Diário de Menininha

Acho que esse post é extemporâneo. Falar da importância dos blogs e de sua divulgação parece não ser mais o hype. Os exemplos pululam: o Fatos e Dados, blog da Petrobrás que, segundo alguns, vem revolucionando a mídia brasileira e a atuação do Ministério da Saúde em responder dúvidas e esclarecer notícias sobre a gripe suína na blogosfera científica, são exemplos que tipificam e consolidam esse tipo de linguagem como dos mais importantes da contemporaneidade.

Por outro lado, tenho evitado falar de política no Ecce Medicus (prefiro muitas vezes falar de religião! Também evito falar sobre futebol devido à fase atual…). Um debate sobre isso ocorreu nos bastidores do ScienceBlogs. É impossível se desvencilhar das opções políticas e de emitir opiniões ou críticas sobre determinadas ações, seja dos governos, seja de pessoas, mas, politizar um blog que não é primariamente sobre política significa, ao menos para mim, perder o foco.

http://3quarksdaily.blogs.com/3quarksdaily/images/2008/09/23/slavoj_zizek.gifContudo, no melhor exemplo “esqueça o que escrevi” fhceano, após ler um interessante artigo de Slavoj Žižek na Piauí desse mês, resolvi escrever sobre a importância dos blogs e política, tudo junto, mas acho que isso proporcionará uma visão diferente sobre a atividade da blogagem. “Shame on me, Mr. President!” Que me julguem os meus leitores!

O artigo fala sobre a recriação da hipótese comunista e que a “nova” hipótese não pode ficar restrita aos malefícios do capital e da propriedade privada. “Não basta permanecer fiel à hipótese comunista: é preciso localizar na realidade histórica antagonismos que transformem o comunismo numa urgência de ordem prática. A única questão verdadeira nos dias de hoje é a seguinte: será que o capitalismo global contém antagonismos suficientemente fortes para impedir a sua reprodução infinita?” pergunta visceralmente Žižek. (A visão do comunismo como ferramenta de crítica sempre me agradou.) A conclusão é que existem 4 antagonismos internos que ele considera suficientemente fortes a ponto de inviabilizar o capitalismo liberal da forma como o conhecemos hoje:

1. A ameaça premente de catástrofe ecológica;
2. A inadequação da legislação da propriedade privada para a propriedade intelectual;
3. As implicações socioéticas dos novos desenvolvimentos tecnocientíficos, especialmente no campo da engenharia genética;
4. As novas formas de segregação social.

Žižek então, introduz o conceito de commons (aqui um excerto em inglês) de Tony Negri e Michael Hardt (página 321-324, Império. Record). Ele acha que o que une os “quatro cavaleiros do apocalipse” acima é o conceito de commons, a substância compartilhada de nosso ser social. Esse ser social que emagrece dia após dia, fruto da substituição de uma relação imanente entre o “público” e o “que é de todos” pelo poder transcendente da propriedade privada. Ou seja, o que é “público” não é de livre acesso, é também sinônimo de malacabado, maladministrado e brega. O que é “privado” tem o que é chamado de poder transcendente, quase um fetiche de “coisa chique” que faz com que pensemos ser o melhor. O artigo envereda por esse raciocínio para poder justificar uma nova forma de pensar a hipótese comunista como uma forma de recuperar os commons da vida pública. De qualquer forma, acho que qualquer pessoa poderia considerar que as quatro razões que Žižek citou como tendo de fato poder para desestabilizar qualquer sistema econômico de proporções planetárias, haja vista a fragilidade da causa-motriz da crise vigente. Queria parar por aqui porque gostaria de retomar a raison-d’etre do post.

Ao progressivo esvaziamento do espaço público seguiu-se o surgimento de um enorme espaço virtual. Parece incrível, mas esse espaço virtual é ainda, em sua grande parte, público. Dá voz a grupos e pessoas sem voz no espaço real. É independente e livre e isso é assustador. Não é de estranhar as insistentes tentativas de privatizá-lo (e o projeto do Sen. Azeredo não me deixa mentir), mas chamo a atenção novamente para os 4 pontos de Žižek. Fica fácil agora analisar a atividade da blogagem, seja ela científica, filosófica, política, ou mesmo puramente informacional, como uma das formas de resistência de manter esse espaço público a salvo do sabor das ondas cerceadoras da liberdade pública. Antes de pensar em Esquerda e Direita, termos que carecem de redefinições como a que tentou Bobbio anos atrás, e no que será a “hipótese comunista” no futuro, prefiro aquele velho exercício de imaginar o que pode conduzir meu pensamento e que é externo a mim.

Penso que o que começou como um “diário de menininhas” vem atualmente se tornando numa das maiores e mais poderosas armas contra a opressão do ser humano pelo simples fato de igualar “condições de fala”, pressuposto básico para democracia.

PS. E já que “enfiei o pé na jaca” mesmo: Abaixo o golpe militar em Honduras!

Por Que Precisamos de uma Epidemia?

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Google: “virus sincicial respiratório” (com aspas mesmo) e unicamp. Fiz isso agora.

Resultados 1 – 10 de aproximadamente 519 para “virus sincicial respiratorio” unicamp (0,22 segundos).

É isso mesmo, 519 entradas para o temido vírus sincicial respiratório, matador de criancinhas. A pergunta que ninguém responde:

Por que precisamos de uma Epidemia?

Subversão

Post Dedicado a um Geófago

Egberto Gismonti deu uma entrevista na Rádio Cultura em 3 de Maio. Entre outras observações ele sapecou “A grande vocação do brasileiro é a subversão. Subvertemos tudo. A política, as leis, as religiões. No meu caso, subvertemos a música.” Talvez por isso, nossa música e ele, em especial, façam tanto sucesso. A mesma razão de nossos políticos não gozarem das mesmas prerrogativas. A mesma razão de não termos confrontos religiosos de importância. A mesma razão do racismo em nosso país ter adquirido uma coloração diferente de outros países. E outras tantas.

Mas e quanto a nossa ciência? Subvertemos a ciência praticada em países desenvolvidos? Antes de mais nada, o que significa subverter a ciência? Com certeza, como no caso da 3529824371_311b84d703_m.jpgmúsica, subversão aqui não significará desonestidade, trapaça ou coisa que o valha. Ao contrário, falamos de uma subversão artaudiana, mix de razão e poesia. Hoje, pelo menos na minha área, há uma fila de professores do hemisfério norte desesperados para vir a um congresso no Brasil. Por quê? Para serem subvertidos por nós! Eles precisam disso. Morar aqui, ninguém quer. A subversão tem que ser na dose certa. É isso que estamos a (e precisamos) aprender.

Nada mais subversivo que falar a língua dos anjos e, também, a língua dos homens. Nada mais subversivo que Kuhn, Rorty, Egberto e Tom. A subversão que conhecíamos já foi legalizada como normal. Não é mais crítica, já não recorta. Hoje eles falam tanto espanhol quanto inglês. A comunidade européia se fecha em copas, exercita o racismo e a radicalidade. O que é ser subversivo? A França é a Alemanha. A Alemanha é o Japão. A Rússia, pasmem, é o Brasil. Mas qual Brasil? Um Brasil pós-ditadura com petróleo! E o Brasil é o quê? Oxímoro e por isso, subversivo e por isso, fonte de subjetividades que questionam o “Ser”. Nas palavras de Suely Rolnik:

“<Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente> – é com essas palavras que Oswald de Andrade inicia o Manifesto Antropofágico. (…) Estendido para o domínio da subjetividade, o princípio antropofágico poderia ser assim descrito: engolir o outro, sobretudo o outro admirado (grifos meus), de forma que partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação. Constituídos por esse princípio, os brasileiros seriam, em última instância, aquilo que os separa incessantemente de si mesmos. Em suma, a antropofagia é todo o contrário de uma imagem identitária”.

Qual imagem identitária você tem de si mesmo?

A Doença

Participar de grupos de blogs científicos como o ScienceblogsBrasil tem, confesso, um lado ruim! Esse lado ruim é constituído pela fórmula a seguir:

“cabeça-de-médico” + “visão crítica geral proveniente das mais variadas áreas do conhecimento” = “nó-na-cabeça”
Se não vejamos. Uma sensacional discussão esquenta o debate ecológico no Geófagos. O que está em jogo é o conceito de “crescimento sustentável”. Na verdade, discute-se mesmo se ele existe! Parece haver um consenso de que, de alguma forma, ao crescer economicamente, depauperamos o planeta sem dó nem piedade. Coloquei a questão de que, se somos feitos de compostos de carbono e água (ainda), o salto populacional de seres humanos dos últimos 10.000 anos (que para o povo do Geófagos é quase um minutinho) de alguns milhares de indivíduos para os quase 7 bilhões atuais, deve ter tirado carbono e água de algum outro lugar. A história da lagarta que cuida das larvas que a devoram internamente se constitui na melhor metáfora para nossa existência na Grande Lagarta Terra, que parece ainda tentar nos proteger. Não é à toa que me senti doença. Logo eu, humanista que sempre as combati, que sempre as vi como o inimigo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais médicos sejam a classe profissional que mais atenta contra a própria vida. A consciência é um fardo.

A Epidemia Hiperreal

A célebre estorinha conta que uma mãe passeava com o bebê no carrinho quando uma amiga chega e, encantada com a criança, diz: “Ah, que bebê mais lindo!” A mãe, toda orgulhosa, comete a frase que sintetiza tudo o que eu gostaria de dizer sobre a epidemia da gripe suína: “Você não viu a foto que tenho dele em casa!” Uma das maneiras de entender essa estória nos ajuda a compreender o fenômeno da epidemia da gripe que nos assola (não a gripe, pelo menos, ainda não! O fenômeno!).

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Se admitirmos, pragmaticamente, que somos seres comunicativos e que “produzimos” nossa própria realidade por meio da linguagem e da manipulação de símbolos, temos que aceitar que por vezes podemos “hiper-produzir” uma realidade: uma hiperrealidade. Mais “legal” do que o real, no sentido de mais crível, no sentido também de ser uma produção compartilhada por mais pessoas e por isso, mais real.

Não é uma mentira! Só é mais factível e por isso, mais “cool“. Sempre foi assim. O problema é que em tempos de comunicação ultra-rápida e globalizada, a chance disso ocorrer é bem maior. Ainda mais, quando parece imitar um roteiro hollywoodiano. O povo delira. A quantidade de fontes e textos sobre o fato reproduz-se mais rápido que um vírus. Toma corpo e vida própria. Sim, que importa que morram 200 pessoas anualmente no Brasil de gripe? (sem contar as mortes atribuídas que seguramente ultrapassam os milhares). Que importam nossas mortes violentas? Que importa agora o cerco à Palestina ?

A foto é mais interessante que o bebê real. A pressa em se buscar números, em divulgar, em embargar, matar porcos, criar listas de recomendações, faz a bolsa subir e descer, faz executivos pirarem, empresas falirem, coronárias entupirem. Faz as pessoas ficarem com aquela sensação estranha de falta de sentido, logo ele, sentido, tão importante na nossa vida. Mas isso é que nem gripe. Logo passa. Até a próxima doença hiperreal.

A Fisiopatologia do Preconceito

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My brown eyed girl by Mike Doyle at Flickr

“Todas as formas de dogmatismo – que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade – provêm da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da comunicação, uma ruptura na compreensão recíproca que a perturba, resultando em desconfiança universal”

Com essa frase, Olgária Matos sintetiza a fisiopatologia de uma doença característicamente humana chamada preconceito. Ela tem como agente etiológico o dogmatismo, elemento altamente contagioso por causar uma falsa sensação de conforto por fazer com que nos sintamos apoiados em verdades firmes e seguras. O indivíduo dogmático é um verdade-adito. Quando compartilhamos um conjunto de dogmas acabamos por criar uma origem identitária que se diferencia de outras origem identitárias.

Essas origens identitárias, necessariamente factícias portanto, produzem uma doença da comunicação, um desentendimento, o que se chamou de ruptura na compreensão recíproca que resulta, finalmente, em desconfiança universal. A desconfiança é um vírus que se dissemina rapidamente e envenena as relações humanas. As relações humanas, por sua vez, têm uma estranha capacidade de sobreviver a essa infecção, mas matar e/ou torturar os envolvidos nela, seja por meio de guerras, escravidão, colonizações, fome, abandono, discriminação e outros tantos sintomas de intolerância e agressividade para com o outro.

É na busca pelas “verdades dogmáticas” e pelas “essências humanas” – identidades fictícias – que se encontram os reais obstáculos à solidariedade. Será necessário impingir o mesmo tipo de sofrimento ao torturador para poder expiar-se-lhe a culpa? De onde vem esse ressentimento? O anti-racismo não é um racismo às avessas.

É uma solidariedade…

O Olho Azul

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Porque nós também não temos o direito de permitir que sejam os pobres, que viajam o
mundo a procura de uma oportunidade, de um emprego, de um salário, de uma
renda, que sejam os primeiros a pagar a conta de uma crise feita pelos pelos
ricos. Que não foi causada por nenhum negro, nenhum índio e por nenhum
pobre. Uma crise causada, fomentada, por comportamentos irracionais de gente
branca, de olhos azuis, que antes da crise pareciam que sabiam tudo e que
agora demonstram não saber nada” – Presidente Lula.

Não tinha lido a declaração toda. O contexto me parece o de uma discussão sobre imigração. Fechamento de fronteiras por falta de emprego é fato comum nesses períodos. Acho mesmo que o Lula tem razão em dizer que a crise não foi desencadeada por nenhuma pessoa pobre. Mas conta-se nos dedos, as grandes crises provocadas por populações desfavorecidas. A de 1929, a crise com a qual esta atual tem sido frequentemente comparada, também não foi obra dos pobres.

A questão aqui de fato, não é esta. Tenho me debatido, escrito e falado bastante sobre o conceito de raça humana. Sobre os perigos em procurarmos uma essência do humano e da própria humanidade. Tenho me interessado bastante pela solidariedade. Pela ciência solidária, política solidária e outras utopias. O discurso de Lula é racista. Combate fogo com fogo e sinceramente não sei se é eficaz para fazer europeus e americanos enxergarem a dura realidade. Sou radicalmente contra qualquer argumentação que utilize elementos raciais como premissas ou os obtenha como conclusões.

Acho no mínimo curioso que a frase de Lula tenha feito segmentos da Esquerda vibrar de alegria; essa mesma Esquerda que defende negros, índios e homossexuais da discriminação não pode se vangloriar de ter utilizado da mesma arma covarde do racismo.

Seria a Informação Científica uma Commodity?

Acho que morando no Brasil, o país dos pacotes, entendemos o suficiente de Economia para saber o que é uma commodity. Todos sabemos, por exemplo, que a “commoditização” do etanol é um assunto estratégico. Como todo conceito, o de commodity é sustentado por um arcabouço teórico que permite sua instrumentalização pelos agentes das negociações nas quais estão envolvidas. Tem gente que produz, tem quem venda, tem quem compre. Há, digamos, uma “fisiologia” que pode ser entendida nesse processo todo, pois há uma certa lógica de procedimentos.

Volta e meia, surge alguém que aplica conceitos provenientes de outras áreas do conhecimento humano em determinado campo e abre uma nova avenida interpretativa. A Medicina é especialmente propensa a receber essas análises alienígenas devido a, creio eu, sua ampla margem de atuação.

Quais interpretações poderiam ser hauridas se aplicarmos os conceitos econômicos envolvidos na teoria das commodities na forma como a ciência, em especial a médica, caminha nos dias de hoje? Foi a pergunta que Neal S. Young, John P. A. Ioannidis, Omar Al-Ubaydli tentaram responder. Grandes defensores do Open Access, os autores se notabilizaram pelo estudo da influência do capital na ciência médica. Os resultados dessa estranha análise foram publicados no Plos Medicine em 7 de Outubro e produzem um certo tipo de vertigem. Isso porque, fazem bastante sentido e permitem uma interpretação das distorções científicas que sabemos, estão ocorrendo. Vejamos o arrasador primeiro parágrafo:

“This essay makes the underlying assumption that scientific information is an economic commodity, and that scientific journals are a medium for its dissemination and exchange. While this exchange system differs from a conventional market in many senses, including the nature of payments, it shares the goal of transferring the commodity (knowledge) from its producers (scientists) to its consumers (other scientists, administrators, physicians, patients, and funding agencies). The function of this system has major consequences. Idealists may be offended that research be compared to widgets, but realists will acknowledge that journals generate revenue; publications are critical in drug development and marketing and to attract venture capital; and publishing defines successful scientific careers. Economic modelling of science may yield important insights.”

Particularmente, não compartilho com essa grosseira divisão entre idealistas e realistas, porém devo admitir que a pesquisa tem, em algumas situações, a mesma fetichização de um widget. O artigo enumera seis propriedades econômicas das commodities que podem ser aplicadas em informação científica: maldição do vencedor, oligopólio, herding, escassez artificial, incerteza e branding. (Vale ver a tabela para maiores explicações). Isso nos faz ver coisas interessantes. Por exemplo, o viés de publicação (leia-se preconceito) dos estudos negativos, ou seja dos estudos nos quais a hipótese inicial não conseguiu ser demonstrada, poderia ser explicado, ao menos em parte, pela postura dos revisores das grandes revistas científicas:

“The authority of journals increasingly derives from their selectivity. The venue of publication provides a valuable status signal. (…) This is essentially an example of artificial scarcity. Artificial scarcity refers to any situation where, even though a commodity exists in abundance, restrictions of access, distribution, or availability make it seem rare, and thus overpriced. Low acceptance rates create an illusion of exclusivity based on merit and more frenzied competition among scientists “selling” manuscripts.” (grifos meus)

Se, por um lado, essas propriedades aplicadas às commodities ajudam a explicar porque alguns seres humanos passam fome e outros jogam comida fora – distorções exaustivamente apontadas pelos críticos do capitalismo tardio -, por outro, quando aplicadas às atuais políticas de publicação científica, ajudam a entender, pelo menos em parte, distorções científicas que, por sua vez, não são criticadas com a visibilidade que mereceriam.