Merleau-Ponty, o Corpo, a Cabeça e os Transplantes
Fiz uma provocação. Depois, fiz outra. O 100nexos, com a categoria de sempre, respondeu com fatos. Eu, sem saber se consigo, responderei com uma reflexão. Reflexão que a ciência teima em não fazer para si. (Recomenda-se fortemente a partir daqui, a leitura dos textos anteriores antes de prosseguir).
O transplante de cabeça ou de corpo é um paradoxo apenas se encararmos o ser humano como uma dualidade corpo-mente, corpo-alma ou qualquer que seja.
A idéia de um transplante dessas proporções vai no âmago da questão de onde está o nosso “eu”. A tradição filosófica ocidental pensou o corpo mais como um instrumento, um sinal imperfeito da própria alma. Esse pensamento atingiu seu apogeu em Descartes como mostra a passagem abaixo (in “Ética e Corpo Próprio em Merleau-Ponty” – Maria Edivânia Vicente dos Santos):
“Há uma grande diferença entre o espírito e o corpo, pelo fato de o corpo, por sua natureza, ser sempre divisível e de o espírito ser indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo na medida em que sou somente uma coisa que pensa, nele não posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa única e inteira. E, conquanto todo o espírito pareça estar unido a todo o corpo, todavia, estando separados de meu corpo um pé, ou um braço, ou alguma outra parte (poderia ser todo o corpo!), é certo que nem por isso haverá algo suprimido do meu espírito. […] Mas é exatamente o contrário nas coisas corporais ou extensas: pois não há uma que eu não ponha facilmente em pedaços com meu pensamento, que meu espírito não divida com muita facilidade em várias partes e, por conseguinte que eu não conheça ser divisível.” (Descartes, Meditações Metafísicas, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 128).
É essa a concepção de corpo que faz o transplante de cabeça ser um paradoxo. Se a ciência nos habitua a ver o corpo como uma reunião de partes, quando as separamos, simplesmente tornam-se partes separadas de um todo. O problema só surge quando resolvemos separar o que seria a “sede do espírito”: a cabeça. Esta, outra percepção originária da forma dual como dispomos e avaliamos nosso corpo.
Merleau-Ponty é um filósofo muito interessante para a medicina exatamente por ter teorizado sobre o corpo. Para Merleau-Ponty “a união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto artibrário entre dois termos exteriores, um objeto, outro, sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência”. Ainda no texto da profa. Maria Santos, “a consciência que tenho do corpo não é um pensamento, no sentido em que não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara”, como em Descartes.
Ao dissolver as dualidades sujeito-objeto, corpo-alma, Merleau-Ponty coloca no corpo uma antecedência a nossa experiência externa. Isso significa que só entendemos, sentimos, pensamos, a partir da vivência que temos de nossos corpos. O corpo é o nosso “ponto de vista sobre o mundo”. Eu não tenho um corpo. Sou um corpo.
Isso tudo quer dizer que a experiência radical de um transplante de corpo (este, o correto) só serviria, como serviu em primatas, para manter o indivíduo vivo por alguns dias. Querer colocar a cabeça de Stephen Hawking em outro corpo, mesmo que pudéssemos reconectar a infinidade de ligações neurais, musculares e ósseas que uma cirurgia como essa implica, e, mesmo que pudéssemos mantê-lo vivo indefinidamente, seria transformar Hawking em outra pessoa, que obviamente não seria o doador. Nós somos corpos!
Diriam os cientificistas: “Mas esse cara é filósofo. O que ele entende de neurofisiologia e tecnologia médica?” Eu perguntaria o que um tecnólogo ou neurofisiologista entende de ética?
Foto de Merleau-Ponty retirada do sensacional site francês da Academie Grénoble.
O Sopro Divino
O que Deus fez quando resolveu dar vida ao amontoado de barro que moldou e batizou de Adão (lembrar que adamah é argila em hebraico)? Massagem cardíaca seguida de choques no tórax de 200 joules? Alimentos de alto valor protéico? Enteroclismas? Transfusões de sangue? Plasma? Hemoderivados?
Não. Nada disso. Como mostra a figura acima, Deus simples e majestosamente soprou vida em Adão. Adão ganhou vida através de seu sistema respiratório e não através do coração, intestinos ou mesmo do sangue, tão simbólico! Essa alegoria do mito da criação dá bem a dimensão do que representa a respiração na antiguidade (ver também Shakespeare, Rei Lear). Por milhares de anos, respirar foi o mesmo que viver. (Apenas recentemente, com a necessidade de se definir tecnicamente a vida com objetivo de transplante de orgãos sólidos é que criou-se a figura da “morte cerebral”).
Tudo isso para dizer que através dos séculos, a respiração pode ser considerada a mais divina das funções fisiológicas. Sob uma perspectiva creacionista na qual somos seres perfeitos criados a partir da imagem divina, a mais divina das funções deveria sobressair-se sobre outras criaturas. Nosso sistema circulatório é muito bem adaptado ao que fazemos; não há absolutamente nada igual a nosso sistema nervoso; que dizer da maravilha de nosso aparelho locomotor? – e assim por diante. Mas, creiam-me, perdemos na respiração. Nossos pulmões não são os mais bem projetados para uma vida terrestre. Perdemos porque temos um “erro de projeto” que eu considero mais ou menos sério. Erro esse que rende milhares de publicações médicas anualmente, consome milhões de dólares em recursos de pesquisas, além de estimular a produção de equipamentos médicos altamente sofisticados cujo custo está na ordem de centenas de milhares de dólares por aparelho. Todo esse dinheiro e tempo seria economizado se fôssemos aves. Sim, é delas o sistema respiratório mais sofisticado, pelo menos do ponto de vista médico. É o que tentarei demonstrar nos próximos posts.
Parabéns ao Hotta que além de matar a charada, ainda adiantou o tema.
A foto é do Caapora. Pássaros são mesmo incríveis, Luciano. Obrigado.
Brócoli e Helicobacter

Talvez pensando nesse tipo de comportamento preconceituoso por parte da humanidade, não é de hoje, cientistas começaram a procurar utilidades para a famigerada verdura. E acharam.
O Helicobacter pylori é uma bactéria que resiste ao pH extremamente baixo do suco gástrico (aproximadamente 2). Recentemente, foi vinculada ao aparecimento de úlcera péptica e também do câncer gástrico. Por incrível que possa parecer, a úlcera, que num passado recente era tratada com a retirada cirúrgica do estômago, passou a ser tratada com antibióticos. Isso foi tão surpreendente que seu descobridor ganhou o Nobel de Medicina em 2005. O complexo e engenhoso mecanismo de ação da infecção pelo Helicobacter é esboçado na figura abaixo retirada da Nature Pois bem, brotos de brócoli podem minimizar os efeitos da infecção do Helicobacter nas mucosas gástrica e duodenal. Alguns exagerados, já afirmam que pode prevenir o câncer, mas daí a isso ocorrer de fato, ainda é um caminho longo.
O cidadão da foto acima é Jed Fahey, cientista da Johns Hopkins que descobriu em 2002 que brotos de brócoli contém uma substância chamada glucorafanina, precursora de um potente bactericida chamado sulforafano. Em ratos, a substância bloqueia o mecanismo responsável pela inflamação. Um pequeno estudo piloto com 48 pacientes foi conduzido com intuito de demonstrar que a ingestão de aproximadamente 70 g diários de broto de brócoli poderia reproduzir esses efeitos em humanos. Através de medidas indiretas de quantificação da infecção, foi possível demonstrar uma redução da quantidade de bactérias e de seus subprodutos metabólicos.
A infecção por Helicobacter pylori afeta um número de pessoas que está atualmente na casa dos bilhões ao redor do mundo. Se tal estudo de fato se consolidar como uma alternativa às terapias atuais (inibidores da bomba de próton e antibióticos) será mais uma arma na prevenção do que hoje é considerada uma epidemia de câncer gástrico. A esperança é tanta que foi criada uma empresa pela Johns Hopkins que produzirá brotos de brócoli em escala industrial. Pensando bem, dá para entender a admiração de Jed Fahey pela discriminada verdura. Ele é um dos sócios.
(Créditos: Cortesia da imagem: Johns Hopkins Medical Institutions)
Perguntinha Sufocante
É inevitável a procura humana por propósito, por sentido… Algumas respostas ajudam outras, nem tanto…
Qual é o bicho que tem o sistema respiratório mais evoluído apropriado para respirar o ar terrestre?
Medicina Baseada em Filantropia
São vários os critérios de escolha de um consumidor por um produto desta ou daquela indústria. Um dos critérios de importância crescente é, sem dúvida, o fato de determinada indústria ter ou não uma atuação ambiental consistente. Muitas ainda têm essa atuação vinculada a seus departamentos de marketing, mas já há ações bastante sérias e projetos interessantes. Para saber mais sobre isso recomendo a leitura do Ecodesenvolvimento e do Rastro de Carbono.
No nosso caso específico, as indústrias farmacêuticas não tem tido uma boa imagem junto aos consumidores. Isso é devido a vários fatores. Desde a retirada de medicamentos não rentáveis, até acusações de manipulação de resultados de pesquisas científicas. Mas também temos iniciativas interessantes nesse campo.
A boa notícia agora é que a britânica GlaxoSmithKline PLC ou simplesmente GSK, doou 800 patentes de medicações para o que convencionou-se chamar doenças negligenciadas. São várias doenças para as quais não há o interesse econômico nem as luzes de uma publicação badalada – o que normalmente é bem mais atraente a um pesquisador. A notícia foi divulgada por meio de uma pequena nota no Wall Street Journal e repicada em vários outros sites, sem maiores repercussões. Só fiquei sabendo por contato dentro da própria indústria farmacêutica (obrigado, Sérgio!). As patentes serão abertas a grupos de pesquisadores que se interessem em desenvolver medicações para as doenças negligenciadas.
A GSK já era considerada a primeira grande indústria farmacêutica no ranking da filantropia segundo o índice do Access to Medicine – um importante orgão internacional de monitorização do acesso a medicações por populações carentes. Com essa iniciativa deve, com certeza, ganhar muitos pontos na escala. Pena não termos acesso ainda a quais patentes foram liberadas e que a notícia não tenha ganho a mídia comum. Seria uma forma de pressionar as outras indústrias a fazerem o mesmo. Além disso, quem sabe os médicos, a exemplo do consumidor ambientalmente consciente, não se animam a trocar canetas, jantares e viagens pela ajuda humanitária às populações carentes que empresas que fabricam os medicamentos que prescrevemos possam oferecer? É sonhar muito alto?
Ver o gráfico retirado do Access to Medicine aqui View image
Nem Todo Grito de Ajuda é Aparente
Talvez a habilidade mais difícil de desenvolver em um médico seja a de identificar pedidos de ajuda. Exatamente por iniciar todo o processo. É muito fácil quando um paciente chega ao consultório e diz “Doutor, por favor me ajude!” Entretanto, há exceções importantes.
Mas o mais dramático, sensível e tenebroso pedido de ajuda é o silencioso comportamento de crianças abusadas. Tive algum contato com esse problema nos estágios de Pediatria e pude acompanhar um caso depois de formado. São bastante sutis as mudanças de comportamento e os pais devem estar atentos.
É isso que os cartazes da agência Kinetic Design and Advertising para campanha de abuso infantil desse site, passam de forma brilhante. O texto que os acompanha é “Lenticular posters designed for child abuse awareness. From certain view the kids might look perfectly normal, but from another view you will realize they are actually suffering in pain.”
O cartaz ao lado mantem a mesma expressão inespecífica no rosto do primeiro, porém, com um efeito “raio-x”, podemos perceber o cérebro sangrando, uma lágrima escorrendo e o coração partido.
É exatamente isso. Sentimentos ocultos. Mais que sentimentos, sofrimentos ocultos. Muitas pessoas sofrem em silêncio sem que saibamos. Muitas vezes, elas conseguem, de fato, esconder muito bem. Mas a grande maioria passa despercebido por falta de atenção das pessoas, médicos inclusive, que as circundam. Muitas vezes, basta uma pergunta para que se destampe a garrafa e a vida real comece a jorrar.
Como seria bom uma visão de raio-x como essa! Ver o sofrimento! Tenho certeza que alguns prefeririam não ver o que vêm. Como no caso do abuso de crianças. Entretanto, por razões profissionais, eu não tenho direito ao benefício da ignorância. Apenas preciso tomar extremo cuidado para não substituir essa visão de raio-x por exames de raio-x, de sangue e outros exames.
Cisto Sinovial
João Batista era eletricista. Ficou desempregado e conseguiu arrumar um “bico” de porteiro no meu condomínio. Uns 30 anos de idade, sergipano, de pele clara e sorriso fácil, frequentemente sofria repreensões do zelador, seu Belerino, por conversar demasiadamente com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família”. “Meu fraco, Doutor”- como ele dizia. Sabia que eu era médico. Um dia, após estacionar o carro na vaga, abri a porta e dei de cara com o João. “Doutor, olha isso que apareceu na minha mão. É grave?” Examinei e na face dorsal da mão havia um nódulo de uns 2 ou 3 cm de diâmetro.
“Está doendo?” perguntei. “Não, Doutor. Não dói nada” – respondeu. Comecei o discurso: “João, isso parece bastante um cisto sinovial. É um cisto benigno.” Enquanto falava, apertava o cisto com o polegar para sentir a consistência e ver se realmente não doía. “Antigamente, tratava-se isso colocando um livro pesado em cima, de preferência uma Bíblia e ele desaparecia. Hoje sabemos que é autolimitado, desaparece sozinho.” Fui falando devagar e pausadamente. João Batista prestando a maior atenção. “Alguns médicos operam isso, mas só se estiver doendo muito. Portanto, não há nada a se fazer por enquanto” – terminei. Ele disse “Então não é nada, né, Doutor? Posso ficar tranquilo?” Eu já sem muita paciência “Sim, João, pode ficar tranquilo. Qualquer coisa me avise”.
Algumas semanas depois, estaciono o carro e deparo novamente com João Batista. “Fala, João. O que foi dessa vez?” – disse amistosamente. Ele olhou para mim, chegou mais perto como quem vai contar um segredo e disse “Doutor, o senhor benze?”
Eu entendi tudo em frações de segundo. Também fiz uma tenebrosa previsão do futuro nos milésimos seguintes. Milhares de pessoas na porta do condomínio, crianças chorando no colo de mães impacientes, idosos, barracas de churrasquinho, a vizinhança em polvorosa, todos esperando o Doutor Benzedor… Inverti as sombrancelhas e falei bem sério “João Batista, eu não benzo. Seu cisto desapareceu sozinho! Se você espalhar para alguém que eu te benzi, vou falar com o Belerino e ele te manda embora!” “Não, não, Doutor. Faça isso, não! Só queria saber. Não precisa ficar bravo. Pode ficar tranquilo que eu não falo para ninguém” – disse ele, se desculpando e andando em direção à portaria. Virei as costas e entrei no elevador segurando a risada. Já pensou, eu benzedor!
Algumas semanas se passaram e após estacionar meu carro… Bem, lá estava João Batista de novo! Saí do carro e olhei para ele sem dizer nada. Ele, com a mesma cara com a qual falava com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família” me perpetrou a seguinte frase:
“Doutor, eu sei que o senhor não benze. Sei sim, pode ficar tranquilo e não falei isso para ninguém. Mas dá para o senhor passar o dedo aqui?”
Com o indicador apontava para a outra mão onde jazia, imponente, um novo cisto sinovial…
imagem retirada de Ehow.
A Fisiopatologia do Preconceito

My brown eyed girl by Mike Doyle at Flickr
“Todas as formas de dogmatismo – que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade – provêm da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da comunicação, uma ruptura na compreensão recíproca que a perturba, resultando em desconfiança universal”
Com essa frase, Olgária Matos sintetiza a fisiopatologia de uma doença característicamente humana chamada preconceito. Ela tem como agente etiológico o dogmatismo, elemento altamente contagioso por causar uma falsa sensação de conforto por fazer com que nos sintamos apoiados em verdades firmes e seguras. O indivíduo dogmático é um verdade-adito. Quando compartilhamos um conjunto de dogmas acabamos por criar uma origem identitária que se diferencia de outras origem identitárias.
Essas origens identitárias, necessariamente factícias portanto, produzem uma doença da comunicação, um desentendimento, o que se chamou de ruptura na compreensão recíproca que resulta, finalmente, em desconfiança universal. A desconfiança é um vírus que se dissemina rapidamente e envenena as relações humanas. As relações humanas, por sua vez, têm uma estranha capacidade de sobreviver a essa infecção, mas matar e/ou torturar os envolvidos nela, seja por meio de guerras, escravidão, colonizações, fome, abandono, discriminação e outros tantos sintomas de intolerância e agressividade para com o outro.
É na busca pelas “verdades dogmáticas” e pelas “essências humanas” – identidades fictícias – que se encontram os reais obstáculos à solidariedade. Será necessário impingir o mesmo tipo de sofrimento ao torturador para poder expiar-se-lhe a culpa? De onde vem esse ressentimento? O anti-racismo não é um racismo às avessas.
É uma solidariedade…
O Olho Azul

“Porque nós também não temos o direito de permitir que sejam os pobres, que viajam o
mundo a procura de uma oportunidade, de um emprego, de um salário, de uma
renda, que sejam os primeiros a pagar a conta de uma crise feita pelos pelos
ricos. Que não foi causada por nenhum negro, nenhum índio e por nenhum
pobre. Uma crise causada, fomentada, por comportamentos irracionais de gente
branca, de olhos azuis, que antes da crise pareciam que sabiam tudo e que
agora demonstram não saber nada” – Presidente Lula.
Não tinha lido a declaração toda. O contexto me parece o de uma discussão sobre imigração. Fechamento de fronteiras por falta de emprego é fato comum nesses períodos. Acho mesmo que o Lula tem razão em dizer que a crise não foi desencadeada por nenhuma pessoa pobre. Mas conta-se nos dedos, as grandes crises provocadas por populações desfavorecidas. A de 1929, a crise com a qual esta atual tem sido frequentemente comparada, também não foi obra dos pobres.
A questão aqui de fato, não é esta. Tenho me debatido, escrito e falado bastante sobre o conceito de raça humana. Sobre os perigos em procurarmos uma essência do humano e da própria humanidade. Tenho me interessado bastante pela solidariedade. Pela ciência solidária, política solidária e outras utopias. O discurso de Lula é racista. Combate fogo com fogo e sinceramente não sei se é eficaz para fazer europeus e americanos enxergarem a dura realidade. Sou radicalmente contra qualquer argumentação que utilize elementos raciais como premissas ou os obtenha como conclusões.
Acho no mínimo curioso que a frase de Lula tenha feito segmentos da Esquerda vibrar de alegria; essa mesma Esquerda que defende negros, índios e homossexuais da discriminação não pode se vangloriar de ter utilizado da mesma arma covarde do racismo.
Mais sobre o Rubor Facial
Interessantíssimo artigo da Plos sobre a ruborização facial que algumas pessoas de origem oriental (japoneses, chineses e coreanos) apresentam após ingerir quantidades, mesmo que pequenas, de etanol.
Rubor facial provocado pelo álcool no artigo da Plos
Quase 1/3 dos leste-asiáticos têm esse tipo de resposta associada ao etanol, muitas vezes acompanhada de taquicardia e náuseas. Isso é devido a uma deficiência genética de uma enzima hepática chamada aldeído-desidrogenase 2 (ALDH2). O etanol é metabolizado inicialmente a acetaldeído e depois para acetado pela ALDH2. A ALDH2 pouco eficaz dos orientais faz com que o acetaldeído, altamente tóxico, se acumule. Apesar desse achado ser bastante conhecido, o fato novo é que a ALDH2 menos eficiente é associada com risco aumentado para um tipo mortal de câncer – o carcinoma espinocelular de esôfago. Em alguns estudos, a chance (odds ratio) chega a ser multiplicada por 18.
O acetaldeído é o responsável pela ruborização facial e pelos outros sintomas constitucionais, mas também pela carcinogênese pois induz mutações genéticas que facilitam o aparecimento do câncer. Por incrível que possa parecer, a ingesta de álcool em pessoas com deficiência de ALDH2 vem aumentando nos últimos anos. Como estima-se que aproximadamente 540 milhões de pessoas apresentem o defeito genético, podemos imaginar o efeito disso em políticas de saúde pública.
Toda vez que temos um gene que codifica uma mal-adaptação a uma população, principalmente na frequência com que esse alelo incide, surgem dúvidas sobre qual o mecanismo que possa ter sido o responsável pela seleção do gene mutante. Já comentamos que essa pergunta institui a medicina evolucionária. Mas, segundo o raciocínio de um importante pesquisador poderia ser porque os japas beberrões são mais facilmente identificáveis pelas japinhas que assim se interessariam por eles, pois saberiam de antemão exatamente quando eles beberam uns sakês a mais, enquanto que os outros poderiam disfarçar melhor, já que o sakê, diferentemente da cachaça ou do uísque, não deixa o hálito alcoólico. Que tal? Na verdade, esse tipo de raciocínio – a resposta à pergunta: o que selecionou o alelo? – resume tudo que deveria ser investigado no assunto: nossa história evolutiva. Tentar contar essa história talvez seja a tarefa mais biológica que um médico possa desempenhar.