Foi em um programa de radio que eu ouvi um jornalista dizer, que “se nosso cérebro fosse simples o suficiente a ponto de podermos compreendê-lo, não seriamos capazes de fazê-lo!”
O reconhecimento de nossas limitações pela ciência deveria ser suficiente para preencher o vazio deixado pela angustia de termos limitações (sem precisarmos apelar pro sobrenatural). Nossa visão, por exemplo, é sensível apenas a uma faixa do espectro de radiação. Nossa audição também tem limites. Uma criança só desenvolve maturidade visual (ou seja, consegue associar formas, cores, contrastes com as informações sobre seus significados) lá pela idade de 9-10 anos. Por isso, dá próxima vez que ouvir “não acredite no que seus olhos estão vendo”, é… talvez você não deva acreditar mesmo!
Quer ver?! Então observe a figura abaixo e anote o número e o naipe das cartas do baralho na ordem em que elas aparecem.
Figura 1 – São 8 cartas de baralho, que aparecem por 0,2s com intervalos de 2s entre uma e outra, alem de uma mensagem inicial.
Anotou?! Então confira: se você marcou 4 de espadas, 5 de copas, 7 de espadas, 6 de copas, 3 de espadas, 2 de copas, 5 de espadas, Ás de copas… tem alguma coisa de errado com você. Vamos ver, se você marcou 4 de copas, 5 de copas, 7 de espadas, 6 de espadas, 3 de copas, 2 de espadas, 5 de espadas e Ás de copas… têm alguma coisa de errado com você também.
Na verdade, existe, propositalmente, um erro nas cartas. O 3 e 4 de copas foram pintados de preto, e o 2 e 6 de espadas de vermelho. A maior parte das pessoas comete algum tipo de erro nesse ‘experimento’. Se você classificou as cartas no primeiro grupo, é por que sua percepção é mais influenciada pelas cores, enquanto no segundo grupo, pelas formas. Podem existir níveis intermediários de percepção entre cores e formas.
Tabela 1 – A ordem das cartas na figura 1. Na primeira coluna está a seqüência de cartas que pessoas com maior sensibilidade a cores percebem. Na coluna 2, a seqüência de cartas que pessoas com maior sensibilidade a formas percebem. Entre parênteses, a modificação que foi feita na carta para induzir o cérebro a reconhecer a incongruência.
Esse jogo faz parte de um experimento complexo, que mostra que nossa percepção dos fatos não depende apenas do fato em si, e que o reconhecimento da incongruência pelo cérebro é difícil.
De acordo com o dicionário do Aurélio, o adjetivo Incongruente significa: não acomodado; que não condiz; que não se adapta; incompatível. Nosso cérebro não consegue olhar um novo evento sem tentar relacionar ele com um evento passado. É por isso que temos tanta dificuldade para perceber esses erros. Por isso nossa dificuldade de reconhecer a incongruência.
A percepção não é um ato isolado!
O seu cérebro conhece as cartas do baralho e por isso sabe que um 4 preto não pode ser de copas, então automaticamente, corrige essa informação e você vê um 4 de espadas. Ou vice versa, se a correção for feita pela forma. Pode levar muito tempo pro cérebro perceber que existe algo errado, e uma informação nova para ser avaliada.
Tá, mas e ai?! Essa característica do nosso cérebro tem profundas implicações na nossa tomada de decisões. Ainda que o processamento de informações pelo cérebro não seja tão simples, a cada momento estamos tendo que tomar decisões. Mesmo levantar de uma cadeira, dar um passo, esticar o braço… para realizar qualquer uma dessas ações, nosso cérebro tem que acionar mecanismos decisórios. Se o cérebro não se adaptasse ao ambiente, estabelecendo um conhecimento prévio desse ambiente, a quantidade de processamento de informações seria tão grande, quer ir a cozinha buscar um copo d’água terminaria por gerar uma grande dor de cabeça! Isso por que o custo do processamento e armazenamento de informações novas é alto.
Então, todos os organismos desenvolvem algum tipo de expectativa quanto ao ambiente em que eles se encontram. Para isso, ele procura maximizar as percepções relacionadas com suas necessidades, minimizar aquelas não relacionadas. Essas expectativas geram uma certa segurança, e até mesmo um certo conforto, para as nossas ações no dia-a-dia. Grande parte das pessoas necessita de uma certa constância no seu ambiente. Um tipo de “descanso de tela”, um mecanismo de ‘economia de processamento’ para o cérebro. E esse mecanismo deve ser tão importante, que quando essas expectativas são frustradas, o cérebro oferece uma dura resistência ao reconhecimento do “novo”. É por isso que vemos as cartas “diferentes” como uma das cartas que já conhecemos.
Apesar dessa resistência ao ‘novo’, o cérebro não é bobo. Se as evidências do novo são fortes, repetidas e incontestáveis, o mecanismo de processamento dessa nova informação é acionado e ela é incorporada. Durante o experimento, conforme o tempo de exposição às cartas erradas aumentava, e as pessoas tinham mais tempo para olhar (e ver) a informação ‘nova’, mais pessoas identificavam a incongruência.
No entanto, algumas pessoas precisavam olhar (ver) a carta por mais de 5 seg para poder reconhecer a incongruência, o erro. E outras, mesmo depois de olhar fixamente para a carta por vários segundos, não reconheciam o erro, apesar de terem consciência de que havia algo de errado. A incapacidade de decidir, em função do conflito entre a ‘informação estabelecida’ e a ‘informação nova’ levava algumas pessoas ao desespero!
A conclusão desse experimento é que apenas um organismo muito doente, muito motivado (para a negação), ou sem oportunidade de exercer mecanismos de verificação (que nesse caso é o de olhar tempo suficiente para a carta), resiste a uma informação nova, suportada por evidências fortes, para se apegar a uma expectativa pré-estabelecida pelo cérebro, e que acaba de ser frustrada.
Porém, e isso é importante, enquanto for possível, um organismo vai relutar na percepção do inesperado, aquelas coisas que não se encaixam no seu conjunto de eventos conhecidos, com a utilização de todos os meios disponíveis.
Thomas Kuhn disse que “As descobertas são raras porque as nossas expectativas cobrem nossa visão e obscurecem nossa percepção do mundo”. Nossa relutância ao ‘novo’ nos ajuda a ter uma vida mais confortável, mas o mundo a nossa volta muda. Quanto melhor forem nossos mecanismos de ‘verificação’ das informações novas, melhor será nossa percepção e mais rápido (e melhor) poderemos nos adaptar a ele. Mas se a relutância ao novo for mantida em detrimento das informações coletadas pelos nossos 5 sentidos (e quem quiser acreditar, no 6º, 7º…), conflito que pode levar a loucura!
Com a licença do poeta ”
Mudar é preciso”, ainda que doa.
PS: Quem quiser conhecer o experimento das cartas na integra e ler mais sobre a dificuldade de perceber a incongruência, pode ler o artigo Bruner JS & Postman L. 1949 . On the Perception of Incongruity: A Paradigm. Journal of Personality 18: 206-23. Quem não conseguir encontrar o artigo, escreve pra mim que eu mando o PDF por e-mail.