Climatério e Evolução

A fêmea da espécie humana sobrevive longamente após encerrar suas atividades reprodutivas. Aliás, sobrevive mais que qualquer outra fêmea de outras espécies (para desespero de alguns genros!). Uma das teorias para explicar esse fenômeno foi lançada há alguns anos: A “hipótese da avó”. Ela sugere que uma determinada prole teria mais chance de sobreviver caso a avó materna estivesse viva, pois poderia dividir o trabalho de cuidar dos pequenos, além de passar o know-how disso para a jovem e inexperiente mãe. Com o indelével passar dos milhares de anos, as meninas tenderiam a viver mais após o período fértil, tornando-se uma característica de nossas fêmeas.

Independentemente dessa teoria dar conta da explicação de todo o fenômeno, há um fato: as mulheres vivem mesmo muito anos após seu período fértil. Mesmo ajustando essa observação à expectativa média de vida (pouco mais de 30 anos) da época. Como toda solução encontrada pelas espécies, esse fato tem seu lado bom (permitiu que chegássemos até aqui) e o lado ruim. O lado ruim é o climatério.

O climatério é o período que antecede a última menstruação (menopausa) até aproximadamente 12 meses após. Algumas pacientes o definem como “a pior fase de toda a vida”. Além das alterações orgânicas, calores absurdos, dores de cabeça sem sentido, insônia e variações de humor, há enfraquecimento ósseo, aterosclerose, alterações cognitivas, disfunção sexual e uma constelação de problemas menos graves mas não menos importantes, que fazem com que a mulher nessa fase seja um desafio terapêutico dos grandes. Um dos mais intrigantes problemas é o rubor/fogacho facial do qual já falamos em outra situação clínica (aqui e aqui).

Os fogachos podem ocorrer a qualquer hora do dia ou da noite e podem ser ocasionados por uma variedade de estímulos a saber, estresse, álcool, café, mudanças bruscas de temperatura entre outros. A sensação subjetiva é a de aquecimento seguida de sudorese e vermelhidão na pele. Pode haver palpitações. Começa na parte superior do corpo e espalha-se de maneira variável. Duram de 30 s a 60 min com uma média de 3 a 4 min. Muitas referem uma “pressão na cabeça”. Podem permanecer por 1 a 5 anos, mas há relatos de calores por 40 anos. É um sintoma debilitante. Impede a pessoa de dormir adequadamente por meses a fio o que gera mais ansiedade, queda de desempenho e depressão.

Mecanismos

O fogacho é o resultado de um distúrbio do sistema de regulação de temperatura do organismo. Entretanto, dentre os homeotérmicos, a fêmea humana parece ser a única a apresentar esse distúrbio apesar de modelos animais em ratos e primatas terem sido desenvolvidos. Alterações de temperatura de fato ocorrem e podem ser demonstradas por meio da termografia. Por exemplo, a temperatura nos dedos das mão e dos pés chega a variar entre 20 a 33 ◦C. Como resultado do aumento da temperatura na periferia, há uma diminuição na temperatura central que pode ser medida por meio da temperatura retal e timpânica. A sensação maior entretanto, é mesmo na região cervical e facial apesar das variações de temperatura serem bem menores – em torno de 1◦C. Esse aumento de temperatura é causado por intensa vasodilatação local. O papel dos estrógenos na geração dos fogachos ainda não está bem estabelecido apesar de sabermos que mesmo doses baixas são eficazes em eliminá-los. A explicação mais interessante foi dada por Robert Freedman que utilizou o conceito de zona termoneutra. Em uma mulher normal e assintomática a zona termoneutra é de 0,4 ◦C. Isso significa que variações dentro desse intervalo não gerarão nenhum tipo de resposta para autorregular a temperatura. Esses reflexos são integrados no hipotálamo. A supressão repentina do estrógeno ao qual o hipotálamo esteve “acostumado”, aumentaria sua sensibilidade e mesmo variações dentro do intervalo normal desencadeariam respostas termorregulatórias. O que a hipótese não explica é que as mulheres com fogachos não têm calafrios em ambientes mais frescos sugerindo que a explicação só serviria para um dos limites da curva.

Evolução

Hormonal ShiftsUma das perguntas evolutivas que subjaz a toda essa complexidade seria sobre qual a relação que hormônios sexuais teriam com a regulação da temperatura? Uma possível resposta seria a ovulação. A ovulação é um fenômeno altamente dependente da temperatura. Em animais pecilotérmicos, a temperatura do ambiente é crucial para a sobrevivência dos ovos fecundados cujo exemplo clássico são os peixes. O gráfico ao lado mostra como a temperatura corporal da mulher sobe no momento da ovulação, fenômeno que já foi utilizado para monitorar o período fértil com resultados conflitantes. Hormônios sexuais têm influência sobre a termogênese apesar dos mecanismos não terem sido completamente elucidados.

Ficam então, as perguntas: Seriam os incômodos fogachos das mulheres recém-menopausadas, resquícios de um imprinting hipotalâmico pelos hormônios sexuais com fins reprodutivos? Seria o climatério, ao menos no que se refere a alteração da regulação da temperatura corporal, um “fóssil fisiológico” desenterrado pela estranha sobrevida prolongada pós-fértil da fêmea humana? Talvez seja esse o preço a pagar pela longevidade. Talvez seja esse o preço para ver crescer os netos.

Fontes
1. Sturdee DW. The menopausal hot flush–Anything new? Maturitas 60 (2008) 42-49.
2. Hampl R et al. Steroids and Thermogenesis. Physiol. Res. 55: 123-131, 2006.

A Doença

Participar de grupos de blogs científicos como o ScienceblogsBrasil tem, confesso, um lado ruim! Esse lado ruim é constituído pela fórmula a seguir:

“cabeça-de-médico” + “visão crítica geral proveniente das mais variadas áreas do conhecimento” = “nó-na-cabeça”
Se não vejamos. Uma sensacional discussão esquenta o debate ecológico no Geófagos. O que está em jogo é o conceito de “crescimento sustentável”. Na verdade, discute-se mesmo se ele existe! Parece haver um consenso de que, de alguma forma, ao crescer economicamente, depauperamos o planeta sem dó nem piedade. Coloquei a questão de que, se somos feitos de compostos de carbono e água (ainda), o salto populacional de seres humanos dos últimos 10.000 anos (que para o povo do Geófagos é quase um minutinho) de alguns milhares de indivíduos para os quase 7 bilhões atuais, deve ter tirado carbono e água de algum outro lugar. A história da lagarta que cuida das larvas que a devoram internamente se constitui na melhor metáfora para nossa existência na Grande Lagarta Terra, que parece ainda tentar nos proteger. Não é à toa que me senti doença. Logo eu, humanista que sempre as combati, que sempre as vi como o inimigo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais médicos sejam a classe profissional que mais atenta contra a própria vida. A consciência é um fardo.

Design Inconsequente II

O raciocínio desenvolvido no início do post, as figuras e a concepção geral foram retiradas do sensacional artigo de John West.

Suponha que alguém peça a você que projete um dispositivo para resfriar algo, como um radiador de carro por exemplo. Um projeto poderia ser um tipo de uma bomba que fizesse circular um fluido resfriante, como a água, através de uma grelha com pequenos tubos. O ar quente que viesse do motor poderia ser empurrado através dessa grelha por um ventilador, resfriando, desta forma, o motor aquecido do veículo. Que beleza! Acabamos de inventar o projeto de radiador mais utilizado, com algumas sofisticações, até hoje na indústria automobilística.

Mas poderíamos escolher um outro projeto. Por exemplo, um no qual os pequenos tubos contendo o líquido resfriante estivessem inseridos em foles de forma que estes últimos pudessem ser inflados e desinflados. O ar nos foles seria aquecido e então expelido, resfriando o motor. Poderíamos até pensar num projeto no qual os pequenos tubos fossem eles mesmos, as paredes do fole! Sim, é um sistema complicado e propenso a problemas principalmente devido ao fato de os pequenos tubos constituirem mesmo o fole. Imagine! Ninguém faria um fole tão delicado. Um projeto assim provavelmente não teria custo-efetividade. Seria arriscado, para dizer o mínimo. Talvez até inconsequente…

West Lung Design copyDesafortunadamente, esse foi o projeto escolhido na licitação de nossos pulmões! O radiador pode ser encarado, grosso modo, como um trocador de gases, a exemplo dos pulmões. Ele troca ar quente por ar frio. No pulmão o que ocorre é uma troca de gás carbônico por oxigênio. É, portanto, um radiador no qual os pequenos tubos constituem o fole de forma bastante perigosa. Bom, mas deu certo, argumentariam alguns. Teríamos alguma outra alternativa que pudesse respirar ar melhor do que a escolhida? Lamento informar que, do ponto de vista médico – é sempre bom frisar – a resposta é: Sim. E bem melhor! Se não vejamos.

A figura ao lado, foi retirada do artigo de John West citado acima. Ela mostra os aspectos principais dos dois sistemas respiratórios em questão aqui. As duas alternativas evolutivas foram o pulmão broncoalveolar dos mamíferos e os sacos aéreos/parabrônquios das aves. Interessante que nos répteis temos misturas dos dois. Os crocodilianos têm um pulmão parecido com o dos mamíferos porém com espaços maiores. O das cobras lembram os dos pássaros.

Aqui devemos definir alguns termos antes de prosseguir. Existe uma diferença entre a respiração e a ventilação. A respiração é um processo bioquímico redução onde ocorre a quebra de moléculas complexas por meio da oxidação. A ventilação é um processo biofísico no qual o ar alveolar é trocado por ar fresco através da ação de músculos especializados. Após isso, ocorre a troca gasosa ou hematose, onde o gás carbônico do sangue venoso é retirado e eliminado e o oxigênio do ar alveolar é incorporado ao sangue. O transporte de oxigênio às células é chamado de “transporte de oxigênio”. Não respiração, como a Wikipedia insiste em português e inglês!

Qual a grande “sacada” do sistema respiratório das aves? O local onde ocorre a ventilação

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(troca do ar “velho” pelo ar fresco) é separado do local onde ocorre a troca gasosa. Nos mamíferos e no homem, isso tudo é feito no alvéolo pulmonar. A figura ao lado (retirada daqui) mostra uma sequência de movimentos respiratórios em um esquema bem simplificado de pulmão de ave.

Numa primeira inspiração, o ar não se dirige diretamente aos parabrônquios (em vermelho na figura). Vai em direção caudal e preenche o saco aéreo posterior. Apenas uma pequena parte chega aos parabrônquios.

Somente quando a ave expira, o ar do saco alveolar atinge a área de troca gasosa. Durante uma segunda inspiração, o ar que estava em vermelho nos parabrônquios, se dirige ao saco aéreo anterior (agora em azul) e, após a segunda expiração é, finalmente expelido.

Há duas referências imperdíveis para quem quer se aprofundar no assunto. A primeira é esse site. No final da página há uma animação que descreve esse processo de forma muito elegante. A segunda é o Pharyngula que faz a comparação com os pulmões dos dinossauros. Bem interessante.

Bem, mas faltou explicar porque esse processo é uma “grande sacada”. Os dois sistemas foram capazes de fornecer quantidades suficientes de suprimentos a animais de grande consumo energético. Entretanto, o pulmão dos mamíferos cria uma série de vulnerabilidades que o expõem a processos de malfucionamento, também conhecidos como doenças.

A mais comum e principal delas é que o pulmão dos mamíferos, exatamente por ter o “fole” associado à área de troca é uma estrutura delicada e pode murchar. O pulmão das aves não murcha. Qual é o problema disso? Bem, isso fica para o último post da série.

Design Inconsequente e a Respiração Humana

Essa sequência de posts que se iniciou com uma pergunta, passou por uma provocação, chega, finalmente aos fatos. Seu objetivo é demonstrar que do ponto de vista médico, o sistema respiratório humano tem alguns do que poderiamos chamar “erros de projeto” que são causas de quadros patológicos de relevância. VASx.JPG

 Vamos começar pelo começo. O ar deve vir do nariz (ou da boca) e entrar na traquéia. Os alimentos e líquidos devem vir da boca e entrar no esôfago. Certo? Até aqui, tudo bem. Agora responda rápido: Quem, em sã consciência, e por qual infernal razão, cruzaria as duas vias, de modo a permitir o ar entrar no esôfago e, pior, os alimentos e líquidos adentrarem o sacrossanto espaço respiratório?

A imagem ao lado (retirada daqui) mostra uma seta verde – o caminho correto para os alimentos -, e uma seta azul – que seria o caminho aéreo certo. Elas formam um X! Muitos mamíferos têm o mesmo problema, mas no homem, ele é mais sensível. Alguns animais têm um pálato mais prolongado, outros, mecanismos diferentes de deglutição. Quando dormimos, broncoaspiramos pequenas quantidades de saliva que qualquer pigarreada pode clarear. Entretanto, em situações onde o nível de consciência fica comprometido (traumas, excesso de drogas ou álcool), ou quando temos problemas de deglutição – sejam anatômicos (edema, tumores, cirurgias no local); sejam funcionais (quadros neurológicos que provoquem descoordenação no mecanismo de deglutição, como acidentes vasculares cerebrais) -, o risco de aspiração de grandes quantidades de alimentos é enorme. De fato, em unidades de terapia intensiva, esse é um dos problemas mais comuns. A ponto de uma manobra extremamente simples, que é a de elevar a cabeceira da cama em 30 a 45 graus, diminuir significativamente a incidência de pneumonias hospitalares com impacto na mortalidade e morbidade desses pacientes.

Mas isso, infelizmente, não é tudo. Nos próximos posts tentarei mostrar como é frágil essa estrutura e como a natureza escolheu caminhos diferentes para o sistema respiratório das aves.

O Sopro Divino

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Figura retirada do Emerge Journal – a Criação de Adão.

O que Deus fez quando resolveu dar vida ao amontoado de barro que moldou e batizou de Adão (lembrar que adamah é argila em hebraico)? Massagem cardíaca seguida de choques no tórax de 200 joules? Alimentos de alto valor protéico? Enteroclismas? Transfusões de sangue? Plasma? Hemoderivados?

Não. Nada disso. Como mostra a figura acima, Deus simples e majestosamente soprou vida em Adão. Adão ganhou vida através de seu sistema respiratório e não através do coração, intestinos ou mesmo do sangue, tão simbólico! Essa alegoria do mito da criação dá bem a dimensão do que representa a respiração na antiguidade (ver também Shakespeare, Rei Lear). Por milhares de anos, respirar foi o mesmo que viver. (Apenas recentemente, com a necessidade de se definir tecnicamente a vida com objetivo de transplante de orgãos sólidos é que criou-se a figura da “morte cerebral”).

Tudo isso para dizer que através dos séculos, a respiração pode ser considerada a mais divina das funções fisiológicas. Sob uma perspectiva creacionista na qual somos seres perfeitos criados a partir da imagem divina, a mais divina das funções deveria sobressair-se sobre outras criaturas. Nosso sistema circulatório é muito bem adaptado ao que fazemos; não há absolutamente nada igual a nosso sistema nervoso; que dizer da maravilha de nosso aparelho locomotor? – e assim por diante. Mas, creiam-me, perdemos na respiração. Nossos pulmões não são os mais bem projetados para uma vida terrestre. Perdemos porque temos um “erro de projeto” que eu considero mais ou menos sério. Erro esse que rende milhares de publicações médicas anualmente, consome milhões de dólares em recursos de pesquisas, além de estimular a produção de equipamentos médicos altamente sofisticados cujo custo está na ordem de centenas de milhares de dólares por aparelho. Todo esse dinheiro e tempo seria economizado se fôssemos aves. Sim, é delas o sistema respiratório mais sofisticado, pelo menos do ponto de vista médico. É o que tentarei demonstrar nos próximos posts.

sleucogaster_caapora.jpgParabéns ao Hotta que além de matar a charada, ainda adiantou o tema.
A foto é do Caapora. Pássaros são mesmo incríveis, Luciano. Obrigado.



Brócoli e Helicobacter

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O brócoli é o tipo de vegetal sem muita moral entre os humanos. Quem já não ouviu a expressão “Aquele ali é um QI de brócoli!” Ele e o alface sofrem o mesmo tipo de discriminação. Por exemplo, ambos são exemplos de dietas radicais: “Menina, não aguentei o spa, só comia brócoli (ou alface) e uma azeitona!!”

Talvez pensando nesse tipo de comportamento preconceituoso por parte da humanidade, não é de hoje, cientistas começaram a procurar utilidades para a famigerada verdura. E acharam.

O Helicobacter pylori é uma bactéria que resiste ao pH extremamente baixo do suco gástrico (aproximadamente 2). Recentemente, foi vinculada ao aparecimento de úlcera péptica e também do câncer gástrico. Por incrível que possa parecer, a úlcera, que num passado recente era tratada com a retirada cirúrgica do estômago, passou a ser tratada com antibióticos. Isso foi tão surpreendente que seu descobridor ganhou o Nobel de Medicina em 2005. O complexo e engenhoso mecanismo de ação da infecção pelo Helicobacter é esboçado na figura abaixo retirada da Nature Pois bem, brotos de brócoli podem minimizar os efeitos da infecção do Helicobacter nas mucosas gástrica e duodenal. Alguns exagerados, já afirmam que pode prevenir o câncer, mas daí a isso ocorrer de fato, ainda é um caminho longo.

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O cidadão da foto acima é Jed Fahey, cientista da Johns Hopkins que descobriu em 2002 que brotos de brócoli contém uma substância chamada glucorafanina, precursora de um potente bactericida chamado sulforafano. Em ratos, a substância bloqueia o mecanismo responsável pela inflamação. Um pequeno estudo piloto com 48 pacientes foi conduzido com intuito de demonstrar que a ingestão de aproximadamente 70 g diários de broto de brócoli poderia reproduzir esses efeitos em humanos. Através de medidas indiretas de quantificação da infecção, foi possível demonstrar uma redução da quantidade de bactérias e de seus subprodutos metabólicos.

A infecção por Helicobacter pylori afeta um número de pessoas que está atualmente na casa dos bilhões ao redor do mundo. Se tal estudo de fato se consolidar como uma alternativa às terapias atuais (inibidores da bomba de próton e antibióticos) será mais uma arma na prevenção do que hoje é considerada uma epidemia de câncer gástrico. A esperança é tanta que foi criada uma empresa pela Johns Hopkins que produzirá brotos de brócoli em escala industrial. Pensando bem, dá para entender a admiração de Jed Fahey pela discriminada verdura. Ele é um dos sócios.

(Créditos: Cortesia da imagem: Johns Hopkins Medical Institutions)

Perguntinha Sufocante

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Sunset in Kemi by catarina_555 at Flickr

É inevitável a procura humana por propósito, por sentido… Algumas respostas ajudam outras, nem tanto…

Qual é o bicho que tem o sistema respiratório mais evoluído apropriado para respirar o ar terrestre?

A Origem da Pressão Arterial III

Chegamos ao final desse exercício evolucionário que fiz quando era R3. Fiquei impressionado com esse tipo de raciocínio e procurei repeti-lo sempre que me defrontei com problemas complicados na Medicina – não, isso não vale para doenças raras e esquisitas. É muito mais produtivo – no sentido de propiciar insights e apontar caminhos para pesquisa -, aplicá-lo a doenças altamente prevalentes que envolvam dificuldades de tratamento.

O aumento da pressão arterial de aves e mamíferos se faz através de um impressionante aumento da resistência circulatória dos animais de sangue quente. Esse aumento da resistência periférica é a alternativa mais “econômica” encontrada pela natureza para propiciar a redistribuição do fluxo de sangue. A tabela abaixo mostra a variação de fluxo sanguíneo regional no repouso e no exercício. O aumento do fluxo pode chegar a 20 vezes o valor de repouso. Como conseguir um aumento tão grande de fluxo economizando o máximo de energia? O aumento simples do débito cardíaco não seria a saída mais econômica por duas razões: a primeira é que várias regiões seriam perfundidas sem necessidade – apenas os grupamentos musculares envolvidos necessitam de maior suprimento. A segunda é que uma bomba capaz de aumentos abruptos de fluxo dessa monta teria que ter uma estrutura muscular muito maior que o coração dos mamíferos  e aves atuais. Provavelmente, essa alternativa terminou num beco sem saída e nosso coração foi poupado de mais essa carga, mesmo assim, ainda nos causa muitos problemas!

Data on flow from Wade 0 L, Bishop J M. Cardiac output and regional blood flow. Oxford: Blackwell, 1962. It has been assumed that the arterial pressure rises from 100 to 130 mmHg (13.3 to 17.3 kPa) in exercise while the venous pressure remains approximately constant. Pressure = kPa; Flow = litres.min-1;Resistance = kPamin.litres-1

Com esse conceitos, entendemos perfeitamente o que é um choque circulatório; conceito que médicos de unidades de terapia intensiva explicam a familiares de pacientes com certa dificuldade. Não é para menos! Choque circulatório é quando essa capacidade de dirigir o fluxo de sangue para os mais variados orgãos, em especial, os músculos que são, em kilos, os maiores do organismo, é perdida. Isso gera muita fraqueza, hipotensão postural (queda da pressão na posição em pé), diminuição da diurese, entre outras alterações. A pressão costuma estar baixa, mas nem sempre. Claro, é uma questão de conteúdo e continente; quando a resistência circulatória cai, o continente aumenta para o mesmo conteúdo.

Referência: Harris, P. Evolution and the cardiac patient. Cardiovascular Research, 1983, 17, 373-378.

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A Origem da Pressão Arterial II

http://e-heart.org/Photos/03_Cardiomyopathy_Photos/%C2%A9CardiomyopathyCartoons%202.jpg

Tipos de cardiomiopatia. A hipertensão crônica pode causar a hipertrófica (HCM). O coração fica “musculoso” para vencer a alta pressão sistêmica.
O problema é que os vasos que o nutrem, não “crescem” na mesma proporção. Tirado do e-heart.

Voltando ao nosso exercício evolucionário.

Quem respondeu metabolismo e homeotermia acertou parcialmente. Homeotermos gastam mais. Se o consumo de oxigênio de um peixe gira em torno de 1 mL/kg/min, um mamífero consome 4 a 8 mL/kg/min – 4 a 8 vezes mais. Um homem adulto em repouso consome 250 mL de O2/min, o que dá uns 3-4 mL/kg/min se tiver 70 kg. Morcegos 30 mL/kg/min, aves mais ou menos 10 mL/kg/min. Uma das alternativas evolucionárias para manter esse alto consumo foi o aumento do débito cardíaco, quantidade de sangue bombeada pelo coração em 1 minuto. Podemos dizer sem medo de cometer um erro grosseiro que o débito cardíaco de aves e mamíferos é aproximadamente 4 a 8 vezes maior que o de peixes, anfíbios e répteis. Com isso, ele dá conta do aumento do consumo, mas não explica o porquê das altas pressões. Qual seria a necessidade de trabalharmos com pressões sistêmicas tão estranhamente elevadas? Andamos em círculos!

Insisto na relevância disso pois, nessa questão reside não só a base evolucionária de, se não todas, pelo menos da grande maioria das doenças cardiovasculares, e também da compreensão do que é o choque circulatório. Então, qual é o conceito-chave que explicaria o aumento pressão arterial dos mamíferos e, consequentemente, do homem?

A reposta virá, prometo, no próximo post da série.

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Honestidade Evolutiva?

Marine iguanas (Amblyrhynchus cristatus) line up on each others’ backs on Genovesa Island, Galapagos, Ecuador
(Image: David Day /SplashdownDirect / Rex) retirada da própria página da New Scientist

Aproveito para comentar um artigo da New Scientist de 29 de Janeiro. Foi solicitado a vários biólogos midiáticos (Dawkins, Elaine Morgan, entre outros) que escrevessem quais as lacunas da teoria da evolução a serem preenchidas nos próximos 200 anos. Essa pérola foi escrita por Frans de Waals (primatologista da Universidade de Emory, Atlanta, EUA):

“Why do humans blush? We’re the only primate that does so in response to embarrassing situations (shame), or when caught in a lie (guilt), and one wonders why we needed such an obvious signal to communicate these self-conscious feelings. Blushing interferes with the unscrupulous manipulation of others. Were early humans subjected to selection pressures to keep them honest? What was its survival value?”

Vi a chamada no blog do Marcelo Leite, aliás com um comentário que tem a mesma linha de argumentação deste post. Essa pergunta não faz o menor sentido se entendermos que doenças (no caso da ruborização, apenas uma alteração da fisiologia normal) são respostas maladaptadas de reações normais do indivíduo. A ligação do rubor facial com emoções é mero uso inadequado da rede vascular facial, assim como o rubor causado pela ingestão de nifedipina (medicação para abaixar a pressão), o dos sintomas climatéricos (menopausa) e também o associado ao próprio frio. Não passou pela cabeça de ninguém que a ruborização facial poderia ter uma outra função e estar sendo utilizada de forma ilegítima por uma outra via, sem relação com comportamentos habituais sujeitos portanto, a uma pressão seletiva? A face está envolvida em reflexos hemodinâmicos complexos, via nervo trigêmio, como por exemplo, o reflexo do mergulho – um estímulo parassimpático fortemente bradicardizante causado pela imersão da face humana em água a 10ºC. Esse reflexo é tão poderoso que pode curar arritmias graves! Só funciona na face. Por quê? Quando todos os outros vasos se contraem no frio, os da face dilatam (ou permanecem inalterados) e nos deixam de bochechas vermelhas. Por quê? Esses vasos têm um comportamento peculiar que precisamos decifrar ou hominídeos foram submetidos a pressões seletivas que os obrigaram a não enfiar a cara em bacias de água fria?

Caberia aos biólogos evolucionistas (sim, porque médicos, ainda não há!) linkar fatos relevantes como se fez com a anemia falciforme, fibrose cística e a própria insuficiência cardíaca, entre outros, de modo a descobrir qual a implicação de cada resposta, contar sua história evolucionária e entender qual seria a resposta maladaptada para, no caso da Medicina, tratá-la. Isso sim seria muito interessante e, diria, necessário à Medicina atual, refém que está do paradigma do risco. Pensar numa “pressão seletiva para se manter honesto” é de dar dó. Depois, a gente fica chateado quando querem cortar nossas bolsas no exterior!!

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