Santa Teresa, Orgasmos e o 11° Mandamento

Parece que as opiniões veiculadas nesse blog andam valendo alguma coisa. Ganhei outro livro para “resenhar”, que é o verbo que uso para substituir a expressão “ler e viajar na maionese” que, por fim, é uma atividade que gosto muito de fazer. Então, sem querer torrar a paciência do leitor que, se chegou aqui pelo título absurdo do post, vai se decepcionar de qualquer jeito, vamos lá.

Ganhei, já o disse, de uma amiga, com a promessa de que escreveria uma “resenha”, o livro “O 11° Mandamento” de Abraham Verghese. Não li o livro todo ainda, mas o prólogo e o primeiro capítulo já me agradaram. É um romance. E se você é daqueles que acha que ler romances é o mesmo que ler histórias da carochinha, ou seja, uma perda de tempo irreparável, melhor nem começar. O livro é um toledão de 626 páginas.

Começa contando a história de uma freira que era vidrada em Santa Teresa de Ávila (1515-1582). Essa santa escreveu uma autobiografia com o nome sugestivo de “A vida de Teresa de Jesus”. Nela, Santa Teresa descreve uma experiência mística com um anjo como segue (em livre tradução daqui):

“Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro cuja ponta parecia ser um pequeno fogo. Ele parecia penetrá-la várias vezes no meu coração e perfurar minhas entranhas; quando ele a tirou, parecia atraí-los para fora também, e deixando-me em fogo, com um grande amor em Deus. A dor era tão grande, que me fez gemer, e ainda assim foi superando a doçura desta dor excessiva, eu não pude querer livrar-me dela. A alma está satisfeita agora com nada menos que o próprio Deus. A dor não é física mas espiritual; embora o corpo dela partilhe. É uma carícia de amor tão doce que agora tem lugar entre minha alma e Deus, que rezo a Deus pela dádiva dessa experiência, que podem pensar que estou mentindo.”

Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), um escultor napolitano, que de bobo não tinha nada, fez a escultura abaixo, baseada no relato da santa:

Detalhe Santa Teresa.jpgA escultura chama-se “O Êxtase de Santa Teresa” (clique na figura para aumentar e ver os créditos). Vários autores chamaram a atenção para o fato de que havia muitos indícios de que a freira pudesse estar tendo um orgasmo (ver detalhe ao lado). Muitos até, especulam sobre a possibilidade de orgasmos espontâneos, possível em algumas disfunções sexuais como a Sindrome do Despertar Genital Persistente ou mesmo esquizofrenia. Esse negócio de ficar atribuindo doenças a pessoas com comportamento atípico não é lá muito recomendável [1]. Temos um exemplo bem recente em relação ao que convencionou-se chamar o massacre de Realengo. De qualquer forma, a obra de Santa Teresa vai bem além desses episódios extáticos.

A história de uma freira-enfermeira que, após uma viagem fatídica de navio, conhece um cirurgião inglês (e cuida dele!), mudando totalmente seu destino é
narrada por um de seus filhos! Gêmeos! Além de ficar fascinada por uma santa de hábitos orgásticos e ter filhos, ela marca a história do lugar para onde vai. Só isso, já seria suficiente para despertar algum interesse. Para os que gostam de histórias de médicos da velha guarda, o livro é um prato cheio. Bem narrado e fiel com as descrições técnicas de época, a leitura é bem fácil e prazerosa. Abraham Verghese tem alguns livros de sucesso. Esse, segundo consta, vendeu mais de 1 milhão de exemplares nos EUA. Médicos são bons contadores de histórias. Talvez porque tenham muitas mesmo para contar. Esse livro é sobre a história de médicos. O que também não deixa de ser interessante.

ResearchBlogging.org[1] Rogelio Luque & José M. Villagrán (2009). Teresian Visions Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 15 (3), 273-276 DOI: 10.1353/ppp.0.0191

Crânios Famosos, Eu e Minha Chapinha

 

Clique na imagem para ver os créditos

(via @sibelefausto)

Atualização

Pediram pra incluir esse vídeo da cantora Miho Hatori no qual faço um solo de street dance, hehe (via maria eugênia no facebook). Aqui vai:

Dois Pesos, Duas Medidas

Muito tenho escrito no blog sobre os conceitos de saúde e doença (ver aqui, por exemplo). Isso porque os conceitos de saúde e doença, longe de ser entidades abstratas que povoam a cabeça de gente que não está “com a mão na massa”, são muito importantes no exercício da medicina. Mas, não continuariam as pessoas a ser atendidas em consultórios, postos de saúde e hospitais? De que adianta ficarmos discutindo esses conceitos se isso pouco influencia o trabalho do médico, enfermeira, fisioterapeuta e de outros membros da equipe de profissionais da saúde na outra ponta?

Influencia, sim. E bastante. Já falamos sobre as diferenças entre os conceitos de saúde e doença, mas gostaria de ressaltar esta passagem: “Saúde e doença fazem parte de universos bastante diferentes, falam de coisas diferentes e de maneiras inteiramente diferentes. Alguém com diabetes controlado ou soropositivo para o HIV pode responder que se sente saudável apesar de ter de fato, uma doença. Por outro lado, um indivíduo em quem não se diagnostica nenhuma doença, pode não ter a vivência da saúde. (…) O significado de ‘diabetes’ e ‘HIV’ está validado em qualquer discussão sobre o assunto. Isso quer dizer que tem validade intersubjetiva (entre sujeitos). Dito de outro modo, no caso do diabetes, uma ‘racionalidade de caráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogo que o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicose circulante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alterações morfofuncionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraqueza até a morte.’ O lado da saúde, não tem a mesma validação. Existe, portanto, uma assimetria enorme de legitimidade de discursos, favorecendo o que se chamou de discurso casual-controlista da abordagem biomédica que predomina amplamente.” E por aí vai.

O que me chamou a atenção é a possibilidade de que as políticas públicas e privadas de saúde utilizem-se dos conceitos não superponíveis de saúde e doença de acordo com suas necessidades. Nas palavras da Dra. Luiza Sterman Heimann, médica sanitarista, coordenadora do Núcleo de Investigação em Serviços e Sistema de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (NISIS) “no Sistema Público, a saúde está relacionada a condições de vida e é resultante das diferentes políticas, sejam elas econômicas sejam sociais, no Privado, a saúde é definida a partir da doença exclusivamente e a doença é entendida como uma mercadoria. Quanto às características do sistema, o Público se organiza a partir de princípios – universalidade, integralidade e equidade – e o Privado, ao contrário, seleciona e segmenta a clientela. Enquanto o Público é integral, o Privado é parcial, porque também seleciona o tipo de oferta ou de atendimento dado a essa clientela. O sistema Público tem como princípio, a equidade, isto é, trata de forma diferente os “diferentes”, para atingir a universalidade e a integralidade, enquanto que, no sistema Privado, os direitos dependem do poder aquisitivo.”

É isso? O Sistema Público é pautado por políticas que visam a ação, como não poderia deixar de ser. Tais políticas necessitam de uma teoria, um arcabouço filosófico que as sustente. A própria existência de um poder público que coloque em prática uma política de saúde (necessariamente pública, ora pois) requer um tipo de abordagem do binômio saúde-doença que penderia para o lado da saúde e pela visão integral do indivíduo ou da coletividade de indivíduos. Não há, pelo lado do Sistema Privado, algo equivalente! As tentativas de abordagem integral, políticas de promoção de saúde, centros de check-up, etc por parte da Saúde Suplementar no Brasil são incipientes e não convencem os usuários. Estes, por sua vez, acabam adotando ações individuais, notadamente bastante mais dispendiosas, a depender de a) seu poder aquisitivo; b) seu contrato com a operadora; c) seu vínculo com uma empresa que exija algum tipo de teste prognóstico (pois já que investem em um profissional, querem saber qual a chance dele estar vivo nos próximos 5 anos); d) a tênue linha entre a hipocondria e a autonegligência, espaço pulsional onde ocorre a decisão de procurar um médico sem que necessariamente se esteja tecnicamente doente.

Em termos de política ou de filosofia de atendimento, o sistema público “enxergaria” mais a Saúde e o privado, a Doença? O privado, em íntima conexão com o mercado drenaria dele suas vantagens e vicissitudes. O Público funcionando dentro de uma máquina burocrática drenaria dela sua extensão e sua lentidão. Esta visão simplista do problema não me impede de dizer que tentativas de ver o outro lado em ambos os domínios seriam muito bem-vindas.

-o-o-o-

Foto de Janus, o deus romano de duas faces.

Consultei “A interface entre a saúde pública e a saúde suplementar Coordenação: SINPSI-SP – Luis Carlos de Araújo Lima. Palestrantes: Luiza Sterman Heimann e Maria Mello de Malta. Pesquisa: público e privado na saúde. Disponível aqui.

Taxonomia das Racionalidades Científicas

http://streetanatomy.com/wp-content/uploads/2011/03/brainlight2.jpg
by Maria and Igor Solovyov in Street Anatomy

Publico aqui uma taxonomia das racionalidades científicas segundo Alistair Cameron Crombie, autor de uma história das ciências (que vi em [1] e achei legal). Segundo ele, há seis tipos de racionalidades científicas possíveis, a saber:

1. Busca de Princípios e Derivação. Tudo começa com os gregos. Eles se caracterizam pela busca dos princípios e derivação a partir deles. Não à toa, foram os gregos os “inventores” da metafísica, da lógica (Aristóteles), da geometria e da filosofia, entre outros, além de terem uma cosmologia interessante. A medicina grega foi a primeira a se livrar de alguns conceitos religiosos e, assim, florescer.

2. Análise/Síntese ou Resolução/Composição. Este estilo foi consolidado nos séculos XIII e XVII pelos arquitetos, engenheiros civis e músicos e outros “práticos”, médicos inclusos. Visa o fazer e talvez tivesse mais a ver com os cirurgiões que, nessa época, “ainda” não pensavam cientificamente.

3. Modelização. Aqui surge a medicina experimental. Constrói-se um análogo de um pulmão e as dificuldades nos ajudam a entender como um pulmão de verdade funciona. Saber é saber reproduzir. A modelização talvez seja a racionalidade mais importante na medicina desde a introdução do estudo de modelos animais, em especial, por Claude Bernard. A modelização matemática parece ter sido introduzida por Lawrence Joseph Henderson e também gerou muitos desdobramentos.

4. Taxonomia. Tendo como próprio exemplo esse post. Surgiu com Aristóteles e com a escola hipocrática. Sem ter muito o que fazer com as doenças, Hipócrates e seus seguidores tentaram ao menos, classificá-las. Aliás, coisa que fazemos até hoje.

5. Estudo das Probabilidades. O cálculo das chances em situações de incerteza foi ampliado para o entendimento da natureza como um grande sistema probabilista. Não preciso nem comentar, né? Vivemos hoje, sob o paradigma do risco na medicina tal a força dessa abordagem em especial, no meio médico.

6. Derivação Histórica. O pensamento historicista teve seu auge no romantismo alemão do século XIX, com Dilthey, Kuno Fischer, Frederic Scheleiermacher, entre outros tantos. Têm a raiz nesse pensamento tanto o método genealógico de Nietzsche e o arqueológico de Foucault (ver esse comentário), como também as empreitadas históricas que permitiram descobrir, por exemplo, a deriva continental. A medicina e, em especial, a psicanálise, têm seus fundamentos na historicização das queixas do paciente. A inclusão da racionalidade histórica entre as científicas é interessante e não sei porque isso ainda provoca tanta polêmica.

Parece não haver outros tipos de racionalidade. Pelo menos, fiquei pensando e não consegui imaginar uma que aqui não se encaixasse. A medicina ciência médica está, portanto, apoiada em 1, 3 e 5, não?

[1] Filosofia da Ciência I – Andler, D; Fagot-Largeault, A; Saint-Sernin, B. 2005.

O Diabo da Ciência

Prof. Dr. Karl-Otto Apel “O Diabo só pode se tornar independente de Deus por meio de um ato de destruição”

Karl-Otto Apel (O a priori da comunidade comunicacional)

Recebi dois emails provocativos essa semana. O primeiro sobre o novo livro de  José Arthur Giannotti “Lições de Filosofia Primeira”. Ele defende que “num mundo em que as coisas e as pessoas se tornam descartáveis, a filosofia e o filósofo também se tornam dispensáveis.” Não li o livro (mais de 40 paus!) mas fiquei com vontade. Engoli o batráquio pensativo e logo veio o segundo. Um link do blog Neurologica (muito bom, aliás) sobre uma declaração de Stephen Hawking de que a filosofia da ciência estaria morta. O próprio Neurologica tem um link com uma defesa boa de Christopher Norris. Norris envereda pela crítica que todo cientista faz à filosofia após a “virada linguística” em sua vertente relativística, apelidada de “pós-moderna“, hermética, com termos abstrusos e textos difíceis, e se defende muitíssimo bem (é do ramo!).

Numa coisa, entretanto, discordo totalmente de Norris: a filosofia não precisa de defesa. Ela é uma atitude natural do ser humano. É mais fácil impedir uma pessoa de sonhar que de filosofar (o que, muitos sciencebloggers diriam, é quase a mesma coisa, hehe). A formalização do negócio é que é complicada e muitas vezes envereda para caminhos não muito frutíferos.

Gostaria, entretanto, de abordar o problema com algumas ferramentas frankfurtianas. Meu xará Karl-Otto Apel move uma ofensiva contra o falibilismo dos popperianos acusando-os de ceticismo desenfreiado. Estes últimos (em especial Albert), alegam que ao buscarmos um fundamento (ou critério) para verdade terminamos em um beco sem saída. Quando se tenta derivar o fundamento de outro e este, de outro e assim indefinidamente, ou chegamos a uma causa primeira o que dá, invariavelmente, em alguma divindade; ou giramos em círculos sem chegar a lugar nenhum. Por isso, a melhor saída seria o falibilismo popperiano. Há que se duvidar de tudo, quem estiver se sustentando, sobrevive.

Mas, como não poderia deixar de ser em se tratando de um frankfurtiano da gema como Apel, ele diz que Albert ignora uma terceira via para a fundação do critério de verdade. Assim, diz ele que: 1. O que você diz é verdadeiro se sua sintaxe lógica estiver correta (definição sintática). Há uma regra no jogo e você deve obedecê-la. 2. O que você diz é verdadeiro se suas proposições de base corresponderem à realidade, a tal história da “adequação”, a linguagem como referência à realidade. Para avaliar essa “correspondência” é preciso pressupor uma consciência, também conhecida como sujeito. 3. Quando esse sujeito argumenta, ele o faz com quem? A polemização leva à validação de um conceito e isso só pode ser atingido se tivermos com quem validá-lo, ou seja, outros sujeitos. E chegamos então, a uma comunidade de sujeitos. É essa a terceira saída do beco encontrada pelos frankfurtianos. Wittgenstein já dizia que “o jogo da dúvida pressupõe uma certeza”. Onde existe a dúvida, o sujeito da dúvida não é eliminável. O cético radical tem que duvidar de seu método, ou não? Há um ceticismo ingênuo que nos assola e que tem como único critério de verificação a própria ciência, o que é um argumento circular, já dizia o próprio Popper. A ciência não pode cumprir esse papel que, de tão importante, nos indivíduos teístas é atribuído ao próprio Deus (e é o que aproxima, mais do que se supõe, as ciências de outras racionalidades dogmáticas). Isso não é relativismo, é pensar sobre as formas do pensamento.

Se queremos discutir conceitos temos primeiramente, que admitir uma comunidade que possa fazê-lo. “Criticar, argumentar é pressupor em ato que a comunidade de argumentação é instituída e funciona!” Como diz Apel:

” […] a comunidade dos sujeitos argumentadores não é idêntica à comunidade dos especialistas, embora esta a pressuponha. No a priori da argumentação reside a pretensão de justificar não apenas todas as ‘asserções’ da ciência mas, além disso, todas as pretensões humanas – inclusive as pretensões implícitas dos homens em relação a outros homens que estão contidas nas ações e instituições. Aquele que argumenta reconhece implicitamente todas aquelas pretensões possíveis de todos os membros da comunidade de comunicação que podem ser justificadas por meio de argumentos razoáveis – na falta disso, a pretensão da argumentação se limitaria tematicamente a ela própria[…]”.

Em suma, não é possível, para a infelicidade geral, “matar” ou descartar a filosofia, nem mesmo um pequeno ramo dela, a filosofia da ciência. A ciência seria uma atividade chata e solipsista se assim o fosse, sem jamais alcançar o brilho de hoje. É quase como o indivíduo “temente” a Deus tentar expurgar o Diabo! Ele faz parte das regras do jogo. Ainda bem que cientistas gostam de falar de suas pesquisas e descobertas e que outros cientistas interessam-se em discutir e duvidar de suas premissas porque, ao fazê-lo, já estão a filosofar… =)

Bibliografia

1. Filosofia da Ciência I – Andler, D; Fagot-Largeault, A; Saint-Sernin, B. 2005.
Foto da home-page de K.O. Apel.

Metafísica Médica IV

ResearchBlogging.org


“O status epistemológico insatisfatório da medicina reside na sua original e inevitável conexão com a prática”
Hans-Georg Gadamer (The Enigma of Health)

Um médico é um humanista secular (o que não o impede de ter crenças individuais quaisquer), detentor de técnicas e saberes utilizados com o objetivo de aliviar o sofrimento humano. Este último, refere-se aqui “apenas” aos aspectos que envolvem os conceitos de saúde e doença. Para exercer sua profissão, o médico agindo como técnico e como agente ético é, essencialmente, um tomador de decisões, um decididor. São decisões as mais variadas, desde prescrever aspirina a fazer um transplante de fígado. Decisões de tratar, de não tratar, de investir toda a tecnologia médica possível para determinado paciente, ou de utilizar todo o conhecimento disponível com intuito de aliviar a dor e o sofrimento. Mas o médico toma suas decisões baseado em quê? Qual é (ou quais são) a(s) base(s) de sustentação de uma decisão médica?

Em uma primeira aproximação, podemos dizer que o médico decide por meio de seus saberes já que sua técnica direciona-o ao fazer, que, claro, depende de uma decisão prévia. Qual seria, então, a natureza dos saberes médicos? Basicamente, seriam duas as vertentes principais. A decisão médica levaria em consideração o saber técnico-empírico e o juízo clínico global. Chamemos de saber técnico-empírico um conhecimento nomotético que busca leis e regras gerais, utiliza a lógica e também o senso-comum. É um conhecimento teórico, transmissível, que almeja a objetividade e a coletividade, pertencendo ao domínio do público, portanto. O juízo clínico global é um conhecimento idiográfico, individual e específico. Leva em consideração a intuição e a experiência pessoal. É eminentemente prático e muito difícil de transmitir. Pode ser considerado subjetivo e diz respeito muito mais à individualidade de seu objeto, sendo portanto, radicado no domínio do privado. Este movimento dialético tem raízes profundas no pensamento médico, oriundo da oposição clássica da medicina grega, entre o vitalismo da escola de Cos (cidade de Hipócrates) e o organicismo da escola de Cnide (ou Cnidos), de inspiração empirista-atomista, por uma explicação mecânica das doenças (Biggart, 1971)[1]. Gadamer divide ainda, o saber técnico-empírico utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral. Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.

Saber Médico 1. Juízo Clínico Global
                                   2. Técnico-Empírico 2.1. Ciência
                                                                           2.2. Empírico Geral


A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte maneira. Imagine um paciente com uma doença com a qual um médico jamais se defrontou anteriormente, digamos, por exemplo, a gripe suína com insuficiência respiratória aguda grave. Cada médico tem uma experiência prévia que carrega consigo além de tudo o que estudou e estuda. Essa experiência e o que ele estudou de ciência médica fazem parte do saber técnico-empírico.
É tarefa do poder de julgamento do tal juízo clínico global reconhecer em dada situação a aplicabilidade de uma regra geral. O médico lembra de outras insuficiências respiratórias que teve e como tratou, ou das “burradas” que fez, e tenta aplicá-las (ou não) ao caso específico. Até aqui tudo normal. O problema está exatamente quando o médico resolve fazer alguma coisa (intubar o paciente, dar corticosteroides, outras drogas, etc). A ciência médica não embasa seu procedimento, não há publicações suficientes sobre o assunto, cada médico diz uma coisa, o que fazer? Utilizei esse exemplo extremo mas, isso ocorre a todo momento, com qualquer médico de qualquer especialidade, porque as decisões práticas necessitam de uma ciência que seja completa e forneça certezas que as embase. Completa, é exatamente o que a Ciência não é, por definição. E agora? E se o médica errar? Quem irá salvá-lo?

Isso nos remete às relações entre Epistemologia e Ética que estão no âmago da medicina. A epistemologia procura justificar nosso conhecimento, certas crenças ou nosso entendimento de certos fenômenos. A ética nos diz como conduzir-nos de maneira correta na busca, disseminação e uso do conhecimento, seja ele certo ou não. A ética nos ensina através da virtude intelectual, conforme Aristóteles, a encontrar a maneira correta de proceder frente a incerteza.
Na Ciência, o conhecimento científico (2.1, no esquema acima) e o empírico (2.2) caminham juntos, um corrigindo o outro. É assim que funciona e sempre funcionou. Na Clínica, a decisão prática confronta os dois tipos de conhecimento porque nunca se sabe se a aplicação de uma regra geral a um caso específico vai dar certo ou não. Só dá pra saber isso post hoc e chamamos o resultado de empírico. Isso resulta em uma tensão irredutível a qualquer processo de tomada de decisão que envolva conhecimento. Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, a tecnologia e suas aplicações. Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras de Gadamer:

Quanto mais a esfera de aplicação se torna racionalizada, mais o exercício de julgamento associado à experiência prática no sentido próprio do termo, deixa de ocorrer

Isso explica muito da tecnologização de medicina e de sua “impessoalização”. Não queremos mais médicos idiossincrásicos, individualistas, artistas de suas especialidades. Queremos opiniões uniformes, alinhadas com as últimas “notícias” produzidas pela literatura científica, a última “moda” em exames de imagem, etc. Os médicos também se acostumam a guidelines, diretrizes, algoritmos de conduta e terminam por pensar que essa é a única racionalidade correta da medicina. Há um imperativo ético na conduta de um médico. Ele tem que oferecer a seus pacientes o que ele tem de melhor. Sempre. A questão é saber se a Ciência Médica é a única capaz de julgar a eticidade dessa conduta ou se há outras formas de fazê-lo. Se a racionalidade clássica que é quem provoca essa tensão tem alguma alternativa (Cronje, 2003) talvez seja ainda cedo para dizer. E somos então remetidos à Ética da Crença. Mas isso é outra história e será um outro post, espero.

[1] Há quem diga que essa dicotomia não se justifica e que faz muito mais parte de uma lenda antiga sobre a história da medicina. Para mais detalhes ver o livro de ANTOINE THIVEL, Cnide et Cos? Essai sur les doctrines medicales dans la Collection Hippocratique, Paris, Les Belles Lettres, 1981, 8vo, pp. 435. Há uma boa resenha aqui e que pode ser baixada gratuitamente.

ResearchBlogging.org Biggart JH (1971). Cnidos v. Cos. The Ulster medical journal, 41 (1), 1-9 PMID: 4948495

ResearchBlogging.org Cronje, R., & Fullan, A. (2003). Evidence-Based Medicine: Toward a New Definition of `Rational’ Medicine Health:, 7 (3), 353-369 DOI: 10.1177/1363459303007003006

Metafísica Médica III


ResearchBlogging.orgHume: Pense na seguinte afirmação: “O evento A causa o evento B”. Exemplo, toda vez que dou uma pequena martelada no seu tendão patelar, um arco reflexo faz com que você dê um chute para frente. Podemos indicar isso da seguinte forma: martelada -> chute. Ou, genericamente, A -> B que podemos ler “por extenso” assim: eventos do tipo A (marteladas no tendão patelar) são sempre seguidos de eventos do tipo B (chute). Mais, permite-se uma intervenção na cadeia de eventos pois, se tenho controle sobre os eventos do tipo A (força, local, etc), terei também sobre os de tipo B (força, ou se o evento acontecerá mesmo ou não).

Mill: Mas a coisa não ficou por aí. Numa tentativa de aproximar este raciocínio cada vez mais da prática, pensou-se o seguinte: na verdade, o que temos não é simplesmente A -> B, mas uma conjunção de eventos em uma situação bem mais complexa (chamemo-la de Ci). Para dizermos que existe uma relação causal do tipo A -> B, os possíveis fatores confundidores de Ci devem ser determinados [1]. Isso implica em determinarmos os efeitos de Ci sem A, por um lado, e de A sem Ci, por outro. Stuart Mill, que pensou essas mirabolâncias, chamava isso de “métodos de concordância e diferença”. Esses métodos formaram a base de nossa ideia moderna de experimentação controlada.

No século XX, começaram experiências de maior fôlego na medicina, coincidindo com o surgimento da Estatística na Inglaterra. O problema é que, em medicina, raramente se encontram generalizações universais do tipo A -> B. No exemplo acima, temos vários fatores que podem fazer com que o chute reflexo não saia sempre da mesma forma. O reflexo em si, é esgotável e altamente influenciado pela atenção do paciente. Assim, as generalizações que podemos fazer em medicina são normalmente do tipo “A é seguido por B em um certo número de vezes”. O problema é obviamente o “um certo número de vezes”. Hume chamou a atenção para a inferência indutiva que as generalizações universais permitem sem nenhuma garantia em troca, por exemplo, “o fato de o dia ter nascido ontem e sempre, me garante que o dia nascerá amanhã”. Pensamos assim o tempo todo. Mas, no caso de uma afirmação do tipo “A é seguido por B em um certo número de vezes”, a inferência indutiva fica estranha assim: “Existe uma certa chance de o próximo A ser seguido por um B”. Agora esculachou tudo!! Colocamos o termo “chance” no raciocínio e para abordar isso formalmente necessitamos de uma Teoria de Inferência Estatística [1].

Uma teoria de inferência estatística é um arcabouço teórico que permite que “dados observacionais (por exemplo, porcentagens de imunização após vacina para malária) modelados como variáveis aleatórias forneçam uma base para conclusões indutivas sobre os mecanismos que geraram os dados” (por exemplo, taxa de imunização baixa, logo, essa vacina é uma porcaria!). Fisher dizia que essas conclusões eram incertas, mas que esse “incerto” não quer dizer que não exista uma matemática rigorosa por trás das conclusões! Em medicina, existem duas teorias de inferência estatística principais. A diferença entre as duas é o “jeito” de olhar os dados. Uma, objetiva, deu origem aos ensaios clínicos randomizados de que tanto falamos, a toda a base teórica da Medicina Baseada em Evidências e, porque não dizer, da prática médica atual (olha eu generalizando, hehe). A outra, tem cada vez mais adeptos, dá conta de estudar alguns eventos que a primeira não dá, mas é tachada de subjetiva. É sobre elas que vamos falar nos próximos posts.


ResearchBlogging.org [1] Derek Bolton, . (2009). The Epistemology of Randomized, Controlled Trials and Application in Psychiatry Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 15 (2), 159-165 DOI: 10.1353/ppp.0.0171

Metafísica Médica II

ResearchBlogging.org1. Sabe-se hoje, que o infarto agudo do miocárdio é provocado por um coágulo que se forma sobre uma placa de aterosclerose (ateroma) rota dentro das artérias coronárias que suprem o músculo cardíaco de oxigênio e nutrientes. Ao se formar, esse coágulo obstrui o suprimento arterial e submete o tecido irrigado a uma “asfixia” que chamamos tecnicamente de isquemia. Se a isquemia se prolonga por muito tempo, pode haver morte de células musculares, processo que chamamos de infarto (a forma “enfarte” também é aceita, mas não é norma técnica). A partir daí, a coisa se complica bastante. Desde arritmias fatais à insuficiência cardíaca, o infarto pode causar morte ou levar o indivíduo a uma vida bastante limitada.

2. Esse rapaz ao lado, chamava-se Bill Tillet, era médico e trabalhava na Divisão Biológica do Departamento de Medicina da Johns Hopkins, em Baltimore nos EUA, na década de 30. Já tinha feito algumas descobertas interessantes como a proteína C-reativa, um marcador inflamatório muito utilizado até hoje, estudando os efeitos da pneumonia causada por pneumococos (Streptococcus pneumoniae). Depois, começou a estudar as intrigantes propriedades hemolíticas de um primo do pneumococo, o Streptococcus beta-hemolítico. Como seu nome diz, essa bactéria tem a propriedade de dissolver coágulos humanos em minutos. Isso é útil a ela porque facilita a invasão de tecidos, que é seu passatempo predileto, podendo causar amidalites, celulites, erisipelas, infecções pulmonares graves e até sepse e morte. Ele e seu colega Garner conseguiram isolar uma proteína que chamaram de fibrinolisina estreptocócica (sem nenhuma noção de que esse nome enorme jamais pegaria!). Posteriormente, Tillett e outro colega aplicaram a estreptoquinase (bem melhor!) na pleura (tecido que envolve o pulmão) para dissolver coágulos e facilitar a expansão pulmonar de pacientes que tiveram pleurites e derrames pleurais complicados.

3. Nessa época, já se sabia, em linhas gerais, o funcionamento da cascata da coagulação, entretanto, não se tinha o conceito de como ela se dava in vivo. O sistema da coagulação é uma das coisas mais interessantes no organismo. A nós, bastará saber agora que um coágulo não é um tipo de “rolha” estanque que entope um vaso sanguíneo e muda seu nome para trombo. Um coágulo é a própria metáfora da criação/destruição tão comum em algumas filosofias orientais. Ele está a todo momento, formando-se e dissolvendo-se no interior de um vaso. Isso porque sobre ele intervém dois poderosos sistemas, um pró-coagulante, o outro, anticoagulante. Se bloqueamos um, o outro prevalecerá. Se favorecermos um, o outro não resistirá. O corpo e o tamanho do coágulo dependerão desse jogo de forças. Trombolíticos utilizam a via anticoagulante de forma poderosa levando à fibrinólise. A fibrina é como um rede de sustentação sem a qual o coágulo desmorona.

4. A partir do momento que os médicos entenderam que o infarto do miocárdio era causado por um coágulo nas coronárias e que existiam substâncias que poderiam dissolvê-lo, não demorou muito para que um gaiato resolvesse injetar as tais substâncias nas pessoas com objetivo de livrá-las de alguma obstrução incômoda. As primeiras experiências foram terríveis. Efeitos colaterais graves como hipotensão e choque, alergias e alterações imprevisíveis na coagulação não demoveram os médicos da ideia dos trombolíticos apesar de haver cirurgias bem estabelecidas onde o trombo era removido por meio da abertura cirúrgica da artéria envolvida[1]. Era preciso simplificar e ser menos invasivo. O primeiro estudo positivo foi a desobstrução de membros inferiores, onde o agente trombolítico (no caso a uroquinase) foi injetado diretamente na artéria femoral em 1956. Na década de 70, estudos sobre trombólise intracoronariana começaram a ser publicados, mas uma coisa é utilizarmos um cateter na artéria femoral que é de relativamente fácil acesso. Outra, totalmente diferente, é cateterizar a artéria coronária obstruída (normalmente existem 3 grandes ramos) e injetar o trombolítico. É preciso um laboratório de hemodinâmica, pois esses procedimentos são realizados, até hoje, com uso de raios-x contínuos (escopia) de modo a monitorizar a progressão do cateter até o local correto. Mas, era preciso simplificar mais. Era preciso estender o benefício do tratamento a todas as pessoas que por acaso necessitassem dele. E não eram poucas. Estima-se que mais de 70.000 pessoas morram atualmente por ano no Brasil vítimas do infarto e de suas complicações.

5. Há 25 anos, no dia 22 de Fevereiro de 1986, um sábado, foi publicado no Lancet o estudo chamado GISSI (Gruppo Italiano per lo Studio della Streptochinasi nell’ Infarto Miocardico)[2]. Esse foi o primeiro grande estudo a demonstrar claramente que o uso de agentes trombolíticos aplicados a uma veia periférica poderia reduzir a mortalidade no infarto agudo do miocárdio. Entretanto, já era possível saber disso em 1977[3], quase 10 anos antes. Demoramos 10 anos para comprovar algo que nossa leitura intuitiva das experiências realizadas em laboratório ou com um pequeno número de pacientes, já suspeitava. Isso significou a perda de muitas vidas. O GISSI foi um ensaio clínico randomizado (aleatorizado em português) não duplo cego, que reuniu mais de 11.800 pacientes em várias UTIs na Itália. O que ele nos disse que os outros não disseram? Como ele nos convenceu e por que?

ResearchBlogging.org1. Ouriel, K. (2004). A History of
Thrombolytic Therapy Journal of Endovascular Therapy, 11 (Supplement II) DOI: 10.1583/04-1340.1


ResearchBlogging.org2. Effectiveness of intravenous thrombolytic treatment in Acute Myocardial Infarction. GISSI. The Lancet, 327 (8478) DOI: 10.1016/S0140-6736(86)92368-8

ResearchBlogging.org 3. Egger M, & Smith GD (1995). Misleading meta-analysis. BMJ (Clinical research ed.), 310 (6982), 752-4 PMID: 7711568

Metafísica Médica

ResearchBlogging.orgO que é a Medicina? O lugar-comum das respostas é a tal “fusão entre Ciência e Arte”. Dado que não há uma definição universalmente aceita para Ciência e muito menos para Arte, eis que ficamos em situação bastante pior, posto que uma fusão entre duas coisas indefinidas é uma confusão! Praticar medicina baseado apenas nas evidências científicas, nos processos de generalização e indução, é tratar dos pacientes como sendo iguais em suas diferenças, o que favorece um tratamento massificado; por outro lado, a recusa aos dados científicos nos leva de volta às experiências pessoais, anedóticas de uma medicina pré-científica.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/Turkey_ancient_region_map_ionia.JPGCostuma-se dizer que a Medicina é uma profissão e isto é bem verdade. Assim como o sapateiro, o mascate e o barbeiro, o médico procura, com sua técnica, facilitar a vida da espécie humana em troca de alguma remuneração. Uma separação de ordem conceitual, entretanto, começou a ocorrer entre a Medicina e outras profissões há mais ou menos 2500 anos. “Segundo Werner Jaeger (Paidéia – página 198) o conceito de physis foi o ponto de partida de pensadores naturalistas do século VI AC, dando origem a um movimento espiritual e a uma forma de especulação. Na verdade, seu interesse fundamental seria o que chamamos hoje metafísica, por seu interesse nas causas primordiais dos fenômenos.” Esse tipo de pensamento surgiu numa região chamada Jônia (território da atual Turquia – foto ao lado, clique para aumentar e ver os créditos).

Hipócrates e seus seguidores eram da ilha de Cós, de população e língua dóricas, e escreveram todo o Corpus Hippocraticum em jônico. A razão disso é que o jônico era como se fosse um tipo de linguagem científica da época e da região, a exemplo do que é o inglês para o mundo hoje. Ainda segundo Jaeger, a incorporação do pensamento jônico fez com que a medicina se tornasse uma techné consciente, metódica e, principalmente, distante do pensamento mágico, este último o responsável pela estagnação da medicina egípcia desde suas grandes descobertas, todas bem anteriores aos progressos da medicina grega. Longe de querer repetir toda a bela história da medicina, essa minúscula retrospectiva teve o intuito de dizer que a medicina está, desde sempre, apoiada sobre uma base científica para exercer sua profissão. Como é, ou como está, essa base hoje? Posto de outra forma, de que áreas do conhecimento humano se constitui a ciência médica – as bases científicas da prática médica? A tabela abaixo é uma tentativa de resposta sintética para essa difícil pergunta (clique para aumentar – modificado da referência 1).

Já abordamos o assunto sob a ótica do público e do privado e penso que uma das principais confusões sobre a prática médica chamada de “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) seja o fato de que ela pertence ao “privado”, tendo sido sequestrada pelo “público”. Mas, isso é outra história. Quero me aprofundar desta vez, no conteúdo da tabela. A ciência médica compreende, segundo Williams [1], três domínios de pesquisa, a saber, o laboratório experimental, pacientes e, por fim, populações. Cada um desses domínios têm um tipo de abordagem, trabalha com determinadas ferramentas, necessitando de infraestruturas específicas. Nos EUA, têm programas de treinamento diferentes, que em geral se assemelham aos brasileiros. Apesar de bastante abrangente, a tabela dá uma ideia errônea da ciência médica pois supõe que os vários domínios sejam equivalentes em relevância para a prática clínica. Não são. Há, por assim dizer, uma hipertrofia enorme do domínio “pacientes” e de suas ferramentas, em especial, os ensaios clínicos, sobre a forma de se conduzir do médico contemporâneo.

Tentarei me aprofundar nessa questão no(s) próximo(s) post(s). Investigar o porque disso ter ocorrido e tentar estabelecer questões epistemológicas a respeito desse conhecimento que vem dando base à prática médica é uma tarefa talvez demasiado grande, mas tem bastante medaglia chegando. E eu vou atrás…


ResearchBlogging.org1. Williams GH (1999). The conundrum of clinical research: bridges, linchpins, and keystones. The American journal of medicine, 107 (5), 522-4 PMID: 10569311

Boaventura, Baptista e as Ciências em Bom Português

“Atribui-se, é possível que apocrificamente, a Richard Feynman, o comentário jocoso de que a filosofia da ciência é tão útil para os cientistas como a ornitologia para as aves. (…) Mas recorde-se, por exemplo, o que aconteceu quando o Grande Timoneiro lançou uma das suas famosas campanhas contra as aves que destruíam, segundo ele, as culturas agrícolas da China. Foi uma guerra sem quartel que quase exterminou os pássaros e, assim, quase destruiu as culturas agrícolas na China. Qualquer ornitólogo poderia ter informado os ideólogos do partido que, em particular, os odiados pássaros se alimentavam dos insectos que constituíam, esses sim, um perigo muito maior para a agricultura do que as próprias aves.”
António Manuel Baptista –  DISCURSO PÓS-MODERNO CONTRA A CIÊNCIA
Obscurantismo e Irresponsabilidade


Imaginem a cena. Um professor de Zoologia é chamado para um grupo de estudo cujo o tema é “o que é ciência?”. Um dos textos propostos para discussão foi o “Um Discurso sobre as Ciências” do polêmico sociólogo português Boaventura Sousa Santos. Pânico! O texto é recheado de parágrafos rococós, idas e vindas e de fato, imprecisões científicas. A inteligibilidade do texto é um desafio para quem está acostumado ao estilo enxuto e direto da linguagem científica. Que fazer?Antes de mais nada, é necessário entender as raízes de uma “pósmodernofobia” da qual cientistas, divulgadores científicos e alguns sciencebloggers sofrem. Isso porque o Pós-modernismo é visto como uma relativização do discurso da ciência; ou pelo menos assim foi apresentado a ela. Mas, o fato é que o Pós-modernismo não é bem isso. Já é tradicional tentar defini-lo pelo que ele não é, pois que existe muita contradição sobre o que ele é ou deixa de ser. Definição? Nem pensar. Um jeito de entender é que o Pós-modernismo questiona do pensamento moderno (leia-se iluminista) seus próprios fundamentos que antes eram considerados imutáveis, supra-históricos, transcendentais. Ao fazer isso, o pensamento pós-moderno tira de centro o próprio Sujeito cognoscente, veja só. O Sujeito todo-poderoso que havia sido colocado ali por Descartes e toda turma, e também pela sucessão de fantásticos resultados obtidos a partir de então. Ao questionar quem é esse Sujeito, o Pós-modernismo dissipa a objetividade [1], desafia a autoridade e “truca” a adequação entre objeto e experiências impostas a ele pelo Sujeito, o que convencionamos chamar de Verdade científica, porque diz, por exemplo, que isso pode depender de quem é esse sujeito, ou que essa adequação é feita entre o objeto e um discurso que se produz sobre ele, entre outras. Putz, experimenta falar para um cientista dos bons que seu método é contingente (tipo, depende de outras variáveis que não dele próprio), que outro resultado poderia ter sido obtido se fosse conduzido de outra forma, por outra pessoa, etc. Daí toda essa aversão e as reduções perigosas que todo preconceito termina por efetuar: pós-moderno = relativo, sem base, inconsequente, etc. Tudo isso com requintes de crueldade quando um matemático meio irresponsável publicou um monte de baboseiras em um jornal “pós-moderno” e disse, depois, que era tudo uma farsa. “Hahaha, vocês publicam qualquer porcaria bastando para isto escrever um monte de termos rebuscados e difícieis. Isso é que é ciência? Hahahaha”. (No final, até acho que foi bom mesmo, porque os ‘pós-modernistas’ estavam exagerando).Entretanto, o Pós-modernismo, seja lá o que isso queira realmente dizer, trouxe algumas ideias interessantes e algo incômodas para os carinhas de óculos, avental e crachá (alguns têm gravatas também), preenchedores-de-formulários-para-conseguir-$ (provocação explícita a uma certa lista de emails, =)). Em primeiro lugar, toda vez que falamos de ciência, já deixamos de fazer ciência há muito tempo. Qualquer cientista, por melhor que seja, quando fala de ciência está produzindo um discurso (escrito ou não) sobre a ciência. Podemos chamar isto de metadiscurso. Um metadiscurso quando produz uma visão convincente das coisas pode ser chamado de metanarrativa. O Pós-modernismo tem como passatempo predileto dissolver essas metanarrativas e deixar todo mundo com as calças na mão exatamente por mexer com os fundamentos do conhecimento como dito acima! Em segundo lugar, resolveram perguntar pro cientista se o que ele estava fazendo (pressupostamente, Ciência, oras) melhorava o mundo e o ser humano. O cientista ficou bem bravo porque para ele a Ciência é: “Primeiro, uma atividade executada por cientistas, com certas matérias-primas, propósitos e metodologia. Segunda, é o resultado desta atividade: Um corpo bem estabelecido e bem testado de fatos, leis e modelos que descrevem o mundo natural.” E podem prevê-lo. Você não voa de avião? Não tem GPS no carro? Então, não enche meu saco! Óbvio que o mundo é melhor. Mas…… se quando falamos de Ciência já estamos distantes do ponto de vista científico, a partir de qual ponto de vista falamos, então? A rigor, segundo D. Christino, qualquer um” “(..) pode ser filosófico, mas também sociológico, como crê Boaventura de Sousa Santos, ou antropológico, como argumenta Bruno Latour, ou (mesmo) ético-jurídico.” Pois é, Boaventura Sousa Santos (também conhecido como BSS) aborda a Ciência de um ponto de vista sociológico e não poderia ser diferente porque o homem é um baita sociólogo. Por mais defeitos que a Sociologia possa ter (deu-nos até um presidente!), ela tem lá seu jeito peculiar de ver o mundo. E esse jeito peculiar de ver o mundo vê a Ciência e a critica a partir de seu ponto de vista. O livro em questão (“Um Discurso sobre a Ciência”) é muito polêmico mesmo, tendo sido criticado tanto dentro da Sociologia como fora dela. De fora, em especial pelo físico António Manuel Baptista que publicou dois livros em resposta a tese de BSS, rebatendo suas imprecisões. Cristina Pereira publicou um estudo sobre o livro que vale a pena ser lido onde explica toda a polêmica. É sua conclusão que comento abaixo:“‘Um discurso sobre as ciências’, é uma obra polémica que versa o tema da epistemologia das ciências sociais, é nesse campo que nos demonstra que nos encontramos numa fase de transição, uma vez que face à existência de um paradigma dominante, já é possível encontrarem-se vestígios um paradigma emergente.” Apesar de criticas de dentro e fora da Sociologia, segue a autora “A obra está no centro da discussão sociológica e há que lhe reconhecer a qualidade de 21anos depois da sua primeira edição ainda despertar o interesse do público académico, tendo dado origem a outras obras, quer como resposta, quer como defesa de teoria.” 
Ao Eduardo Bessa e à sinceridade de suas dúvidas