Cego, surdo e mudo

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“Nossos impulsos reprimidos são tão humanos quanto as forças que os reprimem”

Essa frase de um famoso psicólogo (Symons, 1987) descreve bem o equivoco que muitas pessoas comentem ao acreditar que a nossa consciência é nossa, mas nossos instintos não são.
O mesmo raciocínio permite o equívoco na direção contrária, ao defender ações com base na emoção, em contrapartida ao uso da racionalidade.
Na foto acima, tirada ontem em copacabana, o relógio de rua serve de outdoor para a nova campanha publicitária da Diesel, uma marca fashion de produtos diversos que vão de óculos à calças jeans, de perfumes à bolsas. Uma tradução livre dos dizeres no letreiro é:
“Os espertos escutam a razão. Os idiotas escutam o coração. Seja idiota!”
Eu responderia: Idiotas, fiquem espertos, quem escuta o coração, está escutando é a razão!
O coração não ouve e não fala. Quem vê, fala e ouve é sempre, e somente, o cérebro.
Esses equívocos são estimulados pela crença infantil que nossa razão e emoção estão em locais diferentes. Como eu já escrevi aqui, o coração era tido pelos antigos egípcios como a residência da alma, o responsável pelas emoções. Mas isso porque eles não tinham como dissecar uma pessoa para saber que na verdade o coração é apenas uma massa muscular que não faz outro a não ser bombear sangue, para o pulmão e para os outros órgãos e tecidos.
Meu coração partido não está no meu coração, está no meu cérebro.
Assim como todo o resto. Amor, lógica, raiva, álgebra, empatia, aritmética, filosofia, dúvida, decisão e geometria.
O ser humano precisa tanto de estabilidade quanto de variedade. Quem escolher usar sempre a razão, da mesma forma que um aluno que resolve responder a opção A para todas as questões de uma prova, sempre acertará, ainda que ao acaso, um monte de vezes. Da mesma forma, quem optar por usar sempre a emoção, marcando B em todas as respostas da prova, também vai acertar muitas vezes. Mas ninguém faz isso. Nem que queria.
Somos máquinas de reconhecer padrões, cujas decisões são baseadas em uma série de parâmetros que são captados conscientemente pelos nossos 5 sentidos, mas também uma série de outros parâmentros, coletados pelos mesmos 5 sentidos, mas processados inconscientemente (expressões faciais e corporais, timbre da voz, odores, por exemplo). O processamento dessas informações, tanto o consciente quanto inconsciente, depende das experiências e expectativas, imediatas e distantes, que cada organismo, cada pessoa, está submetido em um determinado momento.
O que eu quero dizer é que a grande dica é: idiotas, escutem sua razão quanto a qual o melhor balanço entre razão e emoção para resolver uma determinada situação em um determinado momento. E fique esperto!
Mas todo mundo é esperto, porque em um grau ou em outro, já faz isso.
Idiota mesmo é só quem paga R$1.000,00 por um jeans da Diesel.

"Seu cérebro de ostra!"

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Já ouvi pessoas fazendo esse tipo de ofensa umas as outras. Mas será que é realmente uma ofensa ter um cérebro de ostra? Ou pior, ostra tem cérebro?
A pergunta parece boba mas não é simples de responder. Pelo menos 3 dos meus amigos maiores especialistas em neurobiologia, incluindo o Dr. Stevens Rehen, a Dra. Marília Zaluar e a maior especialista do mundo em sistema nervoso de invertebrados, a Dra. Silvana Allodi, não sabiam, de cara, a resposta. Tive então eu que me virar pra descobrir.
A ajuda, mais demorada que inesperada, veio de um antigo livro de 1964 sobre (e entitulado) “A ostra americana Crassostrea virgínica” de Paul Galsoft. Essa é a prima norte americana da ostra de mangue, Crassostrea rhizophorae, que pode ser vista na foto acima e que eu tenho certeza que tantos de vocês apreciam na praia ou em restaurantes chiques. O livro traz um capítulo inteiro sobre o sistema nervoso das ostras.
Mas curiosamente, a primeira coisa que me chamou atenção não foi a solução do mistério. Foi a linguagem do texto. Vocês, que como eu acabam lendo muito sobre ciência, também não percebem a diferença gritante no estilo de escrita dos artigos e textos técnicos dos anos 40-60 para os atuais? Sem a pressão do ‘Publicar ou Percer’ nas costas, os cientistas eram ótimos contadores de histórias, e a ciência era muito melhor comunicada. Os textos eram sim mais longos, mas não por isso prolixos. Eram contextualizados e tinham o necessário para serem fluidos, como uma legibilidade (aprendi ontem essa propriedade dos textos) difícil de encontrar hoje em dia.
Galsoft começa falando que o sistema nervoso é bastante simples, com um gânglio cerebral na parte anterior (perto da ‘dobradiça da ostra, onde também está a boca) e um gânglio visceral na parte posterior (onde a concha se abre e onde estão tambémoutros órgãos importantes como as brânquias, o músculo adutor, intestinos, etc). Ambos estão conectados por uma longa fibra nervosa e deles partem diversos nervos para as outras partes do corpo.
Mesmo simples, ou talvez justamente por isso, é um lindo sistema nervoso. Não estou brincando… é L-I-N-D-O! Veja o esquema abaixo. Se fosse uma tatuagem nas costas de uma menina na praia todos estariam perguntando quem teria sido o designer de um tribal tão bacana (bom, talvez não usassem uma gíria antiga como essa). Mas tenho certeza, que jamais imaginariam que eram os neurônios da ostra.
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Diferente de outros bivalves, de vida (mais ou menos) livre, como mexilhões e vieiras, as ostras não possuem pé (sim, os mexilhões tem pé) e olhos (sim, os coquilles tem olhos) e seus únicos órgãos dos sentidos são mínusculos tentáculos na borda do manto.
Abre parênteses: o manto é um órgão dos bivalves com muitas funções: secreta a concha, participa da reprodução e ajuda a proteger os órgãos internos. Fecha parênteses
Apesar de pequenos, os tentáculos são muito sensíveis se retraindo com a passagem de sombras ou feixes de luz, e capazes de perceber mínimas quantidades de drogas, excesso de material particulado em suspensão variações de temperatura e de composição da água do mar.
Em uma seção de métodos, pouco frequente em um livro texto que não seja um manual, ele fala sobre a grande dificuldade de se estudar o sistema nervoso, e dá uma receita para se observar os nervos explicando também o porquê e o para quê de cada passo, como minha querida amiga Cristine gostaria que fossem todos os protocolos.
Ele diz: “Em preparações bem sucedidas, o nervo violeta escuro é visível contra a massa visceral semi-transparente.” E com uma impressionante sinceridade, impossível em um artigo nos dias de hoje, continua: “Na minha experiência o método se mostrou caprichosamente laborioso e não completamente confiável”.
Mas o mistério mesmo da história do ‘cérebro’ das ostras é o Órgão Palial. Pequenino, no formato (e no tamanho) de uma vírgula, – como esta aqui que passou, só que com muitos cílios na cabeça arredondada -, até 1964 nenhum experimento tinha sido capaz de explicar a sua função ou o seu funcionamento. Por isso, as especulações iam desde “um importante papel no controle da frequencia da respiração” até a “detecção de perturbações mecânicas” ou de alterações químicas na água.
E foi tentando elucidar esse enigma que me deparei com o final feliz, que não está no sistema nervoso, mas sim no circulatório. Como nas ostras o manto, além das funções que eu já listei, também dá uma mão na respiração, é necessário um complexo movimento de vai-e-vem do sangue (na verdade hemolinfa) nas veias e artérias dessa região. E para controlar esse movimento, a ostra possui dois ‘corações auxiliares’, que funcionam independente do coração principal. Mas fraco no inverno, e como bom carioca, mais forte no verão.
Então, se algum dia alguém disser que você tem cérebro de ostra, torça, pelo menos, pra ter coração também.

Bate Coração!

No último domingo, a revista do Globo publicou uma reportagem sobre as descobertas da ciência que previnem o infarto. Como eu dou aula de fisiologia cardíaca, fui lá conferir. Que decepção. Não tinha nada de fisiologia! Era quase uma propaganda de um novo exame que obviamente não previne nada, diagnostica! O que previne o infarto é uma mudança de estilo de vida, que na sociedade moderna, é difícil.

Pensei que eu poderia fazer um artigo com coisas bem mais legais para serem contadas sobre o coração.

Vocês sabiam que o som do tambor é o único som presente em todas as culturas? Alguém se arrisca no porquê? Exatamente, o som do coração! Desde a antiguidade clássica (egípcios, gregos e romanos), ainda que não se soubesse muito de anatomia e fisiologia, já era conhecida a relação entre os batimentos do coração e a vida.

Só que era uma relação intuitiva: nos corpos vivos dá pra ver, sentir, ouvir os batimentos no peito, enquanto nos mortos… não.

Essa relação entre os batimentos e a vida, levou esses povos a acreditarem que o coração era a “residência da alma”. Por isso, era o órgão aonde se depositavam todas as emoções humanas. Entre elas, o amor!

Nasceu entre os egípcios a tradição de usar um anel pra representar o casamento. Mas foi depois de 2000 anos que os gregos inventaram de usar o anel no dedo anular da mão esquerda. Segundo eles, um anel imantado ajudaria a atrair o coração. Isso por que no dedo anular esquerdo existiria a vena amoris a “veia do amor” que conectaria direto com o coração! Mas antes que as meninas delirarem dizendo “ah…. que romântico”, devo dizer que não existe nenhuma evidência científica ou anatômica da venas amoris! Era tudo um truque de algum Don Juan barato da época.

Mas essa não foi a única confusão que os antigos fizeram por não saberem anatomia. Eles confundiram um monte de coisas. Pra eles era o fígado que produzia e bombeava o sangue, que só caminhava pelas veias. Isso por que eles viam apenas pessoas mortas. E nos mortos, o sangue sai das artérias e se acumulam no fígado. As artérias ficavam vazias. Alias, esse era outro equivoco. Eles acreditavam que era ar que circulava pelas artérias. Tanto que receberam esse nome AR-TÉRIA “caminho do ar”. Se vocês prestarem bem atenção, vão ver que o coração nem está do lado esquerdo do peito. Ele tem uma posição central, estando ligeiramente apontado para o lado esquerdo. Feche o seu punho esquerdo. Coloque na região central do toráx, acima da barriga e entre os peitos. Ai fica o seu coração. E ele, inclusive, tem aproximadamente esse tamanho: o de um punho fechado!

Foi apenas durante a época dos gladiadores que o papel do coração começou a ser esclarecido. Galeno, o médico chefe dos gladiadores, tinha chance de observar corpos vivos abertos. Alguém tomava uma espadada e o peito aberto podia ser observado: o coração batia e o sangue jorrava pelas artérias. Conforme o gladiador ia morrendo, os batimentos iam diminuindo e se Galeno tivesse sido um pouco mais observador, já poderia ter observado a contração seqüencial dos átrios antes dos ventrículos.

Mas ele foi muito importante e durante mais de 10 séculos suas descobertas guiaram a medicina. Claro, com uma pequena participação do fato dos experimentos necessários para aprimorar os seus conceitos acabarem levando as pessoas para morte na fogueira durante a idade média.

Atualmente, as coisas estão muito mais avançadas e o Brasil é líder mundial nas pesquisas de células tronco para o tratamento de infarto do miocárdio (inclusive, o instituto onde eu trabalho é o líder!).

Mas quando eu dou aula, uma coisa que chamam mais atenção é da força do coração. Um coração sadio em bate cerca de 70 vezes por minuto. E em cada batimento, bombeia cerca de 70 mL de sangue para a Aorta. Faça as contas e você vai ver que o coração é capaz de bombear em torno de 5 litros de sangue por minuto. Você sabe quanto é isso? É muito! Pra vocês terem uma idéia, eu fiz um vídeo caseiro. Peguei uma garrafa de 1,5L de água e abri a torneira do tanque a ponto de enchê-la em 18s (faça de novo as contas, 5L em 60s; 1,5L em 18s). A vazão dessa torneira é a vazão do seu coração quando você está tranqüilo, lendo um livro ou vendo TV. Em repouso. (O video termina antes de encher a garrafa porque minha câmera é antiguinha e só grava 15s.)

Mas já se a mulher da sua vida rêaparecer, se um caminhão quase te atropelar ou se você resolver correr a meia-maratona do Rio, a vazão do coração pode aumentar muito. Em situações de ansiedade, estresse ou, principalmente, de esforço físico; os tecidos do corpo vão precisar trabalhar com mais intensidade, vão gastar mais energia e precisar de mais oxigênio. E como quem leva o oxigênio é o sangue, então o coração tem que bombear o sangue com mais intensidade. No vídeo abaixo, abri totalmente a torneira do tanque, e a garrafa levou sete segundos para encher. Isso corresponde ao coração batendo em torno de 180 vezes por minuto.

Só que não pára por ai. O coração ainda é “elástico” e com a necessidade, pode passar a bombear mais de 70mL/batimento. Com o aumento do volume bombeado para 130mL/min e o aumento da freqüência cardíaca para 220 bat/min, faça as contas novamente, e você vai ver que o coração pode chegar a incrível marca de 28.600 mL/min. Quase 30 litros de sangue por minuto!

Pense nisso da próxima vez que for maltratar seu coração!

PS: Algumas dessas curiosidades estão no livro: “As dez maiores descobertas da medicina. (Friedman M, Friedland GW. 2000. Capítulo 2: 37-63. Companhia das Letras. Rio de Janeiro. 363pp)”

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