Um Bisturi de Argônio – Carta ao Professor de Clínica Médica

Allgemeine Krankenhaus - Viena, 1784. Fonte: Wikipedia

O saber não é para compreender. O saber é para cortar.

Michel Foucault

Professor,

Não sem muita hesitação resolvi sentar à frente desta tela e datilografar (sim, tenho diploma de datilografia, o que dá uma ideia da minha geração) estas reflexivas linhas. A idade e uma distância mantida cuidadosamente estável para que não se perca de vista os ares e paisagens acadêmicos, me fizeram crítico e, porque não dizer, algo ranzinza das coisas da medicina. A distância, na verdade, se articula com o tempo que a idade fez passar, e dota meu olhar com um bisturi de argônio existencial: ao mesmo tempo que espicaça fatos, coagula emoções. Sendo assim, espero que me perdoe alguma indelicadeza e/ou imprecisão no que segue. Mas é que eu tinha que falar…

Outro dia, um professor de cirurgia da faculdade me perguntou incisivamente: “Quem é o CLÍNICO deste hospital? Quem é o CLÍNICO desta cidade?” Fiquei pensando na resposta e, como sói acontecer com as perguntas em que não encontramos a anestesia de uma certeza, estou nela pensando inda agora. E dói esse pensamento. Lembremos da nobre origem da clínica médica no século XIX, na França, mais especificamente, em Paris, tendo como exemplo uma nova forma de atuar de alguns médicos do Allgemeine Krankenhaus em Viena (figura), da Escola de Medicina de Edimburgo entre outras, que, somada à mudanças epistemológicas na ciência médica, com a recém-constituída Anatomia Patológica incluída no raciocínio clínico, “colou” o nome à coisa e abriu caminho para uma medicina positiva.

À partir daí, os clínicos gerais ganharam prestígio como médicos, e calaram Moliére. Sua atividade, dividida entre o hospital e o consultório, permitia que acompanhassem uma variedade muito grande de pacientes com doenças em suas múltiplas manifestações e diversos graus de gravidade, fazendo com que ganhassem grande erudição médica dentro, obviamente, da ciência possível em cada época. O clínico geral era um sábio.

Eis que se muda novamente a episteme, como diria Foucault. Mudam os “códigos fundamentais de uma cultura” e a ordem do discurso, por conseguinte. O clínico geral – e os especialistas da Clínica Médica –  passa então, cada vez mais, a ser um tipo de porta-voz de uma ciência avassaladora na qual a “medicina baseada em evidências“, para além de ferramenta cotidiana, transforma-se em imperativo ético, em um subproduto ideológico. Os cirurgiões não sofreram na carne o golpe com a mesma intensidade. Para eles há ainda o ato cirúrgico que depende de uma habilidade, uma arte, um dom e que, de uma certa forma, os blinda da “invasão de privacidade” – na relação entre ele e seu paciente e que funda a medicina -, da ciência enxerida e abelhuda, vista como um fim e não como meio de praticar medicina. A Clínica Médica sofreu ainda um outro golpe. A especialização crescente que o conhecimento técnico exige não nos dá muitas opções: doenças sistêmicas? doenças comuns? diagnósticos difíceis? O que é e em qual área da medicina atua um clínico geral moderno? Responder que nossa especialidade é o “doente” e não as doenças, não parece ser suficiente. Os hospitais mudaram. Ninguém quer ficar internado muito tempo e as fontes pagadoras pressionam para manter os pacientes fora dos hospitais. Alguns buscaram aprender algum “procedimento”. As especialidades médicas que assim o permitiam ganharam novo fôlego. Cardiologistas passaram a dominar técnicas percutâneas de diagnóstico e tratamento, ecocardiografia e outras atividades mediadas por máquinas. Gastroenterologistas e pneumologistas, aprenderam a endoscopar e biopsiar. Reumatologistas, hematologistas e oncologistas começaram a prescrever “drogas perigosas” que somente eles podem prescrever. E assim, toda a Clínica Médica foi se “ajeitando” dentro da nova episteme; se recriando à luz das necessidades; adquirindo novas habilidades e novos discursos. Ao buscar uma arte, uma habilidade, um procedimento, ao mesmo tempo em que se defendem de intrusões indesejadas e resguardam sua aura de técnico à moda dos cirurgiões, também procuram obedecer a lógica de mercado e

Vendo em Código - a metáfora para a visão do médico?

atender às solicitações da sociedade em busca da inovação e das novas tecnologias. Talvez o protótipo do clínico geral moderno, que vê o paciente como um todo, tendo como pano de fundo uma Matrix de dados virtuais e ainda realizando procedimentos característicos da especialidade, seja o médico que trabalha em unidades de terapia intensiva: o intensivista. Hoje, parece que o intensivista permanece ainda com algum resquício da fleuma do clínico geral de outrora. Mas, também ele, passa o plantão.

Foi assim então, que o clínico, perdeu sua Palavra. E as alunos começaram a perguntar: “que adianta ser um médico mudo?”

Alguém poderia pensar entretanto, que o clínico não é necessário. Que sua sabedoria totalizante não teria lugar no mundo da velocidade, do procedimento, da hiperespecialização, da virtualização dos corpos. Que ele logo ficaria desatualizado, ultrapassado pelo vagalhão feroz de ciência médica produzido diariamente por milhares de jornais científicos ao redor do mundo. “Não dá” – dizem os próprios médicos a si e aos colegas. Mas, para estupefação testemunhada diariamente de alguns, os próprios pacientes, entre eles alguns médicos que, pasme, também ficam doentes, requisitam os serviços do clínico. Por quê?

Eu tive bastante contato com um professor de patologia cuja vida foi dedicada a estudar o fígado e o pâncreas. Ironia do destino, teve o diagnóstico de câncer de pâncreas agressivo. Já bem magro e cansado de terapias de pouco efeito, embora pleno de seu raciocínio claro e agudo, me confessou que os médicos ficavam um pouco intimidados por ele ser uma autoridade mundial na doença que o consumia. A gota d’água foi o fato dele mesmo ter que comunicar à família (esposa e filhos) seu diagnóstico, além de discutir o prognóstico. “Nunca”- me disse, sem carregar nas emoções – “me faltaram bons médicos. Sempre me trataram com muito carinho e respeito onde quer que eu fosse. Mas me faltou UM médico.”

Foi imerso nas profundezas dessas memórias – e é incrível como com o chegar da idade, as memórias formam cada vez mais nossos pensamentos – que li que um professor de Clínica Médica ministrava um curso sobre os Fundamentos da Homeopatia.

“Homeopatizar” a Clínica Geral me parece um caminho que, se por um lado, valoriza a avaliação do ser humano como um todo (não usarei “abordagem holística” aqui dada a contaminação desta expressão com outros tipos de charlatanismo) que é o que fazemos, por outro, fere a própria origem da clínica, calcada profundamente em conhecimentos científicos válidos. Se essa abordagem – a científica – nos trouxe para o imperialismo cientificista da prática médica contemporânea, outras formas de “ver” o paciente devem ser procuradas. Não somos cientistas e não somos curandeiros. Somos médicos e isso já é ser duplo, tal como os “humanos” de Aristófanes no Banquete. Mutilados que fomos, nossa metade científica nos transforma em autômatos repetidores de “evidências”. O vazio existencial que fica nos impele a procurar a metade oposta – humana – e ela NÃO está nas alternativas à medicina! Pelo contrário, está nela própria, professor. E para encontrá-la talvez seja necessário reduzir fenomenologicamente a medicina ao seu  núcleo duro, dissecá-la até que surja o encontro que a define: a relação médico-paciente. E “histologicamente” do que é tal relação constituída? Alguma pista? Sim. Ela é feita de linguagem! Nada mais humano e a um só tempo, científico. Para chegar a isso, talvez seja mesmo necessário um metafísico bisturi de argônio. Posso emprestar o meu, existencial, que consegui na distância e no tempo. Porque, creia, o senhor vai precisar.

Reanimação Sexy

Por ressuscitação cardiopulmonar (RCP ou CPR, em inglês) chamamos o conjunto de procedimentos que visam reestabelecer a circulação sanguínea estando esta última, interrompida por ritmos cardíacos não-propulsores. (Ao contrário do que muito gente pensa, o coração não necessita estar “parado” para que a circulação assim esteja). Tais procedimentos visam a ação imediata e são extremamente padronizados com poucas variações desde sua introdução na década de 50. No Brasil, temos um sistema de ensino e divulgação da RCP comparável aos melhores do mundo e a Sociedade Brasileira de Cardiologia divulga essas informações gratuitamente. O vídeo abaixo, é uma propaganda de uma marca de lingeries mas segue os principais preceitos básicos da RCP, tendo feito muito sucesso entre OS residentes do hospital e partilho esse conhecimento com meus leitores agora.

O suporte básico de vida deveria fazer parte do currículo de várias profissões como professores, seguranças e todos os que lidam com agrupamentos humanos. Mortes extemporâneas poderiam ser evitadas.

PS. As moças não dão cursos no Brasil (já tentei). Mas tem outros vídeos médicos “interessantes” aqui.

O Enigma do Ver

Não sei quando comecei a gostar de Cézanne. Talvez tenha sido quando adquiri meu primeiro PC (e único, hehe), um 486, em entrada + 11 prestações para escrever minha tese. Lembro de ficar me divertindo com minha internet discada num sítio de papeis de parede e de ter escolhido este para o computador.

Gardanne - Paul Cézanne, cerca 1885

Vi que era de dele. Não estudei pintura e sei pouco a respeito da biografia de outros pintores, mas Cézanne me pegou de jeito. Sua personalidade introspectiva e tosca, sua tenacidade em perseguir seus objetivos, a amizade com Émile Zola e com os impressionistas parecem tiradas de um roteiro cinematográfico. Mas talvez, o que tenha drenado mais fortemente minha atenção foi sua angústia (tenho tendência a gostar dos angustiados). Toda a cólera e a misantropia de Cézanne podem muito bem ser colocadas na conta de sua monomania, de sua verdadeira obsessão. De sua doença. Merleau-Ponty chega a diagnosticar um tipo de constituição mórbida, uma esquizoidia,  [1, pg 125]. E afirma: “A incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam, no essencial, por sua constituição nervosa, mas pela intenção de sua obra” [1, pg 135]. E então, eu descobri exatamente porque comecei a gostar de Cézanne:

Há uma relação entre a constituição esquizóide e a obra de Cézanne porque a obra revela um sentido metafísico da doença – a esquizoidia como redução do mundo à totalidade das aparências imobilizadas e suspensão dos valores expressivos -, porque a doença cessa então de ser um fato absurdo e um destino para tornar-se uma possibilidade geral da existência humana quando enfrenta de forma consequente um de seus paradoxos – o fenômeno da expressão -, e enfim, porque é a mesma coisa, nesse sentido particular, ser Cézanne e ser esquizóide. [1, pg 136-137]

A doença deixar de ser “um fato absurdo e sem sentido para tornar-se uma possibilidade de existência humana” é a maior das consolações que alguém poderia querer para si. O desejo de sentido transmuta-se em obra. Vários autores assim o fizeram Proust, Nietzsche, Beethoven para ficar em uns poucos. Além disso, e para mim tal pergunta se reveste de grande importância, onde estava a doença de Cézanne? Qual a semente interior que se desdobrava em doença lá em cima? Cézanne se comporta como um portador de uma patologia da expressão. Em neurologia, aos transtornos da compreensão e expressão da linguagem chamamos afasia. Há afasias de compreensão e afasias de expressão. Estas últimas são especialmente angustiantes. Mostramos aos pacientes um relógio ou uma caneta e eles não os nomeiam. Dizem “hora”, “escrever” mas não o nome do objeto permitindo supor que sabem o que é, mas não são capazes de traduzir seu conhecimento em palavras. Cézanne, ouso dizer por tudo que li, tinha um tipo incomum de afasia.

Impressionismo

Princesa de Broglie - Ingres, 1853 - Fonte Wikipédia

Apesar de contemporâneo aos impressionistas e de ter aprendido com eles, em especial com Camille Pissarro, Cézanne nunca se considerou um impressionista de fato. Os impressionistas opuseram-se à escola anterior, neo-clássica, que em Paris tinha como seu maior expoente Dominique Ingres. O estilo de Ingres chega a ser apavorante, tal a capacidade de reproduzir os efeitos luminosos da realidade. Sua técnica era, segundo ele próprio, baseada no “rigor da linha”. Às cores, não era atribuída maior importância, afinal, “não constituíam a forma”, dizia. Seus temas clássicos, com figuras “posadas” e em situações pouco à vontade, formatavam o “bom-gosto” parisiense da época. Para Ingres, as sombras são escuras e as cores equilibradas. Num retrato indoor nada choca ou agride a visão.

Os impressionistas, por outro lado, tinham interesse em captar a luz solar ao iluminar o mundo e impactar a visão. A linha é compreendida como mais uma abstração do ser humano para representar imagens, quem precisa de contornos nítidos sob a implacável luz solar? As sombras têm de ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam, e não escuras ou em tons de cinza ou preto. Contrastes de luz e sombra deveriam ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares. Quando colocamos uma rosa cor-de-rosa sobre uma cartolina cinza, o fundo adquire tons esverdeados. Um pintor clássico pintará o fundo de cinza, confiando que o quadro, como objeto real, produzirá esse efeito de contraste. A pintura impressionista, com o objetivo de levar os fortes contrastes solares dos ambientes externos para a visualização dos quadros, em geral, em salões fechados e com pouca luz, pinta a rosa sob um fundo verde e a faz saltar aos olhos [1, pg 129]. Veja-se esse exemplo de Claude Monet.

Nenúfares, Claude Monet, 1914-17

Mas Cézanne logo se separou dos impressionistas. Chegou mesmo fazer a afirmação “Monet é apenas um olho” referindo-se ao projeto impressionista de descrever “a dança da luz sobre os olhos” [5, pg 103].

A “Afasia de Cor”

Cézanne queria pintar com a cabeça. Conta-se [1, pg 131] que Balzac em “A Pele de Onagro” descreve uma “toalha branca como uma camada de neve recém-caída e sobre a qual elevavam-se simetricamente os pratos e talheres coroados de pãezinhos dourados”. Cézanne confessou que em toda sua juventude quis pintar isso. Entretanto, “agora eu sei” – dizia – “que se deve querer pintar apenas o ‘elevavam-se simetricamente os pratos e talheres e os pãezinhos dourados’. Se eu pintar os ‘coroados’, estou perdido, compreende? Se realmente equilibro e matizo meus pratos e talheres, e meus pãezinhos como no modelo natural, esteja certo de que as coroas, a neve e tudo o mais estarão ali”. Cézanne tinha uma verdadeira devoção pela cor. Segundo o professor Marcelo Duprat [2, pg 67-68]

A cor em Cézanne funciona como um princípio. Isto ocorre à medida que a aplicação das pequenas áreas de cor rege e conduz o desenho e o claro-escuro das formas. É bem verdade que a distribuição da cor em pequenas pinceladas já era um procedimento típico do impressionismo, como podemos constatar na obra de Renoir, e sobretudo na fase final do impressionismo — no divisionismo pontilhista. Mas, se o impressionismo dissolve as formas pelas vibrações da cor, as formas permanecem lá, submersas, sustentando a obra, enquanto as cores se distribuem de forma independente sobre elas. É, portanto, o tratamento tonal e cromático das formas que é problematizado e não sua estrutura. No impressionismo a estrutura das formas, mesmo sendo trabalhada posteriormente, é compreendida como um dado precedente. Já em Cézanne, é a cor que estrutura, não há um desenho sobre o qual a cor é aplicada, são as cores que formam.

Ou ainda, em uma carta a um jovem pintor [1, pg 130]

O desenho e a cor não são mais distintos, à medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o desenho… Quando a cor está em sua riqueza, a forma está em sua plenitude.

Mas o que seria sua “afasia”, então? Cézanne queria, mais que ninguém, captar a realidade da natureza. Sabia que somos seres visuais e que dentre as coisas que vemos, a que mais nos impressiona é a luz que deve ser traduzida na forma de cor, como nesta carta a Émile Bernard, jovem pintor e teórico que escreveu um livro sobre Cézanne [3. pg 251].

Aqui está, sem contestação possível — tenho plena certeza: — no nosso órgão visual produz-se uma sensação óptica que nos faz classificar como luz, meio tom e quarto de tom os planos representados pelas sensações colorantes. A luz, portanto, não existe para o pintor.

Ou também quando afirma que “a luz é algo que não se pode reproduzir, mas que se deve representar por outra coisa, pela cor. Fiquei satisfeito comigo quando descobri isso” [2, pg 59]. Tudo o mais seria consequência dos contrastes. Sabia também, do delírio que a cor provoca e entendia as técnicas de pintura como abstrações utilizadas para iludir o observador. Ele queria transcender isso e tentar pintar em “linguagem de máquina”. Como, abstendo-se das técnicas mais rebuscadas, conseguir o efeito visual da realidade? Nesse sentido, Cézanne é um primitivista. Também “distorceu” a perspectiva – ela mesma, outro truque -, de suas formas procurando a harmonia mais natural entre os elementos de seus quadros [2, pg 10-24]. Merleau-Ponty é certeiro [1, pg 127]: “Sua pintura seria um paradoxo: buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro. É o que Bernard chama o suicídio de Cézanne: ele visa a realidade e proíbe-se os meios de alcançá-la”. Apesar de saber e conhecer e dominar técnicas, a linguagem que quer criar é “infalável”. Cézanne é um afásico da expressão naquilo que mais lhe é caro, naquilo que ele mesmo criou. O apego a essa condição faz Cézanne sofrer e tentar e tentar… Pinta lentamente. Cada pincelada devendo cumprir uma enorme série de exigências “de luz, cor, profundidade, linha, etc”. Raríssimamente assina um quadro porque também raramente, o considera pronto. É um embotamento, essa insistência, que produz quadros.

E o que eu, finalmente, vejo quando olho para um quadro de Cézanne? Ele dedicou sua vida para que eu visse as coisas como ele via, sem tentar me enganar. Trabalhou arduamente para construir uma linguagem pictórica que fosse primordial e anterior às interpolações cerebrais que faço ao ver/interpretar uma imagem. Fez um desenho de como via as coisas e pediu que víssemos como ele via. Não sei se conseguiu e jamais o saberemos. Entretanto, é possível que ele tenha conseguido ao menos desvendar uma parte que seja, do enigma que é ver. Talvez, no final seja isso mesmo, às doenças caberão o papel de nos mostrar os caminhos de nossa humanidade. Quem disse que não temos um algo mais? Nosso vitalismo não é outro senão esse mesmo, um morbimortalismo que demanda uma escolha: superá-lo ou sucumbir-lhe.

Jogadores de Cartas. Cézanne, 1893-6

PS. O quadro acima – quase um estudo de Cézanne –  foi comprado em 2012 pelo maior valor já pago por uma obra de arte na História.

Referências Bibliográficas

1. Merleau-Ponty M. A dúvida de Cézanne. in O Olho e o Espírito. Cosac & Naify, 2004. Capa dura. Edição bem cuidada de ensaios do filósofo.
2. Duprat M. A Expressão da Natureza na Obra de Paul Cézanne. Ebook em pdf. Interessantíssimo ensaio sobre os aspectos que fizeram revolucionária a obra de Cézanne, pelo pintor e professor M. Duprat.
3. Cézanne P. Correspondência. Martins Fontes, 1992. Compilação de sua correspondência com prefácio de John Rewald.
4. Nonhoff N. Cézanne, vida e obra. Könemann, 2001 (para a edição portuguesa). Bom resumo da biografia e principais obras. Inclusive uma Lot e suas filhas, que não se encontra em lugar algum da web.
5. Lehrer J. Proust was a neuroscientist. Cannongate, 2007.

O Sherpa Subterrâneo

Caspar Friederich - O andarilho

A melhor forma de aproximar-se de um “conhecimento” e operacionalizá-lo de modo a poder emitir juízos com valor de verdade sobre ele é, na minha opinião, escalar-lhe os caminhos montanhosos de suas várias faces dotados das “ferramentas” que nossa condição humana permite. Ciência, literatura, filosofia, artes, são formas de captar o que nos cabe da coisa-em-si humana. Argue-se que um desequilíbrio axiológico em relação ao que representa uma verdade científica e uma literária ou pictórica, pode inviabilizar essa discussão, como a disputa entre o rochedo e o mar. Muito foi escrito sobre isso e tal debate está mesmo na base de uma teoria da verdade que tem na ciência seu modelo mais bem acabado. Por isso, é possível concordar com Albert Levi quando ele diz que “mesmo nossas armas foram roubadas”, pois ao tentar atribuir verdades a obras literárias, p.ex., as julgamos com os “juízes da ciência”.

Esse assunto me é bastante caro como pode ser notado por sua recorrência nesse blog, mas me justifico. Se a medicina não deve ser confundida com a ciência médica – um de seus pilares de sustentação – é porque o paciente não pode ser reduzido à fisiologia, fisiopatologia e farmacologia de suas agruras. Qualquer médico que não seja um cientista em exercício ilegal da profissão sabe que a ciência médica não dá conta do todo de seus pacientes. Adoecer é uma forma de ser-no-mundo que pode ser entendida de várias maneiras. Se assim é, deve haver outros caminhos que conduzam às verdades deste ou daquele pacientes individuais. Mas que caminhos? Perdemos a inocência quando descobrimos o viés. Tais individualidades assemelham-se mais a idiossincrasias sem padrões definidos, a um labirinto no qual não se trilha o mesmo caminho duas vezes.

A nós, médicos de um tempo em que a informação e sua velocidade viral formam a tessitura do real que nos afeta, resta conhecer as outras faces da montanha que constituem um paciente de carne e ossos. Como se não bastasse as centenas de artigos, livros e prática árdua e incessante que visam a resposta à pergunta “o que é?”, ao médico ainda urge a indagação abissal: “quem é esse ser que sofre?” Do que é ele constituído e como esse “material” afeta seu ser-no-mundo? Ah, há ainda o mundo…

Compreenderia melhor se eu sentisse as dores que sentem? Se sentisse a falta de ar que sentem? Acolheria melhor se me acometesse o medo que os acomete? Mestre da interpretação dos signos, sou o mero usuário de um programa escrito pelo paciente no que se refere a este “lado oculto da montanha”. Esse programa, construído ao longo de toda sua vida com a vasta riqueza que flui do contato entre humanos e suas humanidades, me ilude e confunde. Eu precisava “falar” a linguagem de máquina subjacente a esse software. (E não me venham com a psicanálise! Também ela, software. E, ainda pior, metalinguistico).

Foi então que entendi que não estavam nas alturas as minhas respostas. De fato e ao contrário,  precisava de algo como um sherpa subterrâneo, senhor dos caminhos intrínsecos de seu próprio ser. Precisava de um super-paciente com poderes de expressão além do homem que pudesse levar-me ao nível primitivo de sua constituição primordial. Que me conduzisse à crueza e à violência de seus impulsos mais básicos para eu então ver, com meus próprios olhos, onde está a semente que se desdobra em doença lá em cima, lá na superfície revolta e poluída das convenções sociais onde se dá o fatídico encontro. Mas, um paciente assim subverte o equilíbrio de forças na relação com médico subvertendo também, a própria medicina. Ao médico é necessário deixar-se sequestrar por ele o que não acontecerá se ele não tiver a consciência do querer. O médico é treinado para não fazê-lo e, se for bom, não o fará de fato. A única alternativa possível então, é abandonar a arena de embate onde se dá o contato com o paciente e procurá-lo em outros lugares sem deixar de “estar” médico sob o risco de perder o olho clínico que o identifica. E onde encontrá-lo? Antes, onde procurá-lo?

Se consideramos, como acima, outras formas de obtenção de “verdades” com todos os problemas que disso possam decorrer, temos que procurar pelos grandes mestres e por seus vestígios patológicos. Ora, quem dentre os humanos domina a linguagem das artes? Quem dentre nós traduz melhor seus interstícios mais febris em quadros, poesias, livros, esculturas, personagens, música e todas as manifestações do espírito humano? Como é quando um gênio das artes escreve, pinta, compõe, representa, sobre suas doenças ou sobre a forma como percebe as doenças? Ao conceber uma obra de caráter universal, um artista contribui para o corpus cultural da humanidade, criando novos gostos, novas formas de subjetivação, novas formas de ser-no-mundo e com elas, novas formas de adoecer. E o ciclo se fecha.

Por isso, quando um pintor como Cézanne faz a pergunta da criança “se eu desenho o que eu vejo, a pessoa que olha, tipo, vê o quê? O que eu vi?” a resposta vem na forma de uma sabedoria profunda. É como se perguntasse “quando eu conto a você a dor que sinto, o que é que você sente?”

ResearchBlogging.orgLevi, A. (1966). Literary Truth The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 24 (3) DOI: 10.2307/427972

Um Rosto sem as Maçãs 2

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É impossível para qualquer médico saber tudo sobre todas as doenças. Mas há um problema anterior a esse que é o de identificar a presença da doença. Saber se ela existe ou não no paciente que estamos a avaliar. Isso pode ser bem mais complexo do que parece à primeira vista. Atribuir uma causa psicológica para algo que tem um substrato fisiológico ou “orgânico”, como gostam de dizer alguns clínicos da velha guarda, é um erro estratégico que pode custar a vida do paciente. Há uma máxima antiga que diz que esse tipo de diagnóstico – o de causa psicológica – é um “diagnóstico de exclusão”, ou seja, excluídas todas as outras causas possíveis, então, e só então, ficamos com ele. Devassei com perguntas a vida privada da moça. Exceto pela sua natural timidez, não havia nenhum estigma depressivo, nenhum tipo de comportamento compulsivo, nenhum vício. Nada. Ela estava feliz por realizar um casamento há muito programado e preocupada com nossa preocupação em relação a algo que ela achava relativamente simples. Viera apenas checar algo estético. Nada de mais. Saí do consultório 12 e voltei para sala de discussão.

5

Afundei na poltrona. Dessa vez, era o meu indicador no temporal direito que apoiava minha cabeça. Como diagnosticar alguma coisa que nunca tinha visto antes? O aluno parado com a ficha na mão, me observava, se divertindo comedidamente com minha transparente agitação mental. Outros médicos já organizavam pastas, estetoscópios, canetas e carimbos, aprontando-se para enfrentar outro pesado dia de ambulatório. Ao perceber a discussão que se avolumava, um deles perguntou qual era o problema. O interno contou-lhe o caso. Ele voltou-se para mim e disse “Isso não existe. Prescreva um polivitamínico pra menina e deixe que ela case em paz”. Era um dos senhores bonachões. Eu pensava exatamente como ele, mas minha “intransigente vaidade juvenil médica” me fazia agora pensar no exato oposto. E se houvesse realmente uma entidade que explicasse o paradoxo “engordar o corpo e emagrecer o rosto”? Seria interessante, não? O problema é que eu não sabia nem por onde começar.

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Acostumamos desde o início do curso médico a pensar sindromicamente nos grandes problemas que afligem a espécie humana. Por exemplo, uma queixa de falta de ar, após uma caracterização apropriada, gera o diagnóstico sindrômico de insuficiência respiratória. Esta, por sua vez, na dependência da velocidade de instalação, pode ser aguda ou crônica. Uma insuficiência respiratória crônica tem várias causas. Pode ser de origem respiratória, cardíaca, causada por descondicionamento físico ou mesmo de fundo psicológico. As causas respiratórias podem ser relacionadas a problemas nos brônquios, nos alvéolos pulmonares, nos músculos respiratórios, etc. Esse raciocínio segue para todas as causas e o que não é possível descartar com a história e o exame físico, descartamos com exames laboratoriais, de imagem ou anatomo-patológicos, como as biópsias. Grosso modo, é essa a forma como funciona o raciocínio clínico comum. A moça em questão poderia ter, como imaginei no início, o diagnóstico de uma síndrome consumptiva. Teríamos que investigar problemas de tireóide e até descartar a presença de neoplasias. Entretanto, isso não se sustenta pois a pobre ganhara 3 kg em sua silhueta o que descarta uma sindrome cuja principal característica é perder peso. Problemas psiquiátricos podem alterar a forma como nós nos percebemos. A anorexia nervosa é o exemplo mais radical disso. De novo, em uma conversa rápida com a paciente era fácil perceber que seu estado psicológico não era suficiente para causar tamanho estrago. Além disso, sua foto no documento de identidade não deixava margem à especulações. Me defrontava pela primeira vez em minha curta profissão de médico com um problema que depois vim compreender como sendo um dilema que atravessou séculos de prática médica, sendo conhecido desde os tempos da ilha de Cós: o problema da sede das doenças. Mais importante que responder à pergunta “o que é?” é saber “onde está a doença”. Essa aparente inversão “ontológica-topográfica” é característica do pensamento médico de todos os tempos e a origem que a justifica é bem simples: para iniciar o combate a alguma coisa, o mais importante não é saber o que é, mas sim, onde está. Entre escolher acertar o diagnóstico ou acertar o tratamento, a última alternativa é sempre preferível. Eu não sabia onde localizar a doença da moça. Meus esquemas de raciocínio clínico acostumados a pensar em orgãos e sistemas, insuficientes ou hiperfuncionantes, e que sempre deram conta de diagnosticar os casos mais difíceis, nessa situação, não estavam funcionando. Ou eu prescrevia polivitamínicos à paciente e a liberava para casar, ou achava a sede da doença, fazia um diagnóstico brilhante e assim, alimentava ainda mais minha insaciável vaidade. Mas, para isso, eu precisava de uma pista.

(continua…)

Gravura de Emily Evans no Street Anatomy. Clique aqui para ver o original.

Um Rosto sem as Maçãs

1

O Ambulatório Didático estava frio e vazio naquela manhã de sexta-feira. Era meu dia de chegar primeiro. Cumprimentei os funcionários de sempre com um sorriso automático, contornei o cadastro de pacientes e entrei na sala de discussão afundando na poltrona de couro surrado que nunca me parecera tão confortável. Dor de cabeça e sono são uma combinação terrível para quem tem que discutir didaticamente casos de Clínica Médica com alunos do 5o ano de medicina. Eles são, por vezes, digamos, demasiado insistentes em detalhes que têm pouca importância. A mentalidade prática do médico mais experiente constroi atalhos difíceis de serem trilhados pelos estudantes. Se bem que eu não poderia ser chamado exatamente de experiente dado que terminara a residência há apenas 2 anos. Na verdade, eu era bem mais confiante que experiente. Tinha aquela confiança própria de motociclistas cuja moto ainda nunca havia derrubado. Ocupava a mesma posição de outros médicos, estes sim, com 20 ou 30 anos de formatura. Senhores bonachões aos quais eu frequentemente confrontava em conhecimento e condutas. Eles, bem, digo que eles tinham bastante paciência comigo.

Dizia então, que sentara na poltrona e, com a cabeça apoiada na mão direita fechada sobre minha maxila, fiquei a vegetar modorrento, quase arrependido da noite anterior, quando chegou um interno com a ficha de um paciente na mão.

2

“Posso discutir um caso?” “Claro” eu disse sem a menor convicção. “É uma paciente de 31 anos cuja queixa é que seu rosto emagreceu…” disse o aluno e ficou me encarando, esperando alguma reação. De olhos fechados, inabalável, eu disse “Quantos quilos ela perdeu e em quanto tempo?” iniciando a caracterizacão anamnéstica de um possível quadro consumptivo. “Ela engordou” disse o quintanista, com um rasgo indisfarçável de prazer. Eu tive que abrir os olhos e olhar para o rapaz. Era um garoto grande, 1,90 m, bom aluno e bom atleta, mas nada de excepcional. Já conhecia-o de outros casos e nunca tinha me chamado atenção exceto pelo corpanzil. Seus pacientes que retornariam das consultas passadas ainda não haviam chegado e ele resolveu chamar a moça que aguardava, sozinha, na sala de espera. “Engordou?” “Sim. Disse que ganhou uns 3 kg. Mas, o rosto emagreceu” – respondeu agora bem sério, dando peso às suas afirmações. A impressão de que ele me pregava uma peça foi se dissipando. “Você a examinou?” “Sim. Não vi nada de mais. Tudo normal.” Levantei da minha poltrona e fiz sinal para que ele me mostrasse o consultório onde estava. O ambulatório começava a receber outros pacientes e a sala de pré-consulta – onde as enfermeiras aferem os dados vitais e avaliam as queixas dos pacientes – já estava lotada. Entramos no consultório 12.

3

Era uma moça bem clara, de cabelos castanho-claro, finos e estendendo-se até os ombros; tímida, corou ao me ver. Me apresentei e sentei na cadeira reservada ao médico. O aluno ficou em pé do meu lado direito. “O que aconteceu?” – perguntei. “Dr. Eu vou me casar em Julho e fui experimentar o vestido. A costureira ao me ver ficou feliz porque achou que eu tivesse emagrecido. Mas na verdade, engordei. Acho que estou nervosa, trabalhando muito e tenho abusado do chocolate” – disse isso e olhou para o chão, como se tivesse cometido um pecado. “Sim. Mas e a história do seu rosto?” – perguntei querendo chegar logo ao problema. “Pois é. Todo mundo está dizendo que meu rosto emagreceu, mas eu, de fato, engordei um pouco.” Olhei bem de frente para ela. Levantei e peguei seu queixo com a mão direita, para examiná-la bem de perto. Eu jamais tinha visto algo semelhante. De fato, o rosto da moça estava emagrecido. As maçãs do rosto bem murchas deixavam transparecer os ossos que estavam por trás. Os olhos discretamente encovados. Tive uma ideia. “Você tem alguma fotografia antiga com você? A identidade, por exemplo?” Ela tinha. A foto não deixava dúvidas. Seu rosto, de fato, emagrecera, dando-lhe um aspecto que chamamos de emaciado. Nenhum sinal de desnutrição. Nenhuma outra queixa. Nada. Apenas um rosto sem as maçãs.

(Continua…)

PS. A foto acima não é da paciente em questão, mas é supreendentemente parecida e me lembrou esta história. Colocarei o link na continuação.

Slow Doctoring

 

É mais um manifesto. Depois do Slow Food, do Slow Blogging, Slow Thinking, entre tantos, chegou a vez do Slow Doctoring. O Slow doctoring é uma proposta de relacionar tempo e prática médica. Expus minhas vivências sobre tempo e de como acredito que ele seja intrínseco a cada pessoa. Se assim de fato é, uma consulta, visita ou qualquer interação onde se dê a relação entre um médico(a) e um(a) paciente é, também, uma relação entre vivências de tempo diferentes. Há uma percepção geral de que os médicos não têm muito “tempo” para seus pacientes. Um slowdoctor é um sincronizador dos tempos: aeônicos médicos e khrônicos dos pacientes.

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Slow Doctoring é ouvir. P a c i e n t e m e n t e. É confiar, estimular e aprender a construir uma narrativa do paciente. Você, além de se divertir, certamente se surpreenderá com isso.

2

Slow Doctoring é a rejeição da filosofia do “Quebrou-Conserta” vigente na medicina contemporânea. Nada contra os ortopedistas, por favor. O problema é esse tipo de filosofia que passou a ser regra e vem sendo aplicada onde não seria necessária. Exemplo, dor no peito = cateterismo = stent-em-tudo-quanto-for-obstrução. “Quebrou-conserta”.

3

Slow doctoring é entender que alguns diagnósticos só vem com o tempo e que para isso, é preciso ter o tempo como amigo e que ele, não é muito fácil.

4

Slow doctoring é desobjetivar a medicina. Ela, menina dos olhos de Platão e Aristóteles, ficou moça com Descartes e Bacon e parece ter casado com Adam Smith. Para entender o humano não basta quantificá-lo, é preciso ser humano também, a maior das empatias.

5

Slow doctoring é entender que atrás de sua caneta existe um arsenal gigantesco e extremamente agressivo de exames, tratamentos clínicos ou cirúrgicos capazes, hoje, de virar seu paciente literalmente do avesso e encontrar, não só doenças potencialmente tratáveis, mas também pseudodoenças cujo “tratamento” é, em si, a maior de todas as doenças: iatrogenia. Um carimbo em cima disso não endossa o ato.

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Como corolário do item 5, slow doctoring é domar a tecnologia médica e não deixar que ela dome você. Muito da “velocidade necessária” da prática é o médico a serviço da tecnologia e não do paciente. Evitar confundir medicina com tecnociência para não correr o risco de ser cientista em exercício ilegal da medicina.

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Slow doctoring é entender o lead-time bias e suspeitar dele. Sempre. Truque dos deuses siameses.

8

Questionários são para quem não quer conversar. Assim como algoritmos e diretrizes são para quem não quer (ou não pode) pensar.

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Reconhecer que algumas vidas chegam ao fim e que a morte não é, de longe, a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa.

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“Se eu quiser diagnosticar um paciente, tenho que conhecer toda sua fisiologia ou fisiopatologia de sua doença. Se eu quiser tratá-lo terei de conhecer a farmacologia e a farmacodinâmica de suas medicações, riscos e benefícios de seus procedimentos. Se eu quiser cuidar dele, o que inclui convencê-lo de utilizar as medicações e submeter-se aos procedimentos, tenho que compreendê-lo como uma totalidade. Se eu quiser curá-lo ou aliviá-lo de seu sofrimento, serei seu médico, e para isso, tenho que respeitá-lo antes de qualquer coisa”. Por isso, ser médico de alguém dá muito trabalho e isso consome tempo.

PS. Deve haver mais algum. Mas 10 é um número bonito.

FMUSP 100 Anos – Carta do Prof. Arrigo Raia

Faculdade de Medicina com o Hospital das Clínicas as fundo. Provavelmente década de 50.

O Ecce Medicus publica hoje, como parte das comemorações dos 100 anos da Faculdade de Medicina da USP, uma carta do professor Arrigo Raia divulgada originalmente no jornal da Fundação Faculdade de Medicina. A FMUSP não é a faculdade de medicina mais antiga do Brasil, mas talvez seja a que dispõe de uma mesa mais farta para que cada aluno possa se servir. Seu prédio na avenida Dr. Arnaldo e o museu de medicina valem uma visita. A FMUSP comemora 100 anos da formatura de sua primeira turma junto com o centenário de seu aluno decano.

Uma vida longa como a da FMUSP

Nasci em Araraquara, no interior de São Paulo, dia 23 de agosto de 1912. Em breve completarei meu centenário, junto com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), escola em que me formei e vivi grande parte da minha vida. Eu sou a única pessoa viva que acompanhou a faculdade por todos os lugares por onde ela passou. Primeiro na Rua Brigadeiro Tobias, em seguida na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e depois minha turma inaugurou os edifícios da FMUSP na Avenida Dr. Arnaldo, onde está até hoje. A medicina chegou à minha vida muito cedo. Meu avô materno era italiano e médico. Ele veio para o Brasil e desde pequeno eu o acompanhava nas visitas aos doentes, no trole ou no carro para passear, então com 8 anos eu já tinha vontade de ser médico cirurgião.

Entrei na FMUSP em 1931 e me formei em 1936. Nos primeiros três anos, o curso era ministrado na Avenida Dr. Arnaldo. No quarto ano passamos para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e a princípio eu me decepcionei, porque naquela época a cirurgia era muito restrita e nos casos das cirurgias maiores o índice de mortalidade era muito grande. O panorama mudou muito quando, em 1945, o Prof. Dr. Benedito Montenegro assumiu a direção da primeira cadeira de clínica cirúrgica e o Prof. Dr. Alípio Corrêa Netto assumiu a segunda cadeira, em 1946.

No último ano da faculdade, o governo italiano ofereceu uma passagem para 12 alunos. Em 1937, fomos em caravana para a Itália e tivemos a oportunidade de conhecer diferentes clínicas. Como eu já havia terminado o curso, estendi a viagem e fui para a Alemanha. Voltei para o Brasil em 1938 e regressei para trabalhar com o Prof. Alípio. A partir daí, desenvolvi toda a minha carreira na FMUSP. Em 1939, me tornei o terceiro assistente da cadeira de Clínica Cirúrgica, dirigida pelo Prof. Dr. Alípio. Em 1941, fui nomeado para exercer o cargo de Professor de Enfermagem Cirúrgica da Escola de Enfermagem Obstétrica da FMUSP. Em 1943, me tornei Livre Docente de Clínica Cirúrgica. Em 1961, conquistei, através de concurso, o título de Professor Adjunto. Em 1970, assumi o cargo de Chefe de Disciplina do Aparelho Digestivo do Departamento de Clínica Cirúrgica. E em 1973, após concurso, conquistei o título de Professor Titular do Departamento de Cirurgia.

Logo após me tornar Professor Titular da cirurgia do aparelho digestivo, adotei uma conduta pioneira, acredito que no mundo, dividindo a especialidade em grupos dedicados, respectivamente, a cada um dos setores da disciplina, entregando a chefia a jovens cirurgiões que gradativamente se transformaram em líderes na especialidade. São eles: esôfago, Prof. Henrique Walter Pinotti; estômago, Prof. José Gama Rodrigues; colo, reto e ânus, Profs. Daher Cutait e Angelita Habr Gama; fígado e hipertensão portal, Prof. Silvano Raia; e vias biliares e pâncreas, Prof. Marcel Cerqueira Cesar.

Fui um professor democrata, dei liberdade aos assistentes para que desenvolvessem suas atividades na disciplina, de tal forma que sete deles se tornaram professores titulares: cinco da FMUSP e dois em outras universidades.

Com a colaboração, contribuímos para a evolução da cirurgia digestiva em nosso meio, de tal sorte que, ao fim do meu mandato de professor, eram praticadas todas as técnicas cirúrgicas para tratamento das doenças do apare- lho digestivo, da apendicectomia ao transplante de órgãos.

Após muitos estudos, em 1971, eu e os Profs. Silvano Raia e Marcel Cerqueira Cesar Machado realizamos o primeiro transplante de fígado. O paciente sobreviveu 20 dias. Em 1974, fui convidado a participar da comissão médica que ajudaria na instalação e estruturação do Hospital Universitário (HU), auxiliando na escolha e aquisição dos equipamentos.

Durante minha trajetória publiquei três livros: “Manual de Pré e Pós-operatório”, com a colaboração dos Drs. Joel Faintuch e Marcel Cerqueira Cesar Machado; “Manifestações Digestivas da Moléstia de Chagas” e “Tratado de Clínica Cirúrgica Alípio Corrêa Netto”, com a colaboração do Dr. Euriclydes de Jesus Zerbini. Fui agraciado com 33 prêmios concedidos por sociedades científicas e congressos médicos, destes dez foram outorgados pela Academia Nacional de Medicina e um pela Academia Americana pelo progresso da ciência de Nova York. Sou membro de 14 sociedades médicas nacionais e internacionais e, dentre elas, membro emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

Recentemente, fui homenageado em uma comemoração do centenário da FMUSP como aluno mais antigo da faculdade. Fiquei muito feliz por ter sido lembrado e pelo reconhecimento de todo meu trabalho junto à Faculdade e ao Hospital.

Além da minha família, a cirurgia foi minha paixão durante toda a vida: operei até meus 86 anos. Já estou no segundo casamento, tenho uma filha, dois netos e quatro bisnetos. Hoje, com quase 100 anos, minha maior alegria e diversão é brincar com meus bisnetos, e também faço caminhadas e musculação. Sempre que posso, viajo para rever minha cidade, Araraquara.

Bendigo o momento em que decidi seguir a carreira médico-cirúrgica. Muito trabalhei, muitos exemplos transmiti, muito ensinei e muito recebi em troca. Na fase atual de minha vida, sinto-me realizado e com experiência suficiente para dizer aos mais jovens que vale a pena todo o sacrifício que a carreira médica exige. Além de tudo, nos oferece um ocaso tranquilo e feliz pela nítida noção do dever cumprido.

Prof. Dr. Arrigo Antonio Raia Médico Cirurgião e Professor Emérito da FMUSP

Carta da Lu ou Sobre como o Mito de Tritão-Sereia influencia a Vontade de Salvar da População Médica Brasileira

O Ecce Medicus pretende, quem sabe um dia, ser um espaço para reflexões sobre a profissão médica. Por essa razão, há algum tempo, venho convidando pessoas, médicos ou não, a escrever sobre suas práticas e vivências relacionadas à profissão de Hipócrates. Hoje, publico uma carta da Dra. Lúcia, médica infectologista e intensivista do Paraná. 

“Querido Karl,

Queria te contar como foi a minha semana passada! Faz tempo que não batemos papo, e, devo confessar, faz tempo que mal tenho tempo pra ler o seu blog, que sempre alimenta os olhos e a alma… E põe meu cerebro pra funcionar também! Afinal, nesta nossa correria diária, vivemos embotados, no automático, mantendo a cabeça acima da linha d’água… Ops! É bem esse o assunto! Protocolos e água!

A Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, numa parceria com o Corpo de Bombeiros do Estado, patrocinou um curso de Salvamento Aquático. O coordenador foi o Dr Ten Cel David Szpilman, autoridade mundial em afogamento. Tirando o fato de estar na frente de um dos mestres, a emoção estava em nivelar a todos, socorristas, guarda vidas, técnicos de enfermagem, enfermeiras e médicos, desde o ínicio do curso. As estatísticas são impressionantes, caro Karl. Cerca de 7000 óbitos por afogamento todo ano no país, dimensões continentais, não? Pessoas jovens, com grande expectativa de vida, produtivos. Nós nos acostumamos a enxergar o que chega ao hospital, que são os mais graves e mais difíceis de recuperar. Nós acostumamos a pensar que afogamento é coisa de mar grande e rio bravo. Quem se afoga e morre hoje?  São mais de 100.000 acidentes não-fatais no BRASIL! Nos pacientes de 1-14 anos, o afogamento é a segunda causa de morte. Na aula de acolhimento com estatísticas, a surpresa: as crianças morrem em casa, na banheira, na piscina, no tanque! Cerca de 70% das pessoas que se afogam no litoral são pessoas que vivem fora da orla. Essa catástrofe crescente está sendo mapeada graças aos esforços e iniciativa do Dr. Szpilmann, que classificou e estudou os tipos de afogamento (link pro site Sobrasa). Os melhores dados do mundo são os dados brasileiros. A educação para a prevenção hoje se mostra a maneira mais racional de combate a esse tipo de morte, uma vez que apenas 7% dos que se afogam em grau 6 sobrevivem, 0,5% sem sequelas. (Clique aqui para ver a classificação de afogamentos. Arquivo pps, em português).

Pra começar, fomos convidados a piscina! Cada dia mais todos convivemos com esportes aquáticos e estamos acostumados a nos divertir na água, no verão. Eu mesma sou uma entusiasta da água: nado desde os oito anos, hoje mergulho, tenho o Rescue Diver como um dos cursos mais importantes que fiz na vida de mergulhadora. Você sabe nadar? Ótimo, não se arrisque. Mas você sabe ajudar alguém em apuros, para que não vire estatística? Coragem e técnica são atributos diferentes e podem fazer a diferença entre a vida e a morte de uma ou duas pessoas (sim, a pessoa em apuros e seu possível salvador!  Ops, agora vítima também!). Como profissionais de saúde, sempre somos referência em situações de risco. E, acostumados com a cena hospitalar montada e razoavelmente confortável, como reagir numa situação de salvamento?  Você não tem a enfermeira e o oxigênio com a máscara, você não tem quatro pares de mãos habilitadas ao seu redor, você tem apenas você e a vítima. E um momento de festa em família, de lazer e recreação se transforma no seu pior pesadelo, atender, SALVAR a quem você ama! (não estamos discutindo o cunhado nem a sogra, nem as relações familiares…). Choque! Não, não tem desfibrilador, mas sim, um corpo boiando em parada respiratória… Karl, acostumados que somos em salvar vidas, em processos invasivos complicados, em atos médicos e monitoramentos… Só você e a vítima… Sentiu o arrepio?

Isto não é o resgate do naufrágio do Titanic. É um treinamento na praia

Hoje, vou pra água mais tranquila! Porque sempre digo: o engenheiro está andando na rua e um prédio que ele não construiu desaba. Ele se compadece e continua. Um advogado assiste ao crime e se protege. E continua. Mas nós médicos, se vemos algum mal súbito acontecendo ao nosso redor, seremos sempre médicos. E se mais alguém souber, ainda respondemos por omissão de socorro, negligência, caso não estejamos prontos a atuar. Esse “inconsciente coletivo”, do médico-Deus, onisciente, onipotente, nos atinge, faz todas as cabeças virarem em nossa direçao. Pois entender como prevenir, evitar, reconhecer o risco, e iniciar o atendimento pré-hospitalar, definidor de quem vai viver ou não nos afogamentos, me faz sentir melhor hoje.

Recebo muitas vítimas de afogamento, de todos os níveis. O conhecimento dos protocolos de atuação, desde a praia até a UTI, nos ajuda a falar uma só língua, entender o valor de cada passo, o empenho do guarda vida, a valorização da VIDA!  Quem sempre me impressionou e hoje valorizo ainda mais, é o Guarda-Vidas. PARECE fácil se jogar e tirar alguém da água. Arriscar a propria vida, Karl!  Não tem nada parecido na medicina intra-hospitalar!  Gastar muita energia, muita técnica e muita garra, não tem nada de fácil.  Existem homens (e mulheres) assim. Quem dera existissem coragens, energias, técnicas, GENTES assim, em todas as áreas. Ver e ser parte do mito do Tritão-Sereia, dominar a força do mar por alguns instantes e ver a vida resistindo, lutando, querendo! Isso muda muitas perspectivas.

Vou voltar a nadar amanhã.”

Civil em treinamento

Fotos cedidas pela autora.

Links interessantes

1. Sobrasa Referências, apostilas e aulas.
2. Poseidon Algumas estatísticas nos EUA (em inglês)
3. Drowning No EMedicine. Precisa inscrição (em inglês).

Por Que Não Sou Pediatra

Pouca gente sabe, mas minhas melhores notas no internato foram em estágios de Pediatria. No 6o ano, no Hospital Universitário, fiz um estágio muito bom e um pediatra já famoso na época me disse para fazer residência de Pediatria e ir trabalhar com ele. Fiquei muito lisonjeado e pensativo. Isso significaria acesso a uma medicina de ponta, trabalhar nos melhores hospitais da cidade e uma remuneração bastante interessante. Mas, decidi que não queria Pediatria. Nunca entendi direito essa minha decisão e alguns acontecimentos recentes me fizeram refletir sobre essa (não) escolha de tempos atrás.

Não há nada, nem haverá jamais nada sequer semelhante, em magnitude ou poder capaz de nos confrontar com a realidade da ausência de sentido ou propósito; com a propriedade de relativizar a textura do real com a força devastadora do que poderia ser chamado de um tornado afetivo; ou de sufocar aquilo que o humano tem de mais precioso que é sua esperança, que a morte de uma criança.

Não me refiro a assassinatos. Nesse caso, os canhões de nossa ira apontam para um culpado e lá descarregarão todas as esperanças frustradas, toda a decepção por compartilhar de uma mesma humanidade, toda a revolta e o ressentimento.

Me refiro ao que poderia ser chamado de “morte natural”. Uma morte por doença, uma morte médica. Uma qualquer? Por exemplo, leucemia. Que raios uma célula-tronco que deve produzir células brancas “cria” uma linhagem-clone com uma certa vantagem reprodutiva de modo que essa linhagem logo toma conta de todo o setor de produção de células brancas, e também vermelhas e plaquetas, ganhando o sangue periférico, invadindo orgãos, subvertendo funções…E após 2 anos de sofrimento extremo, a vida de uma criança é varrida do planeta.

E as pessoas que têm um Deus se perguntam: por quê? As que não têm, fazem exatamente a mesma pergunta. Estamos todos presos à natureza humana. Uma natureza desejante e insatisfeita; delirante, imperfeita, incompleta. Pelo menos desse karma existencialista consegui me livrar. Restaram, entretanto, todos os inumeráveis outros.