Eu Sem Mim

ET de MIB I "aprisionado" em seu corpo

A característica principal de quem dirige um veículo com prática é a automaticidade dos procedimentos. Mudam-se marchas e acionam-se dispositivos de maneira quase inconsciente. O todo das ações forma então, um conjunto harmônico de atitudes que fazem com que a condução do carro se torne parte de um ambiente “normal”. Dessa forma, é possível ouvirmos músicas e até conversarmos dentro de um veículo, esquecendo-nos que ele está em movimento, por vezes, em alta velocidade. Assim é o funcionamento do nosso organismo. Quantos processos automáticos não coexistem sem que sequer saibamos de suas causas ou de seus efeitos? Reações, pulsações, contrações, explosão de -ações em um concerto mudo. Já se disse que a saúde é a vida no silêncio dos orgãos. Mas algumas parcas notas dessa sinfonia nos são dadas a ouvir. Imagine-se, por exemplo, como seria se tivéssemos de nos “lembrar” de nossas “funções fisiológicas”, como evacuar ou esvaziar a bexiga de tempos em tempos, se o corpo não nos “avisasse” de suas necessidades. Suponhamos que não sentíssemos fome, sono, sede, libido, amor (?)…

A continuarmos por esse caminho, podemos começar a supor que muitas de nossas escolhas “conscientes” podem ser originárias de uma outra fonte que não a própria vontade do nosso Eu. Um caminho que levado às últimas consequências pode conduzir à armadilha – semântica e vazia – do fisicalismo, por um lado, e, por outro, a um determinismo biológico muito próximo de um materialismo cientificista, também incapaz de satisfazer as condições de possibilidade desse Eu, alma, Self, Selbst, sujeito, ou o que quer que seja. Mas como negar a existência desse Eu, sujeito ou Self, proprietário de um corpo que o carrega para lá e para cá e o insere no mundo da vida? Existiria algo como o ET do filme “Homens de Preto“, que, autopsiado, revela seu verdadeiro Eu como o proprietário de uma carcaça mecânica (figura) que fingia ser um ser humano? Será essa a metáfora de uma existência bipartida?

A criação de um Eu todo poderoso excluso do corpo que lhe dá abrigo, é sacramentada em Descartes. Nietzsche chama esse tipo de pensamento de descuidado.

Sejamos mais cuidadosos que Descartes, que se manteve preso à armadilha das palavras. Cogito é decididamente apenas uma palavra, mas ela significa algo múltiplo: algo é múltiplo e nós, grosseiramente, o deixamos escapar, na boa-fé de que seja uno. Naquele célebre cogito se encontram: 1) pensa-se; 2) eu creio que sou eu quem pensa; 3) mesmo admitindo-se que o segundo ponto permanecesse implicado, como artigo de fé, ainda assim o primeiro “pensa-se” contém ainda uma crença, a saber: que “pensar” seja uma atividade para a qual um sujeito, no mínimo um “isso”, deva ser pensado – além disso, o ergo sum nada significa! Mas isso é fé na gramática; já são aqui instituídas “coisas” e suas “atividades”, e nós nos afastamos da certeza imediata.[1]

Para Nietzsche, a extração de um Eu do processo do pensamento é um efeito das funções lógicas e gramaticais que atuam inconscientemente. Um efeito colateral do processo do pensar. É como se o motorista, para abusar da analogia acima, ao automatizar todos os movimentos da direção, passasse a sentir o “corpo” do carro como seu. No parágrafo 16 de “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche desconstrói a célebre formulação cartesiana.

uma série de afirmações ousadas, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível; – por exemplo, que sou eu que pensa, que, em geral, tem que haver um ‘algo’ que pensa, que pensar é uma atividade e um efeito de parte de um ser, que é pensado como causa, que existe um ‘eu’, finalmente que já está estabelecido o que deve ser designado com pensar, – que eu sei o que é pensar.[3]

Para então, escrever

Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez sentir, ou querer? Em resumo, aquele eu penso pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um saber de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma certeza imediata.[3]

Há como diferenciar sentir ou querer de pensar? Em caso negativo, é possível, então, abolir a alma ou o tal Eu – res cogitans de Descartes-; em caso positivo, estaríamos comparando configurações mentais diferentes e a conclusão seria sempre relacionada – comparada – à outra coisa, impedindo-me assim, de chegar à certeza nuclear, fundacional de todo o conhecimento humano. Nietzsche inverte, portanto, a lógica herdada da tradição: “existo, logo o conjunto de meus pensamentos produz um Eu”. Chega-se à conclusão então, que “esse Eu, esse si-mesmo, é infinitamente mais complexo do que a unidade aparentemente simples da autoconsciência”.[2] Está enraizado muito mais profundamente na existência do indivíduo: funda-se na própria animalidade de suas origens e ocupa um espaço do qual a autoconsciência é apenas a ponta do iceberg. E aí, entra o Zaratustra: “Por detrás de teus pensamentos e dos teus sentimentos, irmão, há um rei poderoso e um sábio desconhecido – que tem por nome Si. Vive no teu corpo, é o teu corpo. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria.”[4]

“(O corpo) não é apenas ‘a carne’ e a sede das paixões, desejos e desgarramentos, nem mesmo a res extensa, de que cogitara Descartes; ao contrário do que pensara o platonismo e o cristianismo, o corpo não é a prisão do espírito, o oposto da razão. Para Nietzsche, o corpo é a Grande Razão.”[2, grifos meus]. A pequena razão é o Eu. Um brinquedo na mão da Grande Razão. Um subproduto, um epifenômeno. O que faz perguntar, mas, então, para que uma pequena razão tão desenvolvida a ponto de nos enganar como fim em-si, sede do Eu e de mim, por tantos séculos?

(continua…)

1. Nietzsche, F. Fragmento Póstumo 40 [23], agosto-setembro de 1885, apud Giacóia Jr, O. Metafísica e Subjetividade in as Ilusões do Eu – Spinoza e Nietzsche. pg 425-444. Org. André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva. Civilização Brasileira, 2011.

2. Giacóia Jr, OMetafísica e Subjetividade in as Ilusões do Eu – Spinoza e Nietzsche. pg 425-444. Org. André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva. Civilização Brasileira, 2011.

3. Nietzsche, F. Além do Bem e do Mal. ¶16, pg 21-22. Trad Paulo César de Souza. Companhia das Letras. 1992.

4. Nietzsche, F. Assim Falou Zaratustra. Dos desprezadores de corpo. Trad M de Campos. Publicações Europa-América. pg 29-31. Portugal. 1988.

USP em Tudo, USP então?

Têm sido divulgados na mídia, dados interessantes sobre a Universidade de São Paulo. Primeiro, a questão do número de doutores: a USP é a que mais forma doutores no mundo. Carlos Orsi no Twitter observou que Oxford estava apenas em 28o lugar nesse quesito e a pergunta que ficou no ar é: o que isso quer exatamente dizer? A USP é seguida pela Universidade da Jordânia e pela Universidade de Tóquio na formação de acadêmicos.

Recentemente, no dia 14 de março de 2012, foram publicados os novos dados da Times Higher Education parabenizando os new entrants no top 100, a saber “Hebrew University of Jerusalem, University of São Paulo, in Brazil, and the Middle East Technical University, in Turkey”, que ultrapassaram universidades do velho mundo. (Veja aqui, reportagem d’O Estado)

Em que pesem as críticas metodológicas sobre os tais “rankeamentos” em geral e de universidades, em especial (veja, por exemplo, a eterna briga dos rankings de clubes de futebol), há mais de 40 rankings de universidades publicados no mundo, inclusive alguns no Brasil e que sempre fazem muito barulho. A discussão é válida enquanto for um instrumento para mudanças. (Veja excelente post do Quipronat sobre o assunto, no ano passado).

Lado Ruim

Eu, particularmente, acho que esse tipo de propaganda acaba não agregando muito à universidade. A USP não cobra mensalidade. Tal exposição, positiva de fato, acaba por servir à acirrada política paulista – lembrar que estamos em ano de eleição -, servindo também à inércia, tão cara a alguns administradores públicos, de manter as coisas como estão. Pior, no caso do número de doutores, há em curso um projeto que talvez acelere sua formação, coisa que já vem acontecendo há alguns anos, como se o número de acadêmicos formados fosse um fim em si.

Lado Bom

Mas há um aspecto positivo. A Lei de Diretrizes Orçamentárias prevê uma destinação fixa de verbas para as universidades estaduais paulistas: os tais 9,57% da Quota Parte do Estado do ICMS (QPE). O Brasil tem várias universidades estaduais mas acho que só as paulistas gozam desse tipo de estatuto (quem tiver dados contrários, por favor me avise, eu procurei mas não achei isso). Justamente, USP, UNICAMP e UNESP que têm aparecido em posições bastante destacadas nos rankings de universidades latinas. Os governos de outros estados poderiam se “animar” com esse tipo de propaganda (que não é ponte, nem estrada!) e destinar mais verbas as suas próprias universidades e para a educação em geral.

Lado Pior

Mas, no melhor estilo “tirar doce da boca de criança”, segundo a ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior ),  “os dados mostram que as universidades não receberam o percentual sobre cerca de R$ 1.422,2 milhão, valor correspondente a impostos recebidos em atrasos e suas respectivas multas e juros de mora, e sobre aproximadamente R$ 741,1 milhões, referentes ao repasse para Habitação, sistematicamente subtraído antes do cálculo dos 9,57%. Ou seja, as universidades públicas paulistas deixaram de receber, no ano passado, um total de R$ 207 milhões (R$ 108,8 mi da USP, R$ 50,7 mi da Unesp e R$ 47,5 mi da Unicamp), montante que deveria ser repassado à educação superior pública paulista, por força de lei, e que o governo Alckmin destinou outro fim.” (itálicos meus).

A ADUSP afirma que a sangria orçamentária foi feita com a anuência dos reitores (CRUESP). Aqui vale aquele ditado que diz que “nego só vê as pinga que a gente bebe, não vê os tombo que a gente leva”…. Por tudo isso, vejo esses números com uma alegria contida e uma atenção redobrada para avaliar como eles serão, ou estão sendo, utilizados. E por quem.

PS. Lamentável a morte do professor César Ades, sob todos os aspectos. Veja homenagens de quem o conheceu de perto aqui, aqui e aqui.

Reanimação Sexy

Por ressuscitação cardiopulmonar (RCP ou CPR, em inglês) chamamos o conjunto de procedimentos que visam reestabelecer a circulação sanguínea estando esta última, interrompida por ritmos cardíacos não-propulsores. (Ao contrário do que muito gente pensa, o coração não necessita estar “parado” para que a circulação assim esteja). Tais procedimentos visam a ação imediata e são extremamente padronizados com poucas variações desde sua introdução na década de 50. No Brasil, temos um sistema de ensino e divulgação da RCP comparável aos melhores do mundo e a Sociedade Brasileira de Cardiologia divulga essas informações gratuitamente. O vídeo abaixo, é uma propaganda de uma marca de lingeries mas segue os principais preceitos básicos da RCP, tendo feito muito sucesso entre OS residentes do hospital e partilho esse conhecimento com meus leitores agora.

O suporte básico de vida deveria fazer parte do currículo de várias profissões como professores, seguranças e todos os que lidam com agrupamentos humanos. Mortes extemporâneas poderiam ser evitadas.

PS. As moças não dão cursos no Brasil (já tentei). Mas tem outros vídeos médicos “interessantes” aqui.

O Enigma do Ver

Não sei quando comecei a gostar de Cézanne. Talvez tenha sido quando adquiri meu primeiro PC (e único, hehe), um 486, em entrada + 11 prestações para escrever minha tese. Lembro de ficar me divertindo com minha internet discada num sítio de papeis de parede e de ter escolhido este para o computador.

Gardanne - Paul Cézanne, cerca 1885

Vi que era de dele. Não estudei pintura e sei pouco a respeito da biografia de outros pintores, mas Cézanne me pegou de jeito. Sua personalidade introspectiva e tosca, sua tenacidade em perseguir seus objetivos, a amizade com Émile Zola e com os impressionistas parecem tiradas de um roteiro cinematográfico. Mas talvez, o que tenha drenado mais fortemente minha atenção foi sua angústia (tenho tendência a gostar dos angustiados). Toda a cólera e a misantropia de Cézanne podem muito bem ser colocadas na conta de sua monomania, de sua verdadeira obsessão. De sua doença. Merleau-Ponty chega a diagnosticar um tipo de constituição mórbida, uma esquizoidia,  [1, pg 125]. E afirma: “A incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam, no essencial, por sua constituição nervosa, mas pela intenção de sua obra” [1, pg 135]. E então, eu descobri exatamente porque comecei a gostar de Cézanne:

Há uma relação entre a constituição esquizóide e a obra de Cézanne porque a obra revela um sentido metafísico da doença – a esquizoidia como redução do mundo à totalidade das aparências imobilizadas e suspensão dos valores expressivos -, porque a doença cessa então de ser um fato absurdo e um destino para tornar-se uma possibilidade geral da existência humana quando enfrenta de forma consequente um de seus paradoxos – o fenômeno da expressão -, e enfim, porque é a mesma coisa, nesse sentido particular, ser Cézanne e ser esquizóide. [1, pg 136-137]

A doença deixar de ser “um fato absurdo e sem sentido para tornar-se uma possibilidade de existência humana” é a maior das consolações que alguém poderia querer para si. O desejo de sentido transmuta-se em obra. Vários autores assim o fizeram Proust, Nietzsche, Beethoven para ficar em uns poucos. Além disso, e para mim tal pergunta se reveste de grande importância, onde estava a doença de Cézanne? Qual a semente interior que se desdobrava em doença lá em cima? Cézanne se comporta como um portador de uma patologia da expressão. Em neurologia, aos transtornos da compreensão e expressão da linguagem chamamos afasia. Há afasias de compreensão e afasias de expressão. Estas últimas são especialmente angustiantes. Mostramos aos pacientes um relógio ou uma caneta e eles não os nomeiam. Dizem “hora”, “escrever” mas não o nome do objeto permitindo supor que sabem o que é, mas não são capazes de traduzir seu conhecimento em palavras. Cézanne, ouso dizer por tudo que li, tinha um tipo incomum de afasia.

Impressionismo

Princesa de Broglie - Ingres, 1853 - Fonte Wikipédia

Apesar de contemporâneo aos impressionistas e de ter aprendido com eles, em especial com Camille Pissarro, Cézanne nunca se considerou um impressionista de fato. Os impressionistas opuseram-se à escola anterior, neo-clássica, que em Paris tinha como seu maior expoente Dominique Ingres. O estilo de Ingres chega a ser apavorante, tal a capacidade de reproduzir os efeitos luminosos da realidade. Sua técnica era, segundo ele próprio, baseada no “rigor da linha”. Às cores, não era atribuída maior importância, afinal, “não constituíam a forma”, dizia. Seus temas clássicos, com figuras “posadas” e em situações pouco à vontade, formatavam o “bom-gosto” parisiense da época. Para Ingres, as sombras são escuras e as cores equilibradas. Num retrato indoor nada choca ou agride a visão.

Os impressionistas, por outro lado, tinham interesse em captar a luz solar ao iluminar o mundo e impactar a visão. A linha é compreendida como mais uma abstração do ser humano para representar imagens, quem precisa de contornos nítidos sob a implacável luz solar? As sombras têm de ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam, e não escuras ou em tons de cinza ou preto. Contrastes de luz e sombra deveriam ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares. Quando colocamos uma rosa cor-de-rosa sobre uma cartolina cinza, o fundo adquire tons esverdeados. Um pintor clássico pintará o fundo de cinza, confiando que o quadro, como objeto real, produzirá esse efeito de contraste. A pintura impressionista, com o objetivo de levar os fortes contrastes solares dos ambientes externos para a visualização dos quadros, em geral, em salões fechados e com pouca luz, pinta a rosa sob um fundo verde e a faz saltar aos olhos [1, pg 129]. Veja-se esse exemplo de Claude Monet.

Nenúfares, Claude Monet, 1914-17

Mas Cézanne logo se separou dos impressionistas. Chegou mesmo fazer a afirmação “Monet é apenas um olho” referindo-se ao projeto impressionista de descrever “a dança da luz sobre os olhos” [5, pg 103].

A “Afasia de Cor”

Cézanne queria pintar com a cabeça. Conta-se [1, pg 131] que Balzac em “A Pele de Onagro” descreve uma “toalha branca como uma camada de neve recém-caída e sobre a qual elevavam-se simetricamente os pratos e talheres coroados de pãezinhos dourados”. Cézanne confessou que em toda sua juventude quis pintar isso. Entretanto, “agora eu sei” – dizia – “que se deve querer pintar apenas o ‘elevavam-se simetricamente os pratos e talheres e os pãezinhos dourados’. Se eu pintar os ‘coroados’, estou perdido, compreende? Se realmente equilibro e matizo meus pratos e talheres, e meus pãezinhos como no modelo natural, esteja certo de que as coroas, a neve e tudo o mais estarão ali”. Cézanne tinha uma verdadeira devoção pela cor. Segundo o professor Marcelo Duprat [2, pg 67-68]

A cor em Cézanne funciona como um princípio. Isto ocorre à medida que a aplicação das pequenas áreas de cor rege e conduz o desenho e o claro-escuro das formas. É bem verdade que a distribuição da cor em pequenas pinceladas já era um procedimento típico do impressionismo, como podemos constatar na obra de Renoir, e sobretudo na fase final do impressionismo — no divisionismo pontilhista. Mas, se o impressionismo dissolve as formas pelas vibrações da cor, as formas permanecem lá, submersas, sustentando a obra, enquanto as cores se distribuem de forma independente sobre elas. É, portanto, o tratamento tonal e cromático das formas que é problematizado e não sua estrutura. No impressionismo a estrutura das formas, mesmo sendo trabalhada posteriormente, é compreendida como um dado precedente. Já em Cézanne, é a cor que estrutura, não há um desenho sobre o qual a cor é aplicada, são as cores que formam.

Ou ainda, em uma carta a um jovem pintor [1, pg 130]

O desenho e a cor não são mais distintos, à medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o desenho… Quando a cor está em sua riqueza, a forma está em sua plenitude.

Mas o que seria sua “afasia”, então? Cézanne queria, mais que ninguém, captar a realidade da natureza. Sabia que somos seres visuais e que dentre as coisas que vemos, a que mais nos impressiona é a luz que deve ser traduzida na forma de cor, como nesta carta a Émile Bernard, jovem pintor e teórico que escreveu um livro sobre Cézanne [3. pg 251].

Aqui está, sem contestação possível — tenho plena certeza: — no nosso órgão visual produz-se uma sensação óptica que nos faz classificar como luz, meio tom e quarto de tom os planos representados pelas sensações colorantes. A luz, portanto, não existe para o pintor.

Ou também quando afirma que “a luz é algo que não se pode reproduzir, mas que se deve representar por outra coisa, pela cor. Fiquei satisfeito comigo quando descobri isso” [2, pg 59]. Tudo o mais seria consequência dos contrastes. Sabia também, do delírio que a cor provoca e entendia as técnicas de pintura como abstrações utilizadas para iludir o observador. Ele queria transcender isso e tentar pintar em “linguagem de máquina”. Como, abstendo-se das técnicas mais rebuscadas, conseguir o efeito visual da realidade? Nesse sentido, Cézanne é um primitivista. Também “distorceu” a perspectiva – ela mesma, outro truque -, de suas formas procurando a harmonia mais natural entre os elementos de seus quadros [2, pg 10-24]. Merleau-Ponty é certeiro [1, pg 127]: “Sua pintura seria um paradoxo: buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro. É o que Bernard chama o suicídio de Cézanne: ele visa a realidade e proíbe-se os meios de alcançá-la”. Apesar de saber e conhecer e dominar técnicas, a linguagem que quer criar é “infalável”. Cézanne é um afásico da expressão naquilo que mais lhe é caro, naquilo que ele mesmo criou. O apego a essa condição faz Cézanne sofrer e tentar e tentar… Pinta lentamente. Cada pincelada devendo cumprir uma enorme série de exigências “de luz, cor, profundidade, linha, etc”. Raríssimamente assina um quadro porque também raramente, o considera pronto. É um embotamento, essa insistência, que produz quadros.

E o que eu, finalmente, vejo quando olho para um quadro de Cézanne? Ele dedicou sua vida para que eu visse as coisas como ele via, sem tentar me enganar. Trabalhou arduamente para construir uma linguagem pictórica que fosse primordial e anterior às interpolações cerebrais que faço ao ver/interpretar uma imagem. Fez um desenho de como via as coisas e pediu que víssemos como ele via. Não sei se conseguiu e jamais o saberemos. Entretanto, é possível que ele tenha conseguido ao menos desvendar uma parte que seja, do enigma que é ver. Talvez, no final seja isso mesmo, às doenças caberão o papel de nos mostrar os caminhos de nossa humanidade. Quem disse que não temos um algo mais? Nosso vitalismo não é outro senão esse mesmo, um morbimortalismo que demanda uma escolha: superá-lo ou sucumbir-lhe.

Jogadores de Cartas. Cézanne, 1893-6

PS. O quadro acima – quase um estudo de Cézanne –  foi comprado em 2012 pelo maior valor já pago por uma obra de arte na História.

Referências Bibliográficas

1. Merleau-Ponty M. A dúvida de Cézanne. in O Olho e o Espírito. Cosac & Naify, 2004. Capa dura. Edição bem cuidada de ensaios do filósofo.
2. Duprat M. A Expressão da Natureza na Obra de Paul Cézanne. Ebook em pdf. Interessantíssimo ensaio sobre os aspectos que fizeram revolucionária a obra de Cézanne, pelo pintor e professor M. Duprat.
3. Cézanne P. Correspondência. Martins Fontes, 1992. Compilação de sua correspondência com prefácio de John Rewald.
4. Nonhoff N. Cézanne, vida e obra. Könemann, 2001 (para a edição portuguesa). Bom resumo da biografia e principais obras. Inclusive uma Lot e suas filhas, que não se encontra em lugar algum da web.
5. Lehrer J. Proust was a neuroscientist. Cannongate, 2007.

O Sherpa Subterrâneo

Caspar Friederich - O andarilho

A melhor forma de aproximar-se de um “conhecimento” e operacionalizá-lo de modo a poder emitir juízos com valor de verdade sobre ele é, na minha opinião, escalar-lhe os caminhos montanhosos de suas várias faces dotados das “ferramentas” que nossa condição humana permite. Ciência, literatura, filosofia, artes, são formas de captar o que nos cabe da coisa-em-si humana. Argue-se que um desequilíbrio axiológico em relação ao que representa uma verdade científica e uma literária ou pictórica, pode inviabilizar essa discussão, como a disputa entre o rochedo e o mar. Muito foi escrito sobre isso e tal debate está mesmo na base de uma teoria da verdade que tem na ciência seu modelo mais bem acabado. Por isso, é possível concordar com Albert Levi quando ele diz que “mesmo nossas armas foram roubadas”, pois ao tentar atribuir verdades a obras literárias, p.ex., as julgamos com os “juízes da ciência”.

Esse assunto me é bastante caro como pode ser notado por sua recorrência nesse blog, mas me justifico. Se a medicina não deve ser confundida com a ciência médica – um de seus pilares de sustentação – é porque o paciente não pode ser reduzido à fisiologia, fisiopatologia e farmacologia de suas agruras. Qualquer médico que não seja um cientista em exercício ilegal da profissão sabe que a ciência médica não dá conta do todo de seus pacientes. Adoecer é uma forma de ser-no-mundo que pode ser entendida de várias maneiras. Se assim é, deve haver outros caminhos que conduzam às verdades deste ou daquele pacientes individuais. Mas que caminhos? Perdemos a inocência quando descobrimos o viés. Tais individualidades assemelham-se mais a idiossincrasias sem padrões definidos, a um labirinto no qual não se trilha o mesmo caminho duas vezes.

A nós, médicos de um tempo em que a informação e sua velocidade viral formam a tessitura do real que nos afeta, resta conhecer as outras faces da montanha que constituem um paciente de carne e ossos. Como se não bastasse as centenas de artigos, livros e prática árdua e incessante que visam a resposta à pergunta “o que é?”, ao médico ainda urge a indagação abissal: “quem é esse ser que sofre?” Do que é ele constituído e como esse “material” afeta seu ser-no-mundo? Ah, há ainda o mundo…

Compreenderia melhor se eu sentisse as dores que sentem? Se sentisse a falta de ar que sentem? Acolheria melhor se me acometesse o medo que os acomete? Mestre da interpretação dos signos, sou o mero usuário de um programa escrito pelo paciente no que se refere a este “lado oculto da montanha”. Esse programa, construído ao longo de toda sua vida com a vasta riqueza que flui do contato entre humanos e suas humanidades, me ilude e confunde. Eu precisava “falar” a linguagem de máquina subjacente a esse software. (E não me venham com a psicanálise! Também ela, software. E, ainda pior, metalinguistico).

Foi então que entendi que não estavam nas alturas as minhas respostas. De fato e ao contrário,  precisava de algo como um sherpa subterrâneo, senhor dos caminhos intrínsecos de seu próprio ser. Precisava de um super-paciente com poderes de expressão além do homem que pudesse levar-me ao nível primitivo de sua constituição primordial. Que me conduzisse à crueza e à violência de seus impulsos mais básicos para eu então ver, com meus próprios olhos, onde está a semente que se desdobra em doença lá em cima, lá na superfície revolta e poluída das convenções sociais onde se dá o fatídico encontro. Mas, um paciente assim subverte o equilíbrio de forças na relação com médico subvertendo também, a própria medicina. Ao médico é necessário deixar-se sequestrar por ele o que não acontecerá se ele não tiver a consciência do querer. O médico é treinado para não fazê-lo e, se for bom, não o fará de fato. A única alternativa possível então, é abandonar a arena de embate onde se dá o contato com o paciente e procurá-lo em outros lugares sem deixar de “estar” médico sob o risco de perder o olho clínico que o identifica. E onde encontrá-lo? Antes, onde procurá-lo?

Se consideramos, como acima, outras formas de obtenção de “verdades” com todos os problemas que disso possam decorrer, temos que procurar pelos grandes mestres e por seus vestígios patológicos. Ora, quem dentre os humanos domina a linguagem das artes? Quem dentre nós traduz melhor seus interstícios mais febris em quadros, poesias, livros, esculturas, personagens, música e todas as manifestações do espírito humano? Como é quando um gênio das artes escreve, pinta, compõe, representa, sobre suas doenças ou sobre a forma como percebe as doenças? Ao conceber uma obra de caráter universal, um artista contribui para o corpus cultural da humanidade, criando novos gostos, novas formas de subjetivação, novas formas de ser-no-mundo e com elas, novas formas de adoecer. E o ciclo se fecha.

Por isso, quando um pintor como Cézanne faz a pergunta da criança “se eu desenho o que eu vejo, a pessoa que olha, tipo, vê o quê? O que eu vi?” a resposta vem na forma de uma sabedoria profunda. É como se perguntasse “quando eu conto a você a dor que sinto, o que é que você sente?”

ResearchBlogging.orgLevi, A. (1966). Literary Truth The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 24 (3) DOI: 10.2307/427972

Cor, Um Delírio

Recomenda-se a leitura deste excelente post do 100nexos a título de introdução. Esse será um longo post e a tentarei fazê-lo menos árido, mas que isso não diminua sua importância para o que queremos entender.

Fig. 1. O que você vê na figura acima?

Essa é uma ilusão de óptica bastante conhecida e tomei-a emprestada do Bad Astronomy. Parece haver 3 cores de espirais entretecidas: uma verde, outra rosa (ou magenta) e ainda uma outra azul, correto? Por incrível que pareça, a verde e a azul são exatamente a mesma cor que é a dos quadrados abaixo.

Fig. 2.

Para os geeks, no sistema RGB de cores elas são representadas pelos códigos hexadecimais de 0, 255 (o máximo) e 150. O que quer dizer, nada de vermelho, 255 de verde e 150 de azul. É um verde mesmo com matizes azuis, que na tela de computador com uma resolução boa, pode ser percebida sutilmente nas bordas dos quadrados. Faça o teste em qualquer programa que tenha uma paleta de cores com os códigos acima. O truque para nos enganar consiste em pequenas faixas que cortam as espirais como mostra a figura 3 abaixo, em aumento da figura 1.

Fig. 3.

Como pode ser visto, as faixas laranjas não cruzam algumas espirais verdes e as faixas rosas, não cruzam outras. Intercalando esse efeito, temos a figura 1 acima com suas “três” cores de espirais. A explicação desse fenômeno começa no fato de que o olho humano percebe o espectro de cores usando uma combinação de informações vinda de células da retina chamadas de cones e bastonetes. Os bastonetes são mais adaptados a baixa luminosidade e especializados em detectar a intensidade da luz. Os cones, por sua vez, ao detectarem intensidades maiores de luz, são capazes de disparar impulsos de acordo com comprimentos de ondas diferentes, em outras palavras, podem discernir cores. Veja na figura 4 abaixo, os três tipos de cones retinianos, cada um especializado em comprimentos de luz diferentes correspondendo aos espectros de azul, verde e vermelho. Repare como o espectro de captação, aqui normalizado para intensidade, do vermelho e do verde se sobrepõem.

Fig. 4. (tirado de Handprint)

Pensando assim, é de se perguntar como conseguimos diferenciar a cor dos semáforos. Como diz o Kentaro, no post recomendado acima, “As cores que percebemos não são determinadas apenas por sua frequência no espectro eletromagnético, e sim em como estimulam nossa retina, sensível a três cores primárias. Não temos um sensor ótico capaz de medir a frequência exata da luz que entra em nossos globos oculares, e sim três tipos de células sensíveis a cor (luz) que reagem apenas a três pequenas fatias desse espectro, localizadas aproximadamente em sua metade e dois extremos. Nós literalmente interpolamos a medida de um amplo espectro contínuo a partir de três sensores de sensibilidade bem limitada.” (parêntese meu)

Essa interpolação (quase um “delírio”) é extremamente dependente da intensidade de luz que atinge a retina. A ilusão das figuras acima é possível porque nosso sistema visual, constituído pelo olho, nervo óptico (II par), o trato óptico, núcleos no tálamo e o córtex visual, avalia cores sempre levando em consideração as cores circunjacentes (sobreposição). Mas há mais um truque na manga que faz com que a figura 1 seja ainda mais vibrante. Vale a pena parar a leitura do post e fazer este experimento (não se esqueça de trocar as cores de acordo com as instruções do site). Nele, há uma combinação de 2 fenômenos: a complementaridade de cores que criamos e o que é chamado de afterimage. Ambos estão presentes também no experimento abaixo, bem mais simples.

Fig. 5. Olhe fixamente por 20 seg o ponto branco no centro do quadrado colorido. Depois, rapidamente, fixe o ponto preto. (tirado de Handprint)

Há uma vasta e complicada fisiologia por trás desse fenômeno. Mas, se você fez tudo direitinho, deverá ter visto em torno do ponto preto, um quadro colorido também. Só que com as cores trocadas! Agora que você está craque, só para treinar, tome os quadrados verdes da figura 2 novamente e fixe-se na “barra branca” que os separa por 20 segundos. Ao deslocar o olhar para a direita, contra o fundo branco, deverá ver exatos dois quadrados e de que cor? Exatamente da cor da outra espiral: magenta.

“Falar” Cores é Complicado

Pergunta. Você já viu um vermelho-alaranjado ou um laranja-avermelhado? Acho que sim, e não é difícil imaginar essas cores. O mesmo se dá com um verde-azulado ou azul-esverdeado e com os amarelo-esverdeados, azul-arroxeados, verde-amarelados etc, etc, correto? Mas o que dizer de um rosa-esverdeado ou de um verde-rosáceo? Ou mesmo um azul-amarelado e seu par o amarelo-azulado? Hehe. Não dá, né? Por quê?

Isaac Newton estudou as cores e como em tudo que ele pensava, deu um jeito de geometrizar o espectro de luz. Inventou esse círculo de cores ao lado como forma geométrica de “construir” ou misturar cores. Funciona como uma bandeja redonda que tentamos equilibrar na ponta do dedo colocando pesos (no caso, cores) na sua borda, ou seja procurando seu “centro de gravidade”. Ele desenvolveu um método matemático para fazer isso, e descobriu que o branco era composto pelas outras cores; mas não é isso que quero ressaltar agora. (Quem se interessar em aprofundar-se sobre esse método e ver os créditos da figura, clique aqui).

Brincando com as cores, Newton percebeu uma coisa bem estranha. Ao misturar em igual proporção cores opostas do seu círculo, produzia-se também a cor branca. (Um branco desbotado, ele mesmo notou, mas branco). Surgia, então, a ideia de cores complementares. Os desdobramentos desses estudos resultaram, com a ajuda de outros cientistas e do escritor e poeta alemão Göethe, em especial, na Teoria Romântica das Cores que enfatizava o conflito ou antagonismo entre as cores complementares, bem como o claro e o escuro.

Na Teoria Romântica das Cores do século XVIII, as cores complementares eram chamadas de opostas, criando relações entre as cores conhecidas como contraste ou antagonismo. “O contraste pode ser demonstrado observando cores lado a lado em padrões visuais simples onde uma cor aumenta ou altera aparência da outra (exatamente como nas figuras acima). Antagonismo resulta da mistura de comprimentos de onda complementares – o que produz um branco acromático (e por esta razão, desbotado) – cada cor, então anula sua oposta […] O antagonismo pode ser percebido também observando as afterimages negativas, onde a exposição prolongada a uma cor leva a uma imagem residual de sua cor complementar”. Exatamente como no quadrado colorido da figura 5.

O Tratado

Foi quando um químico e funcionário público de uma fábrica de tapetes em Paris, resolveu publicar o que havia descoberto desenvolvendo pigmentos para tingir os gobelins. Michel-Eugène Chevreul (foto ao lado) publicou em 1839  o tratado “De la loi du contraste simultané des couleurs et de l’assortiment des objets colorés.” – traduzido para o inglês por Charles Martel como “The principles of harmony and contrast of coloursem 1854. Chevreul descobriu que cores intensas provocavam o aparecimento de halos em áreas adjacentes a pretos, cinzas, brancos ou mesmo matizes desbotados. (Veja um exemplo disso, neste experimento). É esse efeito que realça a coloração azul da faixa verde na figura 1 e nos “engana”. Entre outras coisas, padronizou também, a questão da complementaridade das cores baseado no efeito da afterimage negativa, como vimos acima.

Eugene Delacroix parece ter sido o primeiro a perceber a possibilidade de criar uma representação mais intensa e convincente da luz externa com esse tipo de técnica. Por exemplo, a pele amarela tem sombras violeta. Ao introduzir cores nas sombras no intuito de aumentar a intensidade cromática de todo o quadro, abriu caminho para o impressionismo. Delacroix era um dos pintores favoritos de Paul Cézanne.

Leitura Complementar

1. Sensacional e premiadíssimo site do Handprint. Há explicações detalhadas sobre todos os fenômenos que envolvem o olho e a luz. Imperdível.

2. Colors on the Web. Site sobre teoria resumida das cores e sobre cores na internet.

3. Michael Bach. Interessantíssimo site com dezenas de experimentos visuais de onde tirei os do post.

As Deformações do Ver

Viajando de carro por uma estrada cercada de vegetação exuberante.

Filho: “Vai demorar muito, Pai?”

Pai: “Acho que mais 1 hora.”

Filho: “Uma hora! Que chato! Não aguento mais “tipo” ficar no carro…”

Esse diálogo repetiu-se por 3 vezes com intervalos cada vez menores e variações regressivas na estimativa de chegada do grande, assim como nas interjeições de extremo enfado do pequeno, acercadas de “tipos” por todos os lados. Foi quando o pai resolveu jogar sujo.

Pai: “Filho, o que você acha dessa floresta?”

Filho: “Bonita, ué. Por quê?”

Pai: “E de que cor ela é?”

Filho (espantado pelo retrovisor): “Verde, ora. Como assim?”

Pai: “Verde. Mas como eu sei que o verde que você vê é igual ao verde que eu vejo?”

Filho: “Porque é.”

Pai: “Como você sabe? E se o que nós chamamos de verde for, digamos, um tipo de vermelho pra você que desde bebê achou que aquilo era um verde e ficou por isso mesmo?”

Filho (começando a sentir o efeito): “Só um nome?”

Pai (com um olho no retrovisor onde vê o menino com o olhar perdido pela janela do carro e o outro na mãe que com as sombrancelhas fletidas expressava uma certa reprovação pelo conhecido golpe baixo): “Isso. Só um nome” – tirando uma das mãos do volante, para apontar o céu com o indicador.

Entrando numa pequena estrada.

Filho: “Mas, então. Tipo… Mas o que isso afeta (verbo utilizado por crianças habituadas ao game Pokémon da Nintendo dado que determinados golpes não afetam o oponente, no sentido de diminuir sua energia vital, p.ex. golpes de água afetarão pouco pokemons aquáticos que, por sua vez, são bastante afetados por golpes de fogo e assim por diante)?”

Pai (Pensando: “Maldito moleque pragmático! Puxou a mãe!” Esta não conseguiu evitar que sua boca se deslocasse leve e charmosamente para direita. Ele conhecia aquele sorriso. Mantinha os olhos na estrada, um pouco mais perigosa e movimentada agora. A floresta havia dado lugar a casinhas e pequenas propriedades): “Isso ‘afeta’ que cada um de nós tem um jeito de ver as coisas.” (seja o que Deus quiser, pensou de novo).

Filho: “Mas, Pai… (mudando o tom enfezado e esboçando um certo cansaço pelo esforço de abstração)… E meus desenhos?”

Acabando de entrar numa estrada de terra com pedregulhos que, ao atingir o chão do carro, soavam como o inverso de uma chuva seca.

Pai: “Que é que tem seus desenhos?”

Filho: “Se eu desenho o que eu vejo, a pessoa que olha, tipo, vê o quê? O que eu vi?”

Foi quando uma voz feminina aveludada e calma disse, em bom sotaque português: “Chegando ao seu destino”.

DEK – Catástrofe, Cataclisma e Apocalipse: Finalmente o Fim?

Calypso por Blazing Wolf1763

Dentro da palavra apocalipse há a palavra “calipso”. Calypso é a ninfa do mar que prende Ulisses em sua ilha por 7 anos. Seu nome vem do grego kalyptein e significa “escondida”, “oculta”. Esta palavra ainda originou o nome de uma árvore, o eucalipto, que quer dizer “bem coberto”. O prefixo apo-, por sua vez, quer dizer “à partir de”, “separado”. Como em apologia (apo-, ‘à margem de’; logos, ‘palavra’, ‘discurso’), mas não simplesmente uma negação. Dá ideia de um movimento constante. Como em apóstolo formado por apo– + stellein (‘enviar’, ‘mandar adiante’). Apokalyptein, então, seria um desvelar épico de algo previamente oculto. Uma revelação. Apocalipse portanto, não é sinônimo de “fim-do-mundo”. Essa conotação parece ter ocorrido depois do Apocalipse de João onde é revelado que Jesus seria o Messias.

Cataclisma e catástrofe são palavras que também passam ideias diferentes de seus significados e igualmente muito utilizadas para descrever o fim-do-mundo. Cataclisma, do grego kata-,’para baixo’; klyzein, ‘lavar’, como sendo uma grande enxurrada, ou podendo mesmo ser um tsunami. Catástrofe com o mesmo prefixo kata-,’para baixo’ e strephein, com o signficado de virada (mesma origem de estrofe), como algo que tivesse um fim inesperado.

Sobre se o mundo vai acabar em 2012? Ah, sim. Infelizmente, não. Mas deveria, ao menos para quem acredita no poder de calendários arbitrários, em profecias cretinas e spams mal-acabados em powerpoint. Essa é a grande revelação apocalíptica no fim. A de que é uma redundância de proporções não mais maias, mas otomanas ou visigodas, científicas ou filosóficas, geológicas quem sabe, e que só perderá em medida de agigantamento à estupidez humana, essa sim, catastrófica, cataclísmica e apocalíptica dado a dificuldade que confere à humanidade em ser feliz simplesmente.

 

Blogagem coletiva Fim do Mundo

Maçã do Rosto – Final

Este post é a continuação deste e deste.

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Eu estava transtornado, queria achar algo, alguma coisa. Qualquer coisa. Entrei na sala de discussão e abri o armário onde ficavam os livros para consulta. Entre os Harrison’s, Cecil’s (ambos de Medicina Interna), Brauwald’s (Cardiologia), Sleisinger’s (Gastro), William’s (Endócrino) Adam’s (Neuro) e outros tantos best-sellers clássicos da Clínica Médica, dei de cara com este, o Fitzpatrick:

Um livro de Dermatologia. Dermato? Abri o livro sem saber porquê, corri o dedo na “table of contents” e fui virando as páginas. Flap, flap, flap. Introduction. Flap, flap, flap. Section 1. General Considerations. Flap, flap, flap, flap. Section 8. Disorders of Epidermal and Dermal-Epidermal Cohesion and Vesicular and Bullous Disorders. Flap, flap, flap. Section 9. Disorders of the Dermal Connective Tissue. Cacilda… Tinha gente em volta. Todo mundo queria saber onde isso ia parar. (Eu inclusive). Flap, flap, flap. Cheguei na Section 10. Disorders of Subcutaneous Tissue  68 Panniculitis Chapter 69 Lipodystrophy. Parei. Abri direto o capítulo. Sob o título, logo na primeira página, lá estava ela. A moça da foto do primeiro post. Igualzinha a minha paciente. Era um capítulo sobre lipodistrofia. Li o capítulo saltando palavras e ao som de “não acredito”, “não é possível, isso não existe” do povo sobre meus ombros.

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O caso era idêntico, idêntico, à descrição do livro. Um tipo raro de lipodistrofia parcial do tipo tóraco-facial, conhecida pelo epônimo de Síndrome de Barraquer-Simons (pdf com foto). Até 2007, menos de 60 casos haviam sido descritos no mundo. As lipodistrofias são um grupo heterogêneo de doenças, congênitas ou adquiridas, caracterizadas por perda completa ou parcial do tecido adiposo (lipoatrofia). Em alguns casos, pode haver acúmulo de gordura em outras regiões do corpo. Há casos importantes de lipodistrofia generalizada em pacientes soropositivos para o HIV e localizada, em pacientes diabéticos que necessitam aplicação de insulina. Como é que eu iria saber? Pior, havia alguns requintes. Parece fazer parte do mecanismo da doença o consumo de uma proteína da cascata do complemento chamada de C3. Devido a isso, é possível até haver lesão renal por depósitos de anticorpos. Pedimos vários exames a ela, inclusive este específico. Tudo veio normal na consulta de retorno; também resultaram normais a urina e o rastreamento renal. Menos o C3 que estava indetectável. Era, sem dúvida, um caso de Barraquer-Simons. O tratamento, infelizmente, é paliativo, estético. Encaminhei a moça à cirurgia plástica para implantes de silicone e/ou transplante autólogo de gordura – pega-se um naco de gordura das coxas ou dos glúteos e tenta-se implantar nas “maçãs do rosto”. Os resultados são satisfatórios. Não tive mais notícia da paciente.

Lipodistrofias adquiridas. A figura do meio corresponde à descrição do texto. Foto retirada do Uptodate.com

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Nunca mais a esqueci. Navegando na internet, achei a foto que me fez lembrar do caso de novo. A chance de eu me defrontar com uma doença tão rara como essa até o final da minha carreira como médico é quase igual a de ganhar na Loto. Saber sobre a Síndrome de Barraquer-Simons em si, não é, portanto, um saber médico cotidianamente utilizável: é como um tipo de nota de rodapé que insistimos em não esquecer. Um conhecimento. Que é diferente de sabedoria. A sabedoria aqui foi desconfiar da presença da doença e que, por sua vez, originou-se de uma vaidade fútil; uma birra, uma cisma. São estranhos os caminhos que levam os médicos aos diagnósticos. Os pacientes precisam saber disso.

Depois de reconhecer o tecido adiposo como “orgão” não-uniforme onde residia a doença (conforme as ideias de Xavier Bichat – o que não deixa de ser irônico, já que as maçãs do rosto levam seu nome), ficou evidente que a gordura da região superior do corpo é diferente e tem funções diferentes que a de outras regiões resolvendo assim o paradoxo inicial de emagrecer o rosto e ganhar peso. Depois disso, sempre gosto de ter um livro para consulta ao alcance das mãos. Em algumas situações o conhecimento fragmentário dos artigos não dá conta de um paciente como um todo. Por fim, o tecido adiposo ainda me daria outras experiências, no mesmo ambulatório, na poltrona cativa e surrada que ainda permaneceria muito tempo por lá.

Puberdade em 1 Minuto (para Garotos)

Sensacional vídeo divulgado no Street Anatomy. Quem se identificou, levanta a mão.

One Minute Puberty from bitteschön.tv on Vimeo.