forma dual como dispomos e avaliamos nosso corpo.

Merleau-Ponty é um filósofo muito interessante para a medicina exatamente por ter teorizado sobre o corpo. Para Merleau-Ponty “a união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto artibrário entre dois termos exteriores, um objeto, outro, sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência”. Ainda no texto da profa. Maria Santos, “a consciência que tenho do corpo não é um pensamento, no sentido em que não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara”, como em Descartes.

Ao dissolver as dualidades sujeito-objeto, corpo-alma, Merleau-Ponty coloca no corpo uma antecedência a nossa experiência externa. Isso significa que só entendemos, sentimos, pensamos, a partir da vivência que temos de nossos corpos. O corpo é o nosso “ponto de vista sobre o mundo”. Eu não tenho um corpo. Sou um corpo.

Isso tudo quer dizer que a experiência radical de um transplante de corpo (este, o correto) só serviria, como serviu em primatas, para manter o indivíduo vivo por alguns dias. Querer colocar a cabeça de Stephen Hawking em outro corpo, mesmo que pudéssemos reconectar a infinidade de ligações neurais, musculares e ósseas que uma cirurgia como essa implica, e, mesmo que pudéssemos mantê-lo vivo indefinidamente, seria transformar Hawking em outra pessoa, que obviamente não seria o doador. Nós somos corpos!

Diriam os cientificistas: “Mas esse cara é filósofo. O que ele entende de neurofisiologia e tecnologia médica?” Eu perguntaria o que um tecnólogo ou neurofisiologista entende de ética?

Foto de Merleau-Ponty retirada do sensacional site francês da Academie Grénoble.

O Sopro Divino

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Figura retirada do Emerge Journal – a Criação de Adão.

O que Deus fez quando resolveu dar vida ao amontoado de barro que moldou e batizou de Adão (lembrar que adamah é argila em hebraico)? Massagem cardíaca seguida de choques no tórax de 200 joules? Alimentos de alto valor protéico? Enteroclismas? Transfusões de sangue? Plasma? Hemoderivados?

Não. Nada disso. Como mostra a figura acima, Deus simples e majestosamente soprou vida em Adão. Adão ganhou vida através de seu sistema respiratório e não através do coração, intestinos ou mesmo do sangue, tão simbólico! Essa alegoria do mito da criação dá bem a dimensão do que representa a respiração na antiguidade (ver também Shakespeare, Rei Lear). Por milhares de anos, respirar foi o mesmo que viver. (Apenas recentemente, com a necessidade de se definir tecnicamente a vida com objetivo de transplante de orgãos sólidos é que criou-se a figura da “morte cerebral”).

Tudo isso para dizer que através dos séculos, a respiração pode ser considerada a mais divina das funções fisiológicas. Sob uma perspectiva creacionista na qual somos seres perfeitos criados a partir da imagem divina, a mais divina das funções deveria sobressair-se sobre outras criaturas. Nosso sistema circulatório é muito bem adaptado ao que fazemos; não há absolutamente nada igual a nosso sistema nervoso; que dizer da maravilha de nosso aparelho locomotor? – e assim por diante. Mas, creiam-me, perdemos na respiração. Nossos pulmões não são os mais bem projetados para uma vida terrestre. Perdemos porque temos um “erro de projeto” que eu considero mais ou menos sério. Erro esse que rende milhares de publicações médicas anualmente, consome milhões de dólares em recursos de pesquisas, além de estimular a produção de equipamentos médicos altamente sofisticados cujo custo está na ordem de centenas de milhares de dólares por aparelho. Todo esse dinheiro e tempo seria economizado se fôssemos aves. Sim, é delas o sistema respiratório mais sofisticado, pelo menos do ponto de vista médico. É o que tentarei demonstrar nos próximos posts.

sleucogaster_caapora.jpgParabéns ao Hotta que além de matar a charada, ainda adiantou o tema.
A foto é do Caapora. Pássaros são mesmo incríveis, Luciano. Obrigado.



Brócoli e Helicobacter

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O brócoli é o tipo de vegetal sem muita moral entre os humanos. Quem já não ouviu a expressão “Aquele ali é um QI de brócoli!” Ele e o alface sofrem o mesmo tipo de discriminação. Por exemplo, ambos são exemplos de dietas radicais: “Menina, não aguentei o spa, só comia brócoli (ou alface) e uma azeitona!!”

Talvez pensando nesse tipo de comportamento preconceituoso por parte da humanidade, não é de hoje, cientistas começaram a procurar utilidades para a famigerada verdura. E acharam.

O Helicobacter pylori é uma bactéria que resiste ao pH extremamente baixo do suco gástrico (aproximadamente 2). Recentemente, foi vinculada ao aparecimento de úlcera péptica e também do câncer gástrico. Por incrível que possa parecer, a úlcera, que num passado recente era tratada com a retirada cirúrgica do estômago, passou a ser tratada com antibióticos. Isso foi tão surpreendente que seu descobridor ganhou o Nobel de Medicina em 2005. O complexo e engenhoso mecanismo de ação da infecção pelo Helicobacter é esboçado na figura abaixo retirada da Nature Pois bem, brotos de brócoli podem minimizar os efeitos da infecção do Helicobacter nas mucosas gástrica e duodenal. Alguns exagerados, já afirmam que pode prevenir o câncer, mas daí a isso ocorrer de fato, ainda é um caminho longo.

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O cidadão da foto acima é Jed Fahey, cientista da Johns Hopkins que descobriu em 2002 que brotos de brócoli contém uma substância chamada glucorafanina, precursora de um potente bactericida chamado sulforafano. Em ratos, a substância bloqueia o mecanismo responsável pela inflamação. Um pequeno estudo piloto com 48 pacientes foi conduzido com intuito de demonstrar que a ingestão de aproximadamente 70 g diários de broto de brócoli poderia reproduzir esses efeitos em humanos. Através de medidas indiretas de quantificação da infecção, foi possível demonstrar uma redução da quantidade de bactérias e de seus subprodutos metabólicos.

A infecção por Helicobacter pylori afeta um número de pessoas que está atualmente na casa dos bilhões ao redor do mundo. Se tal estudo de fato se consolidar como uma alternativa às terapias atuais (inibidores da bomba de próton e antibióticos) será mais uma arma na prevenção do que hoje é considerada uma epidemia de câncer gástrico. A esperança é tanta que foi criada uma empresa pela Johns Hopkins que produzirá brotos de brócoli em escala industrial. Pensando bem, dá para entender a admiração de Jed Fahey pela discriminada verdura. Ele é um dos sócios.

(Créditos: Cortesia da imagem: Johns Hopkins Medical Institutions)

Medicina Baseada em Filantropia

São vários os critérios de escolha de um consumidor por um produto desta ou daquela indústria. Um dos critérios de importância crescente é, sem dúvida, o fato de determinada indústria ter ou não uma atuação ambiental consistente. Muitas ainda têm essa atuação vinculada a seus departamentos de marketing, mas já há ações bastante sérias e projetos interessantes. Para saber mais sobre isso recomendo a leitura do Ecodesenvolvimento e do Rastro de Carbono.

No nosso caso específico, as indústrias farmacêuticas não tem tido uma boa imagem junto aos consumidores. Isso é devido a vários fatores. Desde a retirada de medicamentos não rentáveis, até acusações de manipulação de resultados de pesquisas científicas. Mas também temos iniciativas interessantes nesse campo.

A boa notícia agora é que a britânica GlaxoSmithKline PLC ou simplesmente GSK, doou 800 patentes de medicações para o que convencionou-se chamar doenças negligenciadas. São várias doenças para as quais não há o interesse econômico nem as luzes de uma publicação badalada – o que normalmente é bem mais atraente a um pesquisador. A notícia foi divulgada por meio de uma pequena nota no Wall Street Journal e repicada em vários outros sites, sem maiores repercussões. Só fiquei sabendo por contato dentro da própria indústria farmacêutica (obrigado, Sérgio!). As patentes serão abertas a grupos de pesquisadores que se interessem em desenvolver medicações para as doenças negligenciadas.

A GSK já era considerada a primeira grande indústria farmacêutica no ranking da filantropia segundo o índice do Access to Medicine – um importante orgão internacional de monitorização do acesso a medicações por populações carentes. Com essa iniciativa deve, com certeza, ganhar muitos pontos na escala. Pena não termos acesso ainda a quais patentes foram liberadas e que a notícia não tenha ganho a mídia comum. Seria uma forma de pressionar as outras indústrias a fazerem o mesmo. Além disso, quem sabe os médicos, a exemplo do consumidor ambientalmente consciente, não se animam a trocar canetas, jantares e viagens pela ajuda humanitária às populações carentes que empresas que fabricam os medicamentos que prescrevemos possam oferecer? É sonhar muito alto?

Ver o gráfico retirado do Access to Medicine aqui View image

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Nem Todo Grito de Ajuda é Aparente

Talvez a habilidade mais difícil de desenvolver em um médico seja a de identificar pedidos de ajuda. Exatamente por iniciar todo o processo. É muito fácil quando um paciente chega ao consultório e diz “Doutor, por favor me ajude!” Entretanto, há exceções importantes.

 

Por exemplo. Homens, meia-idade, têm enorme dificuldade de pedir ajuda. Alguns traços de personalidade, independentemente do gênero, são característicos. A matriarca da família que acostumou-se a acolher e ajudar a todos, quando adoece, normalmente minimiza bastante seu problema. Se os familiares não estiverem atentos, casos assim passam facilmente despercebidos.São clássicos os pedidos de ajuda em que o paciente é agressivo, irônico, chato. Por despertar o ser humano no médico, o profissional se recolhe e vários diagnósticos são perdidos. Essa é uma das razões de médicos não tratarem de parentes próximos. O envolvimento é difícil de separar.

Mas o mais dramático, sensível e tenebroso pedido de ajuda é o silencioso comportamento de crianças abusadas. Tive algum contato com esse problema nos estágios de Pediatria e pude acompanhar um caso depois de formado. São bastante sutis as mudanças de comportamento e os pais devem estar atentos.

É isso que os cartazes da agência  Kinetic Design and Advertising para campanha de abuso infantil desse site, passam de forma brilhante. O texto que os acompanha é  “Lenticular posters designed for child abuse awareness. From certain view the kids might look perfectly normal, but from another view you will realize they are actually suffering in pain.”

Abuso Infantil2.jpgO cartaz ao lado mantem a mesma expressão inespecífica no rosto do primeiro, porém, com um efeito “raio-x”, podemos perceber o cérebro sangrando, uma lágrima escorrendo e o coração partido.

É exatamente isso. Sentimentos ocultos. Mais que sentimentos, sofrimentos ocultos. Muitas pessoas sofrem em silêncio sem que saibamos. Muitas vezes, elas conseguem, de fato, esconder muito bem. Mas a grande maioria passa despercebido por falta de atenção das pessoas, médicos inclusive, que as circundam. Muitas vezes, basta uma pergunta para que se destampe a garrafa e a vida real comece a jorrar.

Como seria bom uma visão de raio-x como essa! Ver o sofrimento! Tenho certeza que alguns prefeririam não ver o que vêm. Como no caso do abuso de crianças. Entretanto, por razões profissionais, eu não tenho direito ao benefício da ignorância. Apenas preciso tomar extremo cuidado para não substituir essa visão de raio-x por exames de raio-x, de sangue e outros exames.

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Cisto Sinovial

João Batista era eletricista. Ficou desempregado e conseguiu arrumar um “bico” de porteiro no meu condomínio. Uns 30 anos de idade, sergipano, de pele clara e sorriso fácil, frequentemente sofria repreensões do zelador, seu Belerino, por conversar demasiadamente com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família”. “Meu fraco, Doutor”- como ele dizia. Sabia que eu era médico. Um dia, após estacionar o carro na vaga, abri a porta e dei de cara com o João. “Doutor, olha isso que apareceu na minha mão. É grave?” Examinei e na face dorsal da mão havia um nódulo de uns 2 ou 3 cm de diâmetro.

cisto sinovial

“Está doendo?” perguntei. “Não, Doutor. Não dói nada” – respondeu. Comecei o discurso: “João, isso parece bastante um cisto sinovial. É um cisto benigno.” Enquanto falava, apertava o cisto com o polegar para sentir a consistência e ver se realmente não doía. “Antigamente, tratava-se isso colocando um livro pesado em cima, de preferência uma Bíblia e ele desaparecia. Hoje sabemos que é autolimitado, desaparece sozinho.” Fui falando devagar e pausadamente. João Batista prestando a maior atenção. “Alguns médicos operam isso, mas só se estiver doendo muito. Portanto, não há nada a se fazer por enquanto” –  terminei. Ele disse “Então não é nada, né, Doutor? Posso ficar tranquilo?” Eu já sem muita paciência “Sim, João, pode ficar tranquilo. Qualquer coisa me avise”.

Algumas semanas depois, estaciono o carro e deparo novamente com João Batista. “Fala, João. O que foi dessa vez?” – disse amistosamente. Ele olhou para mim, chegou mais perto como quem vai contar um segredo e disse “Doutor, o senhor benze?”

Eu entendi tudo em frações de segundo. Também fiz uma tenebrosa previsão do futuro nos milésimos seguintes. Milhares de pessoas na porta do condomínio, crianças chorando no colo de mães impacientes, idosos, barracas de churrasquinho, a vizinhança em polvorosa, todos esperando o Doutor Benzedor… Inverti as sombrancelhas e falei bem sério “João Batista, eu não benzo. Seu cisto desapareceu sozinho! Se você espalhar para alguém que eu te benzi, vou falar com o Belerino e ele te manda embora!” “Não, não, Doutor. Faça isso, não! Só queria saber. Não precisa ficar bravo. Pode ficar tranquilo que eu não falo para ninguém” – disse ele, se desculpando e andando em direção à portaria. Virei as costas e entrei no elevador segurando a risada. Já pensou, eu benzedor!

Algumas semanas se passaram e após estacionar meu carro… Bem, lá estava João Batista de novo! Saí do carro e olhei para ele sem dizer nada. Ele, com a mesma cara com a qual falava com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família” me perpetrou a seguinte frase:

“Doutor, eu sei que o senhor não benze. Sei sim, pode ficar tranquilo e não falei isso para ninguém. Mas dá para o senhor passar o dedo aqui?”

Com o indicador apontava para a outra mão onde jazia, imponente, um novo cisto sinovial…

imagem retirada de Ehow.