Qualis o Quê?!!

Não sou um cientista cientologista. Mas de vez em quando arrisco aqui uns pitacos.

Não sei se todo mundo sabe mas a importância de um jornal científico é dada por alguns índices sendo talvez, o mais importante, o Fator Impacto (em inglês, Impact Factor – IF). Existem muitas críticas a isso. Uma delas é que o FI pertence a uma empresa privada com ações da bolsa de valores e teria, por essa razão, conflitos de interesse com uma ciência, digamos, desinteressada. Não quero ser purista, mas o dinheiro de agências de fomento à pesquisa – a grande maioria, públicas no Brasil – é distribuído tendo como base publicações ranqueadas, em última instância, pelo FI. Vai daí…

Outra crítica frequentemente disparada contra a “ditadura do FI” é que se ele é razoável para jornais científicos, é muito ruim para bons artigos. (Veja aqui a apresentação da bib. Suely Soares a quem cito na sequência). A validade do FI está diretamente associada à aceitação de duas premissas: a) as publicações relevantes são freqüentemente citadas (quantitativa); b) o conjunto de publicações indexadas (pelo ISI, no caso) é suficiente para apreender os resultados das pesquisas a serem avaliadas (quantitativa). E isso não é sempre verdade. Há vários fatores interferentes que vão desde a densidade de citações (número de referências por artigo, maior nos estudos biomédicos) à velocidade de obsolescência da área em questão (menor nas áreas exatas, por exemplo). Isso faz com que a produção de determinado autor seja “desviada” (skewed) e impede que se faça uma análise mais fidedigna. Além de, e talvez por isso, o FI é calculado apenas a partir dos dois últimos anos. Outro erro bastante comum é usar o FI da revista para dizer que um artigo publicado nela é bom. O próprio Eugene Garfield, criador do FI, disse na referência que cito abaixo, que isso é um erro teórico crasso.

Pensando em todas essas confusões e mais algumas (ver leitura adicional no final do post) o prof. Maurício Rocha e Silva publicou um artigo interessante na Clinics, a revista do Hospital das Clínicas da USP. O artigo me chamou a atenção e comecei a escrever esse post no final de 2011. Como que numa transmissão telepática a Revista Pesquisa FAPESP publica em seu número de Janeiro de 2012 (que ainda não está no sítio, para os apressadinhos) uma sensacional entrevista com o professor Rocha e Silva. Eu confesso que tive muita dificuldade para entender o artigo original. A entrevista, entretanto, é muito simples e faz o artigo brilhar. Vamos a eles.

O principal alvo de Rocha e Silva é o sistema Qualis. (Para um dos “defeitos” do Qualis veja aqui). O raciocínio é o seguinte. “Todas as revistas têm uma distribuição de citações assimétrica. Quer dizer, 20% dos artigos concentram 50% das citações e os 20% mais baixos concentram 3% das citações. De maneira que no New England Journal Medicine, a revista médica de mais alto impacto do mundo, por exemplo, tem 20% de artigos que são muito pouco citados. Isso vale para qualquer revista.” O argumento da Capes por intermédio do sistema Qualis é simples e direto: se você publica numa revista com fator impacto alto, você é bom. Ponto. Isso é um erro de lógica de acordo com os cálculos acima.

Para ele, o Qualis penaliza alguns autores por publicarem em revistas brasileiras. De acordo com o raciocínio acima “se eu publico numa revista A1, ganho a nota de A1. Mas, 70% dos artigos que saem na revista A1 não têm aquele bom nível de citação, que vem de 30% dos artigos. Por isso, 70% dos artigos ali publicados recebem um upgrade.” Talvez isso não seja um problema maior pois estamos no topo, tratando de revista com altíssimo FI. Que mal tem em elevarmos o nível de maioria dos artigos de uma grande revista? Contudo, no Brasil, de acordo com a classificação da Capes, não temos revistas A1. Numa categoria intermediária esse problema aumenta muito porque as revistas têm um limite inferior e um superior – uma faixa. Vamos de novo. Publico um artigo numa revista, digamos, B3 da Qualis o que me garante aparecer na prestigiosa Pubmed, e ganho a nota da revista como pesquisador. Se meu artigo for “meia-colher” talvez eu seja “puxado” pelos outros bons artigos da revista (upgrade). Mas se meu artigo for muito bom, eu tenho a chance de 20-30% de estar sendo rebaixado pelos restantes. Note que a Capes deu a nota para a revista – até aí, tudo bem – mas está usando essa nota para qualificar o artigo do pesquisador e, por fim, o próprio pesquisador! Nas palavras do prof. Maurício Rocha e Silva “…na hora em que a Capes atribui uma classificação baixa a uma revista, eles estão dizendo para os pós-graduandos e seus orientadores, ‘Não publiquem nessa revista se você puder publicar em uma com o FI mais alto”.

“Se o Qualis não tivesse esse problema interno, daqui a 10 anos teríamos uma coleção de grandes revistas internacionais brasileiras porque haveria um estímulo à publicação.” Qual o problema de não termos revistas nacionais? Preconceito científico contra publicações latinoamericanas cientificamente demonstrado. É um círculo vicioso cuja solução passa necessariamente pela melhoria do nível das revistas nacionais que, por sua vez, precisam de uma política diferente de incentivo à publicação. A adoção de outros critérios que não o simples FI para qualificar os pesquisadores é, portanto, prioritária.

Leitura adicional

1. Fator de impacto: Importância e influência no meio editorial, acadêmico e científico (pdf) Ruiz et al.

2. The Agony and the Ecstasy— The History and Meaning of the Journal Impact Factor. (pelo criador da criatura, Eugene Garfield)

3. A vez das Revistas Científicas? – Ecce Medicus

ResearchBlogging.orgMauricio Rocha e Silva (2011). Continuously Variable Rating: a new, simple and
logical procedure to evaluate original scientific publications CLINICS, 66 (12), 2099-2104: 0.1590/S1807-59322011001200016

ResearchBlogging.org Meneghini, R., Packer, A., & Nassi-Calò, L. (2008). Articles by Latin American Authors in Prestigious Journals Have Fewer Citations PLoS ONE, 3 (11) DOI: 10.1371/journal.pone.0003804

Clique na figura para ver a origem. Autorizado segundo as regras do autor. Agradecimentos à Maria Guimarães pelo exemplar da revista FAPESP em primeira mão.

Atualização

A interessante entrevista do prof. Maurício Rocha e Silva na Pesquisa Fapesp.

Pergunta Fértil

Eu gosto de questões éticas. Talvez porque não haja um gabarito para este tipo de questão. (Fazer prova que não tem gabarito é uma delícia!). Senão, vejamos…

O número de fertilizações in vitro humanas vem crescendo quase que exponencialmente os últimos anos. As estatísticas reais são difíceis de obter dado que grande parte desses procedimentos são realizados em clínicas particulares e não nos serviços públicos. (A proliferação de clínicas de reprodução assistida, entretanto, deve querer nos dizer alguma coisa). Isso se deve a evolução desse tipo de tecnologia e também à maior procura pelo método. A maior procura do método deve levar em consideração o fato de que os casais estão unindo-se mais tarde e gerando filhos mais tarde, o que dificulta o processo.

Numa fertilização in vitro são retirados óvulos da moça que são incubados com os espermatozóides do rapaz numa placa de Petri (vidro). São gerados vários ovos/embriões, bebês em potencial, nesse processo e que são congelados com objetivo de serem implantados após um tratamento hormonal da mãe visando preparar seu útero o melhor possível para recebê-los. São implantados de 1 a 3 embriões, a depender do caso. Os restantes, são guardados, congelados. Depois de um tempo, podem ser utilizados ou descartados pois têm um prazo de validade. Agora, pára e presta atenção.

Descartar embriões pode significar 2 coisas diferentes. Para um grupo “descartar embriões” pode ser jogar produtos de uma fertilização in vitro fora. Ponto. Para outro grupo, “descartar embriões” pode ser assassinar crianças inocentes, cometer um crime contra a humanidade, matar alguém da própria espécie, etc. Agora imagine fazer “experiências” com esses embriões que seriam descartados. Há que diga que alguns desses embriões têm células-tronco com excelente potencial para regeneração de tecidos humanos e que isso pode significar que o tratamento para algumas doenças humanas será prorrogado por tempo indeterminado, caso não possamos utilizá-las para estudo.

Pergunta (os comentários estão abertos para as respostas):

1. Você é a favor ou contra o uso de embriões humanos preparados para fins reprodutivos e que seriam descartados para estudos com células-tronco?

Abortamentos e Cesarianas

Parto Cesárea

– Nasceu?! Que legal! Foi parto normal?

– Normal…. Pro médico, né?

Diálogo entre uma puérpera e o editor deste blog.

Foi manchete este fim-de-semana a informação do Ministério da Saúde dando conta de que, pela primeira vez, o Brasil registrou mais cesarianas do que partos normais num ano: 52% no total. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, no setor privado, a taxa de cesarianas é estável desde 2004 e gira em torno de 80%. No Sistema Único de Saúde (SUS), o número vem aumentando e passou de 24% para 37% na última década.

Os termos cesárea ou cesariana não parecem ter a ver com Júlio César, supostamente nascido deste procedimento, como me foi ensinado na faculdade. Como o professor Joffre ressalta “a palavra cesárea e as expressões parto cesáreo operação cesariana vinculam-se ao verbo latino caedocaesum, caedere, que equivale ao grego témno, cortarDele derivam caesus,a,um, cortado; caeso, onis, ceso ou cesão; caesura, corte;e caesar, aris, com o mesmo sentido decaeso, onis, isto é, aquele que é tirado do ventre da mãe, ou “qui caeso matris utero nascitur”. As palavras cisão e ciso vêm da mesma raiz. (Não confundir com siso, do latim sensum, que originou o tal dente do juízo).

É conhecido o fato de o Brasil ser o campeão mundial de cesarianas tendo, inclusive, sido bastante criticado por isso (uma pequena compilação de links: unnecesarean, guttmacher com uma referência brasileira, outra referência em pdf, outro estudo do Lancet [assinantes], entre outros tantos). Mas, como o título do post sugere, gostaria de fazer um paralelo aqui entre abortamentos e cesarianas.

Vamos aos conflitos de interesse primeiro. Não acredito no abortamento como método anticoncepcional em saúde pública porque ele não funciona bem para isso. Mas, quer queiram setores da igreja, o Estado Teocrático Brasileiro, sociologistas, médicos e etc, etc, ele é uma prerrogativa feminina. O abortamento deve ser “acessível, seguro e extremamente raro”, como já se disse. É um dos sinais do abismo existente entre as classes sociais brasileiras a maneira como sua prática permeia os vários segmentos da população feminina do país: de agulhas de tricô, citotecs e o seja-o-que-deus-quiser, a clínicas altamente aparelhadas e com mordomias de grandes hospitais. (Não vou nem discutir sobre as questões dos fetos mal-formados e do risco de morte da mãe, porque aí já seria muito para esse post. Veja minhas posições sobre o assunto aqui, aqui e aqui).

Voltando ao espanto causado pelas cesarianas. O parto cesárea seguiria o mesmo raciocínio do abortamento. É uma prerrogativa da mulher querer ter seu bebê por via vaginal ou cirúrgica. O problema é que essa decisão nunca é totalmente esclarecida e aqui entra o papel do médico. Eu fiz 5 partos normais durante meu curso médico. Em alguns, passei a noite ao lado de moças se contorcendo de dor sem alívio nenhum. Se não houvesse alternativa, tudo bem, o presente da maternidade sempre vai compensar qualquer coisa, pelo menos é o que elas dizem. Mas se há uma forma diferente na qual a relação risco/benefício é aceitável, por que não tentar? Quem decide? O médico e a mãe, mais ninguém.

O médico entretanto, deve fazer o mesmo papel que faria quando se lhe apresenta alguém querendo retirar um feto indesejado. Expor, com a maior isenção moral possível, os riscos dos procedimentos e posicionar-se. Essas não são decisões que cabem apenas ao paciente. Dizer que não faz ou prescreve procedimentos abortivos é totalmente legítimo. O paciente deve saber que isso é proibido no Brasil e que o médico que o faz está em importante risco de processo. Com a cesárea, a situação é atenuada, mas semelhante. Não há proibição, mas há indicações clínicas mais ou menos precisas. Se a gestante quer uma cesariana, o médico deve expor os riscos e posicionar-se. O problema é que há um viés do médico favorecendo o procedimento. Aí junta a fome com a vontade de comer. E com isso, eu não posso concordar.

Vamos colocar uns dados nessa discussão. Os obstetras e a Organização Mundial de Saúde estimam que aproximadamente 15% dos partos devam ser cesarianos por complicações relacionadas aos mesmos. Se nos hospitais privados de São Paulo – capital, a taxa está em torno de 80%, segundo a Folha, temos que explicar o excesso de 65% em favor das cesarianas. Há uma entidade batizada em inglês com a sigla CDMR para Caesarean delivery on maternal request (cesárea por solicitação da mãe). Existem fortes indícios, segundo o estudo do Lancet citado acima, de que esse “movimento” tenha se iniciado no Brazil e disseminado-se para outros países. Estima-se que esse tipo de “indicação” possa responder por até 20% dos casos de partos cirúrgicos. O estudo de Zhang (abaixo) avaliou 1,1 milhão de partos não-gemelares durante 13 anos no sudeste da China e mostrou um aumento significativo no número de partos cesarianos em grande parte devidos a CDMR. Em alguns locais, as indicações por solicitação das mães chegaram a 50% das cesáreas. No Brasil, Osis e colegas (abaixo) foram tentar entender porque tanta cesárea. Avaliaram 656 mulheres de São Paulo e Pernambuco, usuárias do serviço público, e as dividiram em 2 grupos. O primeiro constituído de mulheres que tinham a experiência de um parto vaginal prévio e que depois tiveram um cesariano. O outro, constituído apenas de mulheres com parto cesariano. 90,4% das mulheres que tinham tido pelo menos um parto vaginal consideraram-no melhor, contra 75,9% entre as que só tinham cesárea (o número das que tinham tido apenas partos normais é muito pequeno no estudo e isso se constitui num viés importante). Se as que tinham cesárea tivessem entrado em trabalho de parto, o resultado ficava semelhante (45,5% e 42,8%). 47,1% das que tiveram parto vaginal disseram que ele não tinha desvantagens, contra 30,3% das que não tiveram. Por outro lado, 56,7% das mulheres que só tiveram cesarianas referiram que não ter contrações era a principal vantagem do método, contra 41,7% das outras. A conclusão do artigo é que a dor é importante mas as mulheres avaliam-na como secundária. Em primeiro lugar a saúde da criança e o pós-operatório. Além disso, no Brasil é muito importante a possibilidade de realizar uma laqueadura (“amarrar as trompas”) para esterilização e isso pesou na escolha da via para o parto. Isso se constitui numa falha grave das políticas de Saúde Pública desses dois estados no que se refere ao controle da natalidade, segundo outro artigo. Não se pode substituir um erro por outro.

Para concluir esse longo post, eu diria que:

1. É legítimo uma mãe querer uma cesárea (CDMR), assim como é legítimo uma mãe não querer levar adiante uma gravidez indesejada – prerrogativas dela, exclusivamente – desde que ela esteja totalmente esclarecida das consequências que tais procedimentos realmente implicam.  (Há quem discuta sobre o que é estar “totalmente esclarecido” afirmando ser impossível ao leigo esclarecer sobre procedimentos com consequências tão complexas, o que gera implicações no tal consentimento informado, instrumento sem o qual não se faz NENHUMA pesquisa clínica, só para se ter uma ideia do tamanho do problema com o qual estamos a lidar).

2. O médico tem um papel fundamental na escolha da via do parto e deve despir-se de suas preferências individuais para aconselhar a gestante. Dada a enorme dificuldade em se fazer isso (até porque, um médico confia nas suas habilidades tanto para um como para o outro procedimento), não é totalmente descabido ouvir uma segunda opinião sobre o assunto. Isso diminui, com certeza, o viés. Mas aumenta a insegurança; outra escolha difícil.

3. O excesso de cesáreas é um dos exemplos de medicalização da medicina. Como a calvície, a timidez e a agitação infantil, nos mostra como transformar “desvios” arbitrários da normalidade em patologias manipuláveis tecnicamente.

Foto tirada do blog Parir é Nascer.

ResearchBlogging.orgZhang, J., Liu, Y., Meikle, S., Zheng, J., Sun, W., & Li, Z. (2008). Cesarean Delivery on Maternal Request in Southeast China Obstetrics & Gynecology, 111 (5), 1077-1082 DOI: 10.1097/AOG.0b013e31816e349e

ResearchBlogging.orgOsis MJ, Pádua KS, Duarte GA, Souza TR, & Faúndes A (2001). The opinion of Brazilian women regarding vaginal labor and cesarean section. International journal of gynaecology and obstetrics: the official organ of the International Federation of Gynaecology and Obstetrics, 75 Suppl 1 PMID: 11742644

Coagulação e Defesa III

(Veja também Coagulação e Defesa e Coagulação e Defesa II)

As relações entre o sistema da coagulação e a imunidade são antigas, remontando aos primórdios da vida na Terra. Parece ser “evolutivamente econômico”, ao menos de um ponto de vista teleológico, um sistema acumular múltiplas funções em seres primitivos. A especialização posterior das funções é uma característica da complexidade. Em humanos, as funções da coagulação e do sistema imunológico eram consideradas separadas e estanques, cada um cuidando de situações específicas que poderiam colocar a vida do organismo em risco, a saber, evitar sangramentos abundantes após traumatismos e defender o organismo contra invasores, respectivamente. Cada um no seu quadrado. Até agora, pelo menos.

Em um artigo publicado há alguns meses na Blood, Loof e colegas mostraram, pela primeira vez, que o sistema de coagulação de humanos pode, sim, ter uma função na defesa contra a invasão de bactérias. Os autores usaram cepas de Streptococcus pyogenes, uma das bactérias “assassinas” de que a imprensa gosta tanto de falar pela sua capacidade de penetrar nos tecidos (ver figura abaixo) e ratos normais e modificados geneticamente (ver abaixo) em banhos de plasma humano para testar a capacidade de defesa das proteínas relacionadas à coagulação.

Esquerda: Bactéria sem o ativador de plasminogênio (AP). Direita: Com o AP. Dissolve o coágulo, invade o tecido e a corrente sanguínea. Modificado de Hongmin Sun. Physiology 21:281-288, 2006.

Já era conhecido o fato de que a capacidade de invadir tecidos do S. pyogenes é dependente da produção de uma substância anticoagulante (chamada de ativador do plasminogênio), mas estudos iniciais não mostravam uma ativação da coagulação claramente. Os autores suspeitaram da falta de alguns “ingredientes” (cálcio e fosfolípides) importantes para iniciar a cascata. Acrescentaram os ingredientes e viram que a “inflamação” causada pelo S. pyogenes era capaz de deflagrar a coagulação nos ratos normais. Feito isso, tomaram ratos modificados geneticamente para não produzir um fator específico da coagulação: o fator XIII. O fator XIII merece uma consideração especial. É uma transglutaminase.

As transglutaminases são enzimas que apareceram precocemente na história dos seres vivos neste planetas e faço aqui um parênteses que o(a) leitor(a) vai perdoar. Elas são enzimas que catalisam uma ligação covalente entre um grupamento amina (normalmente de um aminoácido lisina) com um grupo gama-carboxamida (normalmente da glutamina). O que há de interessante nessa ligação é que ela é altamente resistente à proteólise, ou seja, digestão. As transglutaminases são utilizadas em processos industriais para “juntar” proteínas, por exemplo, coisas “com gosto” com coisas “com consistência”, o exemplo mais conhecido o kani (bastão com gosto de carne de caranguejo) entre outras “engenharias” culinárias. No corpo humano, servem para “juntar” cabelo, pele e, veja só, fazer coágulo! Aliás, as transglutaminases foram descritas no longíquo ano de 1959, mas sua atividade biológica apenas em 1968, através do estudo de quem? Rá! Do fator XIII! A comprovação de sua idade é sua presença no caranguejo-ferradura, participando de seu processo de coagulação.

Feito o (grande, mas interessante, vai) parênteses, voltemos ao nosso estudo. Os autores então, dizia, pegaram ratos sem o fator XIII e, ao infectá-los com o S. pyogenes banhados em plasma humano viram que a infecção no pobre roedor era bem mais grave. A figura abaixo carece de uma explicação minuciosa.

Retirado da referência abaixo. Para explicações, veja o texto.

Essas fotos são micrografias eletrônicas que mostram a estrutura de coágulos gerados a partir de plasma normal (A,C,E) ou de plasma com deficiência de fXIII (B,D,F) na ausência de bactérias (de A a B) ou na presença delas (de C a F) (Veja as “bolinhas” no meio da rede). G, H e I são bactérias com marcadores específicos que serviram para validar o método. A e B, portanto, mostram a diferença do coágulo com e sem o fator XIII. C e D mostram que uma “segura” os invasores, a outra, não. E e F são closes de C e D. É a primeira vez que esse efeito foi demonstrado de forma tão clara e elegante.

Uma resposta imunológica eficaz depende da identificação e da eliminação rápidas dos invasores. Há exemplos destes mecanismos para materiais inalados e ingeridos. As feridas são outra porta de entrada importante e a tentativa de retardar a progressão das bactérias envolvendo-as em uma rede gelatinosa até que “soldados” (neutrófilos) e “tanques de guerra” (macrófagos) cheguem é muito interessante, além de parecer ter sido selecionada evolutivamente. Um exemplo clássico de fisiopatologia que a evolução ajuda a esclarecer. Uma das transglutaminases humanas, o fator XIII, funcionou plena e surpreendentemente em camundongos e é praticamente indistinta da enzima de um bicho de quase 100 milhões de anos (caranguejo-ferradura). Sinal dos tempos. Cicatrizes de luta ancestral.

ResearchBlogging.orgLoof, T., Morgelin, M., Johansson, L., Oehmcke, S., Olin, A., Dickneite, G., Norrby-Teglund, A., Theopold, U., & Herwald, H. (2011). Coagulation, an ancestral serine protease cascade, exerts a novel function in early immune defense Blood, 118 (9), 2589-2598 DOI: 10.1182/blood-2011-02-337568

Coagulação e Defesa II

O sangue humano pode ser considerado um “orgão” especializado em várias funções. Duas das mais importantes são o transporte de oxigênio/nutrientes e a imunidade. O sangue é constituído pelo plasma e pelos chamados elementos figurados, células típicas de seu “tecido”. São 3 os tipos básicos de células sanguíneas: as vermelhas ou eritrócitos, as brancas ou leucócitos e as plaquetas ou trombócitos. Os eritrócitos dão a cor vermelha de nosso sangue por conter uma metaloproteína – cujo metal é o ferro – chamada hemoglobina. Ela tem uma afinidade especial pelo oxigênio que permite tanto transportá-lo como também, descarregá-lo com facilidade aos tecidos.

As células brancas também têm suas subdivisões e são um universo à parte. É importante ressaltar aqui seu papel na defesa do organismo. A defesa ou imunidade pode ser dividida em celular e humoral. A celular sendo caracterizada pela luta “corpo-a-corpo” das células contra os invasores e a humoral, caracterizada pela produção de anticorpos que, por sua vez, têm muitas funções, desde facilitar o englobamento de uma partícula fazendo com que uma célula fagocitária a enxergue, até abrir buracos em paredes celulares, “explodindo” osmoticamente os invasores, entre outras. As diferentes linhagens de leucócitos são especializadas em cada uma dessas funções e subfunções, muitas das quais podem ser descritas em capítulos sobre “inflamação”.

As plaquetas são fragmentos citoplasmáticos (nome bonito para “cacos” de células) de uma grande célula chamada megacariócito. Elas desempenham um papel muito importante na coagulação, participando tanto de seu início como da formação do coágulo final. Não é à toa que muitas medicações têm sido desenvolvidas com intuito de modular a ação das plaquetas e com isso, controlar vários processos patológicos. (A mais famosa e antiga dessas drogas é a aspirina.)

~ ~ o ~ ~

Pois bem. Esta pequena introdução serve para dar uma breve ideia da complexidade de um sistema como o que é constituído pelo sangue. Tal complexidade se dá pelo número enorme e pela especialização das funções de cada um dos componentes hematológicos. Apesar de descrevermos com cada vez mais acurácia o papel de cada um desses elementos, uma abordagem evolutiva aplicada levanta questões bastante interessantes. Sabe-se que cadeias de enzimas chamadas proteases da serina desempenham papeis variados ao longo da “escala evolutiva”. A cascata da coagulação desempenha, juntamente com as plaquetas e os vasos, um papel muito importante na hemostasia. A cascata do complemento pertence ao que chamamos de imunidade inata, automática e “on board” dos seres vivos. Mas as semelhanças entre os dois sistemas é grande demais para considerarmos apenas uma coincidência. Estudos filogenéticos sugerem que se desenvolveram por volta de 400 milhões de anos atrás a partir de um origem ancestral comum dos eucariotos. Tanto a coagulação como o sistema do complemento parecem dividir uma evolução convergente com sistemas tão diferentes como o desenvolvimento embrionário da Drosophila e o sistema imunológico de um bicho muito esquisito chamado de caranguejo-ferradura – Limulus polyphemus (foto abaixo).

Esse “fóssil-vivo” parece estar perambulando pelas praias do hemisfério norte por pelo menos 100 milhões de anos, praticamente inalterado. Tem sangue azul. Isso porque a metaloproteinase responsável pelo transporte de oxigênio é a hemocianina, que tem o cobre no lugar do ferro da hemoglobina dos mamíferos. Além disso, ao contrário da profusão de células e funções especializadas, o sangue do límulo só tem um tipo morfológico de célula. Essa célula faz-tudo tem uma maneira muito especial de defender o organismo contra invasão de bactérias ou algas portadoras de uma toxina chamada lipopolissacáride (LPS): ela coagula o invasor. Figura abaixo (daqui).

O límulo não tem sistema do complemento, glóbulos brancos ou vermelhos (nem mesmo azuis!). Tem um sistema de coagulação que serve primariamente para cicatrizar lesões e permitir que não exanguine-se em traumas e que é, também, utilizado para defesa. Seria esse o “elo perdido” das cascatas? Será que isso ocorre também em mamíferos? É o que tentarei mostrar no terceiro e último post da série.

 Referência

1. Akbar-John et al. 2010. Journal of Applied Sciences, 10: 1930-1936.

Dali e o Reducionismo Genético

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A medicina sofre com as tensões da ciência médica como sofre uma mãe com as eternas brigas e discussões de seus filhos. A ciência que embasa a medicina pode ser, grosso modo, dividida em seus domínios de atuação: laboratórios, pacientes e populações. As divisões não são estanques como se poderia imaginar e há, na verdade, uma transição progressiva de um domínio para o outro com áreas de sobreposição, como mostra a figura abaixo, que não canso de utilizar em aulas, discussões e posts.

Acredito que medicina vive hoje sob o jugo dos estudos populacionais por uma série de razões que não vêm ao caso agora (para ler mais, veja Certezas Médicas, e a série sobre o Risco) e isso também tem lá seus efeitos colaterais. Mas, o segundo lugar é que está uma briga de foice. Os estudos focados em laboratórios (experimental) e pacientes (investigação clínica) têm se engalfinhado em tentar mostrar quem trouxe mais contribuições para a ciência médica. Nos últimos anos, os estudos experimentais têm ganho de goleada. Agências fomentadoras têm diminuído verbas para pesquisas em fisiologia humana que, aliás, tem sido chamada pejorativamente de Paleo-fisiologia, em detrimento à Biologia Molecular. Ao redor do mundo, departamentos de fisiologia foram trocando de nome, os velhos professores de fisiologia foram se aposentando e dando lugar a pesquisadores cada vez mais voltados para a revolução dos “Omics“.

Os fisiologistas resmungam. Taxam os biólogos moleculares de reducionistas e de, por isso, perderem a noção do todo. Na edição de setembro do Journal Applied Physiology, uma das cartilhas ideológicas dos fisiologistas, um artigo interessante foi publicado [1] (e me foi rapidamente enviado por um amigo que sabe que eu gosto do assunto). O autor começa dizendo que o reducionismo, com os vários sabores da biologia molecular, falhou em possibilitar a tão prometida revolução na medicina clínica. A assim chamada “ortopedia biomolecular” – doença => gene defeituoso => conserta o gene => cura a doença – não teve o sucesso previsto. Atribui isso ao desprezo da biologia molecular à regulação e à homeostase.

A fisiologia, como toda ciência decente, tem sua metafísica. Ela se chama homeostase. Homeostase é um conceito difícil de captar (como todo conceito metafísico) e é preciso adquiri-lo no escuro. De posse dele, o mundo maravilhoso da fisiologia se abre para você. Em 1865 Claude Bernard escreveu na “Introdução à Medicina Experimental” – livro que funda a ciência médica do século XX – que a “constância milieu intérieur era uma condição essencial à vida livre”. Mas a palavra-conceito ainda não existia. Coube ao fisiologista americano Walter Cannon num artigo do Physiological Review de julho de 1929, impressionado com a “sabedoria do corpo” (título de um livro seu publicado anos depois, veja se não é metafísico isso!), cunhar a palavra homeostase a partir de radicais gregos, significando “permanecer o mesmo”. Tendo uma origem assim, tão nobre e fundacional, não era de se estranhar uma legião de seguidores e adoradores. Em que pese a quase “sacrossantidade” do termo, a homeostase rendeu (e rende ainda!) importantes desdobramentos científicos pois, com ela, elucidaram-se uma miríade infindável de mecanismos reguladores do funcionamento dos organismos vivos, tantos e com tal sucesso, que a fisiologia sentiu-se poderosa o suficiente para permitir-se teleologizar. Mas isso é uma história que conto outro dia.

O autor do artigo em questão, após citar vários exemplos onde conceitos fisiológicos levaram a conclusões contraintuitivas e a modelos bastante frutíferos, argumenta ao final se biologia molecular e fisiologia não poderiam funcionar como instrumentos um do outro. Conclui afirmando que a biologia molecular não quer ou não pode executar essa ideia, mas que à fisiologia (…) it is possible to incorporate reductionist tools in a physiological context to gain broader biomedical insights, indicando uma possível superioridade de uma abordagem em relação à outra.

A medicina é, por natureza, integrativa. Uma máxima conhecida (e implantada tal qual um chip em nossos cérebros) é a de sempre tentar atribuir a sintomatologia de um paciente a apenas uma doença. Um tipo de navalha de Ockham hipocrática. Isso, necessariamente, implica uma interrelação entre orgãos e funções, em especial nas doenças sistêmicas. O agrupamento de sintomas concorrentes em sindromes levou à descoberta de vários mecanismos fisiopatológicos únicos. Há doenças nas quais a abordagem fisiológica é imprescindível. Exemplos, Sindrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), a via final comum de uma série de insultos que terminam em lesão pulmonar grave. Há outras, entretanto, que só descobrimos com abordagens epidemiológicas e aqui se incluem os fatores de risco, entre eles a hipertensão e o tabagismo, como causadores de problemas. Por muitos anos, a terapia de reposição hormonal em mulheres pós-menopausadas foi recomendada por “fazer sentido” biologicamente. Estudos populacionais mostraram que, contraintuitivamente, ela acabava fazendo mais mal que bem da forma como estava sendo prescrita.

Defeitos nos genes não são doenças. Em geral, ocorre o contrário. Temos a doença e vamos atrás de uma causa genética. Em muitas encontramos os defeitos donde surgiu, então, a promessa de consertá-los para curar as doenças e que acabou não se cumprindo. O artigo foi publicado nas várias revistas da American Physiological Society ao mesmo tempo e é acompanhado de um editorial [2]. Nele, os autores reforçam o papel “translacional” (como traduzir isso?) da fisiologia. Esta, por sua vez, seria a forma essencial de haurir dos genes algo que fizesse sentido em medicina clínica. Eu ainda acho que genes podem contar uma história evolutiva da nossa espécie que seria – e vem sendo – muito importante para a medicina. De qualquer forma, concordo que o pensamento reducionista, ao menos na medicina, não se basta. É preciso pensar num todo funcionante, com o risco de, em caso contrário, transformarmos os pacientes nos homens-gaveta de Dali.

[1] Joyner, M. (2011). Giant sucking sound: can physiology fill the intellectual void left by the reductionists? Journal of Applied Physiology, 111 (2), 335-342 DOI: 10.1152/japplphysiol.00565.2011

[2] Peter D. Wagner and David J. Paterson. Am J Physiol Heart Circ Physiol, September , 2011; 301 (3): H627-H628. Published online before print July 2011, doi: 10.​1152/​ajpheart.​00649.​2011

A Náusea, A Fome e Ella

ResearchBlogging.orgVolta e meia me deparo com pacientes precisando de tratamento para “enjoo”. Mais raramente (pois não sou pediatra), mães, esposas, avós, etc me pedem algo que “abra o apetite” de seus queridos anoréticos. Apesar de já ter notado que as medicações utilizadas para tratar náuseas e vômitos, quando administradas a pacientes sem tais sintomas, não despertavam o paladar, e vice-versa, pois remédios para “abrir o apetite” não são lá muito eficazes em tratar seres humanos nauseabundos; eu imaginava que a náusea era o exato oposto da fome e que nesse caminho, o indivíduo necessariamente passaria pela saciedade. Isso porque, para mim, era inadmissível alguém estando nauseado, sentir fome! Mas um amigo, médico, estando em tratamento para um câncer, me disse claramente que as náuseas causadas pelos quimioterápicos não atrapalhavam sua fome. Fiquei com isso na cabeça. Recentemente, por força de um procedimento e de medicamentos que tive que ingerir, tive a mesma sensação: estando totalmente nauseado, sendo capaz até de vomitar sem muita dificuldade caso fosse até o vaso, consegui comer nhoque! Descobri-me errado e tentarei esclarecer aqui alguns conceitos.

O que é náusea?
– É a sensação que normalmente precede o vômito, em geral referida na garganta ou na região epigástrica.

O que é “ânsia de vômito”? (em inglês retching)
– É a movimentação muscular involuntária que precede o ato de vomitar propriamente dito.

clique na figura para aumentar e ver os créditos

O que é o ato de vomitar?
– É uma resposta autonômica, altamente organizada, mediada por uma complexa interação entre receptores, neuromediadores e a musculatura efetora, visando a ejeção do conteúdo gástrico. O vômito é considerado um mecanismo de defesa selecionado para nossa espécie. Muitos venenos naturais desencadeiam o vômito ao simples contato com a língua ou estômago.

O que é a fome?
– É a sensação que experimentamos quando necessitamos comer. É causada por contrações gástricas mediadas por hormônios liberados pelo hipotálamo, orgão do sistema nervoso central responsável pelo controle da fome e da saciedade. O hipotálamo é também responsável pelos mecanismos capazes de causar vômitos.

Nem todo mundo vomita pelas mesmas razões. Na verdade, existem 5 sindromes eméticas que podem estar sozinhas ou em conjunto fazendo com que uma pessoa apresente vômitos:
1. Toxinas na Luz Intestinal (quimioterapia, alimentos estragados, venenos)
2. Toxinas no Sangue (Área Postrema)
3. Doenças Intestinais (Gastrite, Diarreia, Pós-operatório)
4. Estímulos do sistema nervoso (medo, antecipação)
5. Doenças do labirinto (o orgão do equilíbrio)

Cada uma destas sindromes acaba estimulando principalmente uma ou mais das vias do intrincado mecanismo responsável pelo reflexo do vômito e isso tem grandes implicações terapêuticas visto que cada uma das vias têm um receptor farmacológico que lhe é mais específico e que pode ser bloqueado ou estimulado por medicações.

Ver créditos abaixo

É interessante notar que nem todas as sindromes eméticas causam náuseas, algumas provocando o que os médicos chamam de “vômitos em jato” que é exatamente o episódio de vômito não precedido por náusea ou “ânsia”, sem aviso prévio. A náusea parece ser um sintoma menos específico, mais sistêmico e que deve levar muito mais em consideração fatores relacionados ao córtex cerebral pois está bastante vinculada à vontade e à consciência. É possível nausear só de lembrar de determinadas situações, o que de fato acontecia com meu valente amigo médico, que só de passar pela rua onde recebia a quimioterapia, sentia-se mal. Sendo assim, fica mais fácil entender que a fome não é o oposto da náusea, talvez o seja da saciedade, mas isso é outra história.

Parece que Sartre tinha mesmo razão em relacionar a náusea a um sentimento existencialista de ilogicidade e incompreensão do mundo. Essa náusea sartreana só cedia com a música “Some of these days”. Eu a prefiro com Ella, musa de poderes curativos que deixo aos meus leitores para que não fiquem impregnados com o fel que escorre deste post…

O esquema acima foi modificado de Wender RH (2009). Do current antiemetic practices result in positive patient outcomes? Results of a new study. American journal of health-system pharmacy : AJHP : official journal of the American Society of Health-System Pharmacists, 66 (1 Suppl 1) PMID: 19106335

Technopathology

“La maquina la hace el hombre… Y es lo que el hombre hace con ella.”
Jorge Drexler

Na prática médica em geral, e numa unidade de terapia intensiva em especial, utilizamos vários dispositivos que substituem os sentidos humanos na tarefa de captar dados dos pacientes. Uma vez captados, esses dados serão processados e uma ação deve ocorrer: prescrição de alguma medicação, intubação orotraqueal, solicitação de algum exame, são exemplos de ações possíveis em determinadas situações. A substituição dos sentidos humanos por dispositivos que geram dados sobre os pacientes é tão intrinsecamente relacionada à atividade médica moderna que muitas vezes não nos damos conta de que estamos sobre-utilizando um recurso que, diferentemente de um toque ou um olhar, pode trazer alguma consequência indesejável ao paciente submetido a ele.

Pensando nisso, um instituto independente sem fins lucrativos chamado ECRI Institute, cuja preocupação principal é segurança, qualidade e custo-efetividade do atendimento médico, mantem uma publicação chamada Health Devices. Todo final de ano, é publicada uma lista com as 10 maiores fontes de dano aos pacientes provenientes do (mal)uso da tecnologia médica. Chamei, por minha conta e risco, esse ramo da nosologia humana de Tecnopatologia (em inglês no título para chamar a atenção dos gringos, hehe). Aqui vai a lista de possíveis danos a pacientes (e profissionais da saúde) causada pela tecnologia médica para 2011 (publicada em novembro/2010):

1. Radioterapia em excesso ou mal aplicada
2. Mal-uso dos alarmes
3. Contaminação cruzada relacionada à endoscopia
4. Excesso de radiação na tomografia
5. Perda de dados, incompatibilidades de sistema e outros problemas com a tecnologia de informação em saúde
6. Conexões erradas de tubos e cateteres
7. Excesso de sedação com dispositivos acionados pelo pacientes (PCA)
8. Punções acidentais, contaminadas ou não, de agentes da saúde ou pacientes
9. Fogo acidental no centro cirúrgico
10. Não ou Mal funcionamento de desfibriladores durante paradas cardíacas

Dentre os itens da lista, algumas surpresas. Os problemas relacionados à radiação são sensíveis e vem cada vez mais chamando a atenção de administradores hospitalares e profissionais da área. Vários outros relacionados a infecções são também figurinhas carimbadas de listas como essa. Gostaria de destacar 2 itens.

O primeiro é a importância da tecnologias de informação no atendimento aos pacientes. Em quase todos os hospitais que trabalho há um “sistema” que tenta englobar prescrições, solicitações à farmácia, anotações de enfermagem e médicas, enfim, tudo que gira em torno de uma internação. (Em geral, os “sistemas” são muito bons para cobranças e ruins para os usuários – enfermagem, médicos e fisioterapeutas). Imaginem se o “sistema” cair ou dados importantes forem perdidos antes de um backup. É isso que o artigo destaca.

Outro item da lista que me chamou a atenção foi a questão dos alarmes. Quem já entrou em uma UTI sabe que é um local de grande poluição sonora. Muitos alarmes soam desesperadamente sem que alguém vá ver o que está acontecendo. A esmagadora maioria é interferência ou má regulagem, sem que acarrete problemas quaisquer para o paciente. Entretanto, como na história do menino e o lobo, de tanto tocar inutilmente, podemos perder um evento relevante e colocar a vida do paciente em risco. Em 2002, a Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations, orgão americano que tem acreditado várias instituições brasileiras, reviu 23 relatos de morte ou lesão grave relacionadas à ventilação mecânica: 19 eventos resultaram em morte, 4 em coma. Destes, 65% foram relacionados aos alarmes (2). Muito se tem estudado sobre a ciência dos alarmes e o modo como eles podem nos ajudar, nos atrapalhando o menos possível.

É isso. Tecnologia também causa doença e morte. Pode ser muito difícil explicar isso para a sociedade contemporânea. Ela é viciada em tecnologia e novidades. Os médicos vão no embalo pois apesar de cuidar da sociedade, também fazem parte dela.

Fonte:
1. HEALTH DEVICES NOVEMBER 2010. TOP 10 TECHNOLOGY HAZARDS FOR 2011 (clique para baixar o pdf).
2. Clinical Alarms and the Impact on Patient Safety. Maria Cvach MS, RN, CCRN, Deborah Dang, PhD, RN, NEA BC, Jan Foster,PhD, APRN, CNS, and Janice Irechukwu, BSN, RN, MSN. (clique para baixar o pdf).

Infecções e Seres Humanos

Estamos mesmo vivendo um tempo de dificuldades no que diz respeito à luta contra as bactérias multirresistentes. Recentemente, tive acesso a alguns dados de uma unidade de terapia intensiva que compartilho com vocês agora na figura abaixo.


As barras vermelhas dão o número de infecções de corrente sanguínea (ICS) em cada mês de 2009. Chamamos de ICS o aparecimento de bactérias (ou fungos) no sangue obedecendo de determinados critérios. A linha horizontal azul é uma média das infecções em UTIs da cidade de São Paulo. Como podemos ver, a referida unidade, excetuando-se o mês de abril, tinha níveis acima da média de ICS no primeiro semestre. Mas, nos meses de junho, julho, agosto, setembro e outubro a taxa de ICS foi ZERO!

Esses dados só foram avaliados no final do ano e os médicos ficaram procurando a razão dessa diminuição drástica e do retorno das taxas “habituais” a partir de novembro. E descobriram:

Sim. Esse período coincide justamente com a epidemia de Influenza H1N1 no inverno de 2009, durante o qual as precauções de contato foram maximizadas, em especial, pelo medo de contaminação pelos próprios profissionais de saúde. O relaxamento das medidas de proteção, a desatenção na lavagem das mãos, o cuidado com a manipulação de sondas e cateteres, particularmente, o manejo adequado de secreções, são o que nos resta para combater infecções por bactérias multirresistentes. Antibióticos já não são suficientes.

É surpreendente que uma equipe treinada, frente a um novo e ameaçador inimigo, no caso a gripe H1N1, tenha respondido com tal eficácia a ponto de influenciar a densidade de outras infecções endêmicas na UTI e zerá-la. Resta-me então concluir que os staffs das unidades de terapia intensiva não estão convencidos de que a infecção hospitalar é uma ameaça séria e por isso, não dão o seu máximo. A tabela abaixo mostra que isso não se justifica.

Table 1. Deaths and death rates in the United States, 1997 (1)

No. of deaths Crude death rate
Cause of death (thousands) (per 100,000) % of all deaths

Heart disease 725.8 271.2 31.4
Malignancies 537.4 200.8 23.2
Cerebrovascular disease 159.9 59.7 6.9
Pneumonia and influenza 88.4 33.0 3.8
Septicemia 22.6 8.4 0.97

Numa modelagem, se 25%-50% de todas as ICS ocorressem nas UTIs, um aumento de 25% na lavagem de mãos poderia prevenir 25% das ICS e salvar de 469 a 1.874 vidas (dependendo do que se considera mortalidade atribuída ao problema). Ver tabela abaixo.

Table 3. Handwashing and nosocomial bloodstream infections and deaths

No. of lives saved  No. of lives saved
Attributable if 25% of BSIa    if 50% of BSI 
mortality rate (%) Expected deaths occur in ICUsb occur in ICUs

15 1,875 469 938
20 2,500 625 1,250
25 3,125 781 1,562
30 3,750 937 1,874

Será que é só assim que conseguiremos eliminar infecções potencialmente evitáveis? Será que a conduta e a atitude de profissionais da saúde se equipara assim, de modo tão vulgar, ao pensamento pseudo-antropológico de que o “ser humano” só reage quando pisam no SEU calo?

As tabelas foram retiradas do site do CDC [link]

Taxonomia das Racionalidades Científicas

http://streetanatomy.com/wp-content/uploads/2011/03/brainlight2.jpg
by Maria and Igor Solovyov in Street Anatomy

Publico aqui uma taxonomia das racionalidades científicas segundo Alistair Cameron Crombie, autor de uma história das ciências (que vi em [1] e achei legal). Segundo ele, há seis tipos de racionalidades científicas possíveis, a saber:

1. Busca de Princípios e Derivação. Tudo começa com os gregos. Eles se caracterizam pela busca dos princípios e derivação a partir deles. Não à toa, foram os gregos os “inventores” da metafísica, da lógica (Aristóteles), da geometria e da filosofia, entre outros, além de terem uma cosmologia interessante. A medicina grega foi a primeira a se livrar de alguns conceitos religiosos e, assim, florescer.

2. Análise/Síntese ou Resolução/Composição. Este estilo foi consolidado nos séculos XIII e XVII pelos arquitetos, engenheiros civis e músicos e outros “práticos”, médicos inclusos. Visa o fazer e talvez tivesse mais a ver com os cirurgiões que, nessa época, “ainda” não pensavam cientificamente.

3. Modelização. Aqui surge a medicina experimental. Constrói-se um análogo de um pulmão e as dificuldades nos ajudam a entender como um pulmão de verdade funciona. Saber é saber reproduzir. A modelização talvez seja a racionalidade mais importante na medicina desde a introdução do estudo de modelos animais, em especial, por Claude Bernard. A modelização matemática parece ter sido introduzida por Lawrence Joseph Henderson e também gerou muitos desdobramentos.

4. Taxonomia. Tendo como próprio exemplo esse post. Surgiu com Aristóteles e com a escola hipocrática. Sem ter muito o que fazer com as doenças, Hipócrates e seus seguidores tentaram ao menos, classificá-las. Aliás, coisa que fazemos até hoje.

5. Estudo das Probabilidades. O cálculo das chances em situações de incerteza foi ampliado para o entendimento da natureza como um grande sistema probabilista. Não preciso nem comentar, né? Vivemos hoje, sob o paradigma do risco na medicina tal a força dessa abordagem em especial, no meio médico.

6. Derivação Histórica. O pensamento historicista teve seu auge no romantismo alemão do século XIX, com Dilthey, Kuno Fischer, Frederic Scheleiermacher, entre outros tantos. Têm a raiz nesse pensamento tanto o método genealógico de Nietzsche e o arqueológico de Foucault (ver esse comentário), como também as empreitadas históricas que permitiram descobrir, por exemplo, a deriva continental. A medicina e, em especial, a psicanálise, têm seus fundamentos na historicização das queixas do paciente. A inclusão da racionalidade histórica entre as científicas é interessante e não sei porque isso ainda provoca tanta polêmica.

Parece não haver outros tipos de racionalidade. Pelo menos, fiquei pensando e não consegui imaginar uma que aqui não se encaixasse. A medicina ciência médica está, portanto, apoiada em 1, 3 e 5, não?

[1] Filosofia da Ciência I – Andler, D; Fagot-Largeault, A; Saint-Sernin, B. 2005.