Diálogo

Meus amigos inteligentes, e eu tenho muitos, são uma constante fonte de inspiração para mim. Mas  também de inquietação. Uma inquietação produtiva, como eu já descrevi aqui.

Nesse feriado prolongado chuvoso que termina hoje com a previsão de sol para amanhã, eu tive que defender a ciência em roda de samba e mesa de bar (só faltou estádio de futebol, mas eu estava na mesa de bar vendo o jogo – sim, porque se o Vasco perdeu, então a taça Rio não era final, porque não é campeonato pra ter campeão e vice – e não é mesmo!) de amigos brilhantes mas que não são tão nerds quanto eu.

A questão é simples: quanto tenho um argumento ‘científico’ para uma discussão qualquer (como a que eu estava tendo domingo com o matemático Fernando Goldenberg na praça São Salvador, no Rio, sobre a formação de comportamentos sociais a partir de instintos biológicos, enquanto as garrafas de Bohemia se empilhavam na mesa na mesma velocidade dos contra-ataques do Botafogo) me encho da força, da convicção e até mesmo da contundência que um argumento científico proporciona (muitas vezes pelo menos). Bom, as vezes um pouco da arrogância também.

E foi com essa convicção que eu estava afirmando que, por mais que eu adore e seja fã da psicanálise, não posso considerá-la uma ciência. O conhecimento e o sucesso obtidos por essa prática não obedecem os requisitos para serem considerados ‘científicos’ (basicamente, serem obtidos pelo ‘método científico’). E por isso, essa prática não pode ser considerada ‘ciência’.

“Mas o que é ciência então?” perguntou o Fernando

“Ciência é o que você obtém por um processo que, quando repetido ou replicado, alcança o mesmo resultado” eu respondi.

“Mas isso então exclui todas as ciências sociais como ciência” ele retrucou

“Exatamente” eu conclui, para desespero da minha amiga Alba Zaluar, caso ela venha a ler isto.

Mas o Fernando, além de matemático, foi dono de bar (do Estephanio’s Bar na Tijuca, o melhor bar do mundo), o que o torna mestre, doutor PhD e pos-doc em sociologia, sociopatia, antropologia, antropofagia, antropomorfia e o que mais você quiser. E não se entrega fácil.

“Mas a verdade científica muda. Sempre mudou. O que é verdade hoje não é mais amanhã” ele constatou.

“Sim, porque o método científico aceita a incerteza.” disse enquanto abria mais uma garrafa de Bohemia.

“Então meu amigo, se o que você chama de ciência aceita a incerteza, porque não podemos aceitar que as ciências sociais, que são cheias de incerteza, também sejam ciência?”

Touche! Nunca tinha pensado nisso. Ou melhor, tinha sim, lendo, no ano passado, um livro que peguei emprestado do próprio Fernando, e que já resenhei aqui: O último teorema de Fermat. Nesse livro incrível, que, além dde contar a epopéia do inglês Andrew Wiles na resolução do maior problema do mundo, conta também uma excelente história da matemática, o autor discute logo no início do livro a questão da prova absoluta.

“Em matemática, o conceito de prova é muito mais rigoroso e poderoso do que o que usamos em nosso dia-a-dia e até mesmo mais preciso do que o conceito de prova como entendido pelos físicos e químicos. (…) Os teoremas matemáticos dependem deste processo lógico, e uma vez demonstrados eles serão considerados verdade até o final dos tempos. A prova matemática é absoluta.”

Como cientista, eu me treino, e treino os outros, para reconhecer, compreender, aceitar e finalmente lidar com a incerteza. E sei, portanto, que por causa dela, a prova científica nunca será definitiva como a prova matemática.

“Aceite Mauro, só a Matemática pode ser chamada de ciência!” Um pavor tenebroso percorreu todo o meu corpo. Era o terceiro gol do Botafogo e sob o efeito do álcool, que eu sou capaz de explicar ao nível bioquímico e molecular, um pilar das minhas certezas estava para ser demolido: teria eu de parar de chamar a biologia de ciência? Também não me entregaria facilmente.

O que mais me incomodava no argumento do Fernando era o fato da matemática em si não ser uma ‘ciência’. Quer dizer, é, mas há controvérsias. Pelo menos na minha cabeça. A matemática é um sistema lógico criado pelo homem. Ela também fornece um conjunto de ferramentas que são utilizadas pelas outras ciências para explicar o mundo. O estudo desse sistema lógico em si (a matemática) pode ser considerado uma ciência (a única capaz de dar provas absolutas) mas ela também é a única ciência que usa as próprias ferramentas que constituem esse sistema lógico para estudá-lo e explicá-lo. A matemática é, até certo ponto, no meu entender, um argumento circular. Isso era um argumento para contrapor qualquer afirmativa do Fernando, mas ainda assim, isso não retrucava o argumento dele, que nesse momento se deliciava com a cerveja gelada e com a minha angustia.

“Fernando, a diferença é que a incerteza do que eu me permito chamar de ‘ciência’ está na ‘medição’. São nossos sentidos e instrumentos que são imperfeitos e sujeitos a imprecisões, não os objetos dos nossos estudos ou o sistema lógico do método científico. Já nas ciências sociais, a incerteza está justamente nesses objetos de estudo. Eu posso não saber a posição e a velocidade de um elétron, como diz o ‘principio da incerteza’, porque não tenho como usar nada menor do que um outro elétron para fazer essa medição e a interação entre eles impede o registro perfeito ou completo das variáveis. Já nas ciências sociais e humanas, além da incerteza na medição (causada pelo fato da observação influenciar no comportamento do observado) nós temos a incerteza no objeto: você nunca sabe o que um homem vai fazer. Pior, o próprio homem nunca sabe o que vai fazer até que a situação apareça e um processo complexo e nem sempre racional, leve a decisão. Nas ciências naturais eu posso conhecer a incerteza (e eventualmente lidar com ela), nas ciências sociais, não. Por isso os processos nunca levam ao mesmo resultado, por isso não são reprodutíveis e replicáveis e por isso não são ciência.”

O argumento foi bom o suficiente para que os dois parassem a discussão (ou foi a menina de shortinho curto e camiseta apertada do botafogo que atravessou o bar que distraiu nossa atenção?!). Brindamos com a saideira e mudamos de assunto. Voltei pra casa triste com a derrota, mas não derrotado. O pilar continua firme, posso continuar implicando com o pessoal das ciências sociais, e como meu time não está ‘de férias’, posso pensar no próximo jogo que é da Libertadores. E na próxima discussão. Dessa vez, 4a feira, no bar do Macarrão, em São Januário.

 

Contorcionismo

ResearchBlogging.org
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Eu sei que os bons jornalistas não revelam suas fontes, mas eu sou biólogo e meus amigos biólogos são minhas principais fontes.
Foi num churrasco de final de ano da minha turma que ouvi uma das piadas mais engraçadas e didáticas até hoje: “Sabe qual é a definição de ‘Lingua’ no dicionário? Órgão sexual usado pelos antigos egípcios para falar!” Não é ótima?!
Quando aprendemos que na ponta da língua está a maior concentração de sensores de tato de todo o corpo humano, começamos a pensar se não é realmente um mal uso o que fazemos desse órgão tão nobre.
Um churrasco como o de ontem, para nos despedirmos da Alejandra, que nos deixará para viver grandes aventuras românticas e profissionais em New Orleans, me dá material para uns 3 meses de blogagem (ainda que no final do ano seja complicado manter o mínimo de um texto por mês).
Acompanhado de toda sorte de piadas politicamente incorretas sobre Batman e Robin, um dos assuntos foi o artigo recentemente publicado na excelente revista PLoS One sobre o habito sexual de morcegos de fruta Cynopterus sphinx, em que a fêmea lambe o pênis do macho durante a cópula. Eu já havia escrito sobre o hábito sexual de morcegos antes, e me interessei em dar uma olhada no artigo.
Eu e o mundo todo. Descobri que o artigo estava comentado nas páginas de ciência de jornais e blogs em todo mundo. Mas são sempre os mesmos “cortes e colagens” que impregnam a internet e contribuem muito pouco para o engrandecimento do espírito humano. Ao ler o artigo fiquei contente de ver que, ao contrário do artigo sobre a relação entre redemoinhos de cabelo e a homosexualidade, esse tinha conteúdo, era bem feito e realmente interessante.
“(…) enquanto um macho estava mastigando ou cortando folhas de palmeira para fazer sua tenda (…) uma fêmea voava para dentro, esticava as asas e movia a cabeça lentamente em direção ao macho, cheirando seu pescoço e rosto. Em seguida as cabeças se debruçavam e eles se lambiam mutuamente. Neste momento, o macho segurava a fêmea com os polegares, circulava em torno dela para encontrar a postura mais adequada para a cópula e terminava por trás da fêmea, com sua face voltada para o pescoço dela. Às vezes, a fêmea parecia resistir, e ate mesmo escapava acidentalmente, mas nesses casos o macho a perseguia até que a cópula fosse concluída. (…) Durante a cópula, o macho normalmente mantinha a fêmea presa pela nuca com a boca e segurava suas asas com os polegares. (…) e o casal avançava e recuava de forma rítmica e ininterrupta. (..) Após a conclusão da cópula, o macho lambia seu pênis durante vários segundos e permanecia na tenda fazendo uma auto-catação, raramente voando para longe. A fêmea também se catava após a cópula e, normalmente, ficava perto de seu companheiro.”
O que há nessa tradução livre do texto que pode ser encontrado no link abaixo, além de um eventual erro de inglês? O fato da descrição da cópula entre morcegos se assemelhar incrivelmente a descrição de uma cópula entre humanos! Ou você discorda?
Agora vem a curiosidade sobre essa espécie de morcego.
“Descobrimos que a fêmea abaixava a cabeça para lamber a haste ou a base do pênis do macho, várias vezes durante a cópula (veja o vídeo anexo). E nesses casos, nunca houve interrupção do coito. (…) A felação durava aproximadamente 20 s ou 10% do tempo da cópula. Houve uma forte correlação entre o intervalo de tempo em que a fêmea lambeu o pênis do macho e da duração da cópula e quanto mais a fêmea lambia o pênis de seu parceiro, mais longo era o coito. E mais frequente. Esses pares também passavam mais tempo copulando do que aquelas onde a fêmea não praticava a felação. Os resultados sugerem que o comportamento lambedor pode trazer vantagens evolutivas por prolongar o tempo de intercurso durante a cópula.”

Apesar da felação com propósito excitatório ser pouco documentada entre os animais, lamber as genitais é um hábito comum entre muitos, muitos, muitos mamíferos. Ela permite detectar se a fêmea está no cio e também a presença de odores indicativos da ‘presença’ de outros machos ou de doenças.
Mas qual seria o benefício da lambeção no morcego?

“O pênis dos morcegos contém tecido erétil (corpo cavernoso e corpo esponjoso) semelhante ao encontrado em primatas e humanos. O tecido eréctil é estimulado durante a cópula pela contração rítmica vaginal, que aumenta a rigidez do pênis e mantém a ereção por mais tempo. Nós supomos que a felação em C. sphinx aumenta a estimulação e o enrijecimento do pênis, mantendo a ereção do macho. Ao mesmo tempo, a saliva da fêmea pode aumentar a lubrificação, facilitando a penetração e as estocadas. Em conjunto, esses recursos podem prolongar a cópula.”

“A cópula prolongada ajuda no transporte do esperma da vagina para a trompa uterina, estimula a secreção da glândula pituitária feminina e, consequentemente, aumenta a probabilidade de fertilização. A cópula prolongada também pode ser um método de manter o par, já que após a cópula os parceiros segregam para formarem grupos unissexuais que persistem até a próxima temporada de acasalamento. (Menos romantico, porém muito eficiente) A felação confere benefícios bactericida e ajudar na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, tanto para as fêmeas quanto os machos, já que a saliva apresenta, além da clássica atividade antibacteriana, propriedades antifúngicas, anticlamidicas e antivirais. E finalmente, o sexo oral pode facilitar a identificação de pistas químicas ligadas ao fato de histocompatibilidade, que tem sido associado a escolha de companheiros.”
Mas meu ponto é o seguinte. Um grande esforço é feito por milhares de cientistas sociais, sociólogos, antropólogos e psicólogos, para estabelecer as bases culturais das ações humanas por trás de ritos como o sexo. O homem começou a falar aproximadamente 60.000 anos atrás e a escrever apenas 5.000 anos atrás. A seleção natural é um modelo muito mais eficiente para explicar esses comportamentos, geração após geração, espécies após espécie, por milhões e milhões de anos.
Com todas essas semelhanças entre homens e morcegos, a única coisa realmente curiosa aqui é como essa fêmea consegue se contorcer a ponto de alcançar a própria vagina.
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Tan M, Jones G, Zhu G, Ye J, Hong T, Zhou S, Zhang S, & Zhang L (2009). Fellatio by fruit bats prolongs copulation time. PloS one, 4 (10) PMID: 19862320

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