Suspensão de Revistas Médicas Brasileiras

Bandeira Vermelha

Em um documento datado de 18/06/2013 (não consegui checar a data com certeza), a Thomson Reuters, proprietária de índices cientométricos como o Fator Impacto (FI), por meio do seu Journal Citation Reports®, divulgou uma lista de jornais suspensos de sua principal indexação. A lista pode ser vista aqui, no item Editorial Information, Title Suppressions. Uma apresentação em pdf (de onde tirei a foto acima) que explica as razões da “supressão” pode ser baixada aqui e por qualquer um que digitar “suppression journals” no oráculo buscador. A explicação para a punição vai abaixo, em tradução livre do inglês.

As métricas para os títulos listados abaixo não são publicadas no JCR 2012. Foram encontrados padrões de citações anômalos resultando em uma signifante distorção do Fator Impacto de revistas, de modo que o rank não reflete precisamente a performance da respectiva publicação na literatura. O fator impacto proporciona uma medida importante e objetiva da contribuição da revista na comunicação acadêmica e sua distorção e concentração excessiva de citações é uma questão séria. A equipe do JCR monitorará tais revistas que poderão ser incluídas em edições vindouras quando o problema das citações for resolvido. A cobertura das revistas na Web of Science e outros produtos da Thomson Reuters não será imediatamente afetada pela suspensão no JCR entretanto, o títulos podem ser objeto de revisão no intuito de determinar se os padrões de qualidade e publicação necessários para inclusão na Web of Science são atingidos.

Em outras palavras, as revistas foram suspensas por auto-citação. Uma estratégia que faz com que o FI aumente artificialmente. No exemplo da apresentação, uma revista teria FI 10, caso fossem consideradas as auto-citações. Ao retirá-las, o FI cai para 2. A tabela abaixo (clique para aumentar) mostra as 4 revistas brasileiras “suspensas” do repositório (CLINICS, J BRAS PNEUMOL, ACTA ORTOP BRAS e REV ASSOC BRAS MED).

tabela clinics

A primeira delas é a antiga revista do Hospital das Clínicas da FMUSP, agora denominada CLINICS, cujo FI é maior que 2. Na lista há ainda outras revistas brasileiras importantes na área médica como os Arquivos Brasileiros de Cardiologia e o Jornal Brasileiro de Pneumologia. O texto ficou ambíguo e devo enfatizar que os Arquivos Brasileiros de Cardiologia não foram suspensos do repositório, caso não tenha ficado claro.

Ainda não localizei manifestações das revistas defendendo-se ou justificando-se, nem sei quantificar o quanto isso prejudicará a imagem delas e a nossa. Também não sei se dá para colocar todas as revistas no mesmo balaio. Vou monitorar isso e se houver novidades, publicarei. Se algum leitor mais bem informado tiver algo a acrescentar, por favor, faça-o. Se precisar sigilo, é só pedir.

Atualização 24/06/13 23:15

Publico, na íntegra, carta dos editores das 4 revistas que acabei de receber.

24-Jun-2013

Dear Dr,

As you may know, Acta Ortopedica Brasileira, Clinics, Jornal Brasileira de Pneumologia and Revista da Associação Médica Brasileira have been suspended for one year from the Journal Citation Reports (JCR) 2012. This means these journals have no published Impact Factor for 2012. However, they continue indexed in the ISI Web of Science and consequently, all citations to and from articles in these journals continue to be counted by ISI. The suspensions do not affect the Impact Factor of any other JCR periodical. It should also be noted that we are indexed in Scimago (www.scimagojr.com) with impacts similar to those normally posted in JCR. A new edition of Scimago is scheduled for July, 2013.
According to information provided by Thomson Reuters, the four journals have been suspended for allegedly performing “stacking”, defined by Thomson Reuters as an accumulation of citations to one journal in articles published in a different journal. This was instituted by ISI as a form of inappropriate usage of citation in 2012. The alleged breach occurred in 2011. Therefore, ISI has used this retroactively to suspend the four journals. We confirm that we published articles to highlight specific aspects of Brazilian Science in 2011. These articles covered topics in the highlighted theme published by a large number of different Brazilian Science Journals. This is a common practice in the entire world and comes under the name of review articles. Unfortunately this new modality of ISI policy prevents us from continuing to perform this service to the community, namely the reporting of information relating to recently published Brazilian Science. We regret the inconvenience caused by this new ISI policy. Acta Ortopedica Brasileira, Clinics, Jornal Brasileira de Pneumologia and Revista da Associação Médica Brasileira wish to take this opportunity to reaffirm and renew their commitment with ethical and truthful reporting of science, within the dignified concept of scientific activity.

Olavo Pires de Camargo
Editor, Acta Ortopedica Brasileira

Mauricio Rocha e Silva
Editor, Clinics

Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho
Editor, Jornal Brasileiro de Pneumologia

Bruno Caramelli
Editor, Revista da Associacao Medica Brasileira

Parece que o problema são os artigos de revisão e/ou de comentários sobre artigos publicados por/em revistas brasileiras que, na nova política, são considerados auto-citações. Aguardaremos os novos desdobramentos.

Transplante de Fezes

Parece* que nascemos mesmo livres, ao menos dos germes. Estéreis ou, como os cientistas gostam de dizer, gnotobióticos. Logo após o nascimento, entretanto, no período neonatal, somos já colonizados. O tipo de colonização é bastante influenciado pelo contato materno mas é, sob alguns aspectos, uniforme. Há mais de cinquenta filotipos de bactérias mas apenas quatro nos adotaram como lar. São eles os Firmicutes, os Bacteroidetes, as Actinobacterias e as Proteobacterias (parece Game of Thrones, né?). Mas, por que só quatro? Essa especificidade sugere uma interação de poderosas forças seletivas que permitiram eliminar algumas e manter outras espécies em co-evolução.

microbiota11

Fig. 1 – Esquema de distribuição dos filos bacterianos em um ser humano saudável. A área de cada setor do gráfico está relacionada ao número de diferentes espécies bactérias do filo no determinado sítio do hospedeiro. (copiado com permissão do Meio de Cultura)

Apesar de seguirmos esse padrão geral, cada ser humano parece ter uma combinação própria de bactérias desses filos, tornando a microbiota quase uma assinatura microbiológica de cada pessoa. As regras que governam a co-existência de humanos e bactérias de acordo com esse modelo ainda não são bem elucidadas, mas o fato é que alguns estudos em animais de laboratório gnotobióticos mostraram que tais bactérias não são fundamentais para o desenvolvimento normal desses bichos. Por outro lado, a gnotobiose não ocorre de forma espontânea na natureza. Então, parece realmente que obtemos alguma vantagem de nos deixar ocupar. No nosso caso específico, a microbiota que nos habita facilita a incorporação de vitaminas e nutrientes, ajuda no desenvolvimento e manutenção da integridade dos tecidos, em especial da mucosa intestinal, além de estimular em muitos aspectos as defesas contra invasores causadores de doenças, para citar alguns exemplos. Um desses invasores tem tirado o sono de médicos e microbiologistas: o Clostridium difficile. Vamos conhecê-lo mais de perto.

Clostridium difficile (C diff)

Fig. 2 – Fotografia de microscopia de população de Clostridium difficile no intestino sem microbiota nativa. (Copiado do The Guardian Foto de Dr David Phillips/Getty Images). Clique na foto para ver o original.

O Clostridium difficile é um bacilo (forma de bastão) anaeróbio obrigatório (não utiliza oxigênio), gram-positivo, que faz parte da microbiota intestinal e produz duas toxinas (A e B). A toxina A é uma enterotoxina que causa aumento da permeabilidade intestinal e secreção de fluidos, enquanto a toxina B é uma citotoxina que causa intensa inflamação dos cólons. Por isso, o clostrídio causa uma colite que chamamos de pseudomembranosa devido ao seu aspecto macroscópico à colonoscopia. O Clostridium difficile pode provocar até 20% dos casos de diarreia associada a antibióticos e é uma das causas mais comuns de diarreia adquirida em hospitais, em geral, em pacientes já debilitados o que além de dificultar o tratamento, aumenta o número de complicações. O tratamento para a colite por C. difficile consiste na administração oral de antibióticos (metronidazol ou vancomicina). Além disso, a taxa de recidivas é muito alta (15 a 26% dos pacientes). Nenhum tratamento efetivo contra as recorrências está disponível e o que temos é a prescrição de vancomicina prolongadamente. Isso, além de diminuir progressivamente sua eficácia, pode também ser a causa do problema. O que fazer?

Cascao ideia

Foi quando alguém teve a brilhante ideia que dá título a esse texto.

Ora, se o problema é um desbalanço na microbiota intestinal, vamos tentar restabelecê-la. Inicialmente, foram tentadas bactérias como os próbióticos (lactobacilos, etc). Não deu certo. Quando se tem pacientes morrendo e não se dispõe de terapias adequadas, a necessidade cria alternativas, muitas vezes desesperadas ou mesmo inusitadas.

“Por que não passamos as bactérias de um indivíduo saudável para um doente?” – pensou algum médico desesperado. “Sim. Mas como faremos isso?” – respondeu seu amigo pragmático. “Ora, infundimos um lavado de fezes do intestino do saudável para o doente… Simples!”.  Foi o que fez o grupo de pesquisadores holandeses liderados por Els van Nood, citados abaixo. Por mais nojento que possa parecer, a coisa funcionou. E muito bem. O estudo teve que ser interrompido em sua análise interina pois, com apenas 43 pacientes randomizados, foi possível demonstrar uma nítida melhora no grupo tratamento com 16 pacientes. Qual tratamento? O intestino dos indivíduos com clostrídio era lavado e após isso, infundia-se, por meio de uma sonda nasogástrica, 500 ml de solução constituída de material fecal de um doador saudável (ver metodologia original no final do texto). Paralelamente a isso, foi tentado o tratamento convencional com vancomicina e ainda, uma mistura dos dois. A figura 3 mostra a taxa de cura de cada tratamento.

van Nood

Fig. 3. Gráfico mostrando a taxa de cura de acordo com os tratamentos instituídos com as respectivas significâncias (p) de cada grupo comparado com os outros. Para mais explicações, ver o texto.

O primeiro grupo, representado na coluna mais a esquerda, mostra a taxa de cura com uma infusão única. Se isso não resolvesse, era tentada uma nova infusão com fezes de um doador diferente. Esses resultados são agrupados na segunda coluna do gráfico da figura 3. A vancomicina sozinha ou associada às infusões parece realmente ser inferior. Interessante também avaliar a diversidade da microbiota dos pacientes após as infusões.

microbiota

 Fig. 4. Gráfico mostrando a variação da microbiota intestinal nos pacientes antes e após a infusão de fezes, comparando com os doadores de acordo com o índice de recíproco de Simpson. Para mais explicações, ver o texto.

A microbiota intestinal foi avaliada por análise de DNA usando microarray filogenético (Human Intestinal Tract Chip – HITChip) e a diversidade das comunidades bacterianas antes e depois da infusão de fezes usando uma escala chamada de Simpson’s Reciprocal Index of Diversity, que vai de 1 a 250, com os maiores valores indicando maior diversidade. É nítida a mudança após a infusão, ficando os pacientes com uma microbiota tão diversa quanto a dos doadores.

A conclusão é que o tal transplante de fezes funciona para o tratamento de infecções recorrentes pelo Clostridium difficile. Dito isto, podemos começar a imaginar algumas coisas. Muitas afecções atuais, que vão desde a obesidade até doenças cardíacas passando por fibromialgia, pancreatite e autismo, estão sendo atribuídas a alterações da microbiota (figura 5).

Microbiota2

Fig. 5 – Esquema de possiveis doenças e/ou complicações associadas a alterações da microbiota intestinal. Clique na foto para ver o original.

Será que os futuros tratamentos vão ser…? Sei lá. Melhor nem pensar… Espero que alguém imagine uma cápsula deglutível que nos traga colonizadores saudáveis e nos livre de tais procedimentos pouco aprazíveis. Seria o caso de instituirmos um tipo de microhiperneocolonialismo do bem? Sim, porque a abordagem convencional de partir pra porrada e dar “veneno” para as bactérias, dividindo-as entre boas e más, parece não surtir mais efeito (como em tudo, aliás).

*Atualizado em 23/06/2013

 

Referências

Blaser, M., & Falkow, S. (2009). What are the consequences of the disappearing human microbiota? Nature Reviews Microbiology, 7 (12), 887-894 DOI: 10.1038/nrmicro2245

van Nood, E., Vrieze, A., Nieuwdorp, M., Fuentes, S., Zoetendal, E., de Vos, W., Visser, C., Kuijper, E., Bartelsman, J., Tijssen, J., Speelman, P., Dijkgraaf, M., & Keller, J. (2013). Duodenal Infusion of Donor Feces for Recurrent New England Journal of Medicine, 368 (5), 407-415 DOI:10.1056/NEJMoa1205037

Apêndice

Infusion of Donor Feces – methodology

Donors (>60 years of age) were volunteers who were initially screened using a questionnaire addressing risk factors for potentially transmissible diseases. Donor feces were screened for parasites (including Blastocystis hominis and Dientamoeba fragilis), C. difficile, and enteropathogenic bacteria. Blood was screened for antibodies to HIV; human T-cell lymphotropic virus types 1 and 2; hepatitis A, B, and C; cytomegalovirus; Epstein–Barr virus; Treponema pallidum; Strongyloides stercoralis; and Entamoeba histolytica. A donor pool was created, and screening was repeated every 4 months. Before donation, another questionnaire was used to screen for recent illnesses.

Feces were collected by the donor on the day of infusion and immediately transported to the hospital. Feces were diluted with 500 ml of sterile saline (0.9%). This solution was stirred, and the supernatant strained and poured in a sterile bottle. Within 6 hours after collection of feces by the donor, the solution was infused through a nasoduodenal tube (2 to 3 minutes per 50 ml). The tube was removed 30 minutes after the infusion, and patients were monitored for 2 hours. For patients who had been admitted at referring hospitals, the donor-feces solution was produced at the study center and immediately transported and infused by a study physician.

Medicina com Fronteiras

O título do post é, obviamente, um trocadilho com uma das coisas mais fantásticas e sublimes que a medicina já produziu, a Medecins Sans Frontièreentidade humanitária com ações globais em áreas de vulnerabilidade social e o tirei da excelente entrevista de Juliana Sayuri d’ O Estado de São Paulo com o médico Mário Scheffer, coordenador de estudo Demografia Médica no Brasil, patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Pretendo, nas próximas linhas, explicitar minha opinião sobre a notícia, veiculada em 06/05/2013, da vinda de 6.000 médicos de Cuba, e de outros tantos de Portugal e Espanha, para trabalhar em regiões carentes do Brasil.

Suponhamos que venham então. Seis mil pessoas de um país estranho venham, de fato, exercer medicina nos ermos do Brasil. O Governo Federal especificaria suas áreas de atuação, sua remuneração e seu modo de trabalhar. Não temos dados concretos sobre esse plano, o que me dá um certo calafrio na espinha dado o déjà-vu de pirotecnia administrativa, como sói acontecer em políticas públicas no Brasil. Vamos então, especular.

Sobre a validação. “O médico pode ser definido como o ser humano pessoalmente apto, tecnicamente capacitado e legalmente habilitado para atuar na sociedade como agente profissional da Medicina – o que lhe assegura o direito de praticar todos os atos que a legislação permite ou obriga”, e a submeter-se às normas classistas bem como a seus princípios éticos. A definição se baseia em 3 quesitos que, faltantes, descaracterizariam a profissão de médico. É necessário ser: 1) Humano apto; 2) Capacitado tecnicamente; 3) Habilitado legalmente. A capacitação técnica é difícil de avaliar dada a relação intrínseca da medicina com a prática, mas a realização de exames frequentes e os programas de educação médica continuada ajudam a minimizar isso em várias localidades do mundo. A habilitação legal, por mais discutível, vinculada à capacitação técnica, politicamente influenciável e provincianamente conduzida que seja, é necessária. Aqui, a comparação com a habilitação de motorista é plenamente válida.

É sob essa lógica que o CFM tem atuado. A necessidade de ordenar a profissão, controlá-la e estabelecer normas para sua estruturação cabe ao conselho classista. Acho muito engraçado articulistas, palpiteiros, políticos, pacientes, e pessoas em geral, acusarem a corporação chamada CFM de “coorporativista”. Isso soa um pouco como acusar o Exército de ser bélico. O CFM está no seu papel e a discussão não deve ser desarticular sua argumentação, mas criar opções a ela. O próprio CFM está elaborando propostas para fixação do médico brasileiro nos tais “vazios assistenciais”. Uma crítica que caberia aqui é mas por que não fizeram isso antes? Por que esperar o anúncio da contratação dos médicos estrangeiros para lançar tal proposta? Nesse sentido, o chacoalhão veio em boa hora.

Países como EUA, Canadá, Reino Unido têm médicos estrangeiros em proporções variadas que beiram os 20%. Todos têm também, sem exceção, regras para validação dos diplomas (habilitação) e verificação da capacidade por meio de programas específicos. Não vejo problema nenhum com isso e a vinda de médicos que cumprissem tais condições – e isso também está sob discussão – é uma decisão de quem elabora as políticas de saúde.

Sobre as estratégias de assentamento. Uma das coisas que tem intrigado a opinião pública é o fato de que, mesmo com bons salários, os médicos não são capazes de “interiorizar-se”, o que mostra que a questão não é, nem de longe, meramente econômica. Setores do pensamento de esquerda acusam as faculdades de medicina de uma formação elitista e tecnologizada, fazendo com que o médico se sinta “nu” na ausência de sua tecnologia, impedindo-o então de trabalhar em locais onde ela fosse precária. Para resolver isso, propõem a vinda de médicos formados em faculdades voltadas para a atenção primária, como por exemplo, a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) em Cuba. Em que pesem as enormes dificuldades em se estudar medicina em Cuba e a manifestação contrária do senhor ministro da saúde, a proposta se apoiaria no fato de que tais médicos seriam desprovidos dessa arrogância tecnológica e mais aptos a trabalhar em condições difíceis. Não descarto, a priori, esse raciocínio.

Mas, como evitaríamos que tais médicos abandonassem seus postos? Por mais ideologizado que seja, a necessidade de formação, crescimento e ascensão na carreira é inerente ao bom profissional, ao que recusa-se a estagnar e, no caso dos médicos, ao que sabe da responsabilidade que tem e da possibilidade de que um erro pode equivaler à morte. Quais ações seriam implantadas para que tais médicos fixassem-se nos locais onde o governo necessita? A pergunta procede. Criar um sistema nos moldes do Judiciário e programas de assentamento do médico que incluem a educação continuada são possibilidades. Mas por que raios, esses programas não poderiam funcionar para os médicos tupiniquins também?

Em suma, o assunto é bastante complexo. Particularmente, não sou contra a vinda de médicos estrangeiros desde que se mostrem capacitados a exercer a profissão de acordo com as regras estabelecidas pela sociedade brasileira. Pode-se discutir as regras sempre, dificultar ou facilitar de acordo com um plano de ação. Por outro lado, não acredito que a vinda de tais médicos resolva o problema. A saúde da população transcende as fronteiras da atuação do médico que está contida nela. Ao voltarmos nossos olhares para as áreas carentes de atendimento em saúde veremos que a necessidade é muito maior que a vã lógica “medicalista” poderia supor.

Remédios não curam o abandono.

Angola © Atsushi Shibuya/MSF 2001

Angola © Atsushi Shibuya/MSF 2001

Fenomenologia da Elegância

andrea-laliberte-femme-elegante-iiiPor que não costumamos dizer que cachoeiras ou praias são elegantes? Quem pode ter o atributo da elegância? Seria a elegância um modo-de-ser exclusivo das coisas do humano? Um terno ou um vestido não são elegantes em si. Tornam-se (ou não) quanto vestem alguém. Já um móvel pode ser elegante mesmo que não haja ninguém por perto. Uma floresta não é elegante. Um jardim pode ser. Mas por quê? Qual característica (humana?) singulariza a nós e nossas coisas como candidatos à elegância?

E por fim, mas não menos importante: o que é elegância e qual a importância em ser elegante? É possível uma atividade humana, por exemplo, a ciência ou a medicina, ser desempenhada de forma elegante? Se sim, como isso se dá? Um artigo recente em uma importante revista de nefrologia (ver abaixo) ressalta a importância de uma ciência elegante. Basicamente, os autores defendem a ideia de que a elegância teria um valor epistemológico em si dado que pode emergir na forma de síntese (organização de dados de uma forma diferente que permita ver algo novo, como no exemplo da descoberta da vacina da varíola por Jenner); na forma de uma combinação entre simplicidade e equilíbrio (como na hipótese do trade-off de Bricker & Slatopolsky para o equílibrio entre cálcio e fósforo nos mamíferos); ou, finalmente, na forma de simplicidade e linearidade (como na hipótese dos supernéfrons de Barry Brenner). Seria um tipo de Navalha de Ockham estética e parcimoniosa. Em algumas áreas da matemática, isso parece mesmo ser o método. A conclusão do artigo, que reproduzo agora em tradução livre do inglês, me parece reveladora.

Um estudo sistemático da elegância requer uma abordagem interdisciplinar que envolva a pesquisa biomédica contemporânea, uma perspectiva histórica e uma compreensão filosófica das bases da ciência. Como na famosa frase de Kuhn: “é especialmente em períodos de reconhecida crise que os cientistas voltam-se às análises filosóficas como dispositivo para decifrar os enigmas de suas atividades”. Nós acreditamos que a história e a filosofia têm um papel na prática cientifica cotidiana, não apenas nos momentos de crise. A perspectiva histórica e a reflexão filosófica não são elementos tangenciais mas componentes fundamentais da pesquisa científica. Em especial, elas nos permitem desenvolver características da ciência que a tornam elegante e melhor compreender porque uma mente elegante é um propulsor do progresso científico.

Se essa fórmula é válida ou não, podemos tentar discutir mais adiante. A elegância contudo nos afeta cotidianamente e provoca em nós um vislumbre do sublime. Antes de saber o que seria uma “medicina elegante” por exemplo, é preciso entender como algo elegante, pessoa, objeto ou ação, se apresenta a nós. Como se destacaria tal elegância no mundo que me cerca visto que a discrição, e não a ostentação, e a parcimônia, e não o excesso, são características do que é elegante? Que impressão causa em mim tal fenômeno é um trabalho que pode ser abordado de múltiplas formas. Tentarei, com todos os riscos inerentes a um amador (no sentido forte do termo) no assunto, a via fenomenológica. O tema me é caro e mereceria uma abordagem menos diletante dado que pode constituir a “via estética” como uma alternativa concreta como perceberam os colegas do artigo abaixo. Mas considerem como um exercício. (Se eu errar, corrijam, por favor!).

Ver Fenomenologia da Elegância II e III.

ResearchBlogging.org

Nathan MJ, & Brancaccio D (2013). The importance of being elegant: a discussion of elegance in nephrology and biomedical science. Nephrology, dialysis, transplantation : official publication of the European Dialysis and Transplant Association – European Renal Association PMID: 23378419

Ricoeur, Metáforas, Narrativas e a Medicina

Tempo NarrativaConheço muita gente boa – boa mesmo – que não gosta de ler ficção. Mais especificamente, romances ou histórias contadas, ou mesmo narrativas. Uma vez, escrevi que os romances são como ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, placebo controlados do mundo da vida e continuo concordando com isso. Mas, confesso, ainda me faltava um certo embasamento teórico para sustentar isso. Paul Ricoeur talvez tenha resolvido o problema. Ele teve reeditada no Brasil sua obra máxima “Tempo e Narrativa” pela editora Martins Fontes. Segundo o que o próprio autor expõe na introdução ao livro, Tempo e Narrativa é uma obra gêmea de A Metáfora Viva. Este livro pode ser considerado uma consequência da “experiência de Ricoeur na academia norte-americana, especialmente por seu contato com a filosofia analítica anglo-saxônica e sua inclinação por estudar não apenas a natureza ontológica de cada categoria, mas seus mecanismos de funcionamento e de interação com o mundo”[1]. Em A Metáfora Viva, de 1975, Ricoeur defende, a exemplo de Rorty, que a metáfora provoca uma inovação, ou como gostaria o americano, uma redescrição.

Com a metáfora, a inovação consiste na produção de uma nova pertinência semântica por meio de uma atribuição impertinente: “A natureza é um templo onde viventes pilares…” A metáfora continua viva enquanto percebermos, através da nova pertinência semântica – e de certo modo em sua espessura -, a resistência das palavras em seu emprego usual e, portanto, também sua incompatibilidade no nível de uma interpretação literal da frase.”

Dito isso, Ricoeur passa a explicar que Tempo e Narrativa é fruto de uma tentativa de paralelismo entre metáforas e narrativas, veja só! No caso das narrativas,

… a inovação semântica consiste na invenção de uma intriga que, também ela, é uma obra de síntese: pela virtude da intriga, objetivos, causas, acasos são reunidos sob a unidade temporal de uma ação total e completa. É essa síntese do heterogêneo que aproxima a narrativa da metáfora. Em ambos os casos, algo novo – algo ainda não dito, algo inédito – surge na linguagem: aqui, a metáfora viva, isto é, uma nova pertinência na predicação, ali, uma intriga inventada, isto é, uma nova congruência no agenciamento dos incidentes.

Só por isso, o estudo de tais “literatices” por profissionais de saúde já estaria justificado, contudo, ainda assim, estaríamos a pisar em um campo bastante teórico. Mas, Ricoeur avança mais. Para ele, a imaginação produtiva é quem possibilita a compreensão. Metáforas e narrativas simulam (não estaria aqui embutida a ideia de ensaio?!) num nível superior de uma metalinguagem, a inteligência enraizada no esquematismo que nos aprisiona: o da linguagem. Como grande hermeneuta que é, escreve:

Consequentemente, quer se trate de metáfora ou de intriga, explicar mais é compreender melhor. Compreender, no primeiro caso [metáfora], é voltar a captar o dinamismo em virtude do qual um enunciado metafórico, uma nova pertinência semântica emergem das ruínas da pertinência semântica tal como aparece numa leitura literal da frase. Compreender, no segundo caso [narrativa], é voltar a captar a operação que unifica numa ação inteira e completa a diversidade constituída pelas circunstâncias, pelos objetivos e pelos meios, pelas iniciativas e pelas interações, pelas reviravoltas da fortuna e por todas as consequências não desejadas da ação humana.

É isso! Hoje, o discurso científico, por seus poderes pre-visionários e seus resultados, sobrescreve a medicina de tal forma que o médico se torna quase como um “papagaio-de-estudos-clínicos”, repetindo-os sem parar até que novos estudos substituam os antigos. Nossos pacientes não querem só isso. Sem abandonar a ciência, é preciso dar algum valor aos discursos que, feitos de linguagem, são quase como que abstraídos da relação entre os médicos e seus pacientes (e entre médicos também!), como interferentes, ruídos indesejáveis. Como fazer isso? Trata-se de um problema epistemológico pois refere-se ao valor de verdade que atribuímos a determinadas informações. Ricoeur vai no nervo:

O problema epistemológico levantado, quer pela metáfora, quer pela narrativa, consiste em grande medida em ligar a explicação empregada pelas ciências semio-linguisticas à compreensão prévia que decorre de uma familiaridade adquirida com a prática linguageira, tanto poética como narrativa.

Seria a partir do “estranhamento” à “familiaridade da prática linguageira” causado pela poesia (metáforas em trânsito) e pelas narrativas (ensaios de intrigas sintéticas do mundo da vida) que quebraríamos o transe cognitivo causado pelo costume. Se o discurso poético permite à linguagem acessar realidades que não são atingidas pelo discurso meramente descritivo, permitindo inclusive a Ricoeur falar em referência metafórica, em especial nos campos “sensorial, pático, estético e axiológico, constituintes do mundo habitável”, a função mimética das narrativas, por sua vez, se exerce de preferência no campo da ação e de seus valores temporaisAs narrativas reconfiguram nossas experiências temporais. É daqui que elas retiram seu valor de verdade. Heidegger é foda.

(Desculpem o palavrão)

[1] Ver resenha “profissa” do livro aqui.

Sonda Vesical

Clique na imagem para ver a fonte

“Sonda” talvez não seja uma palavra médica, da gema, como se diz. A literatura médica de origem inglesa não utiliza o termo que parece ter etimologia francesa. Uma sonda é um instrumento utilizado para explorar, perscrutar, procurar coisas. Há sondas espaciais, sondas geológicas, petrolíferas, e uma infinidade de outras mais. Um endoscópio é uma sonda. Com uma luzinha na ponta, procura por lesões e alterações anatômicas. O termo técnico “da gema” que deve ser utilizado para nomear instrumentos que adentram as profundezas, por vezes insondáveis (não resisti), do corpo humano é “catéter”. Não vou entrar na discussão bizantina de “catéter” ou “catetér” visto que nada do que eu escreva acrescentará algo ao que o professor Joffre Rezende já escreveu anos atrás. A nós, basta saber que o grego kathetér está no Corpus Hippocraticum e que o fato de ser paroxítona ou oxítona depende da prosódia que herdamos, latina ou grega. Entretanto, por costume (e talvez por resquícios de nossa mui recente colonização médica pelos gauleses) utilizamos o termo “sonda”, em especial, para duas situações bastante comuns em medicina: a sonda nasogástrica e a sonda vesical. A segunda será objeto deste post, sabendo que, a rigor, seria um cateter vesical.

Tipos de sondas de Foley utilizadas em Medicina

A sonda vesical consiste em um tubo de borracha com um balão em sua ponta e é utilizada para escoar a urina da bexiga. É útil em obstruções uretrais e também quando é necessário a quantificação do volume urinário do paciente. A sonda vesical mais conhecida é a de Foley, nome dado em homenagem ao seu criador (ver figura ao lado).A sondagem vesical é um procedimento técnico e deve ser realizado por médico ou enfermagem treinados. O balão na ponta da sonda é utilizado para ancorá-la na parede da bexiga de modo que, após sua passagem, ela não seja retirada facilmente. Ele é introduzido, obviamente, desinsuflado e, após a constatação de que a ponta da sonda está no interior da bexiga (o que é notado pela saída da urina pela outra extremidade) é que injetamos solução salina, água ou mesmo ar na via acessória com objetivo de insuflar o balão e fixar a sonda. Feito isso, o paciente está sondado e temos nos esforçado para que fique assim o menor tempo possível pelo risco de infecções e outras complicações.

Uma das raras complicações que uma sonda desse tipo pode apresentar é quando a válvula que permite a injeção de líquido ou ar no balão deixa de funcionar. Nessa situação, não é mais possível desinsuflar o balão e puxá-lo insuflado causaria lesões uretrais importantes, além de dor intensa. O que fazer?Isso de fato ocorreu recentemente e a solução (os urologistas têm na ponta da língua) não é tão complicada como uma cirurgia. Prometo dar a resposta a esse enigma em breve.

Atualização e Resposta (09/11/12)

Pessoal, tentei bravamente conseguir o filme que justifica a resposta, mas não consegui. A saída escolhida pelos urologistas, em geral, é realmente explodir o balão! A capacidade da bexiga é bem maior que o balão e com 50 ou 100 ml, ele costuma explodir. Curiosamente, o relato dos pacientes que sentem a explosão, é um frêmito na região púbica e que é totalmente inócuo. Parabéns ao Ruan que acertou a resposta de prima. Desculpem pela demora da conclusão.

O Batman e o Estudante de Medicina

Toda vez que médicos ou estudantes de medicina cometem algum ato hediondo contra a humanidade, sinto como se milhares de olhares virtuais se dirigissem a mim. Essa observação atenta deixa transparecer, por vezes, um certo ar reprobatório, em outras, permite perceber semblantes dúbios, num misto de dúvida e comiseração.

Quanto ao julgamento moral, não há como escapar. Tais atos acabam afetando toda uma classe de trabalhadores da Saúde e, dada a velocidade da informação, julga-se, condena-se, explica-se o inexplicável em escala mundial. Mas isso não me perturba. Me incomoda muito mais, esse olhar que pergunta: “Por quê?”. Ou “O que é que vocês veem, fazem, sofrem que, de súbito, um ou outro, aqui e acolá, rendem-se aos instintos mais sanguinários e crueis ?”. “O que é essa pulsão de morte que mora dentro de vocês?”.

Assim é, que um estudante de medicina chamado James Holmes de 24 anos matou 12 pessoas e feriu 59  no cinema onde estreiava o novo “Batman”, no estado do Colorado nos EUA. Em 1999, de modo incrivelmente semelhante, Mateus da Costa Meira, então com 25 anos, cursando uma tradicional faculdade de medicina em São Paulo, capital, disparou mais de 40 tiros contra a plateia no cinema de um shopping center que assistia o filme “Clube da Luta” na mesma cidade. As estórias de Eugênio Chipkevitch e Roger Abdelmassih já fazem parte de enciclopédias virtuais. Artigos são publicados com compilações de crimes perpetrados por médicos. Matamos calouros em trotes. Tudo isso sem falar nas horrendas “experiências” realizadas por médicos e cientistas nazistas.

À parte da sociologia dos fatos, qual seja, a das sociedades bélicas, facilidade ao acesso de armas, mentalidade do “kickass“, “Tiros em Columbine” (que aliás, faz 10 anos e continua atualíssimo), que deixo aos sociólogos e filósofos de plantão e; à parte das explicações psiquiátricas e psicanalíticas do que possa passar dentro da cabeça dessas criaturas, muito além de seu sofrimento difuso e profundo que deixo a quem de direito, vou ficar com alguns números.

O censo de 2009 mostrou que o Brasil tinha 330.825 médicos e 191.480.630 de habitantes. Isso dá, grosso modo, 1 médico para cada 580 pessoas. Entretanto, a distribuição é bem desigual. A figura abaixo mostra um quadro de 2007. O Brasil tem uma proporção de 900 pacientes para cada médico, segundo o autor. Segundo dados do CREMESP (pdf), a proporção de médicos na cidade de São Paulo é de 232 habitantes para cada médico. Em Santos, o número chega a 158, dados de 2009.

 

Com isso, quero deixar a pergunta: Médicos e profissionais da área da saúde cometem proporcionalmente mais crimes hediondos que a população não atuante nesta área específica? A resposta parece óbvia que não. Entretanto, os crimes praticados em especial por médicos têm um peso social muito maior dada a imagem que ainda resguardam no cotidiano das pessoas. O que acaba chocando não é o crime em si, já que, desgraçadamente, é mais um crime, mais uma chacina, mais uma bestialidade humana. O que chama atenção nos noticiários são dois fatos: O Batman e o estudante de Medicina.

Um real, outro imaginário. O Batman nos vinga. Haverá correlação? O massacre “cinematográfico” brasileiro ocorreu durante a exibição de um filme violento também. É um “n” muito pequeno para concluir, diriam. E discutiriam… Já a facticidade do “estudante de Medicina” choca porque vai no nervo exposto daquilo que nos mantém em pé e que não é a imaginação, o sonho, a virtualidade. Nem tampouco é facilmente quantificável, já que habita os recessos de uma subjetividade sobrescrita e desbotada a nós legada pela sociedade tecnológica e espetacular. O maior horror dessas estórias talvez não seja proveniente do fato de que o vilão “Estudante de Medicina” mata seres humanos comuns, mas sim porque aniquila um dos últimos resquícios de nossa humanidade: a Esperança.

Para-sois, Ergométricos e o Díficil Coração Feminino

Outro dia, entrei numa loja de carros e sentei ao volante de um veículo zero km. Como médico de unidades intensivas, fico fascinado com as luzes e indicadores dos paineis modernos. Fiquei até imaginando um opcional de sensor de frequência cardíaca acoplado ao volante para monitorização de velhinhos que gostam de dirigir carros esportivos, casos cada vez mais frequentes. Imagina um velhinho dirigindo uma Ferrari a 200 km/h, com as mãos coladas ao volante. O carro monitora uma frequência de 150 batimentos por minuto e “fala”: – Diminuindo a velocidade. Perigo de infarto! Hehe. Fica a dica.

Mas, durante a exploração interna do veículo, entorpecido pelos meus delírios e pela tecnologia embarcada dos carros modernos, me dei conta de que há um item para o qual o tempo, de fato, não passou. Trata-se do para-sol.

 Figura 1. À Esquerda. Para-sóis do Fusca 66. À Direita. Detalhe do para-sol do Fox 2012.

Tirando o espelho (que muita gente já prendia com um elástico antes de vir embutido) e a luzinha (que a mulherada que usa para maquiar-se diz que é só de enfeite), os para-sois são incomodamente semelhantes entre os dois carros para quem têm uma diferença de quase 50 anos! Compare-se, por exemplo, os painéis dos mesmos. É até covardia…

Figura 2. À Esquerda, painel do Fusca 66. À Direita, o painel do Fox 2012.

O que isso significa? Que a indústria automobilística não se preocupou com o sol na cara dos motoristas e prestou a maior atenção a mostradores, ar condicionado, rádios e outros itens talvez até de menor importância? Pode até ser, mas tendo a interpretar esse fato de maneira um pouco diferente. Eu acho que o para-sol é uma baita de uma invenção!! Tão boa que, mesmo após 50 anos de evolução tecnológica e competição ferrenha entre as montadoras, ninguém conseguiu achar alguma coisa que funcionasse tão bem e tivesse o mesmo custo. Por isso, o paradoxo se constitui no fato dos mesmos para-sois – acionados por “tração e vontade animal” – equipar veículos com injeção eletrônica e motor flex, impensáveis na época de sua concepção.

Alguns estão a perguntar o que um post sobre a indústria automotiva faz aqui nesse blog. Para mim, é inevitável comparar o paradoxo do para-sol com a evolução da tecnologia médica. A medicina se aproveita de muitas invenções, não só da indústria automobilística mas, principalmente, da aeroespacial. Sistemas de telemetria e tecnologias com fibras ópticas (utilizadas nos endoscópios) vieram dela. Fiquei procurando por “para-sois médicos”, invenções e descobertas relacionadas à medicina que, de tão boas e custo-efetivas, atravessaram décadas e continuam, praticamente inalteradas, a servir médicos e pacientes. Acho que o exemplo mais clássico disso é a aspirina. Entra remédio, sai remédio, entra indicação, sai indicação, e ela lá. Há uma infinidade de instrumentos cirúrgicos e ortopédicos que poderiam preencher essa definição. Até escrevi algo sobre o estetoscópio. Hoje, recebi um twit com referência a esta reportagem. Aqui, o “para-sol” médico é o exercício. A Dra. Martha Gulati é uma defensora do teste ergométrico, uma carga de exercícios monitorada para avaliação do desempenho e função cardíacas.

Colocar um paciente sob condições de estresse físico é uma das estratégias de avaliação de risco mais inteligentes e simples de toda a medicina sendo útil em cardiologia, pneumologia e avaliação para cirurgias. O teste ergométrico, propriamente dito, parece ter sido idealizado em 1928 [1]. Desde então, pouca coisa mudou e o teste é ainda muito discutido, em especial, no caso das mulheres. A Dra. Gulati e sua equipe mostrou que o ergométrico, além de barato, é ainda uma boa ferramenta para avaliar o risco de uma mulher sofrer um ataque cardíaco, apesar de já ser quase centenário! Os autores entretanto, sofreram fortes críticas. Os resultados muitas vezes são mesmo conflitantes e dificeis de interpretar. Bom, mas quem disse que interpretar o coração feminino era fácil? Talvez, só mesmo uma proprietária para conseguir isso.

 

[1] Feil H, Seigel ML. Electrocardiographic changes during attacks of angina pectoris. Am J Med Sci. 1928;175:255.

[2] Comparative Effectiveness of Exercise Electrocardiography With or Without Myocardial Perfusion Single Photon Emission Computed Tomography in Women With Suspected Coronary Artery Disease: Results From the What Is the Optimal Method for Ischemia Evaluation in Women (WOMEN) Trial. Leslee J. Shaw, Jennifer H. Mieres, Robert H. Hendel, William E. Boden, Martha Gulati, Emir Veledar, Rory Hachamovitch, James A. Arrighi, C. Noel Bairey Merz, Raymond J. Gibbons, Nanette K. Wenger, Gary V. Heller, and for the WOMEN Trial Investigators Circulation. 2011;124:1239-1249, published online before print August 15 2011, doi:10.1161/CIRCULATIONAHA.111.029660.

Agradecimentos à @Be_Neviani que me enviou o twit. #SigaSempre.

Os Mestres do Preconceito

“Clínicos são intérpretes prudentes das experiências de saúde de seus pacientes”.

R.E.G. Upshur [1] (grifos meus)

Ao GENAM, com carinho

O esforço do Homem (antropos) para compreender o cipoal de significados sobre o qual é lançado no momento em que nasce é crucial para sua sobrevivência. Hoje, a infinidade de códigos e linguagens que devemos interpretar e traduzir para lidar com o mundo é gigantesca. A medicina, da forma como a entendo, qual seja, centrada na relação entre o médico e o paciente, propõe um desafio interessante porquanto aproxima duas visões de mundo, às vezes muito diferentes. Ao médico, cabe ainda um outro desafio que é o de aplicar o conhecimento científico  – quase uma epistéme aristotélica – a uma prática fronética ou prudente, reconhecida desde sempre como técnica (techné), citando Aristóteles, o pai dessa zorra toda que, aliás, já tem alguns milênios.

O que tentarei demonstrar nesse pequeno espaço, seguindo os caminhos do autor abaixo [1], é que um pouquinho de preconceito é bom para o médico, tanto em sua tarefa de fundir sua visão de mundo àquela que o paciente vê, como quando lida com a massa enorme de conhecimento científico e tenta aplicá-la no ser que lhe pede socorro. Thomas Bayes (1701?-1761) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002), cada um a seu tempo e a seu modo, trataram desse preconceito filosófico. Um obscuro monge inglês pertencente a uma seita não-conformista (seja lá o que isso realmente queira dizer) e um alemão, brilhante aluno do sacana do Martin Heidegger, nascidos com 200 anos de intervalo, teorizaram sobre o valor do preconceito, ou pré-conceito, ou pré-juízo (como no inglês, prejudice) no ato de compreensão humana das coisas do mundo. Eu os chamo mestres do preconceito.

Bayes

Thomas Bayes (1701? – 1761)

A Estatística pode ser entendida como a ciência que se ocupa da quantificação da incerteza e, por essa razão, o cálculo probabilístico ocupa um papel central nela. Há duas formas básicas de se abordar a probabilidade de um evento ocorrer. Um, chamado objetivo, é testar a ocorrência do evento em um número muito grande de vezes, de modo a estabelecer a frequência do resultado que se quer estudar. É chamado de frequentista. O outro leva em consideração a probabilidade desse evento ocorrer antes que procedamos ao teste. Poderíamos até pegar os dados de um frequentista que trabalhou duro para obtê-los e ter acesso a essa distribuição antes de testar o evento. Chamamos isso de probabilidade a priori. De posse dessa probabilidade a priori, podemos modificar nossas expectativas ao avaliar, por exemplo, o risco de uma paciente com mamografia positiva ter, de fato, câncer de mama [2]. O interessante é que, quando essa distribuição não está disponível, podemos colocar nossas próprias expectativas na fórmula. Para a estatística bayesiana vale a opinião pessoal sobre o evento, vale a nossa propensão em acreditar na distribuição a priori, por isso, também é chamada de subjetiva. A nós, interessa a origem dos a prioris clínicos. Há evidências de que clínicos utilizamos a experiência prévia muito mais que dados estatísticos consistentes [3]. De qualquer forma, o teorema de Bayes permite que reajustemos o grau de crença em uma hipótese com base em novas informações. Ou em outras palavras, nossas preconcepções, sejam diagnósticas, prognósticas ou terapêuticas, devem ser reavaliadas a cada novo dado, cotejadas com novas evidências e, por fim, modificadas em novas possibilidades.

Gadamer

Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002)

Em 1960, Gadamer publica Verdade e Método, seu magnum opus, onde reforça a característica ontológica da compreensão humana, ou como ficou conhecida mundialmente, da hermenêutica filosófica. “Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey; mas tampouco é, como em Husserl, um ideal metodológico último da filosofia frente à ingenuidade do ir vivendo. É, ao contrário, a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo”- diz ele lá na página 347 [4] (itálicos originais). Gadamer demonstra que a interpretação e a compreensão são constitutivos do homem lançado ao mundo. Nessa demonstração, o pré-conceito tem um papel fundamental. Quando interpretamos um texto, realizamos, na linguagem de Gadamer, um projeto. Como nessa citação:

“é preciso (…) considerar que cada revisão do projeto inicial comporta a possibilidade de esboçar novo projeto de sentido; que projetos contrastantes podem se entrelaçar em uma elaboração que, no fim, leve à visão mais clara da unidade do significado; que a interpretação começa com pré-conceitos que são, pouco a pouco, substituídos por conceitos mais adequados. (…) Aqui, a única objetividade é a confirmação que uma pré-suposição pode receber através da elaboração. E o que distingue as pré-suposições inadequadas senão o fato de que, desenvolvendo-se, elas se revelam insubsistentes? (…) Há, portanto, um sentido positivo em dizer que o intérprete não chega ao texto simplesmente permanecendo na moldura das pré-suposições já presentes nele, mas muito mais quando, em relação com o texto, põe à prova a legitimidade, isto é, a origem e a validade, de tais pressuposições”. [5]

A aproximação inicial a um assunto provoca uma impressão que nos impele emitir juízos que definem padrões lógicos ou generalizações em nosso esforço eterno de tentar prever comportamentos, sequências ou comparar coisas novas com aquelas que já conhecemos. Essa primeira impressão não é a que fica. Ela deve ser continuamente corrigida à luz de novas informações. Os a prioris bayesianos e os projetos hermenêuticos estão muito mais próximos do que poderíamos jamais supor. Eles têm valor ontológico ou, em outras palavras, são criadores de conhecimento válido. Na medicina, essa proximidade sempre foi patente; só não tinha nome. Como diz Upshur “a dimensão hermenêutica da medicina desvia nossa atenção de discussões sobre dicotomias simplistas tais como se a medicina é uma arte ou uma ciência; ou se o conhecimento clínico é subjetivo”. A medicina é um humanismo. A doença tira o Homem de sua unidade habitual e abre caminho para visões não-totalizantes de seus padecimentos. O que é, então, o esforço clínico em compreender o Homem em suas profundidade espiritual e complexidade biológica? Nesse contexto, Arte e Ciência são interpretações, discursos possíveis sobre uma mesma coisa-em-si humana. Subjetivos? É óbvio que somos; dado que sempre tratamos de individuais subjeitos.

 

[1] Upshur, REG. Prior and Prejudice. Theoretical Medicine and Bioethics 20: 319–327, 1999.

[2] Pena, SD. Thomas Bayes “é o cara”. CIÊNCIA HOJE • vol. 38 • nº 228, pg 22-29 – Julho/2006 (ver o pdf)

[3] Gill CJ, Sabin L, Schmid CH. Why clinicians are natural bayesians. BMJ. 2005 May 7;330(7499):1080–3. DOI: 10.1136/bmj.330.7499.1080 (Open Access) – veja também as cartas, correções e comentários.

[4] Gadamer HG. Verdade e Método. II Parte, Volume I. Editora Vozes. Tradução Flávio Paulo Meurer.

[5] Reale & Antiseri. Hans-Georg Gadamer e a Teoria Hermenêutica. in História da Filosofia, pag 627-639.

PS. A conotação extremamente negativa que temos hoje do preconceito vem do Esclarecimento. Para o homem iluminista, cartesiano, um juízo acerca de alguma coisa deve ser tomado de forma isenta e desprovida de qualquer pré-concepção a respeito do assunto. Como uma tabula rasa, deveríamos absorver as evidências e chegar a conclusões óbvias, conclusões as quais qualquer pessoa racional chegaria ao analisar as mesmas provas. No Esclarecimento, o objetivo é o projeto cartesiano de obter um conhecimento metodologicamente seguro, limpo de interferências e inferências pessoais. Posteriormente, essa pre-concepção das coisas adquiriu um valor moral – como no pecado de “julgar um livro pela capa” -, até incorporar temas diversos como racismo, xenofobia, diversidade cultural, sexual e etc.

UTI. Uma boa referência às virtudes de Aristóteles, além claro, do “Ética a Nicômaco” é o livro de Enrico Berti “As Razões de Aristóteles“.

Sobre a Saúde e a Doença e suas Implicações Práticas

Só essa semana, discuti o assunto desse post em três ocasiões. Esse é o exemplo de post que se impõe ao blog e ao autor, então não adianta resistir muito…

Andei, há algum tempo (putz, já faz 1 ano!), retomando o assunto dos conceitos de saúde e doença, de sua não superponibilidade e de como eles afetam a prática da medicina e também de outras profissões relacionadas à área. No texto linkado acima, ao discutir-se a diferença entre a medicina pública e privada, escreveu-se:

Em termos de política ou de filosofia de atendimento, o sistema público “enxergaria” mais a Saúde e o privado, a Doença? O privado, em íntima conexão com o mercado drenaria dele suas vantagens e vicissitudes. O Público, funcionando dentro de uma máquina burocrática drenaria dela sua extensão e sua lentidão.

Se aceitarmos a tese da pergunta inicial,  teremos a seguinte situação, que, de fato, insiste em repetir-se no consultório privado deste mero discípulo de Esculápio, mas também em outros tantos consultórios médicos, como pude comprovar. Um paciente vem à consulta e diz: “Doutor, queria fazer uns exames e ver se está tudo bem”. “Ok” – digo. “Quais exames você gostaria de fazer?” – com o sorriso maligno de quem já sabe a resposta. Ele(a): “Todos!” “Como assim, querido(a)? Eu posso virar você do avesso com minha caneta e meu bloquinho de receitas. E isso não é uma metáfora.” O paciente entende o recado e recua. “Não, por favor. Gostaria APENAS de ver se está tudo bem”. Corta! Voltemos ao nosso modo analítico.

Qual a pergunta que o(a) pobre paciente quer que eu responda? Se você disse “ele(a) quer saber se tem Saúde e o que deve fazer para continuar com ela!”, eu estou contigo. Entretanto, de acordo com o modelo proposto acima, qual é a resposta que o pobre eu, trabalhando numa matriz conceitual da medicina privada, posso dar a ele? APENAS que ele não tem essa, aquela ou aquela outra doença. Ou seja, só posso dizer quais as doenças o(a) paciente NÃO tem; o que é bem diferente de ter ou não Saúde. Percebe a diferença? Esse tipo de confusão entre os conceitos leva a uma confusão de conclusões (que é exatamente o que acontece quando confundimos os conceitos, oras!).

Na prática privada parecemos trabalhar, portanto, com o conceito de doença o que significa que todos os pacientes são/estão doentes até prova em contrário e que, por isso, a obrigação dos médicos parece ser excluir TODAS as doenças passíveis de serem excluídas. Aqui, Saúde = Ausência de Doença, um conceito criado por Christopher Boorse e melhor aplicado a situações não diretamente envolvidas com a clínica, como por exemplo, a anatomia patológica. Para uma discussão interessante, ver excelente texto do professor Naomar em pdf).

Alguém poderia dizer “Mas, qual é o problema desse tipo de abordagem?” Vários. Começando pelo preço dos planos de saúde. Quem paga a conta dessa “nóia” toda são eles. Eles não querem perder dinheiro. Logo, tudo isso está embutido no preço que quem tem plano de saúde paga no final. (“Ah, mas o meu plano é a empresa quem paga!” Sei, sei…) Em segundo lugar vem uma questão, digamos, existencial. Olhar o calhamaço de resultados e ver que os números todos estão dentro do intervalo normal (para outra discussão sobre isso, ver este post), causa uma sensação de bem-estar ou “saúde” que é provisória e frágil. Ao menor desconforto, mal-estar, dorzinha de cabeça, ela desaba como um castelo de cartas e novos e mais sofisticados exames são necessários para que retorne; um buraco sem fundo. Por fim, resta discutirmos a validade desse tipo de procedimento, ou seja, se ele é de fato válido pelo menos pra prevenir condições que possam colocar em risco a vida do paciente. Esse assunto é bastante polêmico. Se, por um lado é possível encontrar, por exemplo, um tumor escondido e retirá-lo em estadio precoce com os óbvios benefícios disso, por outro, o custo de perseguir uma pista falsa pode ser bem pior que uma doença. Exames de rastreamento não são isentos de efeitos colaterais (ver aqui e aqui). Por isso, os médicos devem interpretar os exames à luz do quadro clínico do paciente. A recente polêmica em relação ao antígeno prostático específico (PSA na sigla em inglês) tem tudo a ver com isso. Assim procedendo, os médicos podem ajustar habilmente os achados dos exames às populações onde tais achados fazem mais sentido. Um exemplo para ilustrar. Um teste ergométrico, aquele de andar/correr na esteira ou bicicleta, negativo – ou seja, com ausência de sintomas cardíacos – numa moça de 20 anos de idade, sem queixas quaisquer, tem um tipo de interpretação. Um teste ergométrico negativo num senhor de 65 anos, fumante, acima do peso, hipertenso e com o colesterol elevado, que tem uma dor no peito, tem outro tipo interpretação, sendo sua relevância muito maior para o contexto do quadro clínico do paciente. Esse exercício de ajuste, um tipo de inferência bayesiana, é realizado até inconscientemente pelos médicos e ajuda a restringir muito os exames a solicitar, além de permitir sua interpretação pois enquadrará o paciente em determinados grupos nos quais o resultado do exame, seja positivo ou negativo, terá um peso muito maior nas decisões sobre diagnóstico e/ou tratamento.

A diferença entre trabalhar com um e com outro conceito, Saúde e Doença, pode ser um dos grandes desafios do médico numa consulta. Já vi vários médicos se irritarem porque o paciente não apresentava nenhuma queixa clínica relevante para um diagnóstico. Ele só queria checar dúvidas e conversar com alguém habilitado. A importância em identificar as necessidades dos pacientes e, na minha opinião, informá-los sobre essas questões, mais uma vez aponta para o valor das narrativas de ambos os lados da mesa do consultório como ferramenta fundamental de discernimento e ajuste de expectativas na relação entre o paciente e seu médico. É bom quando todo mundo fala a mesma língua.