Sobre Beagles e Exoesqueletos
Hesitei em entrar nessa discussão por duas razões: primeiro porque não sou um especialista em ética ou em uso de animais em pesquisa; segundo, porque não acho que exista qualquer coisa que possa ser dita que vá aplacar a motivação daqueles que acreditam que os testes científicos em animais sejam um problema.
A triste verdade é que, com 50% da nossa população beirando o analfabetismo funcional, é extremamente difícil conseguir convencer as pessoas com argumentos técnicos e lógicos. E é por isso que eu acredito que as tentativas dos meus colegas cientistas que entendem muito mais do assunto do que eu para explicar a importância e o cuidado dos cientistas no uso dos animais, tem sido infrutíferas: seus argumentos técnicos funcionam apenas na legião de convertidos capaz de entendê-los e não conseguem alcançar para além deles, a grande massa de excluídos científicos que, sem noção do que é o método científico ou como as coisas que eles usufruem no dia a dia são possíveis, vivem a margem da compreensão das coisas, baseando suas decisões apenas em emoções e percepções superficiais dos problemas.
Quando alguns alunos viram esse vídeo de personalidades falando em defesa dos ‘pobres animais indefesos’, vieram me pedir para fazer um vídeo legal, bem produzido, numa linguagem acessível, sobre a importância do uso de animais em pesquisa.
Mas a verdade é que seria inútil.
, cito Dobzhansky, quando ele diz algo como “quando as conclusões forem desagradáveis, não importa o quão boa seja a explicação ou os fatos: as pessoas irão recusá-las”
Ainda assim, fiquei irritadíssimo ao assistir o tal vídeo: É lamentável que personalidades como essas se disponham a falar de um tema o qual não entendem minimamente, para o qual não apresentam qualquer argumento técnico ou evidência objetiva. Carl Sagan (que eu imagino eles não saibam que foi) disse muito bem: “As pessoas aceitam os produtos da ciência, mas recusam os seus métodos”. Eu gostaria de chamar de hipocrisia, mas é só uma triste falta de conhecimento mesmo.
Conhecimento que textos como esse da neurocientista Lygia Veiga ( A Escolha de Sofia: Os Beagles ou eu, mostra. Nós sabemos o quanto é difícil desenvolver modelos alternativos porque é justamente isso que estamos fazendo no laboratório: Nosso grupo de pesquisa é um dos que não trabalha com animais de sangue quente e sistema nervoso complexo em laboratório, e que se esforça para desenvolver modelos alternativos, que permitam, quando for possível (e é isso que estamos tentando determinar) usar invertebrados como ostras, mexilhões, caranguejos e camarões, em pesquisa biomédica. Bivalves produzem heparina e um monte de outras substâncias úteis para humanos. O primeiro passo para usar esses animais com um sistema nervoso bem primitivo em pesquisa, é conhecer seus genes. É isso que nosso grupo vem fazendo há mais de 3 anos, mas que só agora conseguimos publicar. Ainda assim, com dados preliminares.
Mas nada parece aplacar a ira dos ‘black ALF blocks’, que estão ameaçando pesquisadores e institutos de pesquisa nas redes sociais. E até mesmo meus amigos com grande treinamento em ciência tem postado comentários revoltados nos textos que compartilho na funpage do VQEB no Facebook.
Sob pena de ser julgado pela minha contundência, tenho de afirmar que eles estão equivocados e que nenhuma argumentação ética ou filosófica sobre esse argumento pode se sustentar.
A natureza é Amoral. Tente aplicar ética e moral a natureza e… vamos gerar conflitos irreconciliáveis.
Nos damos ao luxo de discutir o bem estar animal hoje, quando a competição por recursos DENTRO da nossa espécie foi minimizada pela agricultura e… a criação de animais. Por que se acabarmos com os supermercados e restaurantes, não nos preocuparemos nem mesmo com o próximo. Será cada um por si, como está ‘escrito’ nos nossos genes.
Todas, eu disse TODAS, as espécies animais e vegetais exploram o seu ambiente, o que inclui outros animais e vegetais.
Da mesma forma que não podemos acabar com a poluição, porque a segunda lei da termodinâmica dita que não há uso de energia sem produção de resíduo, não creio que seja possível acabar com a exploração animal e vegetal.
Isso não é um argumento para um ponto de vista ou outro: é uma constatação! A natureza é Amoral e não existe certo ou errado, bom ou ruim… o que existe são ‘Estratégias Evolutivamente Estáveis’: o que funciona, evolutivamente, em curto, médio e longo prazo.
Meu chute é que uma estratégia de ‘não exploração de recursos animais ou vegetais’ está fadada a não permanência no pool gênico das gerações futuras. Da mesma forma, não acredito que estratégias de exploração exaustiva fiquem para contar história.
Mas será que seremos nós a decidir? Eu acho que não. Acho que nos extinguiremos como espécie antes disso. É preciso ser mais inteligente do que nós somos, ou menos sensível aos nossos instintos, para criar uma estratégia evolutivamente estável no que tange a exploração de recursos, sejam eles animais, vegetais ou minerais.
Até lá, vamos fazer o melhor que podemos, o que inclui implantar cirurgicamente eletrodos na cabeça (no cérebro) de uma criança tetraplégica para que ela consiga operar uma roupa experimental com o pensamento e dar o ponta pé inicial da copa do mundo do Brasil.
Diário de um Biólogo – Sexta 09/10/2009
Já queria ler esse livro há algum tempo, desde que comecei a usar sistematicamente o artigo clássico de Gould e Lewontin sobre os ‘Spandrels‘ da basílica de São Marcos em Veneza e as anedotas do personagem Dr. Pangloss de Voltaire para criticar o programa adaptacionista dos biologos evolucionistas (busco um link no meu blog para o texto onde discuto esse artigo e me surpreendo ao descobrir que nunca falei sobre ele. Mas fica pra outra vez).
Dr. Pangloss é o filósofo alemão Leibniz, autor da teoria de que ‘vivemos no melhor dos mundos possíveis’ e por quem Voltaire nutria grande desrespeito. Comecei a ler o livro, que é bem pequeno, no congestionamento para voltar pra casa hoje. Estou no capítulo V e é divertidíssimo.
Dou uma parada para o jantar, Carpaccio, que eu mesmo faço, com uma taça do vinho que sobrou do final de semana (mas que estava preservado no vácuo) e penso se isso me faz sofisticado e em quantas pessoas diriam que sim e quantas outras diriam que não. Sento no computador e entre a correspondência está o Jornal da Ciência (um clipping de todas as notícias científicas na mídia no dia).
O JC representa pra mim o problema atual do excesso de informação. Todos os dias ele chega e quase todos os dias eu o deleto sem nem mesmo ver as manchetes. A razão é simples: sempre tem uma manchete, pelo menos uma, que me interessa. Hoje eu abri e não foi diferente.
Era um artigo do geneticista mineiro Sérgio Pena sobre evolução e criacionismo na Ciência Hoje. Eu sou fã das pesquisas dele o Sérgio e já até escrevi sobre elas. Ele também já escreveu vários livros para o público leigo sobre raças, a sua especialidade. Mas não gostei desse artigo. Todas as informações estão corretíssimas, mas apenas para os pouco iniciados capazes de entendê-las ou de se sensibilizarem com elas. Sérgio diz que não entende como algumas pessoas podem renegar a evolução e desfila argumentos inquestionáveis como a semelhança do nosso genoma com os dos chimpanzés (95%), camundongos (67%), mosca da fruta (45%) e… até com as leveduras que fazem nossa cerveja (cerca de 15%). E ai reside o pecado do texto: ele prega para convertidos. Qualquer um capaz de entender os seus argumentos certamente não é alguém que renega a seleção natural e a evolução.
Lembrei da clarividente citação de Dobzhanski que publiquei aqui: de acordo com ele, não importa a qualidade (e quantidade) dos argumentos racionais. Se as conclusões forem desagradáveis, as pessoas resistirão a elas.
Fico pensando então de que serve todo o nosso intelecto, se no final das contas o que vale é o sentimento. Peraê, mas será que é o sentimento mesmo?
A questão é que se eu dissesse que é o nosso ‘instinto’ que vale, os humanistas começariam a bradar dizendo que nossa razão é dominante sobre o nosso instinto. Mas curiosamente, são esses mesmos humanistas que sublimam a razão em nome do sentimento.
No biografia de Voltaire há uma citação de Frederico da Prussia que durante algum tempo foi mecenas de muitos intelectuais do século XVIII, e teve de apaziguar algumas querelas entre os egos inflados: “O diabo encarnou nos meus literatos, e não há maneira de fazê-los voltar a razão… Deve ser um consolo para os animais ver que gente com tais cérebros não é muitas vezes melhor que eles”.
A questão não é o que diferencia razão e sentimento, mas o que os une: o instinto! Somos tão insuportavelmente animais que resistimos heroicamente a aceitar definitivamente a racionalidade de que tanto nos orgulhamos (que frase horrorosa… quantos advérbios…). O instinto pode se travestir tanto de razão quanto de emoção e é isso que o torna perigoso e maravilhoso.
O que fazer? Não sei, vou perguntar a Baco.