Molho de tomate e a origem da vida

Eu adoro cozinhar. E a minha especialidade é molho de tomate. Herdei da minha avó e aprimorei com minhas tias italianas. Modéstia a parte, é um espetáculo. Hoje, enquanto dava a última fervida antes iniciar o longo processo de apuração a frio, vi elas lá, lindas, algumas ‘células de Benard‘. Bom, não eram exatamente como deveriam ser, mas com ‘um pouco de muita boa vontade’, podia-se até imaginar que, nas condições ideais, elas apareceriam, pra enfeitar o meu molho de tomate.
Mas acho que, além da emoção da despedida de hoje, eu me emocionei com o fato de, finalmente, entender o que são as ‘células de Benard’ e porque elas são tão importantes.
Não se preocupe se você nunca ouviu falar sobre isso, é justamente o que eu vou explicar aqui.
Em 1997, quando eu começava o doutorado no Instituto de Biofísica da UFRJ, fiz uma disciplina incrível, chamada ‘Filosofia da Ciência’, onde tive, entre muitas, uma aula incrível com um físico chamado Paulo Bisch, que tinha estagiado no laboratório do grande químico Ilya Prigogine, que tinha ganho o prêmio Nobel pelos seus estudos em termodinâmica e pela descoberta das estruturas dissipativas.
Se você é como os meus alunos e não sabe quais são as leis da termodinâmica, pode dar uma olhada aqui e aqui e aqui, mas o que você precisa saber mesmo é que elas são leis fundamentais do universo. E se alguma coisa vai contra as leis da termodinâmica, então essa coisa tem problemas.
Muito bem, acontece que a ‘vida’ é uma dessas coisas que aparentemente vai contra as leis da termodinâmica. Mais precisamente, contra a segunda lei da termodinâmica, porque nós somos seres altamente organizados e que ‘ganhamos’ organização ao longo do tempo, enquanto tudo no universo ‘perde’ organização ao longo do tempo. Como isso é possível? Com um gasto muito grande de energia. Assim, desorganizamos ainda mais o universo, para que possamos nadar contra a corrente nos mantendo altamente organizados.
Abre parênteses: já sei, você não entendeu. Olha, eu não vou te enganar, não dá pra entender de primeira mesmo. É um trem pouco intuitivo e difícil. Tem que ler mais coisas a respeito. Não desista. Fecha parênteses.
Bom, apesar de você não ter entendido direito, explicar como a vida se encaixa na 2a lei da termodinâmica foi relativamente fácil. Mas outras coisas pareciam não se encaixar de jeito nenhum. Uma delas são as células de Benard.
BenardConvection.gif
Na verdade as células de Benard são apenas um exemplo dos ‘sistemas estáveis afastados do equilíbrio termodinâmico’, que era o que mais intrigava o Prigogine. As ‘células’ que vocês estão vendo são pequenos redemoinhos de água em uma placa. O que o Prigogine chama de ‘afastado do equilíbrio termodinâmico’ significa que tem uma fonte de calor, como o fogo da boca do fogão, esquentando alguma coisa, como a placa de petri com água, ou a minha panela de molho de tomate. Sem fonte de calor, mesmo dois corpos tenha inicialmente uma temperatura diferente, o corpo mais quente vai passar calor para o corpo mais frio até que os dois fiquem com a mesma temperatura. Isso é o equilíbrio termodinâmico. Mas com a fonte de calor… o corpo mais quente passar calor para o corpo mais frio, mas eles nunca chegam na mesma temperatura.
E é isso que acontece quando você esquenta a água pra fazer café ou chá: perto do fogo está mais quente e perto da superfície está mais fria (ou menos quente) até que… a água começa a ferver. Não é mais só o calor que sobre pela coluna de água. A água mais quente é menos densa e sobe para a parte de cima da coluna d’água (dentro da penala, ou chaleira). Já a água da superfície é mais fria e densa, e desce para o fundo da panela. Forma-se então um movimento de convecção (a água sempre desce por um lado e sempre sobe pelo outro). É literalmente uma ‘cachoeira’ de água menos quente e um ‘geiser’ de água mais quente, que se alimentam um do outro: quando o geiser chega a superfície da coluna d’água, passa calor para o ar e a água esfria. Esfria o suficiente para aumentar a sua densidade e precipitar na cachoeira que leva até o fundo da panela, onde o calor do fogo esquenta a água até ela perder densidade e subir no ‘geiser’ e repetir o processo. Vistos de cima, as ‘cachoeiras’ estão nos centros das células, a parte mais escura, e os ‘geisers’ estão nas extremidades das células.
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A regularidade dessas estruturas impressionou os químicos e físicos da época. Como poderia um sistema fora do equilíbrio gerar ordem? Isso parecia ir contra a 2a lei da termodinâmica. Mas na verdade não ia, porque na verdade a formação das ‘células de Benard’ permitia que mais calor fosse transferido, e mais rapidamente, da água para o ar. Ou da fonte para o ar através da água. Foi então que Prigogine teve a grande sacação: quando um sistema fora de equilíbrio (como a água dentro da chaleira sobre o fogo para fazer café) alcança um momento crítico, a ordem aparece para permitir uma troca de calor mais eficiente entre os dois sistemas. Ele chamou esse fenômeno de ‘auto-organização’ e as estruturas ordenadas de ‘estruturas dissipativas’ porque elas permitem que o sistema dissipe, transfira, mais calor para o meio.
Entender isso, o que eu só fiz anos depois, foi uma vitória. Mas para mim, já depois daquela aula, tudo tinha mudado. Deus estava definitivamente morto. Havia caido, para mim, o último bastião da magia. Não havia mais um ‘por que’ ou um ‘para que’ a vida tinha sido criada. A vida é uma estrutura dissipativa auto-organizada em um ponto crítico do sistema termodinamicamente aberto do nosso planeta. Que, guardadas as devidas proporções, e respeitada a licença poética, pode ser considerada uma chaleira cuja função é dissipar a energia vinda do sol. E, como todo estrutura dissipativa, o seu aparecimento é inevitável, dado que o sistema chegue ao ponto crítico.
Depois dai, deixo com Darwin, no trecho final do belo filme ‘Criação’, que terminei de assistir hoje.
“É da guerra da natureza, da fome e da morte, a coisa mais sublime que somos capazes de conceber, a saber, ou seja, a produção dos animais superiores, advém. Há grandeza nesta forma de ver a vida, que enquanto este planeta foi girando de acordo com a lei fixa da gravidade, a partir de um início muito simples, infinitas formas as mais belas e as mais maravilhosas, evoluiram e continuam evoluindo.”

Criatividade ou Anarquia?

Pollock foi criativo
O físico Richard Feynman diz que toda boa idéia deve primeiro passar por um exame intelectual criterioso antes de ser colocada a prova experimentalmente. Testar hipóteses é trabalhoso e caro, e justamente por isso nem todas as idéias devem chegar a esse estágio. Não importa se é uma idéia para um experimento, para um novo avião ou para uma obra de arte.Uma boa idéia, e portanto original e criativa, não deve refutar princípios básicos das coisas.
Por exemplo, a 2a lei da termodinâmica é uma das leis fundamentais do universo. Ela diz que não podemos reciclar energia. Energia gasta é energia perdida (isso pode parece banal, mas tem conseqüências graves, como a passagem do tempo, a expansão do universo, a vida e a morte). E também diz que as coisas precisam de energia para se manterem organizadas e se não gastarmos energia as coisas se desorganizam.
Uma nova idéia para uma turbina precisa respeitar a 2a lei da termodinâmica
Pois bem, se um engenheiro aparece com uma idéia excelente sobre um novo motor a jato onde a energia de uma turbina em movimento é utilizada como combustível para movimentar uma outra turbina; por melhor que seja a idéia, ela é impraticável, porque contraria uma lei fundamental. Ou o engenheiro propõe uma nova abordagem para a lei da transferência de energia ou o projeto vai ficar engavetado (o que provavelmente acontecerá).
Quando uma idéia nova não respeita leis fundamentais e preceitos básicos ela não é criativa, ela é anarquica. E a anarquia, como a falta de energia, levam a desordem. Não é uma colocação política, é física.
Picasso foi muito, muito criativo
Essa constatação parece ser universal. Andando pelo MoMA no final de semana passado, vi obras de arte que eram criativas e outras que eram, simplesmente, anárquicas. Não tem a ver com formas, com cores, com padrões, emoções ou abstração. Van Gogh usou cores e pinceladas que ninguém usava e foi muito criativo. Picasso usou formas que ninguém nunca usava e foi criativo. Pollock jogava tintas na tela e foi criativo. Andy Warhol usou latas de sopa e foi criativo. Porque então ou cara que jogou panos de estopa no chão e colocou alguns espelhos foi anárquico? Vejam que eu disse ‘o cara’ porque eu nem lembro o nome da figura.
Aqui eu não há criatividade. Só anarquia.
Está faltando precisão para explicar o anárquico? Então deixem eu tentar novamente. No último andar do museu havia uma mostra de Miró. E era uma mostra anárquica. Das horas que passei no museu, apenas 5 min (tempo necessário para atravessar todos os corredores sem parar em quase nenhuma obra) foram nessa recém inaugurada gigantesca mostra de Miró.
Mas se eu adoro Miró e acho Miró super criativo. Vejam que eu disse que a ‘mostra’ era anarquica.
Nesse caso, a culpa é do curador e não do pintor. A mostra se chamava ‘Pintura e anti-pintura’ com desenhos e colagens feitos por Miró depois da sua frase célebre “Eu quero assassinar a pintura”. O curador tenta vender a idéia de que vários estudos e desenhos de Miró eram uma fase revoltada da sua arte, uma tentativa de criar a anti-pintura, trabalhando em segredo em seu estúdio blá, blá, blá. Pura anarquia. A verdade é que o fascismo estava comendo solto na Espanha e a segunda guerra mundial batendo à porta. Miró trabalhava trancado em seu estúdio por medo de sair na rua. E não havia muita gente circulando por lá pra ir visitá-lo. Miró foi criativo, mas isso não quer dizer que TUDO o que ele fez enquanto estudava e experimentava era criativo.
Uma idéia para ser criativa precisa respeitar a lei da entropia, em qualquer um dos seus muitos enunciados: “o calor sempre passará de um corpo mais quente para um corpo mais frio e nunca ao contrário”; “uma energia de baixa qualidade realiza menos trabalho que uma energia de alta qualidade”. Uma idéia para ser criativa, precisa otimizar o uso da energia. Em um motor, um texto, um experimento ou uma pintura.
Preguiça e ignorância nunca resultam em idéias criativas.

Quanto tempo faz?


Há muito venho querendo escrever sobre uma coisa bastante complicada: o tempo.

Vários textos que eu coloquei sugerem o tempo, e até uma das minhas leitoras mais assíduas, a Aliki, pediu pra eu escrever sobre o assunto. Sempre hesito por várias razões: primeiro porque quase necessariamente vou ter que falar da 1ª e da 2ª leis da termodinâmica, o que por si só são assuntos difíceis, especialmente a parte que fala de entropia. Segundo, porque um monte de gente boa já escreveu muito bem sobre o tema, como por exemplo esse texto do Marcelo Gleiser.

Mas hoje resolvi escrever por várias razões também. A primeira delas é que faz muito tempo que eu não escrevo, o que dá um tempero novo ao assunto: voltar falando sobre o tempo, depois de tanto tempo 😉 A segunda razão é que eu deixe por tanto tempo (olha o tempo de novo ai) o artigo texto sobre a 1ª e da 2ª leis da termodinâmica que vocês já devem ter aprendido algo a respeito. Finalmente, dia desses, lendo o novo livro do Jabor (que por falar nisso, é meio chatinho) eu encontrei a deixa que precisava pra entrar no tema.

O Jabor fala de uma experiência do Glauber Rocha, que filmou índios de uma tribo do Mato Grosso e depois de 20 anos voltou à tribo pra mostrar o filme pros caras. Eles se viram crianças, viram entes que já tinham morrido e descobriram o passado. Até então a vida para eles era um grande presente. E sem passado, a idéia de futuro é difícil de imaginar. Einstein já tinha demonstrado que o tempo é relativo, mas esse pequeno trecho do livro do jabor mostra que a Percepção do tempo também é relativa. Nem todo mundo tem.

O tempo, e ao que parece, tudo no universo, está ligado também à energia. Na verdade existe a sugestão de que o tempo só começou quando o universo começou, o que torna a nossa compreensão do universo ainda mais difícil. Nunca houve um antes do universo.

Hum… parece que eu estou dificultando mais do que facilitando. Vamos lá: a nossa percepção de que o tempo passa, está diretamente ligada a irreversibilidade de alguns fenômenos. O tempo passa porque algumas coisas que acontecem são irreversíveis e isso, como vamos ver daqui a pouco, tem a ver com energia.

Vamos imaginar o exemplo do pendulo, que todos nós vimos na escola em algum momento, naquelas chatíssimas aulas de física. Se fizermos um filminho do pendulo e passarmos ele para frente ou para trás, vamos ver exatamente a mesma coisa. Presente, passado e futuro são iguais. O tempo não existe. Mas o pendulo só funciona em uma situação ideal, (no vácuo, com energia constante, blá, blá, blá). Muitos outros fenômenos, ou reações químicas, são irreversíveis. Ou seja, não voltam a sua posição inicial. Uma folha de papel rasgada não volta a ser uma folha de papel inteira; um fósforo queimado não volta a ser um fósforo e uma bicicleta enferrujada não volta a ser linda e nova.

Eu provavelmente perdi tempo demais nessa questão da energia, mas ela é fundamental para entender porque o tempo passa. Se a energia armazenada ou liberada por um fenômeno da natureza é sempre menor do que a do evento anterior, então, nunca podemos reverter o fenômeno com a sua própria energia. E assim… as coisas acontecem sem que possamos reverte-las. E o tempo… passa.

Por que meu quarto está sempre desarrumado?

O universo tem duas leis fundamentais. A primeira diz que a quantidade de matéria no universo é sempre a mesma. Não muda, é constante. É a primeira lei da termodinâmica. Ela é importante? E muito, só que vocês devem conhecê-la com um outro nome: é aquele velho princípio do Lavoisier. “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

A segunda lei da termodinâmica diz que nenhuma troca de energia é perfeita e sempre vai haver perda na transferência de energia de um elemento para outro. A energia se perde? Não, como vimos na primeira lei, a energia não se perde. Então como acontece essa perda? É uma perda de qualidade!

Ops, então quer dizer que energia tem qualidade? Exatamente, energia também tem qualidade. Existem energias que são mais úteis que outras. Energias com mais qualidade que outras. E como podemos medir a qualidade de uma energia? Pela sua capacidade de realizar trabalho. Bom… nesse momento eu realmente precisaria entrar na definição física de trabalho, que todo mundo já deve ter esquecido. Mas eu vou poupar vocês (e esse artigo que já está ficando teórico demais) da definição e vamos entrar direto na explicação.

Trabalho é a quantidade de energia gasta para tirar um sistema de seu estado inicial e levá-lo a um outro estado. Quando você aquece a água, esta levando ela do estado frio para o estado quente. Isso foi realização de trabalho. Um outro exemplo excelente para ilustrar trabalho e quantidade de energia é uma lâmpada incandescente. Quando acende uma lâmpada também está levando o filamento de tungstênio para um estado ativado, que emite radiação, fótons e calor.

A energia com menor qualidade é o calor, porque ele tem pouca capacidade de realizar trabalho. Energia elétrica e energia química são energias de alta qualidade. O calor só serve para gerar mais calor, para esquentar. Todas as outras coisas que precisamos fazer, como mover motores, precisam de energia com mais qualidade. Muitos motores são movidos a energia elétrica. Os motores biológicos do nosso corpo são movidos a energia química, armazenada nas ligações de fosfato da molécula de ATP.

Mas muitas vezes utilizamos energia de alta qualidade para realizar trabalho que poderia ser feito com energia de menor qualidade. Se você quer esquentar alguma coisa, deveria usar calor. Se usa energia elétrica (como em um forno, grill ou chuveiro elétrico) está desperdiçando energia.

Mas vamos voltar a 2 lei da termodinâmica. A energia pode ser armazenada e passar de sistema para outro. Transformamos a energia da água rio acima em energia elétrica quando ela passa pela turbina da hidroelétrica em direção rio abaixo. Essa energia elétrica é transportada e pode até ser armazenada em pilhas e baterias. Mas já que a transferência é imperfeita, sempre vai haver formação de calor e menos energia elétrica vai estar disponível.

Por isso, quando acontece uma reação, a quantidade de energia que é armazenada é sempre menor que a quantidade de energia que foi necessária para o armazenamento. Assim, quando essa energia armazenada é liberada, sempre vai ser liberada um pouco menos de energia do que estava armazenado. E assim por diante.

Estima-se que da luz do sol que chega a terra, apenas 1% é armazenado na forma de energia química pelas plantas. Muita dessa energia (luz), é verdade, é simplesmente refletida, mas outra parte, é perdida na forma de calor.

Para onde vai toda essa energia que é “perdida” e que vira calor? Para lugar nenhum, ela não se perde, fica por ai… dando bobeira pelo universo.

Isso tem algum significado especial? Sim, muito especial! Vamos lá, você já reparou que se seu quarto nunca se arruma sozinho, e se você deixar, ele vai ficando mais e mais bagunçado? Tenho certeza que sim. E quanto mais desorganizado, mais energia você vai ter de gastar para colocá-lo em ordem. Uau! Que frase linda.

E além de linda, te ensina mais física do que todo o seu curso do segundo grau: A organização e a ordem dependem de gasto de energia. Sem esse gasto… tudo vira desordem. O nome da desordem na física é Entropia! É essa energia que virou calor e anda por ai dando bobeira no universo.

A entropia tem muitas implicações no nosso cotidiano (como na história do quarto que não se arruma sozinho), mas a maior parte delas é técnica demais e vou ter que ir contando pra vocês aos poucos. Só que tem duas que eu posso adiantar: é por causa da entropia que o universo está em expansão. E é por causa dela também que nunca podemos reverter uma reação com a energia que foi gasta ou produzida pela reação.

E essa “irreversibilidade” tem um papel fundamental no tema do meu próximo texto: é por causa dela que o tempo passa!

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