A Fundação Rockefeller e o Modelo Filantrópico de Medicina

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Construção da sede da Faculdade de Medicina – Foto de 31 de Julho de 1929. Cortesia do Acervo da FMUSP

Parece ter havido um momento bastante peculiar e relativamente curto, logo no início do século XX, no qual as práticas de saúde, medicina incluso, sofreram uma modificação estrutural de proporções gigantescas. A formação médica, que era baseada na transmissão de conhecimentos do prático a seus aprendizes, muda repentinamente seu eixo em direção às grandes instituições de ensino médico; o estudo anedótico de casos clínicos dá lugar, sucessivamente, à estatística vital, à epidemiologia clínica e, claro, posteriormente à medicina baseada em evidências; Galeno sai, finalmente, de cena e entra Claude Bernard; o francês e o alemão, como línguas científicas, cedem espaço ao inglês. A maleta do médico é progressivamente substituída pelo hospital; tudo isso em não mais que um par de décadas.

Muito tem sido escrito sobre qual o papel desempenhado pelas fundações filantrópicas e, especificamente, a Fundação Rockefeller (FR), nessa revolução. Ele não foi pequeno. Há centenas de livros, documentários, artigos e uma simples busca na internet revela uma enorme quantidade de informações confiáveis em meio a outras cuja veracidade é difícil comprovar. A atuação da FR, bem como de outras entidades filantrópicas, na área educacional em geral e no ensino médico em particular, além de sua influência na saúde pública, agricultura, e outras tantas áreas nas quais a ciência estava em pleno desenvolvimento na época, tem sido tanto objeto de críticas violentas, como defendida com fervor e devoção até hoje. Mas, uma questão permeia incomodamente todo esse corpus monumental de ideias: Por que os maiores de todos os filantropistas, os Rockefellers, Senior e Júnior, orientados pelo reverendo batista Frederick Taylor Gates, escolheram a medicina? Tal decisão não parece ter sido tomada de modo súbito e consciente desde o início. A questão do saneamento básico era premente naquela época: esgotos a céu aberto, pobreza, água não tratada, epidemias de cólera, febre tifóide, ancilostomíase, febre amarela e malária dizimavam a população e diminuíam drasticamente a produtividade dos trabalhadores, em especial no Sul dos Estados Unidos. Com esse quadro caótico, nada mais natural que os incentivos às campanhas de erradicação de pragas, à pesquisa de novas técnicas agrícolas e ao fomento da ciência biomédica, bem como a construção de escolas e outros tantos projetos desenvolvidos por Gates e financiados pelos Rockefellers. Inicialmente com a fundação do Rockefeller Institute for Medical Research (hoje a Rockefeller University) em 1901, e depois, por meio do General Education Board a partir de 1903, a predileção quase obsessiva pelo ensino médico só viria manifestar-se com todas as suas características após o estabelecimento da Fundação Rockefeller em 1913 (perfazendo seu centenário em 2013, portanto).

Duas linhas de pensamento orientavam as práticas médicas na segunda metade do século XIX. A medicina social era, como vimos, um campo em pleno desenvolvimento e nomes como Villermé, Buchez e Guérin na França; Neumann, Virchow, e Leubuscher na Alemanha, estudavam as causas sociais e ocupacionais das doenças. Rudolf Virchow (1821-1902), um dos pais da patologia celular moderna e um dos médicos mais importantes do século XX, defendia que a medicina “deveria intervir na vida política e social”.  Por outro lado, desde Pasteur e Koch, proponentes da teoria infecciosa das doenças, uma visão algo mais “conservadora” começou a dominar a pesquisa médica já que a identificação de agentes responsáveis por toda a constelação clínica de sinais e sintomas que uma doença específica causa, encorajou a ideia de que terapias específicas tratariam doenças específicas. A descoberta de tais terapias deveria ter precedência sobre fatores econômicos e sociais. Não por acaso, Virchow se envolveu em embates sobre o assunto com Koch e Semmelweis, este último, o descobridor de que a causa da febre puerperal era a falta de higiene das mãos dos médicos. Quando da apresentação de Koch na Sociedade de Fisiologia de Berlim em 1882 sobre a descoberta de que um bacilo causava a tuberculose, Virchow, cuja visão podia ser classificada como “anticontagionista”, se opôs veementemente. Para Virchow, o fato de carregarmos bactérias em nosso organismo era sinal de que tais “micróbios” só causariam doenças se, por algum motivo, o hospedeiro se enfraquecesse. O anticontagionismo teimoso de Virchow foi uma reação à passagem para segundo plano de sua “teoria social das doenças”. Ambos médicos receberam verbas de seu país, montaram laboratórios influentes, receberam fellows e foram pesquisadores reconhecidos mundialmente, mas a visão “científica” de Koch e Pasteur era a mais adequada a quem tinha a “caneta na mão”. Para Gates, a miséria era uma questão técnica, não social. Como escreveu Brown [1]

Quando Gates, [Rockefeller] Júnior e outros homens da Fundação Rockefeller decidiram estabelecer a primeira escola de saúde pública dos EUA, eles selecionaram o Dr. Welch e a Johns Hopkins como seus veículos sabendo que a nova escola deveria ter forte ênfase nas ciências básicas e não divagar em questões sociais.

A resposta à pergunta “por que a medicina?” pode servir de base para entendermos a medicina que é praticada em grande parte dos países ocidentais e também no Brasil atualmente. Quando John D. Rockefeller o chamou para coordenar as ações filantrópicas do que viria a se tornar a Fundação Rockefeller em 1890, Gates comprou um exemplar do livro do canadense William Osler da Johns Hopkins (que, aliás, estagiou com Virchow em 1873), um dos médicos mais influentes da época [2]. Gates ficou fissurado pelo livro. Em uma série de memoranda enviadas ao seu “chefe”, ele defende que o desejo por saúde é uma força unificadora “cujos valores permeiam tanto o palácio do rico quanto a cabana do pobre. A medicina é um serviço que penetra todos os lugares”. Portanto, “os valores da pesquisa médica são os valores mais universais da Terra e eles são os mais importantes e individuais de cada ser vivente”[3]. Com a medicina, o reverendo Gates queria converter pagãos e angariar mercados de matérias-primas e viu nela um quebra-nozes cultural, capaz de transpor as barreiras que exércitos não poderiam transpor. A medicina tecno-científica seria o substituto secular do proselitismo cristão com as vantagens de poder exibir resultados incontestáveis na melhoria da vida das pessoas. A FR injetou 45 milhões de dólares na China para modificar a Peking Union Medical College e quantidade similar nas Filipinas, Tailândia, México, entre outros tantos países. Para o nosso país, valem as palavras da professora Maria Gabriela Marinho [4], maior estudiosa do assunto:

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, mais particularmente em São Paulo, o ensino e a pesquisa na área biomédica foram dimensões privilegiadas desse apoio institucional cujas origens podem ser identificadas em 1916, quando estabeleceram-se os primeiros contatos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Desses contatos iniciais resultaram dois grandes acordos, envolvendo recursos específicos e de grande monta: o primeiro, com vigência entre 1918 e 1925, destinado à criação do Instituto de Hygiene e para o qual foram enviados dois pesquisadores norte-americanos, Samuel Taylor Darling e Wilson Smillie. Como desdobramento deste mesmo acordo, foi criado ainda o Instituto de Pathologia, onde atuaram, entre 1922 e 1925, dois outros pesquisadores estrangeiros: o canadense Oskar Klotz e o norte-americano Richard Archibald Lambert. Especificamente no campo da Higiene, o processo traduziu-se pela criação, sucessivamente, da Cadeira de Hygiene (1916), depois Departamento de Hygiene (1917), posteriormente Instituto de Hygiene (1918), que resultou, finalmente, em 1946, na implantação da Faculdade de Higiene e Saúde Pública. O segundo grande acordo visou especificamente à reformulação da estrutura acadêmica da Faculdade de Medicina com o objetivo de transformá-la em instituição modelo para a América Latina, com base no projeto de excelência das Rockefeller’s Schools, disseminado em escala planetária e assentado no modelo uniforme de tempo integral para pesquisa e docência nas disciplinas pré-clínicas, numerus clausus (limitação do número de vagas) e criação do Hospital de Clínicas, recomendações preconizadas em 1910 pelo Relatório Flexner, encomendado pela Fundação Carnegie e substrato das reformas do ensino médico norte-americano no período. A abrangência da intervenção na Faculdade de Medicina de São Paulo pode ser aferida, entre outros indicadores, pelo volume de recursos a ela destinados pela FR: foram transferidos cerca de um milhão de dólares entre 1916 e 1931 para a remodelação do ensino médico. Aproximadamente no mesmo período – 1916-1940 – a mesma agência destinou cerca de quatro milhões de dólares para o combate à febre amarela em todo o território brasileiro.

A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo estabeleceu-se como uma “Rockefeller School”. Muitas outras escolas médicas a seguiriam em seu modelo hopkinsniano de ensino e pesquisa, algo avesso às “divagações sociais” e que floresceria na Ásia, Europa e América na primeira metade do século XX. Podemos afirmar que a formação médica no Brasil jamais seria a mesma após sua fundação. A pergunta que se impõe agora é saber quais os possíveis efeitos colaterais desse modelo vencedor de fazer medicina dado que os efeitos desejados, já são conhecidos: a FMUSP vem cumprindo seu papel de liderança no cenário médico brasileiro e latino-americano com projeção internacional. Quando perguntei se “ao trazermos, com força, ao debate acalorado de hoje, a ciência que nos embasa e nossa própria sabedoria prática médica como argumentos inelutáveis ao criticismo “laico”, não estaríamos também invocando os fantasmas de um certo “conservadorismo sofisticado”, autoritário e paternalista, aos moldes dos grandes filantropistas à frente de suas poderosas fundações?” era sobre isso que eu gostaria de saber. Sempre que somos chamados a nos posicionar sobre assuntos que nos dizem respeito – da vinda de médicos estrangeiros e sua forma de fazer medicina, às políticas de saúde, formas de remuneração e relação com outros profissionais -, não devemos nos esquecer das bases históricas, políticas e sociais nas quais nossa formação se insere, sob o risco de, ou associarmo-nos a mudanças sociais indesejáveis, ou retardarmos as que legitimamente representam um anseio da população, dado o papel singular que a medicina desempenha na sociedade, como já notava Gates. É preciso olhar um pouco para baixo e ver do lugar a partir do qual falamos. O “modelo filantrópico de medicina” foi uma alternativa norte-americana ao modelo “social” de medicina proposto por Virchow, pela Columbia e por outros tantos autores de orientação marxista. Sem juízo de valor, para que nos utilizemos melhor dele, será preciso nos emancipar de seus eloquentes resultados e considerar também o que foi deixado para trás, em especial, aquilo que ainda não nos é dado ver.

 

[1] Brown, ERRockefeller Medicine Men: Medicine e Capitalism in America. Berkeley, University of California Press, 1979. Disponível para download em Rockefeller medicine men : medicine and … – Revalvaatio.org

[2] Osler constituiu um dos quatro cavaleiros fundadores da Escola de Medicina da Johns Hopkins, chamados de The “Big Four” junto com William Stewart Halsted, Professor de Cirurgia, Howard A. Kelly, Professor de Ginecologia e  William H. Welch, Professor de Patologia. Um dos grandes méritos de Osler foi insistir na Residência como parte integrante e insubstituível da formação do médico.

[3] Gates, FT. “Address on the Tenth Anniversary of the Rockefeller Institute,” 1911, Gates collection, Rockefeller Foundation Archives, in Brown, ER.

[4] Marinho, MGSMCHorizontes, Bragança Paulista, v. 22, n. 2, p. 151-158, jul./dez. 2004 (pdf)

Fábricas de Ideologias

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Membro do Conselho de Educação da Fundação Rockefeller em palestra no Alabama,1914.
Cortesia da Fundação Rockefeller

“Nosso principal argumento é que a estrutura da educação médica moderna foi estabelecida há 75 anos atrás com o propósito de incorporar a revolução na ciência biomédica; ao atingir seus objetivos, acabou por definir a especialização altamente tecnológica como a principal meta para medicina clínica”.

Samuel Bloom, 1988[1]

“Medical education is inextricably tied to the health service system, and when questions arise about service, questions about education must follow”

World Health Organization 1972 (in [1])

A classe dominante organiza toda a vida nacional (social, cultural) construindo em torno do Estado um sistema de aparelhos (privados, semipúblicos e públicos) que constituem as diversas projeções da função de direção política na sociedade civil.

Antônio Gramsci (in Maquiavel, a Política e o Estado Moderno)

Ayres[2], em seu estudo Sobre o Risco (parece que há uma re-edição em português), conta a evolução e a importância do conceito de risco no pensamento médico atual. Em determinado momento do livro, ele põe sua extraordinária capacidade de análise para identificar as causas do pioneirismo dos EUA em relação ao desenvolvimento de um tipo de medicina social bastante peculiar que chama de “Nova Saúde Pública”. Dentre as causas citadas, temos:

  • herança anglo-saxônica. A medicina social desenvolvera-se de forma importante na Inglaterra vitoriana, mas por séculos, os ingleses já proporcionavam serviços médicos a sua população. Uma das prováveis razões disso pode ser o fato de Henrique VIII ter assumido tarefas para o Estado que eram responsabilidade da Igreja em outros países europeus [3, pág 90]. Outro fator é o desenvolvimento da estatística vital, apropriada a estudos populacionais, que iniciou-se no séc XVII e tinha o nome de “aritmética política”. A produção de dados populacionais trouxe à luz problemas que antes não podiam ser avaliados e transformou-se numa praxis.
  • Publicismo radical e privatismo pleno. Sem nos aprofundar em demasia, o espaço público americano parece ter amadurecido precoce e diferentemente do resto do mundo, em especial em função de um profundo individualismo. Nascido no bojo de um processo emancipatório, “a noção de público nos EUA tendeu, como talvez em nenhuma outra sociedade, a restringir-se estritamente às necessidades de compatibilizar e preservar os interesses privados” [2, pág 120, grifos meus]. Segundo Ayres, “democracia e individualismo foram tornando-se traços inseparáveis da própria identidade norte-americana”. É esta combinação peculiar e cheia de contradições que é chamada de publicismo radical e privatismo pleno pelo autor.
  • O Puritanismo. Ao propor uma forma de ascetismo laico, já destacada por Weber, fundamental para construção de uma ética do trabalho, o puritanismo oferece uma justificativa terrena para a acumulação e a filantropia.
  • O Pragmatismo de William James (médico da Harvard) e John Dewey. Para Dewey, “o indivíduo era o fundamento e a medida da retitude, verdade e legitimidade de qualquer projeto generalizador. Ao mesmo tempo, só no âmbito da experiência pública da vida cotidiana é que o indivíduo pode se dar conta de forma concreta destas aspirações”[3, pág. 124]. Todo seu humanismo estava radicalmente embasado num individualismo filosófico.
  • Darwinismo social (confira também este texto para uma referência mais abrangente, em inglês). Sua importância reside, grosso modo, numa “justificação científica” para a riqueza algumas sociedades, consideradas “mais aptas”, e a pobreza de outras, “menos aptas”. De forma geral, o capitalismo assimilou, algo distorcidamente, as ideias do darwinismo social, mas em especial, a centralidade do conceito de competição e sobrevivência do mais apto foram fundamentais para isso.

Tímidas tentativas preliminares de organização da saúde pública norte-americana, entretanto, foram rechaçadas com a argumentação de que os “estados tinham seus direitos ameaçados pela ingerência do governo federal em sua próprias esferas” (pag.122). Porém, em 1872, finalmente, foi estruturada a American Public Health Association (APHA). A APHA congregou vários especialistas de vários estados atuando na área de saúde pública e tornou-se um dos porta-vozes da onda “humanista” que se levantou contra o radical e “prejudicial laissez-faire que se sucedeu à vitória do projeto liberal e industrialista na Guerra de Secessão”. Explica-se, assim, um certo consenso surgido à época em relação a uma intervenção sanitária como forma de resolver os enormes problemas gerados pela industrialização vertiginosa que ocorria. Algo precisava ser feito, mas como? Qual projeto deveria ser levado adiante?

Aqui a história ganha ares de roteiro cinematográfico. Quando a Fundação Rockefeller resolveu financiar sozinha uma escola de saúde pública, havia nessa época, segundo alguns autores citados por Ayres [2], três propostas concorrentes de abordagem do problema sanitário norte-americano. A primeira, de caráter ambientalista, era um projeto conjunto da Harvard e do Massachussets Institute of Technology (MIT) em Boston e enfocava o saneamento do meio externo com um forte embasamento bacteriológico. A segunda, que pode ser chamada de sócio-política, era sediada em Nova York e, mais precisamente, na Universidade de Columbia, entendendo o “desafio da saúde pública sob uma perspectiva mais integral, com reformas na organização dos modos de vida, da estrutura do Estado, das legislações, etc”. O terceiro perfil de proposições era de cunho biomédico. Surgido numa escola mais nova e de menor tradição que as outras duas citadas acima, “sustentava que a saúde pública devia ser entendida e estudada sob o mesmo ângulo biológico-experimental que fundamentava a medicina moderna como um todo” (pág 127). Quem vocês acham que recebeu o dinheiro da Rockefeller? Isso mesmo, caro(a) leitor(a): situada em Baltimore, Maryland, a Johns Hopkins tinha como presidente (o primeiro, aliás) o bem-articulado e visionário Daniel Coit Gilman.  Daniel desempenha um papel de importância nessa decisão. Ele havia sido conselheiro da Fundação Russell Sage, cujos recursos centralizaram a coordenação do movimento de organizações de caridade no pós-guerra civil, em especial, com intenção declarada de combater ideologias socialistas em voga na época. Daniel pertenceria ainda ao próprio General Education Board da Rockefeller e, após aposentar-se da Johns Hopkins em 1901, aceitou a presidência do recém-fundado Instituto Carnegie em Nova Iorque (1902-1904). Trafegou, portanto, com extrema facilidade e desenvoltura no “universo filantrópico” norte-americano do começo do século XX.

Entre as grandes mudanças impostas por Daniel Gilman na Johns Hopkins está a junção orgânica da faculdade de medicina com seu hospital-escola com base numa fusão peculiar dos modelos germânico e inglês que conhecera em viagem à Europa após sua formatura. Para ele, os departamentos de ambas instituições deveriam trabalhar em conjunto, filosofia seguida até hoje em várias escolas de medicina ao redor do mundo. Além disso, os médicos deviam também ser bons cientistas. Em 1884, o primeiro médico que Daniel recrutou para trabalhar, ao mesmo tempo, como professor e assistente do hospital, foi o microbiologista, patologista e general de brigada do exército americano William Henry Welch, que trabalhara, por sua vez, com ninguém mais, ninguém menos que Max von Pettenkofer no Instituto de Higiene de Munique e com Robert Koch (descobridor, entre outros feitos, do bacilo da tuberculose) na Alemanha. Daniel e William tinham mais coisas em comum que suas “germanofilias”. Ambos foram formados em Yale e lá participaram das atividades de uma fraternidade semi-secreta chamada de Skulls and Bones, fonte de inúmeras teorias conspiratórias e filmes. Welch, em 1894, tornou-se o primeiro diretor da Johns Hopkins University School of Medicine e, em 1916, o primeiro diretor da Johns Hopkins School of Hygiene and Public Health, a primeira escola de saúde pública dos EUA e que ditaria a forma como as políticas sanitárias norte-americanas seriam conduzidas nos anos seguintes.

Ayres chama atenção, já no parágrafo seguinte a essa discussão, para a estranheza do fato de uma instituição privada financiar outra de grande importância para as políticas públicas de uma nação. Contudo, me parece que as bases do pioneirismo estadunidense listadas acima (a falácia do darwinismo social, o publicismo radical e o privatismo pleno, o individualismo filosófico e o puritanismo), são já indícios de uma intervenção fortemente ideologizada do privado em direção ao público. De fato, como chamam atenção Sheila Slaughter e Edward Silva [4], uma reação ao caldo ideológico fervilhante que decorreu das crises político-econômicas geradas pela rápida industrialização dos EUA no pós-Guerra Civil parece ter sido o detonador de tais ações. Para eles, uma ideologia permite três eixos explicativos de uma realidade sócio-política: a) identifica quem exerce o poder e em que condições; b) oferece um critério moral de avaliação das decisões tomadas por quem exerce o poder e, por fim; c) esse caráter descritivo de (a) associado ao valorativo de (b) incitam à ação coletiva, seja em defesa do status quo ante, seja contra sua permanência. “Ideologias inibem ou inspiram movimentos sociais”. Várias correntes ideológicas eram politicamente ativas nessa época turbulenta, em especial, as consideradas de inspiração marxista, radicais questionadoras das relações entre trabalho e capital que eram, então, o fulcro dos conflitos. Escrevem Slaughter e Silva (em tradução minha):

Já que ideologias fornecem o fermento social para ações políticas coletivas, os detentores de recursos preocuparam-se eles mesmos em intervir no processo de formação ideológica (…). Na medida em que as fundações filantrópicas no período progressista foram criadas (…) colocaram-se vastos recursos à disposição de alguns, promulgando ideologias (…) (e) disseminando visões de mundo que apoiavam o status quo.

O fenômeno social que convencionou-se chamar de filantropia em larga escala (wholesale philantropy) ocorreu apenas nos Estados Unidos da América, iniciando-se pouco antes da Guerra Civil (1861-1865) mas perdurando, ainda que sem a volúpia de seus anos de ouro, até hoje. Um movimento em concerto, de tal magnitude e alcance tão extenso e profundo, não poderia ser obra de poucos ou ter apenas um punhado de causas. Tampouco, mereceria ficar restrito ao território americano. É o que veremos nos próximos posts.

 

Referências Bibliográficas

[1] Bloom SW (1988). Structure and ideology in medical education: an analysis of resistance to change. Journal of health and social behavior, 29 (4), 294-306 PMID: 3253321

[2] Ayres, JRCM. Acerca del Riesgo: Para comprender la epidemiologia. 1a ed. Buenos Aires. Lugar Editorial. 2005, pag 119-135.

[3] Buck, C; Llopis, A; Nájera, E; Terris, M (orgs) El desafio de la epidemiologia: problemas y lecturas seleccionadas. Washington, 1988. (OPAS n. 505).

[4] Slaughter, S and Silva, ET. Looking Backwards: How Foundations Formulated Ideology in the Progressive Period. in Philantropy and cultural Imperialism: the foundations at home and abroad. Edited by Robert F. Arnove. Indiana Press. 1980. pg 55-86.

Johns Hopkins

Johns Hopkins

Fig 1. Johns Hopkins (1795-1873)

Johns Hopkins (1795 – 1873) (figura 1) nasceu e viveu em Maryland, EUA. Filho de uma família de fervorosos quakers, seu pai, proprietário de uma fazenda de tabaco, seguiu a determinação da Sociedade dos Amigos local e libertou os escravos que trabalhavam em sua lavoura em 1807. Johns, então com doze anos, interrompeu seus estudos e foi trabalhar na roça. Aos dezessete anos, um tio o chamou para uma sociedade em seu relativamente já bem sucedido atacado de bens de consumo em Baltimore. Lá, Johns conheceu Elizabeth, sua prima, por quem apaixonou-se. O romance, entretanto, não vingou pois não foi permitido por questões religiosas concernentes à consanguinidade que eles se casassem. Johns e Elizabeth juraram, então, não se casar e, de fato, assim o fizeram, não deixando descendentes; fato importante para o que se segue.

Ao longo dos anos, Johns acabou por divergir do tio (que chegou a afirmar que “não podia fazer negócios com alguém que gostava mais de dinheiro que ele próprio”) – mas não exatamente por causa do romance frustrado com Elizabeth: ele queria vender uisque. O tio, quaker, não. Ao, finalmente, romperem a sociedade, o tio deu-lhe dez mil dólares, que ele juntou com mais alguns que outros membros da família lhe adiantaram, contratou três de seus irmãos como vendedores e abriu a Hopkins & Brothers que ficou famosa, entre outras coisas, por distribuir no nordeste dos EUA o Hopkins’ Best (popular destilado de milho que poderia muito bem ter sido degustado pelo nosso Doc Josiah). Quando Johns se retirou da sociedade com os irmãos aos cinquenta anos de idade, já era um homem rico. Lançou-se, então, ao promissor mercado financeiro de Baltimore. Emprestou dinheiro, comprou ações (em especial da Baltimore & Ohio Railroad) e, com um tirocínio incrível para os negócios, amealhou uma enorme fortuna.

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Fig 2. Mapa da Guerra Civil dos EUA (1861-1865). O “Norte” (azul) e o “Sul” (cinza) com os border states (vermelho). Maryland (MD) e Delaware (DE) são representados a leste. Clique na figura para ver o original.

Foi quando a Guerra Civil irrompeu em 1861. Maryland era um border state. Os border states constituíam o “meio de campo” da guerra (estados em vermelho na figura 2, acima) e, por esta razão, eram estratégicos, tanto politicamente (nenhum deles apoiara a eleição de Lincoln), quanto por questões geográficas: exércitos de ambos os lados tinham que passar por eles. Maryland, particularmente, tendo Baltimore, sua capital, a apenas sessenta quilômetros de Washington DC, foi palco de sangrentas batalhas. Além disso, tinha uma economia escravagista, baseada no plantation (como a família de Johns), hostil a Lincoln, dominada por republicanos ferozes, sendo a maioria dos marylanders, por essas razõesfavoráveis às causas sulinas. Mas, Maryland tinha também Johns e outros influentes cidadãos apoiando o Norte. Tudo isso explica o fato de que o estado contribuiu com tropas para o dois lados da guerra e deu origem ao nome Brother against Brother War para descrever a situação absurda em que a guerra colocou os border states. Johns era abolicionista e um grande defensor da União. Sua casa de veraneio (hoje um belo parque) chamada de Clifton, era palco de reuniões frequentes dos simpatizantes do Norte a despeito de represálias frequentes. O auxílio da Baltimore & Ohio Railroads no transporte de tropas e mantimentos foi fundamental para a União, tendo Johns empenhado-se pessoalmente na campanha. Seu envolvimento na Guerra Civil foi tamanho que ainda hoje tal divisão “ideológica” tem seus desdobramentos[1].

Segundo o verbete na Wikipédia, Johns Hopkins era amigo de George Peabody, outro solteirão milionário da época. Peabody é considerado o pai da filantropia americana moderna (chamada de wholesale por razões que veremos em breve). Peabody começou a construir uma escola de arte e música em 1857 mas, devido a guerra, o projeto só foi completado em 1866, não sem certa dificuldade. Segundo conta a história, Peabody iniciou Johns nas atividades filantrópicas. Não se sabe exatamente porque Johns escolheu fundar uma universidade. O fato da elite marylander sulista ter sido derrotada e politicamente cassada por Lincoln após a vitória do Norte, inclusive com a promulgação de uma nova constituição estadual, dado que a anterior era republicana radical, terminou por deixar a cidade em frangalhos. Além disso, a necessidade de um hospital era premente. Epidemias de febre amarela, febre tifóide e cólera eram frequentes, tendo o próprio Johns contraído esta última. O fato é que em 1867 ele escreveu seu testamento. Não deixaria filhos, sua família estava bem. Presenteara Elizabeth com uma bela casa…

Johns morreu na véspera de natal de 1873, dormindo, aos setenta e oito anos. Seus bens foram utilizados postumamente para fundar, pela ordem por ele mesmo estabelecida (segundo a Wikipédia), um orfanato (Johns Hopkins Colored Children Orphan Asylum), em 1875; a Johns Hopkins University em 1876; a Johns Hopkins Press, a editora acadêmica de maior longevidade ainda operando nos EUA, em 1878. Em 1889 foram duas instituições: o Johns Hopkins Hospital e a Escola de Enfermagem (Johns Hopkins School of Nursing). A Faculdade de Medicina (Johns Hopkins University School of Medicine) só viria em 1893. A Escola de Saúde Pública (Johns Hopkins School of Hygiene and Public Health) só no final de 1916, mas já com dinheiro da Fundação Rockefeller (que, logo após, em 1918, iniciou o que seria o Instituto de Higiene de São Paulo, veja só).

O hospital da Johns Hopkins tem sido apontado como o melhor dos EUA por vinte e um anos consecutivos, segundo o U.S. News & World Report. A faculdade de medicina, o hospital e sua escola de saúde pública moldaram a educação médica norte-americana e mundial já a partir do começo do século XX, tendo sido tomados como exemplo pelo Relatório Flexner. Por quê? Quais elementos presentes tão precocemente em sua estrutura acadêmica a puseram à frente de seu próprio tempo? Vivemos ainda sob um modelo “hopkinsniano” de medicina? É o que tentaremos responder a seguir.

 

~ o ~

 

[1] Todo mês de janeiro, como noticiou em 2008 o Baltimore Sun, descendentes de soldados sulistas viajam a Baltimore para prestar homenagens a dois generais lendários dos Estados Confederados da América: Robert E. Lee e “Stonewall” Jackson. Do Wyman Park, local dos monumentos, a multidão caminhava até a Johns Hopkins University, bem próximaonde utilizavam parte das acomodações para lanches e para hospedar-se a preços acessíveis. A direção da universidade, entretanto, informou a divisão de Maryland das Filhas Unidas da Confederação (United Daughters of the Confederacy) e os Filhos de Veteranos Confederados (Sons of Confederate Veterans) que não ia mais alugar o espaço a eles pois não tinha a obrigação de ver a bandeira confederada circulando no campus da Johns Hopkins.

Medicina, Capitalismo e Esquizofrenia

FMUSP

Prédio da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Quem passa pela avenida Doutor Arnaldo vindo da Heitor Penteado em direção à avenida Paulista tem, logo após a rua Cardeal Arco Verde, à sua esquerda, o cemitério do Araçá e suas bancas de flores; à sua direita, pela ordem, o Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza, a Faculdade de Saúde Pública, o cruzamento da rua Teodoro Sampaio, o Instituto Oscar Freire,  a Faculdade de Medicina (acima), o Instituto Adolfo Lutz, o moderno prédio do Instituto do Câncer, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas e finalmente, a ponte sobre a Rebouças que dá acesso à rua da Consolação e à Paulista. A depender do trânsito, sempre muito intenso na região, não é raro perder quinze ou vinte minutos neste trajeto de quinhentos metros tendo como visão algumas das mais antigas instituições estatais da Saúde Pública do estado de São Paulo. Isso sem esquecer que tal fachada esconde o complexo gigantesco do Hospital das Clínicas que se estende até a rua Artur de Azevedo, tendo como limite a Teodoro Sampaio e a Rebouças. Tal como uma parada na qual quem se move são os espectadores, desfilam diante nós instituições centenárias ao lado de modernas instalações hospitalares numa paisagem que tem sido descrita como local “onde a tradição se junta à inovação tendo como objetivo a saúde da população”. É uma demonstração de poder. Público.

Quando entrei a primeira vez no prédio da Faculdade de Medicina, lembro-me bem, tive um tipo de dispneia (vale a visita, agora que está restaurada). “Nem parece que estamos no Brasil” – diziam com orgulho. O intróito é de mármore italiano. A escadaria central é imponente e, ao mesmo tempo, discreta. As salas de aula, tradicionais e belas. Vitrais, janelas, o relógio. As salas da diretoria e da Congregação são máquinas do tempo de austeridade e estilo. Obras de arte. Apenas lá pelo terceiro ou quarto ano da faculdade, a memória agora me falha, descobri que nossa belíssima casa fora construída com capital privado dos EUA proveniente da Fundação Rockefeller, por meio de acordos que se iniciaram no longínquo ano de 1916. Também o prédio do Instituto Oscar Freire, da Faculdade de Saúde Pública, do Hospital das Clínicas, além da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, ou receberam incentivos, ou foram totalmente construídos com verbas da mesma fundação. Demorei algumas décadas para me dar conta de tal extravagância. Na medida em que fui me inteirando dos fatos, questões foram surgindo. Por que cargas d’água uma fundação norte-americana com capital gigantesco proveniente da refinação monopolizada do petróleo e outras commodities (como carvão), forjada no pós-guerra civil (presumivelmente um conflito anti-escravidão), financiaria uma faculdade de medicina em um país sul-americano que, apenas algumas décadas antes do início das negociações, era uma monarquia escravagista? Por que o Brasil, e especificamente, a cidade de São Paulo? A medicina praticada aqui e lá era assim tão diferente para haver uma “exportação de tecnologia” dessa monta? Por que a Fundação Rockefeller acatou integralmente o tal relatório Flexner sobre ensino médico financiado por outra instituição (abastecida pelo capital da exploração também monopolizada do aço norte-americano) a Fundação Carnegie? Qual seria a relação entre esses eventos e a vinda de médicos norte-americanos ao Brasil, como Alan Gregg?

Desta vez, tive um tipo de cefaleia; e vertigem também. Isso sempre acontece quando tenho que pensar uma coisa muito grande e acho que minha cabeça não vai dar conta de pensar tudo, até o fim. Me foi inevitável relacionar os discursos de vários colegas e entidades médicas de hoje, expostos que estão por força de atitudes governamentais (vide Ato Médico, Programa Mais Médicos, etc), com as bases da estruturação do ensino médico no Brasil e, particularmente, em São Paulo. Haveria algo assim como uma “ideologia médica” alienante, esquizofrenizante? Algo que misturasse o humanismo visceral que os verdadeiros médicos carregam em suas entranhas com um vício de pensamento egocentrado e auto-referente? O que seria isso e como o diagnosticamos? De onde vem? Ao trazermos, com força, ao debate acalorado de hoje, a ciência que nos embasa e nossa própria sabedoria prática médica como argumentos inelutáveis ao criticismo “laico”, não estaríamos também invocando os fantasmas de um certo “conservadorismo sofisticado”, autoritário e paternalista, aos moldes dos grandes filantropistas à frente de suas poderosas fundações? Teria tudo isso alguma relação com a enorme crise na saúde norte-americana e seu encarecimento sem precedentes, com a interação, por vezes, promíscua dos médicos com as indústrias farmacêutica e de tecnologia médica, com o teor do que é publicado como ciência médica nas revistas especializadas, com as regras do jogo que transforma alguns de nós em professores titulares?

Tomei um grama de dipirona e fiquei com seu(?) gosto amargo na boca.

O Filho do Pastor e o Padre

Allan Gregg

Alan Gregg (cerca de 1919). Do Profiles in Science (public domain). Clique na foto para o original.

Esse moço de chapéu, cachimbo, trajando longas botas e aquelas calças de explorador usadas em filmes de aventura, nasceu em 1890 na cidade de Colorado Springs, no Colorado – Estados Unidos da América. Seu nome: Alan Gregg. Filho de um pastor congregacionalista e uma musicista, logo partiu para estudos em Boston, tal como seus três irmãos mais velhos, cidade onde sua família vivia antes de seu pai ser transferido para o Colorado. Na época em que a foto foi tirada, ele tinha por volta de vinte e nove anos de idade. Alan, se assim podemos chamá-lo, tinha um espírito muito aventureiro. Em 1914, quis alistar-se para a Primeira Guerra Mundial (1914-18), mas pelo Canadá, já que os EUA ainda não havia enviado tropas para o confronto, o que, de fato, só ocorreria em 6 de Abril de 1917. Foi convencido que seria muito mais útil se terminasse a faculdade que ora cursava. Seguiu, então, o conselho de seus tutores graduando-se em medicina pela Harvard em 1916 e, ao final do ano seguinte, após um internato breve, integrou a equipe médica britânica em território europeu (mesmo destino, aliás, do cirurgião brasileiro Benedito Montenegro [pdf], formado em 1909 pela Universidade da Pensilvânia. Montenegro, entretanto, serviu do lado francês do conflito). Mas, voltando ao Alan, no período que seguiu ao seu retorno da Europa, não sabia ao certo qual rumo dar a sua carreira, profundamente impactada pela experiência da guerra. De conversa em conversa, encontrou algumas pessoas interessantes e a uma específica solicitou um “serviço que qualquer outro médico recusaria”. Um serviço que fosse o “mais selvagem e mais difícil” que um médico pudesse ter em tempos de paz. A pessoa a quem ele pediu tal missão escreveu, anos depois, que diante de tal solicitação, tentou fazer exatamente o que lhe foi pedido.

Em Março de 1919, então, Alan Gregg desembarca na cidade do Rio de Janeiro. A foto é desse período.

Mas por que viria Alan a terras brasileiras? “Depois de trabalhar em laboratórios no Rio de Janeiro e estudar a ancilostomíase (“amarelão”) e mosquitos transmissores de malária, Alan foi enviado a rincões remotos do país onde trabalhou em campanhas com equipes de saúde pública locais, tanto diagnosticando, como tratando aldeões infectados pela endemia.”

MiltonConduziu pesquisas e escreveu relatórios técnicos sobre a ancilostomíase e sobre as condições sanitárias gerais do país. Durante os três anos em que ficou no Brasil afirmou ter mudado consideravelmente sua visão da medicina entendendo que a prática médica de então só teria sucesso em sua vertente “preventiva” posto que a “curativa” não tinha, como vimos, um êxito técnico muito significativo; além disso, sua própria carreira de médico teve seus horizontes ampliados ao adquirir aqui a base para a apreciação de outras culturas. “No Brasil de então”, ele relembra em uma de suas cartas a amigos nos EUA, “após descer de um trem, você volta no tempo. Nos jogos infantis, as crianças entoam música gregoriana porque as pessoas não dispõem de melodias mais recentes.” (Eu, cá com os botões do meu avental, pressuponho que Alan possa ter cruzado com algum “parente” desses moleques de cara suja da foto ao lado, a cantar, pelo interior das Minas Gerais, o que seria, neste caso, um avanço no tempo, mas… isso jamais saberemos de fato).

Alan teve dificuldades no trato com a cultura brasileira. Certa vez, conta, ao chegar a um vilarejo, não estava conseguindo convencer os moradores a deixarem-se examinar pela equipe médica. Ele apelou então ao padre da igreja local, um polonês, também em missão. O padre perguntou a Alan se ele vinha levando uma vida dúbia e a razão de desperdiçar dinheiro com aquela pobre gente não seria a de fazer uma “oferenda pacífica” a seu Deus. Alan retrucou perguntando se deveria haver algum motivo para dar comida e dinheiro a pessoas fracas e famintas. Quando o padre disse que seus motivos deveriam ser caridade ou mesmo uma sensação de culpa, Alan sentiu um sufocante desejo de concordar mas, ao invés disso, disse que seu patrão acabara de doar uma quantia de 3 milhões de dólares à Polônia. Isso aparentemente convenceu o padre que concordou em intervir, favoravelmente a Alan, junto a seu rebanho.

O fato é que, depois de tantas experiências, Alan Gregg estava pronto para deixar o Brasil em 1922. Seus nada misteriosos patrões americanos o chamaram de volta aos EUA para integrar a diretoria adjunta da recém-fundada Divisão de Educação Médica da Fundação Rockefeller. Ele tinha um trabalho a realizar. Ao redor do mundo.