Diário de um Biólogo – Sexta 09/10/2009

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Chove a cântaros no Rio de Janeiro. Já chovia ontem quando peguei a maior água voltando a pé do cartório, que fica perto o suficiente pra não querer ir de carro e longe o suficiente para ser complicado ir de metrô. Mas quando percebi estava na frente da livraria que mais gosto no Rio de Janeiro, a Prefácio ao lado do Estação Unibanco. É uma pena que as livrarias do Rio fiquem cada vez mais aconchegantes e os livros que elas vendem cada vez mais caros. Hoje em dia, comprar os livros pela internet (as vezes na loja virtual da mesmas livraria), significa quase comprar um livro a mais. Mas considero que agora essas mais ‘vitrines’ do que lojas e entro pra me proteger da chuva, tomar um café e dar uma zanzada no meio dos livros porque faz eu me sentir mais inteligente. Acabei topando com “Candido ou o Otimismo” de Voltaire.
Já queria ler esse livro há algum tempo, desde que comecei a usar sistematicamente o artigo clássico de Gould e Lewontin sobre os ‘Spandrels‘ da basílica de São Marcos em Veneza e as anedotas do personagem Dr. Pangloss de Voltaire para criticar o programa adaptacionista dos biologos evolucionistas (busco um link no meu blog para o texto onde discuto esse artigo e me surpreendo ao descobrir que nunca falei sobre ele. Mas fica pra outra vez).
Dr. Pangloss é o filósofo alemão Leibniz, autor da teoria de que ‘vivemos no melhor dos mundos possíveis’ e por quem Voltaire nutria grande desrespeito. Comecei a ler o livro, que é bem pequeno, no congestionamento para voltar pra casa hoje. Estou no capítulo V e é divertidíssimo.
Dou uma parada para o jantar, Carpaccio, que eu mesmo faço, com uma taça do vinho que sobrou do final de semana (mas que estava preservado no vácuo) e penso se isso me faz sofisticado e em quantas pessoas diriam que sim e quantas outras diriam que não. Sento no computador e entre a correspondência está o Jornal da Ciência (um clipping de todas as notícias científicas na mídia no dia).
O JC representa pra mim o problema atual do excesso de informação. Todos os dias ele chega e quase todos os dias eu o deleto sem nem mesmo ver as manchetes. A razão é simples: sempre tem uma manchete, pelo menos uma, que me interessa. Hoje eu abri e não foi diferente.
Era um artigo do geneticista mineiro Sérgio Pena sobre evolução e criacionismo na Ciência Hoje. Eu sou fã das pesquisas dele o Sérgio e já até escrevi sobre elas. Ele também já escreveu vários livros para o público leigo sobre raças, a sua especialidade. Mas não gostei desse artigo. Todas as informações estão corretíssimas, mas apenas para os pouco iniciados capazes de entendê-las ou de se sensibilizarem com elas. Sérgio diz que não entende como algumas pessoas podem renegar a evolução e desfila argumentos inquestionáveis como a semelhança do nosso genoma com os dos chimpanzés (95%), camundongos (67%), mosca da fruta (45%) e… até com as leveduras que fazem nossa cerveja (cerca de 15%). E ai reside o pecado do texto: ele prega para convertidos. Qualquer um capaz de entender os seus argumentos certamente não é alguém que renega a seleção natural e a evolução.
Lembrei da clarividente citação de Dobzhanski que publiquei aqui: de acordo com ele, não importa a qualidade (e quantidade) dos argumentos racionais. Se as conclusões forem desagradáveis, as pessoas resistirão a elas.
Fico pensando então de que serve todo o nosso intelecto, se no final das contas o que vale é o sentimento. Peraê, mas será que é o sentimento mesmo?
A questão é que se eu dissesse que é o nosso ‘instinto’ que vale, os humanistas começariam a bradar dizendo que nossa razão é dominante sobre o nosso instinto. Mas curiosamente, são esses mesmos humanistas que sublimam a razão em nome do sentimento.
No biografia de Voltaire há uma citação de Frederico da Prussia que durante algum tempo foi mecenas de muitos intelectuais do século XVIII, e teve de apaziguar algumas querelas entre os egos inflados: “O diabo encarnou nos meus literatos, e não há maneira de fazê-los voltar a razão… Deve ser um consolo para os animais ver que gente com tais cérebros não é muitas vezes melhor que eles”.
A questão não é o que diferencia razão e sentimento, mas o que os une: o instinto! Somos tão insuportavelmente animais que resistimos heroicamente a aceitar definitivamente a racionalidade de que tanto nos orgulhamos (que frase horrorosa… quantos advérbios…). O instinto pode se travestir tanto de razão quanto de emoção e é isso que o torna perigoso e maravilhoso.
O que fazer? Não sei, vou perguntar a Baco.

Por que que a gente é assim?


Fico pensando da onde os humanos tiraram essa fixação pela Gentileza.

Estava agora fazendo uma avaliação do módulo II do curso de capacitação de professores da UAB e me lembrando da aula de ecologia que dei hoje para uma turma mezzo addormentata sobre os elementos que controlam o crescimento das populações. Os fatores relacionados a densidade são os principais controladores de uma população, porque quanto mais indivíduos, maior a competição entre eles. Na natureza nem sempre dá pra ser gentil. E muitas vezes ser gentíl é muito pouco útil.

O próximo módulo do curso começa com um guia de “como criticar o próximo” e dá todas as dicas para uma crítica gentil. Quanto cuidado será que é necessário para que eu aprenda mais ? Aquele de quem quer conquistar? As vezes a gente tem tempo para (e interesse em) ser conquistado, outras vezes só quer (eu só quero) é aprender. Logo!

Uma pisada de elefante não é gentil para a formiga, mas isso não quer dizer que o elefante não tenha gentileza. Ele é apenas um elefante (estou sempre tentando encontrar exemplos na fauna brasileira para escrever, mas existe algo menos gentil do que uma patada de elefante?)! Uma cobra também não pode ser gentil ao comer o rato: corre o risco de morrer de fome. Assim como um macaco que queira arrancar um fruto de uma árvore corre o risco de quebrar um galho. Falta de gentileza?! Acho que é só fome!

José Datrino, o Profeta Gentileza, deve estar se remexendo agora. Não gente, não sou contra a gentileza. Não sou a favor da grosseria. Não luto Jiu-jitsu! Só quero lembrar que se tentarmos colocar gentileza em tudo, podemos acabar passando fome! Outro dia lí um texto que dizia que “é mais importante ser gentil do que estar certo”. Imprimi e coloquei na minha parede porque acho que eu preciso aprender a ser mais gentil. Mas também lí aquele texto da filosofia canina, que diz: “Evite morder quando só um rosnado funciona”. Essa é a grande gentileza da natureza!

A gentileza faz parte do pacote de sentimentos humanos. Amor, tristeza, alegria, compaixão. Nós somos assim! Então a questão, que eu vou estudar pra responder em um outro post, é se nós somos assim porqe os sentimentos humanos é que determinam nossa humanidade, se somos assim porque temos esses sub-produtos de nossa consciência ou se ‘ser assim’ fazem parte de uma estratégia super eficiênte que nos tornou a espécie dominante no planeta?

Ainda não sei, mas também não consegui seguir as 15 regras de como fazer uma crítica com gentileza. No entanto, escrevi um texto lindo fazendo uma analogia entre avaliação de um curso e a avaliação de um vinho.

“Me dizer que o vinho contém 12% de álcool ou que foi um vinho que ‘você gostou’ não contribui para a minha seleção do próximo vinho que quero tomar. Já se você me disser que é um Chianti, praticamente todo de uva Sangiovese, envelhecido alguns anos no carvalho; eu sei que esse é um vinho que eu quero experimentar. E mais, sei que certamente vou gostar.”

Minhas críticas podem ter taninos marcantes mas se você deixar elas envelhecerem um pouco na madeira podem ter ajudar no futuro a escolher “seu próximo vinho”. Não sei se os alunos vão entender e isso me deixa em dúvida se vale a pena o esforço para bolar essa abordagem gentil. Mas se “Gentileza gera Gentileza” então eu não devo ter nada a perder. Quem quiser passar fome, que passe!

A arte da imprecisão da conversa


Quando minha querida amiga Cris comenta um texto, eu vou correndo ver. Segundo uma outra leitora assídua, os comentários da Cris são melhores que os textos do Mauro.E os comentários dela dão sempre margem a outros comentários meus. E isso rende na mesa de bar, ainda que nem sempre a gente concorde!
Bom, mas no comentário dela sobre a “Navalha de Occam” eu fiquei com a sensação, de apesar dela ter discordado de mim, que nós estavamos falando da mesma coisa.
Isso me levou a colocar esse texto, que estava na minha mente há alguns dias. Tem uns livros que eu adoro (o que eu mais adoro é “A insustentável leveza do ser”) e por isso leio eles mais de uma vez (a “insustentável” eu li 3). Eu agora estou relendo descuidadosamente “Quando Nietzsche chorou”. Descuidadosamente porque não estou seguindo o texto. Abro aleatóriamente e me encaixo em um dos sensacionais diálogos fictícios entre Breuer e Nietzsche.
Transcrevo um pedaço do diálogo que me chamou atenção. Breuer e Nietzsche caminham por um cemitério e comentam sobre um ensaio de Montaigne sobre a morte e discutindo um sonho constante de Breuer, onde enquanto ele procura por sua amante Bertha, o chão se liquefaz deixando-o afundar na terra, e depois de cair exatamente 40 m ele para em uma laje de mármore.
– Genial! – Nietzsche diminuiu o passo e bateu palmas. – Não são metros, mas anos! Agora o enigma do sonho começa a se esclarecer! Ao atingir seus quarenta anos, você se imagina afundando na terra e parando em uma laje de mármore. Mas a laje é o final? É a morte? Ou significa, de algum modo, uma interrupção da queda? Um salvamento?- Sem esperar por uma resposta, Nietzsche seguiu apressado. – E eis outra pergunta: A Bertha que você procurava
quando o solo começou a se liquefazer… de que Bertha se tratava? A jovem Bertha, que oferece a ilusão de proteção? ou a mãe, que outrora oferecia segurança real e cujo nome está escrito na laje? ou uma fusão das duas Berthas? Afinal, de certa forma, suas idades estão próximas, pois sua mãe morreu com uma idade não muito superior à de Bertha!
– Que Bertha? – Breuer abanou a cabeça. – Como poderei responder essa pergunta? E pensar que poucos minutos atrás, eu imaginei que a terapia através da conversa pudesse culminar em uma ciência precisa! Mas como ser preciso sobre tais questões?(…)
– Pergunto-me – ponderou Nietzsche – se nossos sonhos estão mais próximos de quem nós somos do que a racionalidade ou os sentimentos.

A imprecisão da conversa, dos sonhos e, como não, dos nossos sentidos; impedem que a gente possa aplicar a ciência e o método científico aos sentimentos.
Mas deixam tudo mais divertido!

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