Sobre o Medo

Pensei uma coisa estranha. Será que os medos unem mais as pessoas do que as afinidades recíprocas e do que os afetos? Estes últimos são importantes para aproximar pessoas, porém para mantê-las unidas, é o medo que conta.

medo2.jpgTodos têm medo. São medos variados. Medo de coisas, medo de pessoas, de morrer, de perdas, de sentir dor. Pessoas que ficam juntas muito tempo, pode reparar, costumam ter medos de coisas diferentes. Quanto maior o medo em cada pessoa, o que pode ser entendido como quanto mais importante aquele medo específico é para cada pessoa envolvida, maior é a chance dessas pessoas permanecerem unidas. E isso vale para amizade entre pessoas e também para “amor”. A ausência de medo do outro frente a determinada situação é reconfortante.

Alguém poderia perguntar, sim, mas e daí? Daí que o medo não é o amor! E para continuar o argumento necessito reivindicar a supremacia do medo sobre o amor. Chamemos, na falta de um termo melhor, de “instinto” um sentimento inconsciente, uma pulsão freudiana. Se, toscamente, considerarmos “medo” e “amor” dentro desse rótulo, podemos fazer a seguinte pergunta: “Quem é evolutivamente anterior?” No sentido de preservação da vida e possibilidade de transmissão de seus genes a resposta seria sem dúvida, o medo. Só após superarmos o medo, teremos condições de criar num outro uma projeção afetiva de nós mesmos, de modo a não querermos nos separar jamais dele, ou seja lá qual for a definição de amor que se queira utilizar: o medo é primordial. O medo, nesse sentido, seria como a fome e a sede. Um pressuposto a ser vencido. Uma condição com a qual não se pode progredir. É preciso transcendê-lo antes. Daí que a união pelo medo subverte toda a fundação metafísica na qual está apoiada nossa cultura. Por exemplo, poderíamos dizer: “Temo, logo existo!” pois tememos muito antes de pensar.

Se assim é, a linguagem do corpo seria a linguagem da necessidade, da dor e do medo. Viver (ser-em) é apavorante. A cada segundo nos defrontamos com nossa finitude e nos apelidaram de ser-para-morte. Alguns pacientes que passam por experiências radicais (por exemplo, uma internação na UTI, uma grande cirurgia, ou vencer um câncer), adquirem uma visão bem diferente do “viver”: eles perdem o medo! Aquele medo primevo e ancestral e, assim, se libertam. E libertando-se, derrubam Heidegger, Descartes, Platão, deuses, Deus, e a ciência. Esses homens-sem-medo podem amar livremente, fazer promessas livremente, viver livremente. Eu converso com pessoas assim diariamente e meu maior medo realmente é não conseguir ser como elas…

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PS1. Dentro desse contexto, seria admissível ao humano o medo de amar?

PS2. A psicanálise sobrevive porque combateria o medo com suas próprias armas.

Perguntinha Heideggeriana

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Quem nos mantém unidos, o medo ou o amor?

Objetividade ou Solidariedade?

“A tradição da cultura ocidental, centrada na noção de busca pela verdade, a tradição que corre desde os filósofos gregos e atravessa o Iluminismo, é o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um sentido para a existência a partir do abandono da solidariedade em direção à objetividade.”

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A partir daqui, podemos escolher dois caminhos. O primeiro considera que existe uma realidade objetiva fora de nós que pode ser conhecida – e dominada – se seguirmos um método específico de acordo com uma determinada racionalidade de modo que, conforme nosso método evolui por meio das contribuições dela, avançamos nas nossas descrições do mundo real e de nós mesmos. O segundo considera que somos seres comunicativos que produzimos nossa própria realidade através da linguagem. Desse modo, descrever o outro ou descrever a realidade que nos cerca é exatamente a mesma coisa. (Descrever a nós mesmos é um tanto diferente ainda, mas chegamos lá). Por outro lado, não há uma realidade (platônica) fora de nós de maneira que só nos resta comparar uma descrição com outra. Não há a pretensão de que exista um “gabarito” com a qual uma descrição deva ser comparada. Nem há, tampouco, uma sensação de que avançamos para um “grande conhecimento”. Aliás, a própria noção de verdade adquire um sentido bastante diferente.

“A questão acerca de se a verdade ou a racionalidade possuem uma natureza intrínseca, acerca de se nós podemos ter uma teoria positiva sobre cada um desses tópicos, é justamente a questão acerca de se nossa autodescrição tem de ser construída a partir da relação com a natureza humana ou a partir da relação com um conjunto particular de seres humanos: se nós desejamos objetividade ou solidariedade.”

Com a palavra, essencialistas objetivos…

PS. Depois falo de quem são os textos.

Merleau-Ponty, o Corpo, a Cabeça e os Transplantes

Fiz uma provocação. Depois, fiz outra. O 100nexos, com a categoria de sempre, respondeu com fatos. Eu, sem saber se consigo, responderei com uma reflexão. Reflexão que a ciência teima em não fazer para si. (Recomenda-se fortemente a partir daqui, a leitura dos textos anteriores antes de prosseguir).

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O transplante de cabeça ou de corpo é um paradoxo apenas se encararmos o ser humano como uma dualidade corpo-mente, corpo-alma ou qualquer que seja.

A idéia de um transplante dessas proporções vai no âmago da questão de onde está o nosso “eu”. A tradição filosófica ocidental pensou o corpo mais como um instrumento, um sinal imperfeito da própria alma. Esse pensamento atingiu seu apogeu em Descartes como mostra a passagem abaixo (in “Ética e Corpo Próprio em Merleau-Ponty” – Maria Edivânia Vicente dos Santos):

“Há uma grande diferença entre o espírito e o corpo, pelo fato de o corpo, por sua natureza, ser sempre divisível e de o espírito ser indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo na medida em que sou somente uma coisa que pensa, nele não posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa única e inteira. E, conquanto todo o espírito pareça estar unido a todo o corpo, todavia, estando separados de meu corpo um pé, ou um braço, ou alguma outra parte (poderia ser todo o corpo!), é certo que nem por isso haverá algo suprimido do meu espírito. […] Mas é exatamente o contrário nas coisas corporais ou extensas: pois não há uma que eu não ponha facilmente em pedaços com meu pensamento, que meu espírito não divida com muita facilidade em várias partes e, por conseguinte que eu não conheça ser divisível.” (Descartes, Meditações Metafísicas, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 128).

É essa a concepção de corpo que faz o transplante de cabeça ser um paradoxo. Se a ciência nos habitua a ver o corpo como uma reunião de partes, quando as separamos, simplesmente tornam-se partes separadas de um todo. O problema só surge quando resolvemos separar o que seria a “sede do espírito”: a cabeça. Esta, outra percepção originária da forma dual como dispomos e avaliamos nosso corpo.

Merleau-Ponty é um filósofo muito interessante para a medicina exatamente por ter teorizado sobre o corpo. Para Merleau-Ponty “a união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto artibrário entre dois termos exteriores, um objeto, outro, sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência”. Ainda no texto da profa. Maria Santos, “a consciência que tenho do corpo não é um pensamento, no sentido em que não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara”, como em Descartes.

Ao dissolver as dualidades sujeito-objeto, corpo-alma, Merleau-Ponty coloca no corpo uma antecedência a nossa experiência externa. Isso significa que só entendemos, sentimos, pensamos, a partir da vivência que temos de nossos corpos. O corpo é o nosso “ponto de vista sobre o mundo”. Eu não tenho um corpo. Sou um corpo.

Isso tudo quer dizer que a experiência radical de um transplante de corpo (este, o correto) só serviria, como serviu em primatas, para manter o indivíduo vivo por alguns dias. Querer colocar a cabeça de Stephen Hawking em outro corpo, mesmo que pudéssemos reconectar a infinidade de ligações neurais, musculares e ósseas que uma cirurgia como essa implica, e, mesmo que pudéssemos mantê-lo vivo indefinidamente, seria transformar Hawking em outra pessoa, que obviamente não seria o doador. Nós somos corpos!

Diriam os cientificistas: “Mas esse cara é filósofo. O que ele entende de neurofisiologia e tecnologia médica?” Eu perguntaria o que um tecnólogo ou neurofisiologista entende de ética?

Foto de Merleau-Ponty retirada do sensacional site francês da Academie Grénoble.

Perguntinha Inverossímil

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E em meio a aquinização da ciência brasileira, surge a perguntinha, quase infantil, quase óbvia, quase inverossímil mesmo:

“Se fosse possível um transplante de cérebro, o que de fato estaríamos a transplantar? O cérebro ou todo o corpo?”

Vendetta

Hoje meu filho de 12 anos me fez a seguinte pergunta: “Pai, qual é o instinto do homem?” Eu disse: “Não entendi a pergunta, filho!”. Ele: “Tipo assim (tudo começa com essa locução!), o instinto do joão-de-barro é construir a casinha para sua fêmea, a aranha faz a teia, qual é o instinto do homem?” Eu pensei, pensei e não soube responder.

Ele disse: “Eu acho que o instinto do homem é a vingança”. Eu fiz uma cara de espanto e perguntei porquê.
Ele disse: “Vi na televisão quando um guepardo comeu o filhotinho de um javali. A mãe do javali não quis se vingar do guepardo. Pegou os outros filhotinhos e foi embora. Se isso acontecesse com uma pessoa ela ia querer se vingar do guepardo e ‘mataria ele’. O homem é o único que se vinga.”

O homem é o único que se vinga?

Artigo vs Artigo (ou Sobre a Metafísica da MBE)

Metrô de SP by Fabio Ornellas at Flickr

Contra um artigo, somente outro artigo!

Toda análise ou artigo que se preze atualmente vem com um final mais ou menos assim: ainda não existem estudos suficientes para justificar determinada conduta; ou estudos específicos são necessários para responder essa questão, etc…

Um vício induzido pela MBE é o de que não há artigo perfeito. Por isso, devemos criticá-los e criticá-los até descobrir todos os seus defeitos e saber, só então, se suas conclusões são aplicáveis na prática ou não. Ou ao menos, aplicá-las com mais parcimônia. Na verdade, comparamos o artigo com um modelo idealizado de estudo que foi ficando, através dos anos, cada vez mais rigoroso e, porque não dizer, divino, posto que não é, de fato, deste mundo. É sintomático analisarmos “evidências” antigas e torcermos o nariz com estudos mal-desenhados, confusos e “fracos”. Nada mais metafísico!

Se tomarmos o exemplo da crítica literária na qual não existe a figura da verdade, resta aos críticos apenas comparar um livro contra o outro. Contextualizar e intertextualizar um romance é a melhor forma de compará-lo a outras obras e mostrar no que ele é diferente. Ver no que um cientista se inspira nos outros artigos e porque os autores resolveram aplicar tantos recursos e tanto tempo na abordagem de uma pergunta, denota o que Harold Bloom – um crítico literário – chamou de “angústia da influência“, presente na poesia e que, temo, esteja presente também na ciência.

Metanálises procuram responder perguntas, como se as perguntas tivessem uma única resposta. A conclusão é inevitável: é impossível responder a essa questão com as evidências que temos hoje! Muito melhor seria a comparação de vários pontos de vista de modo que o leitor pudesse ter sua própria perspectiva do problema. Mas isso ia causar muito mais insegurança do que temos hoje. Por que ia fazer da prática um ato pensante e desconfortável. Sabedoria prática não depende de erudição teórica, depende de julgamento. Como o ato moral.

Ah! – dizem meus amigos – mas isso já não é mais medicina, isso é filosofia! Ninguém trata pacientes com filosofia. E o ciclo se fecha. A medicina não se pensa. E eu concordo que tratar pacientes com filosofia não é mesmo possível. Mas cuidar deles é sim.

Deus e o Diabo

Ao Kentaro

Há várias formas de encurralar um teísta em uma discussão religiosa. Uma das mais batidas é falar sobre a presença do Mal no mundo. Qualquer teísta que se preze deve dar um sorriso amarelo nesse momento e, cheio de gestos e expressões, desfilar um conteúdo complexo de explicações, algumas bem mirabolantes. O problema surge quando o teísta admite quatro afirmações, a saber: 1) Deus é onipotente (todo-poderoso); 2) Deus é onisciente (sabe de tudo); 3) Deus é infinitamente benevolente (só deseja o Bem); 4) O Mal existe. Posto isso, o pobre teísta terá de rebolar um pouco para fugir da incoerência dessas afirmações, pois elas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Ora bem, se o Mal existe ou a) Deus não pode evitá-lo; b) Deus não sabe como evitá-lo; e/ou c) Deus não deseja evitá-lo; contradizendo as afirmações 1, 2 e 3, respectivamente. O assunto é coisa para Santo Agostinho e outros teólogos de grande erudição, daí as dificuldades de nosso interlocutor.
Mas, no melhor estilo Deus e o Diabo na Terra do Sol, lendo Hannah Arendt (A Condição Humana) encontrei o correspondente dessa “saia justa teísta” para os ateus. Se lá o problema era o Mal, aqui a questão é a Bondade no mundo. Senão, vejamos. Arendt, na página 85, começa por afirmar que “a bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou zeloso membro da Igreja”. Repare aqui que bondade é bem diferente de caridade. Continua, concluindo que nenhum homem pode portanto, ser bom. Daí, compara a bondade com a sabedoria: “Isso nos lembra a grande visão de Sócrates de que nenhum homem pode ser sábio, de onde resulta o amor à sabedoria, ou filo-sofia; toda a vida de Jesus parece atestar que o amor à bondade resulta da compreensão de que nenhum homem pode ser bom. O amor à sabedoria e o amor à bondade, que se resolvem nas atividades de filosofar e de praticar boas ações, têm em comum o fato de que cessam imediatamente – cancelam-se, por assim dizer – sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom”.
Acho que até este momento, não temos dificuldades em aceitar esses argumentos, não é mesmo? Continuemos, então.
As semelhanças, entretanto, param por aqui. As diferenças entre o amor à sabedoria e o amor à bondade, entre o filósofo e o homem bom, podem ser entendidas por meio da compreensão dos conceitos de isolamento e solidão. Um filósofo é solitário. Entretanto, para Platão (Górgias), estar em solidão significa estar consigo mesmo; e, portanto, o ato de pensar, embora possa ser a mais solitária das atividades, nunca é feito inteiramente sozinho. Já o amante da bondade não se permite viver uma vida solitária – quem faz o bem o faz a alguém – e no entanto, a vida que passa na companhia dos outros e por amor aos outros deve permanecer essenciamente sem testemunhas – para poder ser bom de verdade, deve lhe faltar inclusive a companhia de si próprio. Ele é isolado. “O filósofo sempre pode contar com a companhia dos pensamentos, ao passo que as (boas) obras não podem ser companhia para ninguém: devem ser esquecidas a partir do instante em que são praticadas, porque até mesmo a memória delas destrói sua qualidade de ‘bondade'”. Ou seja, a Bondade transmutaria-se em Orgulho.
O portador desse tipo sublime de bondade tem como produto de suas ações obras que devem ser intangíveis a ele. Ele não pode falar delas (seria Arrogância) e nem mesmo lembrar delas (seria Soberba). É um ser com um grau de isolamento tal que é incompatível com a condição humana da pluralidade. Esse estado não pode ser suportado durante muito tempo; e a conclusão de Arendt é que tal estado “requer a companhia de Deus, a única testemunha admissível das boas obras, para que não venha a aniquilar inteiramente a existência humana.”
Isso é de uma crueza incomum em Hannah, mulher-filósofa, de raciocínio claro, delicado (como quando vai criticar Marx) e brilhante. Confesso que fiquei dias pensando sobre isso e resolvi compartilhar no blog.
Seria esse estado de bondade suprema incompatível com a inexistência de uma divindade?

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O Fantasma do Amor


Pain by Kori Solomon at Flickr

Essa época do ano é bastante favorável à reaparição do fantasma que assombra a espécie humana desde os primórdios. Um fantasma que atormenta as mentes mais brilhantes e os menos favorecidos. Do mais completo atleta, seja futebolista ou olímpico, ao mais desajeitado homem ou mulher. Abate-se sobre ricos e pobres, homens e mulheres, velhos e novos: É o fantasma da depressão.
Sobre a depressão, escreveu Maria Rita Kehl:
“A depressão é uma forma muito particular e avassaladora daquilo que corriqueiramente chamamos a dor de viver. (…) À dor do tempo que corre arrastando consigo tudo o que o homem constrói, ao desamparo diante da voragem da vida que conduz à morte – que, para o homem moderno, representa o fim de tudo -, a depressão contrapõe um outro tempo, já morto: um “tempo que não passa”, na expressão de J. Pontalis. O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida humana sem se localizar em nenhum lugar do corpo vivo, é o que se ergue contra um fundo vazio que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. (…) A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. (…)”
“Contra esse pano de fundo de “nonsense”, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços -“destinos pulsionais”, como se diz em psicanálise- que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo. (…) Amamos: a vida, os outros e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com essa multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. (…) A depressão é o rompimento dessa rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do “amor”, trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles.”
O que Kehl chama de psiquismo é o conjunto de nossas faculdades cognitivas (raciocínio lógico, intuição, associação, etc) permeadas pelo nosso estado de humor. O humor de uma pessoa pode se entendido através da seguinte analogia: imagine que você está sentado em um teatro onde é o único expectador. A “peça” que se desenrola no palco nada mais é que sua própria vida cotidiana. O humor é o cenário, incluindo a música de fundo. Quando o cenário é lúgubre e a música triste, um acontecimento simples pode ser encarado como muito grave e de consequências desastrosas. Se por outro lado, o cenário é claro e colorido e a música alegre, os acontecimentos têm uma perspectiva muito mais positiva, mesmo que sejam tristes.
Como vimos, o amor é a salvação para o indivíduo pois tece uma rede de sentido e amparo que sustenta (o que na verdade seria insustentável): o indivíduo em sua insuportável existência sem sentido. Mas ficam as perguntas: Como age, então, o amor? Que tem o amor afinal a ver com a depressão?

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Aliquid Hominis – A Solução

Prometheus Light on Flickr by h.koppdelaney

Aliquid hominis quer dizer “algo do homem que o próprio espírito do homem que nele está, não sabe”. A perguntas feitas no post de mesmo nome, apesar de antiquíssimas e, aparentemente, sem um propósito prático imediato, estão no cerne da controvérsia entre ciência e religião (que por vezes esquenta os bastidores desse portal!), como mostra o raciocínio de Hannah Arendt em seu livro “A Condição Humana“.
Agostinho foi o primeiro a estabelecer uma diferença entre as perguntas “Quem sou?” e “O que sou?”: a primeira é feita pelo homem a si próprio; a segunda só pode ser dirigida a uma divindade, pois equivale a perguntar “Qual a minha natureza/essência/propósito?” que é semelhante a “Por que fui criado?” Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um “quem” como se fosse um “quê”.
“O problema é que as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades naturais – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós?”
E, arremata:
“É por isso que as tentativas de definir a natureza humana levam quase invariavelmente à construção de alguma deidade, isto é, ao deus dos filósofos que, desde Platão, não passa, em análise mais profunda, de uma espécie de idéia platônica do homem.”
Nosso sistema cognitivo aprendeu a procurar essências em tudo que é natural, em tudo que é passível de ser conhecido. O que Arendt quer dizer, é que esse tipo de pensamento nos ajudou a chegar ao ponto em que estamos hoje, mas tem efeitos colaterais. Pensamos ontologicamente nas doenças (A Diabetes, O Lupus, etc), pensamos ontologicamente nas espécies (o que às vezes, dá a maior confusão), pensamos ontologicamente em partículas subatômicas! Entretanto, quando temos que nos pensar, essa fórmula nos leva invariavelmente a uma divindade. Assim, a questão da natureza do homem é tanto uma questão teológica quanto a questão da natureza de Deus; ambas só podem ser resolvidas dentro da estrutura de uma resposta divinamente revelada.
As condições da vida humana – vida, morte, o planeta –  não são suficientes (apesar de necessárias) para explicar o que somos por não nos condicionar de modo absoluto. As ciências como antropologia, psicologia, biologia não captam a totalidade do humano exatamente por essa razão. Por outro lado, se as tentativas de definir a natureza humana levam facilmente a uma idéia sobre-humana, é de se pensar se o conceito de natureza/essência humana deva ser utilizado. Pode ser um beco sem saída.
É nas raízes do raciocínio “essencialista” que está a causa dos problemas metafísicos encontrados na ciência hoje. Não é possível analisá-los em separado. É preciso reconhecer os limites das formas de pensar e onde eles nos levam. É preciso libertar o pensamento (ou pelo menos tentar). É preciso, portanto e antes de mais nada, matar a Deus.

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