DEK – Sobre Prostitutas e Próstatas

Este é mais um verbete do DEK. Agora a letra P. Consulte pela categoria para ver outros verbetes.

Vamos às definições do professor (de) português Carlos Rocha.

Próstata

«do latim científico prostata, que por sua vez vem do grego ροστάτης prostátēs, ou ‘colocado na frente de; donde, chefe, dirigente; protetor, defensor’, do verbo proístēmi‘ colocar na frente, pôr em relevo, pôr em evidência’; de pró– ‘diante, na frente’ + hístēmi ‘colocar’; assim chamada por situar-se antes da bexiga»

O câncer de próstata é o tipo de câncer mais comum entre homens chegando a atingir 20% do sexo frágil, a depender da idade. Um professor de urologia com quem tive aula disse que se chegássemos todos aos 100 anos de idade, a incidência do câncer de próstata beiraria os 100%. Não sei se essa afirmação é verdadeira, mas sei que a prevenção é o melhor remédio. Por falar nisso, ela mesma – a prevenção do câncer de próstata – está envolvida em uma enorme polêmica desde que a força-tarefa do departamento de medicina preventiva americano publicou diretrizes contra a coleta indiscriminada do antígeno prostático específico (PSA na sigla em inglês), que é o marcador desse tipo de câncer. Estudos têm mostrado sistematicamente que a detecção precoce do tumor não leva a melhor sobrevida e, pior, deteriora muito a qualidade de vida do paciente. A discussão tem sido acalorada e eu mesmo já escrevi alguma coisa sobre o assunto. Mas voltemos ao prof. Carlos Rocha.

Prostituta

«latim prostitŭo,is,ī,ūtum,ĕre ‘colocar diante, expor, apresentar à vista; pôr à venda; mercadejar com a sua eloqüência; prostituir, divulgar, publicar’, de pro– ‘na frente, diante de’ + statuĕre ‘pôr, colocar, estabelecer; expor aos olhos’, de stātus,us ‘repouso, imobilidade; atitude, postura (de um combatente); assento, situação; estado das coisas, modo de ser’, do radical de stātum, supino de stāre ‘estar’».

“Em Histórias de Palavras — do Indo-Europeu ao Português (Lisboa, A. Santos), de Ernesto d´Andrade, indica-se que ambas as palavras têm em comum os seguintes radicais:

a) *per, que é base das preposições e prefixos pro– em grego e pro– em latim;
b) *stā, «estar em pé, do qual são cognatos o grego hístēmi e o latim statuĕre.”

Pois é. Os termos (apesar de não terem absolutamente nada a ver com Alain Prost) são assemelhados e compartilham a mesma raiz. “Estar na frente” e “expor-se” transmitem ideias relacionadas. Em que pese o fato de ter sido reconhecido um orgão análogo à próstata nas mulheres, ela ainda é exclusividade do universo masculino. Universo este que as prostitutas têm uma capacidade intrínseca de captar. Aproveito uma interessante reportagem para destilar uma ideia. Sempre defendi que a sabedoria das prostitutas deveria ser melhor aproveitada por pessoas que não necessitem (ou optem por) usar o corpo para sobreviver. Uma prostituta aprende muito rápido sobre o mundo masculino. E usa isso a seu favor. Imagine você, leitor ou leitora, que precise, de qualquer forma, agradar alguém, seja do ponto de vista sexual, profissional (por exemplo, vendedores) ou simplesmente social. Se for muito incisivo, a pessoa poderá assustar. Se muito tímido, a outra pode não gostar. É preciso uma leitura muito rápida do que a pessoa quer e, muitas das vezes, nem sabe que quer. Dá uma certa insegurança, não? Como se comportar? É preciso uma sapiência, uma mistura de conhecimento, vivência, experiência, ou mesmo um tino atávico para ser, ali naquele momento específico, o que a outra pessoa gostaria que você fosse, sem que ela saiba que você sabe. Complicado.

“Exibir-se”, “estar a frente” são sinais de força e ao mesmo tempo vulnerabilidade. E poderia surgir então uma estética de onde ninguém jamais ousaria pensar que ela pudesse surgir. A estética da intuição entre a palavra e a coisa. Mas isso, está no olhar de quem vê e não nas “coisas” que se postam a sua frente.

Por Que Não Sou Pediatra

Pouca gente sabe, mas minhas melhores notas no internato foram em estágios de Pediatria. No 6o ano, no Hospital Universitário, fiz um estágio muito bom e um pediatra já famoso na época me disse para fazer residência de Pediatria e ir trabalhar com ele. Fiquei muito lisonjeado e pensativo. Isso significaria acesso a uma medicina de ponta, trabalhar nos melhores hospitais da cidade e uma remuneração bastante interessante. Mas, decidi que não queria Pediatria. Nunca entendi direito essa minha decisão e alguns acontecimentos recentes me fizeram refletir sobre essa (não) escolha de tempos atrás.

Não há nada, nem haverá jamais nada sequer semelhante, em magnitude ou poder capaz de nos confrontar com a realidade da ausência de sentido ou propósito; com a propriedade de relativizar a textura do real com a força devastadora do que poderia ser chamado de um tornado afetivo; ou de sufocar aquilo que o humano tem de mais precioso que é sua esperança, que a morte de uma criança.

Não me refiro a assassinatos. Nesse caso, os canhões de nossa ira apontam para um culpado e lá descarregarão todas as esperanças frustradas, toda a decepção por compartilhar de uma mesma humanidade, toda a revolta e o ressentimento.

Me refiro ao que poderia ser chamado de “morte natural”. Uma morte por doença, uma morte médica. Uma qualquer? Por exemplo, leucemia. Que raios uma célula-tronco que deve produzir células brancas “cria” uma linhagem-clone com uma certa vantagem reprodutiva de modo que essa linhagem logo toma conta de todo o setor de produção de células brancas, e também vermelhas e plaquetas, ganhando o sangue periférico, invadindo orgãos, subvertendo funções…E após 2 anos de sofrimento extremo, a vida de uma criança é varrida do planeta.

E as pessoas que têm um Deus se perguntam: por quê? As que não têm, fazem exatamente a mesma pergunta. Estamos todos presos à natureza humana. Uma natureza desejante e insatisfeita; delirante, imperfeita, incompleta. Pelo menos desse karma existencialista consegui me livrar. Restaram, entretanto, todos os inumeráveis outros.

Religiosidade e Ética Científica

A pergunta do post anterior tem uma razão de ser. Foi publicado um artigo no New England (pdf gratuito, ver também a referência na “medaglia” abaixo) traçando um paralelo entre os países da Europa e os Estados Unidos quanto a postura em relação a pesquisas com células-tronco. O artigo categoriza as populações de entrevistados de acordo com políticas públicas de financiamento em cada país, preferências políticas (em especial nos EUA, onde a divisão republicanos vs. democratas permite uma visualização mais fácil do problema) e religiosidade.

Olhando os números mais de perto, 60% dos americanos entrevistados são a favor de pesquisas com células-tronco e 30% acham que ela devia ser proibida, mesmo que isso custasse um atraso no tratamento de algumas doenças. À pergunta “você acha que a pesquisa com células-tronco deveria ser proibida?” 71% dos islandeses responderam “não” e 25%, “sim”, o maior índice de aceitação. Já a Áustria teve 33% “não” e 60% de “sim”, respectivamente, a maior rejeição. A divisão de partidos políticos mostrou nos EUA, que os republicanos, mais conservadores, são a favor da pesquisa em 52% e que ela não deve ser proibida em 51%. Quando comparados com os democratas, mais liberais, 67% deles são a favor. O artigo ainda envereda pela questão se o governo deveria financiar tal tipo de pesquisa e as respostas seguem mais ou menos o mesmo padrão. O que eu queria chamar a atenção aqui era mesmo sobre a religiosidade e a aceitação da pesquisa com células-tronco. Mas antes, um pequeno parêntesis.

Ao analisarmos 2 eventos sequenciais, por exemplo, uma borboleta esvoaçar pelo meu jardim e ocorrer um terremoto na Tailândia, 3 situações podem ocorrer: 1) A borboleta causa o terremoto; 2) A borboleta não causa o terremoto e 3) Não faço a menor ideia se ela causa ou não a porcaria do terremoto. A terceira em geral, é a grande maioria das respostas. Mas, se quisermos “dominar” a natureza precisamos saber se um evento causa ou não o outro. Para demonstrar as duas primeiras é preciso estabelecer uma relação de causa-efeito (#1) ou de não-causa-efeito (#2). Colocado assim, de forma bastante simplista, esse é um dos principais objetivos da ciência: estabelecer relações de causa-efeito. Há inúmeras maneiras de se conseguir isso. Em medicina temos várias limitações e muitas vezes utilizamos uma “metafísica” chamada Estatística para nos indicar um caminho. Outra maneira, e talvez uma das mais elegantes, seja encontrar um tipo de relação entre um evento e outro que pode ser chamada de “curva dose-resposta” (tem outros nomes, eu chamo assim, porque aprendi assim na farmacologia). Nessa relação, toda vez que aumentamos a intensidade de um evento desencadeador, temos um aumento do evento desencadeado (dentro de uma certa faixa). Posto isso, podemos observar a tabela do artigo em questão que coloquei abaixo.

Com todas as críticas possíveis e imagináveis em se categorizar um troço totalmente arbitrário como religiosidade no número de vezes em que se vai a um culto, temos aqui um exemplo da tal “curva-dose resposta”. Quanto maior a frequência em que uma pessoa vai a um culto, maior a chance de achar que a pesquisa com células-tronco deva ser proibida em seu país. Religiosos graduados em “nunca vou ou vou 1 vez/ano”, “vou mensalmente ou anualmente” e “vou semanalmente ou mais” respondem “proibir” na Europa em 33, 41 e 49%; nos EUA em 18, 33 e 40%, respectivamente.Enquanto que os “sem-religião” ficam em 29% e 18% na Europa e EUA, respectivamente.

O que essa pesquisa demonstra? Que a religiosidade (definida nos termos do artigo), nos países estudados, gera uma certa aversão à pesquisas científicas com embriões humanos mesmo que isso custe um atraso no desenvolvimento de tratamentos para algumas doenças como traumatismos raquimedulares. A pergunta que se segue é: Por quê?

A busca de outras fontes de eticidade que não a de cunho eminentemente metafísico, dependente de conceitos como “criador”, “força maior” ou “Deus”, etc, e, principalmente, de uma crítica sobre a maneira como tais conceitos são manipulados pelas diversas formas de religiosidade, é fundamental para a construção de uma ética laica que, por sua vez, fundamentará decisões em comissões de ética, conselhos de pesquisa e outros orgãos de extrema importância para quem quer fazer pesquisa séria e de boa qualidade. As diferenças entre decisões de pessoas religiosas e não-religiosas devem ser melhor estudadas se quisermos uma ética consensual. Do meu lado, em que pese o papel importante que a religião possa ter desempenhado como guardiã da ética, permitir que pessoas sofram de doenças potencialmente curáveis em detrimento a um blastocisto que iria para o cesto de lixo é de um obscurantismo incompreensível.

 

ResearchBlogging.orgBlendon RJ, Kim MK, & Benson JM (2011). The public, political parties, and stem-cell research. The New England journal of medicine, 365 (20), 1853-6 PMID: 22087677

Pergunta Fértil

Eu gosto de questões éticas. Talvez porque não haja um gabarito para este tipo de questão. (Fazer prova que não tem gabarito é uma delícia!). Senão, vejamos…

O número de fertilizações in vitro humanas vem crescendo quase que exponencialmente os últimos anos. As estatísticas reais são difíceis de obter dado que grande parte desses procedimentos são realizados em clínicas particulares e não nos serviços públicos. (A proliferação de clínicas de reprodução assistida, entretanto, deve querer nos dizer alguma coisa). Isso se deve a evolução desse tipo de tecnologia e também à maior procura pelo método. A maior procura do método deve levar em consideração o fato de que os casais estão unindo-se mais tarde e gerando filhos mais tarde, o que dificulta o processo.

Numa fertilização in vitro são retirados óvulos da moça que são incubados com os espermatozóides do rapaz numa placa de Petri (vidro). São gerados vários ovos/embriões, bebês em potencial, nesse processo e que são congelados com objetivo de serem implantados após um tratamento hormonal da mãe visando preparar seu útero o melhor possível para recebê-los. São implantados de 1 a 3 embriões, a depender do caso. Os restantes, são guardados, congelados. Depois de um tempo, podem ser utilizados ou descartados pois têm um prazo de validade. Agora, pára e presta atenção.

Descartar embriões pode significar 2 coisas diferentes. Para um grupo “descartar embriões” pode ser jogar produtos de uma fertilização in vitro fora. Ponto. Para outro grupo, “descartar embriões” pode ser assassinar crianças inocentes, cometer um crime contra a humanidade, matar alguém da própria espécie, etc. Agora imagine fazer “experiências” com esses embriões que seriam descartados. Há que diga que alguns desses embriões têm células-tronco com excelente potencial para regeneração de tecidos humanos e que isso pode significar que o tratamento para algumas doenças humanas será prorrogado por tempo indeterminado, caso não possamos utilizá-las para estudo.

Pergunta (os comentários estão abertos para as respostas):

1. Você é a favor ou contra o uso de embriões humanos preparados para fins reprodutivos e que seriam descartados para estudos com células-tronco?

Abortamentos e Cesarianas

Parto Cesárea

– Nasceu?! Que legal! Foi parto normal?

– Normal…. Pro médico, né?

Diálogo entre uma puérpera e o editor deste blog.

Foi manchete este fim-de-semana a informação do Ministério da Saúde dando conta de que, pela primeira vez, o Brasil registrou mais cesarianas do que partos normais num ano: 52% no total. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, no setor privado, a taxa de cesarianas é estável desde 2004 e gira em torno de 80%. No Sistema Único de Saúde (SUS), o número vem aumentando e passou de 24% para 37% na última década.

Os termos cesárea ou cesariana não parecem ter a ver com Júlio César, supostamente nascido deste procedimento, como me foi ensinado na faculdade. Como o professor Joffre ressalta “a palavra cesárea e as expressões parto cesáreo operação cesariana vinculam-se ao verbo latino caedocaesum, caedere, que equivale ao grego témno, cortarDele derivam caesus,a,um, cortado; caeso, onis, ceso ou cesão; caesura, corte;e caesar, aris, com o mesmo sentido decaeso, onis, isto é, aquele que é tirado do ventre da mãe, ou “qui caeso matris utero nascitur”. As palavras cisão e ciso vêm da mesma raiz. (Não confundir com siso, do latim sensum, que originou o tal dente do juízo).

É conhecido o fato de o Brasil ser o campeão mundial de cesarianas tendo, inclusive, sido bastante criticado por isso (uma pequena compilação de links: unnecesarean, guttmacher com uma referência brasileira, outra referência em pdf, outro estudo do Lancet [assinantes], entre outros tantos). Mas, como o título do post sugere, gostaria de fazer um paralelo aqui entre abortamentos e cesarianas.

Vamos aos conflitos de interesse primeiro. Não acredito no abortamento como método anticoncepcional em saúde pública porque ele não funciona bem para isso. Mas, quer queiram setores da igreja, o Estado Teocrático Brasileiro, sociologistas, médicos e etc, etc, ele é uma prerrogativa feminina. O abortamento deve ser “acessível, seguro e extremamente raro”, como já se disse. É um dos sinais do abismo existente entre as classes sociais brasileiras a maneira como sua prática permeia os vários segmentos da população feminina do país: de agulhas de tricô, citotecs e o seja-o-que-deus-quiser, a clínicas altamente aparelhadas e com mordomias de grandes hospitais. (Não vou nem discutir sobre as questões dos fetos mal-formados e do risco de morte da mãe, porque aí já seria muito para esse post. Veja minhas posições sobre o assunto aqui, aqui e aqui).

Voltando ao espanto causado pelas cesarianas. O parto cesárea seguiria o mesmo raciocínio do abortamento. É uma prerrogativa da mulher querer ter seu bebê por via vaginal ou cirúrgica. O problema é que essa decisão nunca é totalmente esclarecida e aqui entra o papel do médico. Eu fiz 5 partos normais durante meu curso médico. Em alguns, passei a noite ao lado de moças se contorcendo de dor sem alívio nenhum. Se não houvesse alternativa, tudo bem, o presente da maternidade sempre vai compensar qualquer coisa, pelo menos é o que elas dizem. Mas se há uma forma diferente na qual a relação risco/benefício é aceitável, por que não tentar? Quem decide? O médico e a mãe, mais ninguém.

O médico entretanto, deve fazer o mesmo papel que faria quando se lhe apresenta alguém querendo retirar um feto indesejado. Expor, com a maior isenção moral possível, os riscos dos procedimentos e posicionar-se. Essas não são decisões que cabem apenas ao paciente. Dizer que não faz ou prescreve procedimentos abortivos é totalmente legítimo. O paciente deve saber que isso é proibido no Brasil e que o médico que o faz está em importante risco de processo. Com a cesárea, a situação é atenuada, mas semelhante. Não há proibição, mas há indicações clínicas mais ou menos precisas. Se a gestante quer uma cesariana, o médico deve expor os riscos e posicionar-se. O problema é que há um viés do médico favorecendo o procedimento. Aí junta a fome com a vontade de comer. E com isso, eu não posso concordar.

Vamos colocar uns dados nessa discussão. Os obstetras e a Organização Mundial de Saúde estimam que aproximadamente 15% dos partos devam ser cesarianos por complicações relacionadas aos mesmos. Se nos hospitais privados de São Paulo – capital, a taxa está em torno de 80%, segundo a Folha, temos que explicar o excesso de 65% em favor das cesarianas. Há uma entidade batizada em inglês com a sigla CDMR para Caesarean delivery on maternal request (cesárea por solicitação da mãe). Existem fortes indícios, segundo o estudo do Lancet citado acima, de que esse “movimento” tenha se iniciado no Brazil e disseminado-se para outros países. Estima-se que esse tipo de “indicação” possa responder por até 20% dos casos de partos cirúrgicos. O estudo de Zhang (abaixo) avaliou 1,1 milhão de partos não-gemelares durante 13 anos no sudeste da China e mostrou um aumento significativo no número de partos cesarianos em grande parte devidos a CDMR. Em alguns locais, as indicações por solicitação das mães chegaram a 50% das cesáreas. No Brasil, Osis e colegas (abaixo) foram tentar entender porque tanta cesárea. Avaliaram 656 mulheres de São Paulo e Pernambuco, usuárias do serviço público, e as dividiram em 2 grupos. O primeiro constituído de mulheres que tinham a experiência de um parto vaginal prévio e que depois tiveram um cesariano. O outro, constituído apenas de mulheres com parto cesariano. 90,4% das mulheres que tinham tido pelo menos um parto vaginal consideraram-no melhor, contra 75,9% entre as que só tinham cesárea (o número das que tinham tido apenas partos normais é muito pequeno no estudo e isso se constitui num viés importante). Se as que tinham cesárea tivessem entrado em trabalho de parto, o resultado ficava semelhante (45,5% e 42,8%). 47,1% das que tiveram parto vaginal disseram que ele não tinha desvantagens, contra 30,3% das que não tiveram. Por outro lado, 56,7% das mulheres que só tiveram cesarianas referiram que não ter contrações era a principal vantagem do método, contra 41,7% das outras. A conclusão do artigo é que a dor é importante mas as mulheres avaliam-na como secundária. Em primeiro lugar a saúde da criança e o pós-operatório. Além disso, no Brasil é muito importante a possibilidade de realizar uma laqueadura (“amarrar as trompas”) para esterilização e isso pesou na escolha da via para o parto. Isso se constitui numa falha grave das políticas de Saúde Pública desses dois estados no que se refere ao controle da natalidade, segundo outro artigo. Não se pode substituir um erro por outro.

Para concluir esse longo post, eu diria que:

1. É legítimo uma mãe querer uma cesárea (CDMR), assim como é legítimo uma mãe não querer levar adiante uma gravidez indesejada – prerrogativas dela, exclusivamente – desde que ela esteja totalmente esclarecida das consequências que tais procedimentos realmente implicam.  (Há quem discuta sobre o que é estar “totalmente esclarecido” afirmando ser impossível ao leigo esclarecer sobre procedimentos com consequências tão complexas, o que gera implicações no tal consentimento informado, instrumento sem o qual não se faz NENHUMA pesquisa clínica, só para se ter uma ideia do tamanho do problema com o qual estamos a lidar).

2. O médico tem um papel fundamental na escolha da via do parto e deve despir-se de suas preferências individuais para aconselhar a gestante. Dada a enorme dificuldade em se fazer isso (até porque, um médico confia nas suas habilidades tanto para um como para o outro procedimento), não é totalmente descabido ouvir uma segunda opinião sobre o assunto. Isso diminui, com certeza, o viés. Mas aumenta a insegurança; outra escolha difícil.

3. O excesso de cesáreas é um dos exemplos de medicalização da medicina. Como a calvície, a timidez e a agitação infantil, nos mostra como transformar “desvios” arbitrários da normalidade em patologias manipuláveis tecnicamente.

Foto tirada do blog Parir é Nascer.

ResearchBlogging.orgZhang, J., Liu, Y., Meikle, S., Zheng, J., Sun, W., & Li, Z. (2008). Cesarean Delivery on Maternal Request in Southeast China Obstetrics & Gynecology, 111 (5), 1077-1082 DOI: 10.1097/AOG.0b013e31816e349e

ResearchBlogging.orgOsis MJ, Pádua KS, Duarte GA, Souza TR, & Faúndes A (2001). The opinion of Brazilian women regarding vaginal labor and cesarean section. International journal of gynaecology and obstetrics: the official organ of the International Federation of Gynaecology and Obstetrics, 75 Suppl 1 PMID: 11742644

Stravinsky, Roth e a Grand Place

Grand Place, Bruxelas, Bélgica 2011

Pessoas que me cercam costumam usar a palavra “atormentado” para definir um estado de espírito que, por vezes, me consome. Um estado de profunda introspecção e fixação por temas ou autores ou músicas ou qualquer que seja a peça intelectual que se encaixe nesse cenário. Não seria uma tristeza, nem um estado depressivo. É uma sensação de percepção de sangue correndo nas veias, de pensamentos trespassando o espírito, uma senciência do tempo; coisas assim. O que é engraçado nisso tudo é que volta-e-meia acabo arrumando uma relação entre esses vários objetos de temporária obsessão, relação que talvez só exista na minha cabeça, exímia em encontrar padrões onde, no mais das vezes, eles não existem. Quando existem, há quem chame essa visualização de intuição. E de repente, por uns breves segundos, intuímos um sentido para o mundo para logo depois, essa bruma de hiperconsciência se dissipar num cotidiano qualquer. Querem um exemplo?

Vamos com um fundo musical primeiro. Stravinsky. Estou fascinado por Stravinsky. Para se ter uma ideia do meu conhecimento de música erudita, raramente ouvi algo além de Bach (o velho) e Mozart (peças principais). Haendel (sinfonia aquática) é legal. Pronto, acabou. Não tenho ouvido para coisas muito complicadas e prefiro ritmos e improvisações. Villa-Lobos, só no violão do Egberto. No feriado, entretanto, vi o filme Coco Chanel & Igor Stravinsky de Jan Kounen. Desde então, escutei tudo o que pude de Stravinsky (além de descobrir em peregrinação frenética, que as grandes lojas de discos de São Paulo não sabem e não têm absolutamente nada sobre ele). Há uma música no filme, ironicamente chamada de “Les 5 easy piece pour piano solo” em seu primeiro movimento, um andante, que é, como diria, tenebrosa? Sombria? Mas ao mesmo tempo, prodigiosa na sua simplicidade. Depois disso, ouvi a Petrushka, as sinfonias para violino (sensacionais), ouvi tudo que consegui… A música de Stravinsky foi uma surpresa de grandiosidade para mim, como uma prosa nietzscheana, como uma explosão sexo-linguística em Miller, como a volúpia de uma cerveja na Grand Place em Bruxelas.

Fiquei também fascinado pela palavra nêmesis e por Nêmesis, a deusa. Descobri que há um livro chamado a “Nêmesis da Medicina” de Ivan Illich, veja só. Illich morreu em 2002 e no ano seguinte foi re-publicado um artigo – a partir de seu original no The Lancet de 1974 – com o resumo das ideias do livro no aniversário de seu falecimento (abaixo). A deusa Nêmesis é a deusa da vingança, mas não uma vingança qualquer. Ela personifica a vingança divina a quem sucumbe à hybris, uma mistura de soberba com “sem-noçãozismo”, que leva um mortal a “se achar” perante aos deuses e, obviamente, a fazer enormes besteiras. Illich começa o artigo com a seguinte frase (em livre tradução): “Nas últimas décadas a prática médica profissional tem se tornado uma grande ameaça à saúde.” Prossegue dizendo que “as assim chamadas profissões da saúde têm um poder morbidizante indireto – um efeito anti-saúde (healthdenying) estrutural.” Esta última sindrome, é batizada de Nêmesis Médica. Em uma interpretação particular do mito de Prometeu, Illich o coloca como vilão da história e o aproxima do “homem-comum” contemporâneo que provocou a inveja dos deuses e atraiu para si sua própria nêmesis. Nêmesis que agora se tornou endêmica, como um efeito colateral do progresso, disseminada em várias atividades, inclusive na própria medicina.

Nêmesis é também o título de um romance de Philip Roth (vejam interessante resenha no Amálgama). O livro é ambientado em Newark – EUA na época da epidemia de poliomielite bulbar que acometeu a América do Norte e a Europa na década de 50. (A mesma epidemia que possibilitou a criação das unidades de terapia intensiva). Nesse livro, a nêmesis é a pólio, veja só.

Fiquei ouvindo Stravinsky pelo YouTube do celular no carro no trânsito massacrante de São Paulo uma semana inteirinha. Fiquei lendo nêmesis, médicas e não-médicas, ouvindo Stravinsky. Comecei um romance sobre pólio, lembrei de viagens, praças, moças e cervejas… tudo ouvindo Igor (virei íntimo). Intui que isso talvez seja, precisamente, viver. Atormentado. O duro é viver comigo…

ResearchBlogging.orgIllich, I. (2003). Medical nemesis Journal of Epidemiology & Community Health, 57 (12), 919-922 DOI: 10.1136/jech.57.12.919

Ao Cientista Totalitário

“Na colocação dos problemas histórico-críticos, não se deve conceber a discussão científica como um processo judiciário, no qual há um réu e um promotor, que deve demonstrar, por obrigação de ofício, que o réu é culpado e digno de ser tirado de circulação. Na discussão científica, já que se supõe que o interesse seja a pesquisa da verdade e o progresso da ciência, demonstra ser mais avançado quem se coloca do ponto de vista de que o adversário pode expressar uma exigência que deva ser incorporada, ainda que como momento subordinado, na sua própria construção. Compreender e valorizar com realismo a posição e as razões do adversário (e o adversário é, em alguns casos, todo o pensamento do passado) significa justamente estar liberto da prisão das ideologias (no sentido pejorativo, de cego fanatismo ideológico), isto é, significa colocar-se em um ponto de vista crítico, o único fecundo na pesquisa científica”.

O texto é de Antonio Gramsci e foi escrito entre 1932 e 1933 e serve não apenas para a colocação de problemas histórico-críticos. Serve para a vida. Nenhum tipo de totalitarismo é aceitável. Também o da ciência não o é. Pense nisso quando for discutir “cientificamente” da próxima vez. Você não tem a verdade, tem apenas um modelo capaz de prever resultados de um número limitado de experimentos. A Verdade é outra coisa…

Consultei a excelente coletânea de Carlos Nelson Coutinho “O Leitor de Gramsci”. Ed. Civilização Brasileira.

O Livrinho do Convênio

 

O livrinho do convênio vem com os médicos que você pode escolher de acordo com seu plano. É uma escolha “livre” teoricamente porque você tem várias opções de especialistas médicos e profissionais da área da saúde.

Nada representa tão bem a promessa do capitalismo tardio na relação que constitui a medicina:

O poder verdadeiro das falsas escolhas.

Laringe e Ressentimento

O tumor laríngeo do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva foi notícia durante todo o fim-de-semana e manchete em jornais de todo o mundo. O tumor é do tipo comum e de agressividade médiadiz o laudo da biópsia de hoje ontem e Lula deverá instalar um cateter para realização de quimioterapia. Não é caso cirúrgico. Dois comentários sobre tudo isso.

1. O problema começou com uma rouquidão. Das causas conhecidas, os tumores malignos não são a maioria. A lista abaixo mostra as causas possíveis. De longe, as laringites e as lesões benignas são as mais comuns.

– Laringite aguda, auto-limitada e relacionada às doenças respiratórias e uso errado da voz.
– Laringite crônica. Muito associada à doença do refluxo ou a mecanismos de fala viciosos.
– Lesões benignas das cordas vocais (os famosos pólipos).
– Tumores malignos
– Quadros neurológicos (Parkinson, derrames ou lesões dos nervos laríngeo recorrente).
– Quadros psiquiátricos
– Doenças sistêmicas (amiloidose) e outros quadros muito raros

Toda vez que alguém famoso tem um diagnóstico bombástico, eu fico apreensivo. Alguns médicos ganham destaque e procedimentos que nem sempre são os mais recomendados, ganham os meios de comunicação. Como vivemos na sociedade do espetáculo, o resultado é que as pessoas acabam achando que é melhor fazer uma tomografia ou ressonância de corpo inteiro e procurar por bolinhas ou bolotas espalhadas pelo organismo e solicitar, então, que um bom cirurgião as retire. Gente, a medicina não funciona assim. Hoje, um paciente muito sagaz e fazedor contumaz de check-ups me perguntou por que neles não se realizam exames neurológicos, eletroencefalogramas ou mesmo uma tomografia nesse tipo de “medicina”. É mesmo, né? – pensei. Talvez porque saibamos menos a respeito do sistema nervoso? Ou porque o coração tem mais marketing? O que dizer da laringe, então? Ninguém lembrou de fazer uma fibronasolaringoscopia num paciente com história de tabagismo, ingesta alcoólica moderada, meia idade, meio rouco e com antecedentes familiares de tumores, inclusive de laringe? Não?! Poxa, o que pensam os grandes cérebros defensores do check-up sobre isso?
2. A enxurrada de protestos raivosos que o tratamento do presidente em um grande hospital particular de São Paulo gerou é o grande destaque negativo. O melhor, mais sincero e mais contundente texto que vi sobre o assunto foi este. Bom feriado a todos.

Coagulação e Defesa III

(Veja também Coagulação e Defesa e Coagulação e Defesa II)

As relações entre o sistema da coagulação e a imunidade são antigas, remontando aos primórdios da vida na Terra. Parece ser “evolutivamente econômico”, ao menos de um ponto de vista teleológico, um sistema acumular múltiplas funções em seres primitivos. A especialização posterior das funções é uma característica da complexidade. Em humanos, as funções da coagulação e do sistema imunológico eram consideradas separadas e estanques, cada um cuidando de situações específicas que poderiam colocar a vida do organismo em risco, a saber, evitar sangramentos abundantes após traumatismos e defender o organismo contra invasores, respectivamente. Cada um no seu quadrado. Até agora, pelo menos.

Em um artigo publicado há alguns meses na Blood, Loof e colegas mostraram, pela primeira vez, que o sistema de coagulação de humanos pode, sim, ter uma função na defesa contra a invasão de bactérias. Os autores usaram cepas de Streptococcus pyogenes, uma das bactérias “assassinas” de que a imprensa gosta tanto de falar pela sua capacidade de penetrar nos tecidos (ver figura abaixo) e ratos normais e modificados geneticamente (ver abaixo) em banhos de plasma humano para testar a capacidade de defesa das proteínas relacionadas à coagulação.

Esquerda: Bactéria sem o ativador de plasminogênio (AP). Direita: Com o AP. Dissolve o coágulo, invade o tecido e a corrente sanguínea. Modificado de Hongmin Sun. Physiology 21:281-288, 2006.

Já era conhecido o fato de que a capacidade de invadir tecidos do S. pyogenes é dependente da produção de uma substância anticoagulante (chamada de ativador do plasminogênio), mas estudos iniciais não mostravam uma ativação da coagulação claramente. Os autores suspeitaram da falta de alguns “ingredientes” (cálcio e fosfolípides) importantes para iniciar a cascata. Acrescentaram os ingredientes e viram que a “inflamação” causada pelo S. pyogenes era capaz de deflagrar a coagulação nos ratos normais. Feito isso, tomaram ratos modificados geneticamente para não produzir um fator específico da coagulação: o fator XIII. O fator XIII merece uma consideração especial. É uma transglutaminase.

As transglutaminases são enzimas que apareceram precocemente na história dos seres vivos neste planetas e faço aqui um parênteses que o(a) leitor(a) vai perdoar. Elas são enzimas que catalisam uma ligação covalente entre um grupamento amina (normalmente de um aminoácido lisina) com um grupo gama-carboxamida (normalmente da glutamina). O que há de interessante nessa ligação é que ela é altamente resistente à proteólise, ou seja, digestão. As transglutaminases são utilizadas em processos industriais para “juntar” proteínas, por exemplo, coisas “com gosto” com coisas “com consistência”, o exemplo mais conhecido o kani (bastão com gosto de carne de caranguejo) entre outras “engenharias” culinárias. No corpo humano, servem para “juntar” cabelo, pele e, veja só, fazer coágulo! Aliás, as transglutaminases foram descritas no longíquo ano de 1959, mas sua atividade biológica apenas em 1968, através do estudo de quem? Rá! Do fator XIII! A comprovação de sua idade é sua presença no caranguejo-ferradura, participando de seu processo de coagulação.

Feito o (grande, mas interessante, vai) parênteses, voltemos ao nosso estudo. Os autores então, dizia, pegaram ratos sem o fator XIII e, ao infectá-los com o S. pyogenes banhados em plasma humano viram que a infecção no pobre roedor era bem mais grave. A figura abaixo carece de uma explicação minuciosa.

Retirado da referência abaixo. Para explicações, veja o texto.

Essas fotos são micrografias eletrônicas que mostram a estrutura de coágulos gerados a partir de plasma normal (A,C,E) ou de plasma com deficiência de fXIII (B,D,F) na ausência de bactérias (de A a B) ou na presença delas (de C a F) (Veja as “bolinhas” no meio da rede). G, H e I são bactérias com marcadores específicos que serviram para validar o método. A e B, portanto, mostram a diferença do coágulo com e sem o fator XIII. C e D mostram que uma “segura” os invasores, a outra, não. E e F são closes de C e D. É a primeira vez que esse efeito foi demonstrado de forma tão clara e elegante.

Uma resposta imunológica eficaz depende da identificação e da eliminação rápidas dos invasores. Há exemplos destes mecanismos para materiais inalados e ingeridos. As feridas são outra porta de entrada importante e a tentativa de retardar a progressão das bactérias envolvendo-as em uma rede gelatinosa até que “soldados” (neutrófilos) e “tanques de guerra” (macrófagos) cheguem é muito interessante, além de parecer ter sido selecionada evolutivamente. Um exemplo clássico de fisiopatologia que a evolução ajuda a esclarecer. Uma das transglutaminases humanas, o fator XIII, funcionou plena e surpreendentemente em camundongos e é praticamente indistinta da enzima de um bicho de quase 100 milhões de anos (caranguejo-ferradura). Sinal dos tempos. Cicatrizes de luta ancestral.

ResearchBlogging.orgLoof, T., Morgelin, M., Johansson, L., Oehmcke, S., Olin, A., Dickneite, G., Norrby-Teglund, A., Theopold, U., & Herwald, H. (2011). Coagulation, an ancestral serine protease cascade, exerts a novel function in early immune defense Blood, 118 (9), 2589-2598 DOI: 10.1182/blood-2011-02-337568