Concluir é atrofiar?
O valor que a gente dá as coisas depende da régua que a gente usa.
Assisti uma prévia de tese de um amigo médico. Há algum tempo, descobri que tenho muitas diferenças com ele e hoje descobri o por quê. Ele abandonou a razão!
A melhor disciplina que fiz no doutorado foi “História e Filosofia da Ciência”. Já devo ter falado dele antes, mas foram tantas palestras bacanas que eu sempre devo ter um motivo diferente para falar de novo. Em uma delas, o prof. Leopoldo de Meis fala de uma pesquisa feita com diversos cientistas sobre a maneira como eles fazem ciência. A maioria deles respondia sem titubear: “O método científico”.
“Formulo uma hipótese e determino os objetivos. Vejo a metodologia mais adequada, executo e analiso os resultados. Concluo” é a resposta básica.
Não há como negar que o método científico trouxe uma sistematização que alavancou a ciência e tornou ela a mais produtiva ferramenta do intelecto humano. Os críticos do método gostam de aplicar um tipo de “princípio da incerteza” de Heisenberg, dizendo que a observação de um evento por si só afetaria a percepção desse evento e, portanto, o método não seria válido. Mas nenhuma alternativa contribuiu tanto para o avanço da ciência, o desenvolvimento da tecnologia e a compreensão do mundo e do universo. O método científico é uma ferramenta tão poderosa que é quase impensável utilizar qualquer outra.
Mas o método tem alternativas. Lembrei disso hoje.
Na aula do prof. de Meis, alguns dos cientistas entrevistados, após começarem a responder “o método…” paravam, refletiam e diziam: “Na verdade, não é nada disso. Temos uma idéia, partimos dela e não paramos até que tenha sido realizada”.
Lembro de ter ficado marcado por essa resposta. Não podia contestar o método, mas não podia negar a importância dessa abordagem. Então hoje, enquanto tentava acompanhar a apresentação, que estava muito confusa apesar de eu já conhecer o tema, o trabalho feito e o apresentador (e até mesmo a apresentação), tentei não me irritar.
O médico dizia: “Fiquei muito feliz ao ver que os grupos se separavam daquela forma”; “Isso nos deu tranquilidade para continuar perseguindo nossa idéia”; “as condições ‘lamentáveis’ de vida…”.
Uma vez vi o Fritz Utzeri dizer em uma palestra que o jornalista nunca deve se indignar. Ele tem de dar a notícia. “Quem tem de se indignar é o leitor!” Meu amigo médico é um pesquisador determinado, emocionado e indignado. Isso possivelmente é o que faz dele o médico mais atencioso com os pacientes que conheço. Mas é uma combinação perigosa para um cientista. Como manter a racionalidade se o seu instrumento de pesquisa perturba a sua razão? É muito complicado e ele falhou.
Lutou pelas suas premissas com paixão. Conseguiu seus dados com determinação. Desafiou as conclusões com indiganção. Apresentou seus resultados com amor (também um pouco de ironia e sarcasmo). Mas ele abandonou a razão. E custou caro (em todos os sentidos). Foi vencido por um desenho amostral despreocupado, por objetivos confusos, resultados pouco relevantes e conclusões limitadas.
O que leva uma pessoa a ter tanto trabalho para responder tão pouco? Será que valeu a pena?
A resposta da razão científica e dos critérios das agências de fomento (Capes e CNPq) é óbvia: não!
Mas fico pensando se a resposta pode ser outra. Esse trabalho levou o médico a pessoas e lugares nunca antes visitados por um pesquisador. Ele apresentou a ciência (além da medicina) até pessoas passariam a vida sem saber o que era isso. Ele trouxe pessoas até a ciência e isso determinou o caminho que elas seguem agora.
Será que valeu a pena?
Ainda não consigo responder. Por teimosia, arrogância, porque podia, ou simplesmente, porque deixaram, ele escolheu permanecer a pedra bruta e não quis se lapidar. Mas será que é tão estranho assim alguém querer permanecer em estado bruto? É provável que não, mas é provável que as arestas incomodem mais. Um professor uma vez me disse: “A academia aceita a inovação, mas você tem de ser brilhante!”
Será que valeu a pena?
Tento pensar que sim, mas o desperdício ainda deixa a minha mente embaçada. Talvez seja melhor assim. Um pouco de neblina pra variar. Um poeta de rua uma vez me disse: “concluir é atrofiar”!
Cuidado com o Oscar
Na música ‘Senhas’, Adriana Calcanhoto diz: “eu não gosto do bom gosto, eu não do bom senso, eu não gosto dos bons modos”.
Minha bronca aqui, vamos deixar bem claro, não com esse médico e a forma original que encontrou de chamar atenção. Minha bronca é com os jornalistas de todo mundo que deram ao artigo, uma simples curiosidade, destaque de descoberta científica das mais importantes.
“Mas será que é pelo cheiro que ele reconhece quem vai morrer?” Me pergunta minha tia durante o almoço de domingo. Penso então em todas as tias que estão, nesse momento, e a partir dele, acreditando nos poderes sobrenaturais do gato Oscar. E com aval da The New England Journal of Medicine!
O relato do dr Dosa, médico geriatra da unidade avançada de demência do Hospital de Rhode Island e professor assistente da Brown University nos EUA conta um dia na vida do gato mascote da instituição Oscar, que, segundo o autor, desde que foi adotado pelo staff há dois anos, previu acertadamente 25 mortes. Sua presença ao lado do leito de um paciente é considerada pelos diretores do hospital razão suficiente para que as enfermeiras notifiquem a família.
O relato segue assim: “Oscar passeia pelo corredor e observa Mrs P, que não é capaz de recordar a família que a visita diariamente, e que vive na área de demência à 3 anos, mas não lhe dá atenção. ‘Não chegou a sua hora'” As palavras na boca do gato é um dos artifícios utilizado pelo médico para angariar a atenção do leitor.
“Oscar para na porta do quarto 310, onde Mrs T, vítima terminal de um cruel de câncer de mama, dorme acompanhada da filha que lê um livro; e espera até que a porta seja aberta. ‘Olá Oscar‘ saúda a filha, mas Oscar apenas sobe no leito, cheira o ar e decide ir embora. ‘Ainda não chegou a sua hora também’.” Não sabemos se ficamos felizes ou sentimos pena da paciente terminal que precisa de altas doses de morfina (de acordo com o artigo) para passar os seus dias.
A história muda quando Oscar chega ao quarto 313. “Quando a enfermeira vem checar sua paciente e encontra o gato sentado ao lado de Mrs K, volta para sua mesa, checa o prontuário da paciente e começa a fazer telefonemas. Em meia hora começam a chegar os primeiros familiares e também o padre. Mrs K faz sua passagem com calma e tranqüilidade. O gato some após seu último suspiro, silenciosamente, sem que os familiares nem mesmo percebam.”
“Oscar volta para sua sala. Hoje não haverá mais mortes, porque no 3º andar, ninguém morre sem que Oscar faça uma visita antes” termina o relato do médico.
Não há charlatanismo. O relato fantasioso da conincidência observada pelo médico é certamente uma tentativa de aliviar a tristeza e as angústias daqueles que vivem ou que lidam, diariamente, com pacientes terminais. E que justamente por todo esse mérito, teve o reconhecimento da importante revista. No entanto, não podemos, em nenhum momento, deixar que a sensibilidade da história de Oscar confunda uma curiosidade com um fato científico. Minha bronca é, reitero, com os jornalistas que deturpam o fato para criar a notícia.
Diz uma recente pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia, que os jornalistas são os profissionais em que o povo brasileiro mais confia para se informar sobre ciência e tecnologia. Transformar um gato que passeia pelo corredor do setor de pacientes terminais em um gato que ‘reconhece a hora da morte’, e noticiar isso como verdade científica é fazer sensacionalismo. As consequencias imediatas para o povo podem parecer menores, mas em longo prazo…
Se não for suficiente para vocês que que as doenças terríveis, terminais, prolongadas, que afligem essas pessoas, sejam um presságio muito mais significativo que a presença de Oscar, então proponho duas simples verificações: A primeira testar as habilidades de Oscar fora do setor de pacientes terminais do instituto de demência geriátrica; e a segunda, observar quantos pacientes foram visitados por Oscar sem que nada acontecesse. Não acredito que o mito sobreviva após esses testes.
O maior mérito de Oscar é, como bem cita o artigo, o de fazer companhia àqueles que sem a sua presença, morreriam completamente só.
PS: Comente também no Roda de Ciência
Placebos
Hoje a pergunta, de um amigo de meu pai, veio disfarçada: “Mauro, você…” e não completou, “…me diga uma coisa”. Quando ele nem completou, eu já sabia que boa coisa não podia vir. Mas como ele foi uma das duas únicas pessoas que assistiu espontaneamente a reportagem que a Globonews fez comigo uns anos atrás, eu não franzi a testa e deixei ele perguntar:
“Enquanto eu estava morando nos EUA, tomava um remédio como acessório para o controle da minha diabetes. Como era um remédio muito caro, de volta ao Brasil resolvi pesquisar se o encontrava por aqui. Na Farmácia, consegui o mesmo remédio, na mesma dosagem. Então como se explica ele ter tirado meu sono e aumentado meu apetite?”
Não sou médico, não entendo de diabetes e não conheço o remédio que ele falou, mas uma das coisas que ele falou me chamou atenção: remédio acessório. Na verdade a dúvida do amigo de meu pai era como, exatamente o mesmo remédio, podia causar um efeito tão diferente quando comprado nos EUA ou aqui. A questão é que o remédio não era um remédio. Me lembrei de dois outros causos que terei mais facilidade pra explicar a questão.
No primeiro, namorava uma menina que sofria muito de cólicas e depois de penar em meio a uma crise terrível de TPM dela, uma amiga sugeriu que eu indicasse Artemísia para ela, dizendo que não existia nada melhor para a cólica. Fui numa dessas lojas de natureba e encontrei as gotinhas. No rótulo estava escrito: “Indicado para cólicas menstruais, blá, blá, blá”. No contra-rótulo estava: “Nenhuma contra-indicação. Não existe nenhuma comprovação científica dos efeitos da Artemísia.” Pronto, bastou para eu devolver o frasco para a prateleira e correr na farmácia pra comprar Buscopa.
Minha mãe, que andou sofrendo de artríte nos dedos por fazer suas belas pinturas, pediu uma vez que eu comprasse a última novidade para as dores nas articulações. Fui na farmácia, mas ninguém conhecia o tal do Sulfato de Glicosamína. É que ele fica na prateleira das vitaminas. O troço promete maravilhas: “diminui a dor nas articulações” e “aumenta a flexibilidade e a amplitude dos movimentos”; custa caríssimo, mas nas letras pequenas está dizendo “essas afirmações não foram testadas pela FDA. Não existe comprovação científica dos efeitos relatados”. Fala sério gente!
O que eu vou fazer aqui, é explicar pra vocês o que quer dizer o “Não existe comprovação científica”. Isso quer dizer que, quando eles ministraram a droga para um monte de pessoas com dores nas articulações, umas sentiram melhora, mas outras… não. Quando eles repetiram o experimento, novamente algumas pessoas sentiram melhora e outras não, só que o percentual dessa vez era diferente. Pode ter sido ainda que em outras repetições do experimento, pra gente encurtar a estória, numa vez todos sentiram melhora, mas na outra… ninguém. O que importa não são as variações pra maior ou menor. O importante é que eles não conseguiam repetir o resultado. E isso, um resultado que não pode ser repetido, a ciência não admite! Com um resultado assim, não podemos provar nada.
Não dá pra provar que não faz bem, mas mal também não faz e… acaba-se conseguindo uma licença pra vender a porcaria. Mas ao invés de vir escrito em letras garrafais que apenas 13,87% das pessoas que consomem o medicamento observam alguma melhora, eles colocam uma embalagem linda e escondem em letras minúsculas que não há comprovação científica. E vendem pra grande parte da população, com a aprovação do governo, um placebo de luxo. Caríssimo!
Podemos discutir porque alguns remédios, com efeitos comprovados, realmente apresentam variação na resposta de pessoa pra pessoa (isso tem a ver, por exemplo, com a ativação dessas drogas pelos Citocromos P450 no fígado) mas o problema é que a força da ciência não é páreo para a propaganda. E nem para a especulação. Por isso que temos mais igrejas do que universidades, mais astrólogos que astrônomos, e os homeopatas e ortomoleculares crescem em meio aos médicos, que são cada vez mais arrogantes e despreparados para lidas com os seres humanos.
Pacientes são chatos é verdade, principalmente os com dores. Mas mais ainda, aqueles com dores com as quais os médicos não sabem lidar. A forma que eles tem achado para isso, é ministrar remédios com comprovação de resultados discutível, torcendo para que seus pacientes se encaixem nos 13,87% dos que apresentam melhoras, ou simplesmente, nos 42% que se contenta de estar tomando um remédio caro e melhoram só por isso, ou em algum outro percentual dos que param de reclamar.
Minha mãe tem menos dores nas articulações, mas o amigo de meu pai não teve tanta sorte e por algum motivo, o placebo dele não funcionou. Mas o laboratório o médico, a farmácia e o laboratório ficaram felizes nos dois casos.