Subversão

Post Dedicado a um Geófago

Egberto Gismonti deu uma entrevista na Rádio Cultura em 3 de Maio. Entre outras observações ele sapecou “A grande vocação do brasileiro é a subversão. Subvertemos tudo. A política, as leis, as religiões. No meu caso, subvertemos a música.” Talvez por isso, nossa música e ele, em especial, façam tanto sucesso. A mesma razão de nossos políticos não gozarem das mesmas prerrogativas. A mesma razão de não termos confrontos religiosos de importância. A mesma razão do racismo em nosso país ter adquirido uma coloração diferente de outros países. E outras tantas.

Mas e quanto a nossa ciência? Subvertemos a ciência praticada em países desenvolvidos? Antes de mais nada, o que significa subverter a ciência? Com certeza, como no caso da 3529824371_311b84d703_m.jpgmúsica, subversão aqui não significará desonestidade, trapaça ou coisa que o valha. Ao contrário, falamos de uma subversão artaudiana, mix de razão e poesia. Hoje, pelo menos na minha área, há uma fila de professores do hemisfério norte desesperados para vir a um congresso no Brasil. Por quê? Para serem subvertidos por nós! Eles precisam disso. Morar aqui, ninguém quer. A subversão tem que ser na dose certa. É isso que estamos a (e precisamos) aprender.

Nada mais subversivo que falar a língua dos anjos e, também, a língua dos homens. Nada mais subversivo que Kuhn, Rorty, Egberto e Tom. A subversão que conhecíamos já foi legalizada como normal. Não é mais crítica, já não recorta. Hoje eles falam tanto espanhol quanto inglês. A comunidade européia se fecha em copas, exercita o racismo e a radicalidade. O que é ser subversivo? A França é a Alemanha. A Alemanha é o Japão. A Rússia, pasmem, é o Brasil. Mas qual Brasil? Um Brasil pós-ditadura com petróleo! E o Brasil é o quê? Oxímoro e por isso, subversivo e por isso, fonte de subjetividades que questionam o “Ser”. Nas palavras de Suely Rolnik:

“<Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente> – é com essas palavras que Oswald de Andrade inicia o Manifesto Antropofágico. (…) Estendido para o domínio da subjetividade, o princípio antropofágico poderia ser assim descrito: engolir o outro, sobretudo o outro admirado (grifos meus), de forma que partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação. Constituídos por esse princípio, os brasileiros seriam, em última instância, aquilo que os separa incessantemente de si mesmos. Em suma, a antropofagia é todo o contrário de uma imagem identitária”.

Qual imagem identitária você tem de si mesmo?

Sobre o Medo

Pensei uma coisa estranha. Será que os medos unem mais as pessoas do que as afinidades recíprocas e do que os afetos? Estes últimos são importantes para aproximar pessoas, porém para mantê-las unidas, é o medo que conta.

medo2.jpgTodos têm medo. São medos variados. Medo de coisas, medo de pessoas, de morrer, de perdas, de sentir dor. Pessoas que ficam juntas muito tempo, pode reparar, costumam ter medos de coisas diferentes. Quanto maior o medo em cada pessoa, o que pode ser entendido como quanto mais importante aquele medo específico é para cada pessoa envolvida, maior é a chance dessas pessoas permanecerem unidas. E isso vale para amizade entre pessoas e também para “amor”. A ausência de medo do outro frente a determinada situação é reconfortante.

Alguém poderia perguntar, sim, mas e daí? Daí que o medo não é o amor! E para continuar o argumento necessito reivindicar a supremacia do medo sobre o amor. Chamemos, na falta de um termo melhor, de “instinto” um sentimento inconsciente, uma pulsão freudiana. Se, toscamente, considerarmos “medo” e “amor” dentro desse rótulo, podemos fazer a seguinte pergunta: “Quem é evolutivamente anterior?” No sentido de preservação da vida e possibilidade de transmissão de seus genes a resposta seria sem dúvida, o medo. Só após superarmos o medo, teremos condições de criar num outro uma projeção afetiva de nós mesmos, de modo a não querermos nos separar jamais dele, ou seja lá qual for a definição de amor que se queira utilizar: o medo é primordial. O medo, nesse sentido, seria como a fome e a sede. Um pressuposto a ser vencido. Uma condição com a qual não se pode progredir. É preciso transcendê-lo antes. Daí que a união pelo medo subverte toda a fundação metafísica na qual está apoiada nossa cultura. Por exemplo, poderíamos dizer: “Temo, logo existo!” pois tememos muito antes de pensar.

Se assim é, a linguagem do corpo seria a linguagem da necessidade, da dor e do medo. Viver (ser-em) é apavorante. A cada segundo nos defrontamos com nossa finitude e nos apelidaram de ser-para-morte. Alguns pacientes que passam por experiências radicais (por exemplo, uma internação na UTI, uma grande cirurgia, ou vencer um câncer), adquirem uma visão bem diferente do “viver”: eles perdem o medo! Aquele medo primevo e ancestral e, assim, se libertam. E libertando-se, derrubam Heidegger, Descartes, Platão, deuses, Deus, e a ciência. Esses homens-sem-medo podem amar livremente, fazer promessas livremente, viver livremente. Eu converso com pessoas assim diariamente e meu maior medo realmente é não conseguir ser como elas…

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PS1. Dentro desse contexto, seria admissível ao humano o medo de amar?

PS2. A psicanálise sobrevive porque combateria o medo com suas próprias armas.

Notícias Frescas do Caso Vioxx 10 Anos Depois

O Vioxx – rofecoxib da Merck-Sharp & Dohme é uma medicação analgésica/antiinflamatória de excelente eficácia. Pertence a uma classe nova de medicamentos chamados inibidores da ciclo-oxigenase II (COX2). Lançado em 1999, foi utilizado até sua retirada do mercado mundial em 2004 devido a denúncias de efeitos colaterais cardiovasculares que poderiam levar os usuários à morte. Os estudos que respaldaram seu uso foram objeto de investigação, fraudes científicas foram descobertas. Alguns documentos foram revelados.

A partir do Blog de Paulo Lotufo

“O artigo inicial (que embasava o uso do medicamento) publicado em novembro de 2000
chamado VIGOR mostrava a que o rofecoxib e, um medicamento tradicional,
naproxeno eram tão efetivos quanto no tratamento da artrite reumatóide.
Mas, os efeitos gastrointestinais eram raros no grupo que usou o
rofecoxib. Inicou-se a febre Vioxx.

Menos de
um ano após a publicação, uma revisão dos próprios dados do VIGOR e de
outros dois menores apontava o risco maior de infarto do miocárdio. A empresa abafou o fato de acordo com a capacidade de reação de cada comunidade acadêmica. Para isso publicou um artigo na revista Circulation contradizendo a análise que apontava risco.”

Do Heartwire de 30 de Abril de 2009, Por 
Lisa Nainggolan

Melbourne, AustraliaO importante cardiologista Dr Marvin Konstam (Tufts University Medical Center, Boston, MA) concordou em ser o autor principal de um paper na influente revista Circulation sobre o inibidor da COX-2 rofecoxib (Vioxx, Merck), que foi escrito intramuros pelos cientistas da Merck. (…) O paper foi desenhado para rebater as críticas, que alguns especialistas imaginava seguir-se ao artigo do Journal of the American Medical Association (JAMA) dois meses antes, que primeiro demonstraram um aumento de efeitos cardiovasculares indesejáveis com o uso da droga. O Rofecoxib não foi retirado do mercado até  2004.”

O resumo da história é:

1) o remédio era muito bom, para usos de curta duração.

2) os efeitos adversos cardiovasculares foram abafados até o estudo do JAMA de 2001.

3) foi publicado um estudo totalmente escrito por marketeiros da Merck com intuito de rebater as afirmações do estudo do JAMA em 2001.

4) para isso, foi escolhido um médico importante dentro do cenário mundial da cardiologia, que não aceitou (Dr Rory Collins – Clinical Trial Services Unit, Oxford UK).

5) diante da recusa, foi escolhido o Dr. Marvin Konstam que topou ser o autor do estudo escrito pelos “ghost-writers” da Merck.

6) o medicamento ficou no mercado até 2004, quando foi retirado do mercado mundial.

7) a documentação do laboratório e a comprovação do “laranja” foram revelados em 2009.

Por pior que alguém possa se sentir ao conhecer essa história, a vergonha e os 5 bilhões de dólares que a Merck desembolsou para encerrar o caso não serão jamais suficientes. A ciência é uma forma de conhecer a realidade na qual confiamos e para qual dedicamos nossas vidas. Isso causa um tipo de sensação muito ruim, semelhante ao de uma traição e leva fatalmente à conclusão: A ciência é uma atividade humana como outra qualquer. Devemos sempre estar alertas pois ela também estará sujeita às contingências e vicissitudes humanas.

A Epidemia Hiperreal

A célebre estorinha conta que uma mãe passeava com o bebê no carrinho quando uma amiga chega e, encantada com a criança, diz: “Ah, que bebê mais lindo!” A mãe, toda orgulhosa, comete a frase que sintetiza tudo o que eu gostaria de dizer sobre a epidemia da gripe suína: “Você não viu a foto que tenho dele em casa!” Uma das maneiras de entender essa estória nos ajuda a compreender o fenômeno da epidemia da gripe que nos assola (não a gripe, pelo menos, ainda não! O fenômeno!).

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Se admitirmos, pragmaticamente, que somos seres comunicativos e que “produzimos” nossa própria realidade por meio da linguagem e da manipulação de símbolos, temos que aceitar que por vezes podemos “hiper-produzir” uma realidade: uma hiperrealidade. Mais “legal” do que o real, no sentido de mais crível, no sentido também de ser uma produção compartilhada por mais pessoas e por isso, mais real.

Não é uma mentira! Só é mais factível e por isso, mais “cool“. Sempre foi assim. O problema é que em tempos de comunicação ultra-rápida e globalizada, a chance disso ocorrer é bem maior. Ainda mais, quando parece imitar um roteiro hollywoodiano. O povo delira. A quantidade de fontes e textos sobre o fato reproduz-se mais rápido que um vírus. Toma corpo e vida própria. Sim, que importa que morram 200 pessoas anualmente no Brasil de gripe? (sem contar as mortes atribuídas que seguramente ultrapassam os milhares). Que importam nossas mortes violentas? Que importa agora o cerco à Palestina ?

A foto é mais interessante que o bebê real. A pressa em se buscar números, em divulgar, em embargar, matar porcos, criar listas de recomendações, faz a bolsa subir e descer, faz executivos pirarem, empresas falirem, coronárias entupirem. Faz as pessoas ficarem com aquela sensação estranha de falta de sentido, logo ele, sentido, tão importante na nossa vida. Mas isso é que nem gripe. Logo passa. Até a próxima doença hiperreal.

Susan Boyle, Diagnóstico e Preconceito

Fiquei sabendo no Amigo de Montaigne. Susan Boyle é um fenômeno. Ele a usou para lembrar Eco e Gould – esse último já havia lido – que escreveram contra a fisiognomia e antropologia criminal. Hoje consideradas pseudociências, mas levadas bastante a sério num passado recente.

Vou usá-la para lembrar aos médicos que diagnóstico por reconhecimento de padrão é bom, é cômodo, é rápido, mas que estamos inseridos em uma sociedade que tem seus preconceitos e pré-julgamentos e que a melhor maneira de minimizar seus efeitos é saber que eles existem.

É emocionante!

Prova de Ausência vs Ausência de Prova

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Reproduzo a pergunta proposta pelo PaIMD do WhiteCoat Underground:

“Se você tivesse a oportunidade de fazer uma pergunta a um defensor de medicinas alternativas em um fórum público, o que você perguntaria?”

Ele mesmo fez essa, a título de exemplo:

“Você poderia dar exemplos de teorias da medicina alternativa ou modalidades que foram abandonadas por serem ineficazes?”

Orac do Respectiful Insolence formulou a seguinte questão  “Qual evidência específica convenceria você de que a homeopatia (ou qualquer que seja a crença do “alternativo”) é ineficaz? e pressionaria por exemplos.”

A pergunta é um direto no estômago não só de quem defende a medicina alternativa, mas de qualquer pessoa que acredita em alguma coisa. Uma possível tradução seria: Que tipo de evidência faria você mudar totalmente suas convicções e visões de mundo? No final, pode ser tudo uma questão de fé, mesmo que seja “apenas” fé no método científico.

Eu perguntaria também porque alguns procedimentos e medicamentos, tendo suas indicações e usos respaldados por artigos científicos, não são prescritos por grande parte dos médicos (descontados a ignorância do assunto, que é relevante). (Posso citar vários exemplos disso). O que é preciso para que eles acreditem, já que o método científico não parece ser suficiente?

Qual seria a sua pergunta? (Aqui vale perguntar para os dois “lados”!)

Tirei a caixa de truques daqui.

Ademar e Ademir

“Seu” Ademar era funcionário aposentado do Banco do Brasil. Tinha 85 anos. Viúvo. Entrou para o “Banco”, como costumava dizer, ainda rapazola. O Banco foi sua vida, como já os empregos não são mais. Não há mais empregos, há trabalhos. (Tem gente até mudando o nome para job). Enfim, “Seu” Ademar era um tipo de pessoa muito gentil. De um linguajar delicado e no limite entre a formalidade e a impessoalidade. Como muitos de sua geração que tenho a oportunidade de assistir, tinha um extremo respeito pela figura do médico. Obedecia cegamente às recomendações, o que me gerava uma enorme responsabilidade. Eu tratava de sua hipertensão e um leve diabetes. Quem me trouxe a vê-lo fora seu filho Ademir. Ele mesmo meu paciente. Excesso de peso, hipertensão provavelmente herdada, ansiosíssimo.

bullous.jpgUm belo dia, Ademir e Ademar na sala de espera. A secretária entrou no consultório comigo. “Melhor atendê-lo primeiro!” Quando ele entrou entendi porquê. Ao tirar sua camisa percebi que seus membros, tórax e dorso estavam cobertos de bolhas em vários estágios de evolução. As secas faziam com que a pele descamasse em pequenas “casquinhas” de pele que logo cobriram a mesa de exame. O diagnóstico não deixou muitas dúvidas. Era um penfigóide bolhoso. Uma doença que causa um aspecto repugnante mas que não provoca nenhum outro problema de maior importância e também não é transmissível. Na verdade, a doença faz parte das chamadas sindromes paraneoplásicas. Os médicos chamam assim doenças associadas a tumores de vários tipos. Quando tratamos o tumor, a doença desaparece. Fui procurar o tumor e achei. Infelizmente, metástases de câncer de próstata nos ossos. “Seu” Ademar já era prostatectomizado mas estava tendo uma recidiva do tumor. Encaminhei-o a um oncologista que disse que a única coisa a se fazer era o bloqueio hormonal. O câncer de próstata necessita de hormônio masculino (testosterona) para crescer. Quando bloqueamos o hormônio, bloqueamos seu crescimento. Assim foi feito.

Passados alguns meses, Ademar e Ademir na sala de espera. Entraram, conversei, examinei, orientei, fiz as receitas. O penfigóide já completamente curado, as metástases sob controle, assim como a hipertensão e o diabetes. Quando terminei, “Seu” Ademar me abordou de uma forma incisiva, como nunca antes: “Doutor, o Sr. já terminou?” “Sim” eu disse. “Por quê?” Nesse momento, Ademir, 65 anos disse “Pai, o Sr. quer que eu saia?” “Seu” Ademar, sem tirar os olhos de mim e com a mão espalmada, respondeu: “Você já tem idade para ouvir essas coisas. Pode ficar!” Eu, estático, acuado, e confesso, um pouco apreensivo, disse “Mas, o que é que foi “Seu” Ademar?”.

Ele então me olhou dentro da alma e disse “Doutor, esse remédio que estou tomando, de alguma forma, altera a potência sexual?” Ademir, sem jeito, “Pai, o Sr. não quer mesmo que eu saia?” Quase caí da cadeira. Inspirei bem fundo e, me aproveitando do ótimo relacionamento que tinha com ele, disparei “Por que, “Seu” Ademar, tem alguém reclamando?” A pergunta parece tê-lo pego de surpresa. Ele recostou-se na cadeira, fez uma cara de “meio sem-jeito” e disse “Sim, Doutor”.

(Me foi irresistível aproveitar da vantagem recém-adquirida na conversa para explorar a situação. Um senhor de 85 anos, com prostatectomia radical (o que por si, já causa um certo grau de disfunção erétil), com diagnóstico de adenocarcinoma de próstata metastático, o problema com o penfigóide, começa a usar um bloqueador de testosterona e reclama de disfunção erétil?! Era demais. Eu não poderia perder a oportunidade.) “E quem é a felizarda, “Seu” Ademar?” O Ademir entortou a boca em sinal de desaprovação.

A essa altura, Seu Ademar já tinha retornado ao seu fleugma habitual e com aquela doçura que só homens de sua geração podem demonstrar sem nenhum preconceito, ele disse “Doutor, tenho uma amiga; 50 e poucos anos. Ela mora sozinha. Ás vezes, eu a visito.” “Sim?” encorajei-o. “Então, Doutor. Posso dizer ao Sr. apenas que ela me recebe muito bem!” Ademir, de braços abertos, Ademar fingindo cutucar as unhas e eu, boquiaberto. Suspendemos a medicação, até porque ele também apresentou problemas hepáticos relacionados a seu uso.

“Seu” Ademar faleceu há alguns anos de complicações cardíacas e decorrentes do tumor. Cuido de Ademir e de sua esposa até hoje. Ele me disse depois que a “amiga” de “Seu” Ademar deu um “certo trabalho” em relação ao espólio do ex-funcionário do Banco do Brasil.  Ademir sente sua falta. Eu gostava de conversar com ele, aquele jeito meio “english”, a camisa abotoada até o colarinho. O “Banco” deve ter ficado triste. Não se encontram muito mais funcionários assim. Pacientes assim, homens tampouco…

Nem Todo Grito de Ajuda é Aparente

Talvez a habilidade mais difícil de desenvolver em um médico seja a de identificar pedidos de ajuda. Exatamente por iniciar todo o processo. É muito fácil quando um paciente chega ao consultório e diz “Doutor, por favor me ajude!” Entretanto, há exceções importantes.

 

Por exemplo. Homens, meia-idade, têm enorme dificuldade de pedir ajuda. Alguns traços de personalidade, independentemente do gênero, são característicos. A matriarca da família que acostumou-se a acolher e ajudar a todos, quando adoece, normalmente minimiza bastante seu problema. Se os familiares não estiverem atentos, casos assim passam facilmente despercebidos.São clássicos os pedidos de ajuda em que o paciente é agressivo, irônico, chato. Por despertar o ser humano no médico, o profissional se recolhe e vários diagnósticos são perdidos. Essa é uma das razões de médicos não tratarem de parentes próximos. O envolvimento é difícil de separar.

Mas o mais dramático, sensível e tenebroso pedido de ajuda é o silencioso comportamento de crianças abusadas. Tive algum contato com esse problema nos estágios de Pediatria e pude acompanhar um caso depois de formado. São bastante sutis as mudanças de comportamento e os pais devem estar atentos.

É isso que os cartazes da agência  Kinetic Design and Advertising para campanha de abuso infantil desse site, passam de forma brilhante. O texto que os acompanha é  “Lenticular posters designed for child abuse awareness. From certain view the kids might look perfectly normal, but from another view you will realize they are actually suffering in pain.”

Abuso Infantil2.jpgO cartaz ao lado mantem a mesma expressão inespecífica no rosto do primeiro, porém, com um efeito “raio-x”, podemos perceber o cérebro sangrando, uma lágrima escorrendo e o coração partido.

É exatamente isso. Sentimentos ocultos. Mais que sentimentos, sofrimentos ocultos. Muitas pessoas sofrem em silêncio sem que saibamos. Muitas vezes, elas conseguem, de fato, esconder muito bem. Mas a grande maioria passa despercebido por falta de atenção das pessoas, médicos inclusive, que as circundam. Muitas vezes, basta uma pergunta para que se destampe a garrafa e a vida real comece a jorrar.

Como seria bom uma visão de raio-x como essa! Ver o sofrimento! Tenho certeza que alguns prefeririam não ver o que vêm. Como no caso do abuso de crianças. Entretanto, por razões profissionais, eu não tenho direito ao benefício da ignorância. Apenas preciso tomar extremo cuidado para não substituir essa visão de raio-x por exames de raio-x, de sangue e outros exames.

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Cisto Sinovial

João Batista era eletricista. Ficou desempregado e conseguiu arrumar um “bico” de porteiro no meu condomínio. Uns 30 anos de idade, sergipano, de pele clara e sorriso fácil, frequentemente sofria repreensões do zelador, seu Belerino, por conversar demasiadamente com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família”. “Meu fraco, Doutor”- como ele dizia. Sabia que eu era médico. Um dia, após estacionar o carro na vaga, abri a porta e dei de cara com o João. “Doutor, olha isso que apareceu na minha mão. É grave?” Examinei e na face dorsal da mão havia um nódulo de uns 2 ou 3 cm de diâmetro.

cisto sinovial

“Está doendo?” perguntei. “Não, Doutor. Não dói nada” – respondeu. Comecei o discurso: “João, isso parece bastante um cisto sinovial. É um cisto benigno.” Enquanto falava, apertava o cisto com o polegar para sentir a consistência e ver se realmente não doía. “Antigamente, tratava-se isso colocando um livro pesado em cima, de preferência uma Bíblia e ele desaparecia. Hoje sabemos que é autolimitado, desaparece sozinho.” Fui falando devagar e pausadamente. João Batista prestando a maior atenção. “Alguns médicos operam isso, mas só se estiver doendo muito. Portanto, não há nada a se fazer por enquanto” –  terminei. Ele disse “Então não é nada, né, Doutor? Posso ficar tranquilo?” Eu já sem muita paciência “Sim, João, pode ficar tranquilo. Qualquer coisa me avise”.

Algumas semanas depois, estaciono o carro e deparo novamente com João Batista. “Fala, João. O que foi dessa vez?” – disse amistosamente. Ele olhou para mim, chegou mais perto como quem vai contar um segredo e disse “Doutor, o senhor benze?”

Eu entendi tudo em frações de segundo. Também fiz uma tenebrosa previsão do futuro nos milésimos seguintes. Milhares de pessoas na porta do condomínio, crianças chorando no colo de mães impacientes, idosos, barracas de churrasquinho, a vizinhança em polvorosa, todos esperando o Doutor Benzedor… Inverti as sombrancelhas e falei bem sério “João Batista, eu não benzo. Seu cisto desapareceu sozinho! Se você espalhar para alguém que eu te benzi, vou falar com o Belerino e ele te manda embora!” “Não, não, Doutor. Faça isso, não! Só queria saber. Não precisa ficar bravo. Pode ficar tranquilo que eu não falo para ninguém” – disse ele, se desculpando e andando em direção à portaria. Virei as costas e entrei no elevador segurando a risada. Já pensou, eu benzedor!

Algumas semanas se passaram e após estacionar meu carro… Bem, lá estava João Batista de novo! Saí do carro e olhei para ele sem dizer nada. Ele, com a mesma cara com a qual falava com as “meninas-que-trabalhavam-em-casa-de-família” me perpetrou a seguinte frase:

“Doutor, eu sei que o senhor não benze. Sei sim, pode ficar tranquilo e não falei isso para ninguém. Mas dá para o senhor passar o dedo aqui?”

Com o indicador apontava para a outra mão onde jazia, imponente, um novo cisto sinovial…

imagem retirada de Ehow.

A Fisiopatologia do Preconceito

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My brown eyed girl by Mike Doyle at Flickr

“Todas as formas de dogmatismo – que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade – provêm da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da comunicação, uma ruptura na compreensão recíproca que a perturba, resultando em desconfiança universal”

Com essa frase, Olgária Matos sintetiza a fisiopatologia de uma doença característicamente humana chamada preconceito. Ela tem como agente etiológico o dogmatismo, elemento altamente contagioso por causar uma falsa sensação de conforto por fazer com que nos sintamos apoiados em verdades firmes e seguras. O indivíduo dogmático é um verdade-adito. Quando compartilhamos um conjunto de dogmas acabamos por criar uma origem identitária que se diferencia de outras origem identitárias.

Essas origens identitárias, necessariamente factícias portanto, produzem uma doença da comunicação, um desentendimento, o que se chamou de ruptura na compreensão recíproca que resulta, finalmente, em desconfiança universal. A desconfiança é um vírus que se dissemina rapidamente e envenena as relações humanas. As relações humanas, por sua vez, têm uma estranha capacidade de sobreviver a essa infecção, mas matar e/ou torturar os envolvidos nela, seja por meio de guerras, escravidão, colonizações, fome, abandono, discriminação e outros tantos sintomas de intolerância e agressividade para com o outro.

É na busca pelas “verdades dogmáticas” e pelas “essências humanas” – identidades fictícias – que se encontram os reais obstáculos à solidariedade. Será necessário impingir o mesmo tipo de sofrimento ao torturador para poder expiar-se-lhe a culpa? De onde vem esse ressentimento? O anti-racismo não é um racismo às avessas.

É uma solidariedade…