Fenomenologia da Elegância II

escher

Mão com Esfera Espelhada – M. S. Escher 1935

Recomenda-se ler antes esta introdução.

Dorothy Walsh [1] defende que existem, ao menos, dois tipos distintos de elegância: uma elegância que pode ser chamada de comum, aquela dos objetos perceptuais, das vestimentas e do design, dos modos e das coisas do cotidiano; e uma outra elegância dita intelectual, que deve ser apreendida por meio de um insight intelectual, seria aquela das teorias e hipóteses científicas, dos objetos matemáticos e outros entes virtuais. Ambas têm ainda em comum o fato de coabitarem o mesmo campo semântico da simplicidade e da parcimônia.

As relações entre simplicidade, parcimônia e as “elegâncias” talvez sejam mais claras no âmbito da filosofia da ciência [2]. São relativamente comuns textos onde a simplicidade, como um atributo de teorias, é apresentada como tendo duas noções principais: simplicidade sintática (relativa ao número e a complexidade das hipóteses); e a simplicidade ontológica (relativa ao número e a complexidade das coisas postuladas). Esta última é chamada de parcimônia. A primeira, de elegância; intelectual, por suposto. Walsh argumenta que o princípio teórico da navalha de Ockham seria uma ferramenta da elegância intelectual e que ela pode sim ter valor epistemológico como muitos autores já vêm sugerindo.

Mas o que as “elegâncias” têm em comum? Será possível encontrar um denominador ou mesmo essência comuns que as possa reunir? Antes até, será que é possível perguntar por isso? Parece pairar sobre as duas  “elegâncias” uma certa aura de virtude. Em outras palavras, do ponto de vista axiológico, não seriam elas juízos valorativos positivos emitidos sobre algo ou alguém? Ambas não seriam experiências estéticas? Não poderiam também portar certa conotação moral, no sentido de representarem, por exemplo, o Bem e o Belo, no sentido grego arcaico desses conceitos? Perceber o elegante parece ser algo “positivo”, parece “fazer bem”, agradar aos “olhos e ao coração”. De quem? De quem percebe, oras. Até mesmo de quem se percebe como elegante também. Talvez o segredo esteja então, não em estudar os tipos de elegância, mas os tipos de observadores com olhos para ela. Se o que supomos está correto, ou seja, que a elegância não está na “coisa” elegante, mas nos “olhos” ou no “intelecto” de quem a observa, é porque ela se manifesta de algum modo a esse observador e há pelo menos duas maneiras de estudar tais “manifestações”, que passo agora a chamar de fenômenos.

Aqui vamos fazer um grande parênteses e por isso, peço a paciência do leitor. A primeira dessas formas de estudo pode ser exemplificada pelo excerto abaixo retirado do ensaio “O escopo e a linguagem da ciência” de Willard Van Orman Quine (1908 – 2000).

Eu sou um objeto físico situado em um mundo físico. Algumas das forças desse mundo físico colidem contra minha superfície. Raios de luz atingem minhas retinas; moléculas bombardeiam meus tímpanos e as pontas de meus dedos. Eu revido, emanando ondas concêntricas de ar. Essas ondas tomam a forma de uma torrente de discurso sobre mesas, pessoas, moléculas, raios de luz, retinas, ondas de ar, números primários, classes infinitas, alegria e sofrimento, bem e mal.[3]

Quine foi um dos mais importantes filósofos norte-americanos do século XX. Teve alunos famosos como Hillary Putnam, Donald Davidson, Daniel Dennett, Thomas Nagel, entre outros. Suas ideias sobre epistemologia – grosso modo, a teoria do conhecimento -, seguem uma escola de pensamento que pode ser chamada de “naturalista”. Uma das coisas que o naturalismo propõe é a ideia de que conhecemos o mundo por meio do impacto de várias formas de energia em nosso sistema sensorial, como fica claro no fragmento acima. Porém, Quine se pergunta, como partimos dos estímulos sensoriais e chegamos ao monumento intelectual que é a ciência? Quine acha que nosso conhecimento é, ao menos na sua maior parte, incorporado pela linguagem. A linguagem por sua vez, veicula o conhecimento de forma bastante indireta, mas se analisarmos com cuidado, poderemos traçar uma ligação entre os estímulos sensoriais e a produção de certezas por meio de construtos linguísticos progressivamente mais elaborados. Falar/escrever sobre as coisas que sentimos elabora o conhecimento do mundo. Além disso, Quine leva bastante a sério a ideia de que “é na ciência, e não em alguma filosofia precedente, que a realidade deve ser identificada e descrita” [4]. Nossa melhor teoria em um dado momento nos diz tudo o que podemos saber sobre a realidade daquele dado momento. E isso basta.

Uma abordagem bastante diversa de analisar os fenômenos que se nos apresentam é exemplificada pelo excerto abaixo retirado de um texto de Edmund Husserl (1859-1938)[5]:

Sou consciente de um mundo infinitamente estendido no espaço, infinitamente se transformando e tendo infinitamente se transformado no tempo. Eu sou consciente dele: isso significa, sobretudo, que intuitivamente eu o encontro imediatamente, que eu o experiencio. Pela minha visão, tato, audição e assim por diante, e nos diferentes modos de percepção sensível, coisas físicas corpóreas com uma distribuição espacial ou outra estão simplesmente aí para mim, “a mão” no sentido literal ou figurativo, esteja eu ou não particularmente atento a elas e ocupado com elas em meu considerar, pensar, sentir, ou querer. Entes animados também – entes humanos, vamos dizer – estão imediatamente aí para mim: eu olho; eu os vejo; eu os ouço se aproximarem; eu aperto suas mãos; falando com eles eu entendo imediatamente o que pretendem dizer e pensam, que sentimentos os movem, o que eles desejam ou querem.

Husserl é um dos filósofos mais importantes do século XX. É considerado o fundador da escola de pensamento filosófico chamada de Fenomenologia e seus estudos se desdobram em vários de seus alunos e seguidores como Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre e Paul Ricoeur. A diferença mais importante entre os dois fragmentos é que, enquanto para Quine a percepção é algo totalmente passivo – ele é “bombardeado” pelo mundo que o cerca e reage a isso -, para Husserl, não. As coisas e pessoas, entes em geral do mundo, estão aí para ele. O que isso quer dizer? Quer dizer primeiro que, para Husserl, há um mundo inesgotável de coisas dado cuja variação temporal gera uma facticidade (produz um filme ou conta uma estória) que é percebida por nós e, segundo, há uma intenção da consciência (posso prestar atenção ou não no filme ou estória) em conhecer esta ou aquela coisa desse mundo. Sem essa intenção originária não há como iniciar o processo do conhecimento. Se não temos acesso às coisas-em-si do mundo, temos, ao menos, acesso direto aos fenômenos manifestos por elas na nossa consciência.

Se Quine lança mão de um recurso altamente complexo e intelectualizado (linguagem) para compor sua teoria do conhecimento possível a partir das sensações recebidas do mundo externo, Husserl se apega às sensações elas mesmas. Não sob o ponto de vista neurofisiológico, mas às sensações tal como elas se apresentam à nossa consciência, cruas e nuas, o que Husserl chama de realidade imanente. Para ele, “toda consciência é consciência de alguma coisa”! O que ele mesmo desdobra nas fórmulas “toda percepção é percepção do percebido”, “todo desejo é desejo do desejado”, etc. Não há percepção nem desejo e, portanto, nem consciência, vazios. Em outras palavras, a partir do momento que a intenção se abre ao “querer”, se cria um espaço para que o “querido” apareça. A velha constituição fundacional do conhecimento na relação do sujeito com seu objeto, na fenomenologia, é posta entre parênteses. Suspensa, como todas as teorias que a estruturam, e que Husserl chama de hipostasias, na “atitude natural” que a ciência deve pressupor antes de descrever o mundo. Tanto o conhecedor quanto a coisa conhecida são elementos da e na experiência. Sem o ato (intencional) de atribuir significados à experiência, não há sujeito nem objeto, o que a teoria quineana/naturalista deve pressupor.

Por isso, parece que estudar a elegância sob um ponto de vista fenomenológico se justificaria por meio de tais argumentos. De fato, com isso já conseguimos de antemão escapar da divisão – agora é mais fácil dizê-lo – artificial entre elegância intelectual e perceptual, pois ambas são fenômenos de uma mesma natureza e nos afetam de modo idêntico. Parece ficar evidente também que essa divisão está ainda presa ao cânone tradicional da divisão entre “corpo e mente”, justamente aquele que não dá conta de explicar o que queremos entender. Se considerarmos ainda que o mundo fáctico da vida é a “casa” onde mora o que é elegante, seja ele um terno, um vestido ou uma teoria científica, e que estão-aí, “a mão”, talvez a fenomenologia nos ajude a entender como ao “intencionarmos” a elegância, criamos imediatamente um espaço para que o “elegante” se nos apareça.

 

1. Walsh, D. Occam’s Razor: A principle of intellectual elegance. American Philosophical Quarterly. V 16 N 3 Jul 1979.

2. Baker A. Quantitative parsimony and explanatory power. The British Journal for the Philosophy of Science. Br Soc Philosophy Sci; 2003;54(2):245–59. (pdf)

3. Quine, W.V. The Ways of Paradox and Other Essays. Cambridge, MA: Harvard University Press. Citado por Cerbone, D. R. Fenomenologia. Trad Caesar Souza. Petrópolis, RJ. Vozes (Série Pensamento Moderno) pág 21.

4. Hylton, P., “Willard van Orman Quine”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.) [link]

5. Husserl, E. Ideias I: § 27. Citado por Cerbone, D. R. Fenomenologia. Trad Caesar Souza. Petrópolis, RJ. Vozes (Série Pensamento Moderno) pág 23.

Fenomenologia da Elegância

andrea-laliberte-femme-elegante-iiiPor que não costumamos dizer que cachoeiras ou praias são elegantes? Quem pode ter o atributo da elegância? Seria a elegância um modo-de-ser exclusivo das coisas do humano? Um terno ou um vestido não são elegantes em si. Tornam-se (ou não) quanto vestem alguém. Já um móvel pode ser elegante mesmo que não haja ninguém por perto. Uma floresta não é elegante. Um jardim pode ser. Mas por quê? Qual característica (humana?) singulariza a nós e nossas coisas como candidatos à elegância?

E por fim, mas não menos importante: o que é elegância e qual a importância em ser elegante? É possível uma atividade humana, por exemplo, a ciência ou a medicina, ser desempenhada de forma elegante? Se sim, como isso se dá? Um artigo recente em uma importante revista de nefrologia (ver abaixo) ressalta a importância de uma ciência elegante. Basicamente, os autores defendem a ideia de que a elegância teria um valor epistemológico em si dado que pode emergir na forma de síntese (organização de dados de uma forma diferente que permita ver algo novo, como no exemplo da descoberta da vacina da varíola por Jenner); na forma de uma combinação entre simplicidade e equilíbrio (como na hipótese do trade-off de Bricker & Slatopolsky para o equílibrio entre cálcio e fósforo nos mamíferos); ou, finalmente, na forma de simplicidade e linearidade (como na hipótese dos supernéfrons de Barry Brenner). Seria um tipo de Navalha de Ockham estética e parcimoniosa. Em algumas áreas da matemática, isso parece mesmo ser o método. A conclusão do artigo, que reproduzo agora em tradução livre do inglês, me parece reveladora.

Um estudo sistemático da elegância requer uma abordagem interdisciplinar que envolva a pesquisa biomédica contemporânea, uma perspectiva histórica e uma compreensão filosófica das bases da ciência. Como na famosa frase de Kuhn: “é especialmente em períodos de reconhecida crise que os cientistas voltam-se às análises filosóficas como dispositivo para decifrar os enigmas de suas atividades”. Nós acreditamos que a história e a filosofia têm um papel na prática cientifica cotidiana, não apenas nos momentos de crise. A perspectiva histórica e a reflexão filosófica não são elementos tangenciais mas componentes fundamentais da pesquisa científica. Em especial, elas nos permitem desenvolver características da ciência que a tornam elegante e melhor compreender porque uma mente elegante é um propulsor do progresso científico.

Se essa fórmula é válida ou não, podemos tentar discutir mais adiante. A elegância contudo nos afeta cotidianamente e provoca em nós um vislumbre do sublime. Antes de saber o que seria uma “medicina elegante” por exemplo, é preciso entender como algo elegante, pessoa, objeto ou ação, se apresenta a nós. Como se destacaria tal elegância no mundo que me cerca visto que a discrição, e não a ostentação, e a parcimônia, e não o excesso, são características do que é elegante? Que impressão causa em mim tal fenômeno é um trabalho que pode ser abordado de múltiplas formas. Tentarei, com todos os riscos inerentes a um amador (no sentido forte do termo) no assunto, a via fenomenológica. O tema me é caro e mereceria uma abordagem menos diletante dado que pode constituir a “via estética” como uma alternativa concreta como perceberam os colegas do artigo abaixo. Mas considerem como um exercício. (Se eu errar, corrijam, por favor!).

Ver Fenomenologia da Elegância II e III.

ResearchBlogging.org

Nathan MJ, & Brancaccio D (2013). The importance of being elegant: a discussion of elegance in nephrology and biomedical science. Nephrology, dialysis, transplantation : official publication of the European Dialysis and Transplant Association – European Renal Association PMID: 23378419

O Filme

filme2Vou dar só um exemplo, macaco pelado. Só um. Então, agarre-o com as suas mãozinhas glabras e suadas de desespero, com toda a força que puder. Veja só.

Pegue uma boa câmera de filmar. Pode ser celular com câmera também, óbvio. Mas bom. Nossa, como você se prende a detalhes irrelevantes, não? Depois de pegar a câmera, desça pelo elevador e ganhe as ruas. Nas ruas mora o monstro do cotidiano. Mora a vida comum. Nas ruas há vitrines e galerias e é onde está o mundo da vida. Escolha um lugar movimentado qualquer. Ligue a câmera e comece a filmar o que você vê ao seu redor. Filme tudo; vá filmando. Filme os carros, os prédios, as pessoas. Filme-as conversando, paradas ou simplesmente andando. Filme ABSOLUTAMENTE tudo. Até acabar a bateria.

Macaco pelado, você sabe manipular esses aparelhos, não? Sabe sim. Só não sabe muito bem o que fazer com eles, mas vou lhe dizer. Chegue em casa e passe o que você filmou para o computador. Assista. Passe horas, dias, assistindo até quando não aguentar mais ver o filme e me responda com toda a sinceridade – sinceridade com a qual você normalmente não está acostumado a lidar – me responda, macaquinho pelado – à pergunta que farei e que sei, sim, que é a pergunta que você mais teme que eu faça. Na verdade, é a pergunta que você luta para não se fazer!

Pobre macaco pelado… Não vou poupá-lo porque você tem andado meio arrogante nos últimos tempos, viu? É isso mesmo. Então lá vai. Depois de ter filmado tudo o que podia lá fora – no mundo da vida – depois de ter visto esse filme várias e várias vezes, me diga macaco pelado, qual é o sentido desse filme que você acabou de fazer e que viu tantas vezes? Qual é, diz? NENHUM?! Como assim? Mas você filmou o mundo REAL, coisas REAIS, pessoas REAIS, com uma câmera boa, não foi? O que foi que você captou, então? Não foi a REALIDADE? Por que isso tudo não faz sentido, macaco? Será que a realidade não faz sentido?

Nenhum sentido. A  r e a l i d a d e  n ã o  f a z  n e n h u m  s e n t i d o. Descrever a realidade o mais fielmente possível NÃO GARANTE que haja sentido! Explicar é diferente de compreender. Por melhor que seja a câmera, por mais tempo que se filme, por mais longe que se vá, ainda assim, nada fará sentido.

Essa é a sua Ciência, macaco pelado. Uma câmera. Cuidado com os filmes que você faz e principalmente com os que você vê. Agora, quer saber um jeito de como dar algum sentido para as coisas que você filma? Quer sim, eu sei. É fácil. Da próxima vez, conte uma história. Não precisa nem de câmera. Esse é o exemplo. Sacou?

Kehl, Freud e o Processo da Verdade

Craig Kiefer no Street Anatomy - clique para ver os créditos

Craig Kiefer no Street Anatomy – clique para ver os créditos

A verdade social não é ponto de chegada, é processo

Maria Rita Kehl

Maria Rita Kehl é dessas mulheres fascinantes. Sou seu fã desde há muito e adoro ouvi-la falar de qualquer assunto. Também adoro lê-la. Não foi à toa que li com carinho seu artigo na Folha de SP no último domingo – 24 de Março de 2013 – data emblemática desde que a ONU a escolheu como o Dia Internacional do Direito à Verdade. Para “rememorá-lo”, como membro integrante da Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita escreveu, sobre Psicanálise e Estados Totalitários, um artigo com o título sugestivo de “A verdade e o recalque“.

No artigo, Maria Rita associa o conceito freudiano de “recalque” – interdição de fragmentos de lembranças e/ou fantasias sexuais, por exemplo – à repetição de sintomas neuróticos que, como uma válvula de escape, permitem dar vazão ao que foi aprisionado à força, no inconsciente. Freud propõe a quebra desse binômio esquecimento/sintoma psíquico pela elaboração do trauma. Até aqui, esse seria, talvez, o pensamento padrão de um psicanalista.

O problema, na minha humilde opinião, está na seguinte frase: “Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintoma sociais”. Bom – pensei -, ao juntar psicanálise e sintomas sociais vamos acabar na Frankfurt do pós-guerra e sua mistura “explosiva” de Freud com Marx de seu Instituto para Pesquisa Social. Depois de uma aproximação pacífica, já em “Eros e Civilização” (1955), Marcuse articula uma crítica ao conceito freudiano de uma repressão orgânica e biológica com a qual teríamos que conviver. No lugar desse “biologismo” freudiano, ele afirma com Marx, que “a submissão efetiva das pulsões através de regras repressivas não é imposta pela natureza, mas pelo homem”[1]. No texto, Maria Rita chega a afirmar que “Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história”. Se Freud leu Marx eu não sei, mas n’ “O Futuro de Uma Ilusão” chega a esboçar uma luta de classes (em livre tradução do espanhol de [2]):

Mas quando uma cultura não superou a situação na qual a satisfação de um número de seus membros tem como pressuposto a opressão de outros, quiçá de uma maioria – e este é o caso de todas as culturas atuais -, se compreende que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra essa cultura que tornam possível com seu trabalho, mas de cujos bens têm escassa participação.

Horkheimer e Adorno, a partir de sua volta a Frankfurt depois de exílio forçado nos EUA, Marcuse, que ficou por lá, e em especial, Habermas alguns anos depois, reformulam suas interpretações públicas das teorias freudianas[2], mas mesmo as críticas da Escola de Frankfurt se tornaram obsoletas quando se viram obrigadas a lidar com a dissolução dos conceitos de totalidade postulados por Marx e Hegel. O próprio Habermas constatou que sua “‘teoria da história da espécie’, elaborada no texto Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), também continuava presa, a exemplo da teoria marxiana, a categorias da filosofia do sujeito e da reflexão, porquanto entendia que os processos de aprendizagem da história mundial se concretizariam em classes sociais e povos, isto é, sujeitos superdimensionados“.[3] (grifos meus). Daí em diante, vem o “Giro Linguístico” e todos os seus desdobramentos, em especial, no que se refere a dissolução do paradigma do sujeito.

Acho problemático que a teoria freudiana do recalque, tão criticada, seja aplicada a um contexto sociológico atual com intuito de estabelecer uma explicação da doença social causada pela interdição da verdade; em que pese a nobreza da causa. Não sei bem porque Maria Rita escolheu esse caminho. Poderia ter usado algo da Teoria Crítica ou mesmo de Hannah Arendt, sei lá. Talvez por objetivos didáticos, já que Freud “pega na veia” e esses autores não são popstars como Freud e ela quisesse causar impacto. Ou talvez por familiaridade com o tema; fico pensando se o não dito, ou no caso, o não citado, também não falaria por si. Também acredito que para dizer, como ela disse lindamente no artigo, que “é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva” pudesse prescindir de Freud. Esse “coletiva” a que ela se refere parece não estar ainda na obra do médico vienense. Essa ligação entre os desejos individual e o coletivo na construção da sociedade moderna talvez só viesse anos depois com a Teoria Crítica. Já a belíssima frase que epigrafa o post demanda algo mais. A verdade como processo é aquisição kafkiana recente da sociedade. Livre.

Por isso, Maria Rita é essencial.

 

 ~ o ~

 

PS. Sensacional, diga-se de passagem, o elegante cruzado de direita que ela dá em Contardo Calligaris pelo famigerado artigo sobre tortura.

 

[1] Souza, MA. Eros e Logos: Marcuse, crítico de Freud. Filosofonet. Publicado em 11/11/2007.

[2] McCarthy, T. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. 4a ed. Tecnos. 1998. pp 230-51.

[3] Siebeneichler, FB. Apresentação à edição brasileira da “Teoria do Agir Comunicativo” de Jürgen Habermas. Martins Fontes. 2012. pp XVIII- XIX.

Perguntinha Extemporânea

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Qual é o oposto de tempo? O que é ou qual é o outro do Tempo; o seu não-ser?

Antropofagia

1° Ato

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Este corpo, como você vê e toca, jamais verá e tocará de novo.” Se ele dissesse que seus olhos serão feitos de tal modo que nenhuma parte do seu corpo se exporá ao seu olhar e que um dispositivo maligno, deixando-o livre para alcançar todas as coisas, o impedirá de tocar sua própria carne. Que a partir desse fatídico momento, você será como uma partícula de poeira dotada apenas de consciência, sem a vivência de seu próprio corpo.

 

2° Ato

“A universidade aos poucos sucumbe aos efeitos colaterais de um mundo que, como diria Nietzsche, vomita “ideias modernas”. Os processos de democratização do saber, como suspeitava nosso filósofo, são processos de produção de nulidades em grandes quantidades.(…) A universidade está morta e só não sente o cheiro do cadáver quem tem vocação para se alimentar de lixo. Fosse Kafka vivo e escrevesse um conto sobre nós, acadêmicos, nos colocaria com cara de ratos.” (LF Pondé na FSP).

 

3° Ato

“Ai – dizia o rato – o mundo se torna cada dia mais pequeno. Primeiro era tão amplo que eu tinha medo, seguia adiante e sentia-me feliz ao ver à distância, à direita e à esquerda, alguns muros, mas esses longos muros se precipitam tão velozmente uns sobre os outros que já estou no último quarto e, ali no canto, está a armadilha para a qual vou. – Apenas tens de mudar a direção de tua marcha, disse o gato, e comeu-o.” (Franz Kafka – apud Jacó Guinsburg).

 

4° Ato

“A ausência de corpo não é tua alma, Rato. O melhor é comer-te a ti mesmo se o queres desprezar.” E assim, se fez…

Gran Finale

HdH Prado JrAgradecimento especial ao Dr. Hermes Prado Jr que gentilmente cedeu a figura que inspirou o texto.

 

Ricoeur, Metáforas, Narrativas e a Medicina

Tempo NarrativaConheço muita gente boa – boa mesmo – que não gosta de ler ficção. Mais especificamente, romances ou histórias contadas, ou mesmo narrativas. Uma vez, escrevi que os romances são como ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, placebo controlados do mundo da vida e continuo concordando com isso. Mas, confesso, ainda me faltava um certo embasamento teórico para sustentar isso. Paul Ricoeur talvez tenha resolvido o problema. Ele teve reeditada no Brasil sua obra máxima “Tempo e Narrativa” pela editora Martins Fontes. Segundo o que o próprio autor expõe na introdução ao livro, Tempo e Narrativa é uma obra gêmea de A Metáfora Viva. Este livro pode ser considerado uma consequência da “experiência de Ricoeur na academia norte-americana, especialmente por seu contato com a filosofia analítica anglo-saxônica e sua inclinação por estudar não apenas a natureza ontológica de cada categoria, mas seus mecanismos de funcionamento e de interação com o mundo”[1]. Em A Metáfora Viva, de 1975, Ricoeur defende, a exemplo de Rorty, que a metáfora provoca uma inovação, ou como gostaria o americano, uma redescrição.

Com a metáfora, a inovação consiste na produção de uma nova pertinência semântica por meio de uma atribuição impertinente: “A natureza é um templo onde viventes pilares…” A metáfora continua viva enquanto percebermos, através da nova pertinência semântica – e de certo modo em sua espessura -, a resistência das palavras em seu emprego usual e, portanto, também sua incompatibilidade no nível de uma interpretação literal da frase.”

Dito isso, Ricoeur passa a explicar que Tempo e Narrativa é fruto de uma tentativa de paralelismo entre metáforas e narrativas, veja só! No caso das narrativas,

… a inovação semântica consiste na invenção de uma intriga que, também ela, é uma obra de síntese: pela virtude da intriga, objetivos, causas, acasos são reunidos sob a unidade temporal de uma ação total e completa. É essa síntese do heterogêneo que aproxima a narrativa da metáfora. Em ambos os casos, algo novo – algo ainda não dito, algo inédito – surge na linguagem: aqui, a metáfora viva, isto é, uma nova pertinência na predicação, ali, uma intriga inventada, isto é, uma nova congruência no agenciamento dos incidentes.

Só por isso, o estudo de tais “literatices” por profissionais de saúde já estaria justificado, contudo, ainda assim, estaríamos a pisar em um campo bastante teórico. Mas, Ricoeur avança mais. Para ele, a imaginação produtiva é quem possibilita a compreensão. Metáforas e narrativas simulam (não estaria aqui embutida a ideia de ensaio?!) num nível superior de uma metalinguagem, a inteligência enraizada no esquematismo que nos aprisiona: o da linguagem. Como grande hermeneuta que é, escreve:

Consequentemente, quer se trate de metáfora ou de intriga, explicar mais é compreender melhor. Compreender, no primeiro caso [metáfora], é voltar a captar o dinamismo em virtude do qual um enunciado metafórico, uma nova pertinência semântica emergem das ruínas da pertinência semântica tal como aparece numa leitura literal da frase. Compreender, no segundo caso [narrativa], é voltar a captar a operação que unifica numa ação inteira e completa a diversidade constituída pelas circunstâncias, pelos objetivos e pelos meios, pelas iniciativas e pelas interações, pelas reviravoltas da fortuna e por todas as consequências não desejadas da ação humana.

É isso! Hoje, o discurso científico, por seus poderes pre-visionários e seus resultados, sobrescreve a medicina de tal forma que o médico se torna quase como um “papagaio-de-estudos-clínicos”, repetindo-os sem parar até que novos estudos substituam os antigos. Nossos pacientes não querem só isso. Sem abandonar a ciência, é preciso dar algum valor aos discursos que, feitos de linguagem, são quase como que abstraídos da relação entre os médicos e seus pacientes (e entre médicos também!), como interferentes, ruídos indesejáveis. Como fazer isso? Trata-se de um problema epistemológico pois refere-se ao valor de verdade que atribuímos a determinadas informações. Ricoeur vai no nervo:

O problema epistemológico levantado, quer pela metáfora, quer pela narrativa, consiste em grande medida em ligar a explicação empregada pelas ciências semio-linguisticas à compreensão prévia que decorre de uma familiaridade adquirida com a prática linguageira, tanto poética como narrativa.

Seria a partir do “estranhamento” à “familiaridade da prática linguageira” causado pela poesia (metáforas em trânsito) e pelas narrativas (ensaios de intrigas sintéticas do mundo da vida) que quebraríamos o transe cognitivo causado pelo costume. Se o discurso poético permite à linguagem acessar realidades que não são atingidas pelo discurso meramente descritivo, permitindo inclusive a Ricoeur falar em referência metafórica, em especial nos campos “sensorial, pático, estético e axiológico, constituintes do mundo habitável”, a função mimética das narrativas, por sua vez, se exerce de preferência no campo da ação e de seus valores temporaisAs narrativas reconfiguram nossas experiências temporais. É daqui que elas retiram seu valor de verdade. Heidegger é foda.

(Desculpem o palavrão)

[1] Ver resenha “profissa” do livro aqui.

Os Mestres do Preconceito

“Clínicos são intérpretes prudentes das experiências de saúde de seus pacientes”.

R.E.G. Upshur [1] (grifos meus)

Ao GENAM, com carinho

O esforço do Homem (antropos) para compreender o cipoal de significados sobre o qual é lançado no momento em que nasce é crucial para sua sobrevivência. Hoje, a infinidade de códigos e linguagens que devemos interpretar e traduzir para lidar com o mundo é gigantesca. A medicina, da forma como a entendo, qual seja, centrada na relação entre o médico e o paciente, propõe um desafio interessante porquanto aproxima duas visões de mundo, às vezes muito diferentes. Ao médico, cabe ainda um outro desafio que é o de aplicar o conhecimento científico  – quase uma epistéme aristotélica – a uma prática fronética ou prudente, reconhecida desde sempre como técnica (techné), citando Aristóteles, o pai dessa zorra toda que, aliás, já tem alguns milênios.

O que tentarei demonstrar nesse pequeno espaço, seguindo os caminhos do autor abaixo [1], é que um pouquinho de preconceito é bom para o médico, tanto em sua tarefa de fundir sua visão de mundo àquela que o paciente vê, como quando lida com a massa enorme de conhecimento científico e tenta aplicá-la no ser que lhe pede socorro. Thomas Bayes (1701?-1761) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002), cada um a seu tempo e a seu modo, trataram desse preconceito filosófico. Um obscuro monge inglês pertencente a uma seita não-conformista (seja lá o que isso realmente queira dizer) e um alemão, brilhante aluno do sacana do Martin Heidegger, nascidos com 200 anos de intervalo, teorizaram sobre o valor do preconceito, ou pré-conceito, ou pré-juízo (como no inglês, prejudice) no ato de compreensão humana das coisas do mundo. Eu os chamo mestres do preconceito.

Bayes

Thomas Bayes (1701? – 1761)

A Estatística pode ser entendida como a ciência que se ocupa da quantificação da incerteza e, por essa razão, o cálculo probabilístico ocupa um papel central nela. Há duas formas básicas de se abordar a probabilidade de um evento ocorrer. Um, chamado objetivo, é testar a ocorrência do evento em um número muito grande de vezes, de modo a estabelecer a frequência do resultado que se quer estudar. É chamado de frequentista. O outro leva em consideração a probabilidade desse evento ocorrer antes que procedamos ao teste. Poderíamos até pegar os dados de um frequentista que trabalhou duro para obtê-los e ter acesso a essa distribuição antes de testar o evento. Chamamos isso de probabilidade a priori. De posse dessa probabilidade a priori, podemos modificar nossas expectativas ao avaliar, por exemplo, o risco de uma paciente com mamografia positiva ter, de fato, câncer de mama [2]. O interessante é que, quando essa distribuição não está disponível, podemos colocar nossas próprias expectativas na fórmula. Para a estatística bayesiana vale a opinião pessoal sobre o evento, vale a nossa propensão em acreditar na distribuição a priori, por isso, também é chamada de subjetiva. A nós, interessa a origem dos a prioris clínicos. Há evidências de que clínicos utilizamos a experiência prévia muito mais que dados estatísticos consistentes [3]. De qualquer forma, o teorema de Bayes permite que reajustemos o grau de crença em uma hipótese com base em novas informações. Ou em outras palavras, nossas preconcepções, sejam diagnósticas, prognósticas ou terapêuticas, devem ser reavaliadas a cada novo dado, cotejadas com novas evidências e, por fim, modificadas em novas possibilidades.

Gadamer

Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002)

Em 1960, Gadamer publica Verdade e Método, seu magnum opus, onde reforça a característica ontológica da compreensão humana, ou como ficou conhecida mundialmente, da hermenêutica filosófica. “Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey; mas tampouco é, como em Husserl, um ideal metodológico último da filosofia frente à ingenuidade do ir vivendo. É, ao contrário, a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo”- diz ele lá na página 347 [4] (itálicos originais). Gadamer demonstra que a interpretação e a compreensão são constitutivos do homem lançado ao mundo. Nessa demonstração, o pré-conceito tem um papel fundamental. Quando interpretamos um texto, realizamos, na linguagem de Gadamer, um projeto. Como nessa citação:

“é preciso (…) considerar que cada revisão do projeto inicial comporta a possibilidade de esboçar novo projeto de sentido; que projetos contrastantes podem se entrelaçar em uma elaboração que, no fim, leve à visão mais clara da unidade do significado; que a interpretação começa com pré-conceitos que são, pouco a pouco, substituídos por conceitos mais adequados. (…) Aqui, a única objetividade é a confirmação que uma pré-suposição pode receber através da elaboração. E o que distingue as pré-suposições inadequadas senão o fato de que, desenvolvendo-se, elas se revelam insubsistentes? (…) Há, portanto, um sentido positivo em dizer que o intérprete não chega ao texto simplesmente permanecendo na moldura das pré-suposições já presentes nele, mas muito mais quando, em relação com o texto, põe à prova a legitimidade, isto é, a origem e a validade, de tais pressuposições”. [5]

A aproximação inicial a um assunto provoca uma impressão que nos impele emitir juízos que definem padrões lógicos ou generalizações em nosso esforço eterno de tentar prever comportamentos, sequências ou comparar coisas novas com aquelas que já conhecemos. Essa primeira impressão não é a que fica. Ela deve ser continuamente corrigida à luz de novas informações. Os a prioris bayesianos e os projetos hermenêuticos estão muito mais próximos do que poderíamos jamais supor. Eles têm valor ontológico ou, em outras palavras, são criadores de conhecimento válido. Na medicina, essa proximidade sempre foi patente; só não tinha nome. Como diz Upshur “a dimensão hermenêutica da medicina desvia nossa atenção de discussões sobre dicotomias simplistas tais como se a medicina é uma arte ou uma ciência; ou se o conhecimento clínico é subjetivo”. A medicina é um humanismo. A doença tira o Homem de sua unidade habitual e abre caminho para visões não-totalizantes de seus padecimentos. O que é, então, o esforço clínico em compreender o Homem em suas profundidade espiritual e complexidade biológica? Nesse contexto, Arte e Ciência são interpretações, discursos possíveis sobre uma mesma coisa-em-si humana. Subjetivos? É óbvio que somos; dado que sempre tratamos de individuais subjeitos.

 

[1] Upshur, REG. Prior and Prejudice. Theoretical Medicine and Bioethics 20: 319–327, 1999.

[2] Pena, SD. Thomas Bayes “é o cara”. CIÊNCIA HOJE • vol. 38 • nº 228, pg 22-29 – Julho/2006 (ver o pdf)

[3] Gill CJ, Sabin L, Schmid CH. Why clinicians are natural bayesians. BMJ. 2005 May 7;330(7499):1080–3. DOI: 10.1136/bmj.330.7499.1080 (Open Access) – veja também as cartas, correções e comentários.

[4] Gadamer HG. Verdade e Método. II Parte, Volume I. Editora Vozes. Tradução Flávio Paulo Meurer.

[5] Reale & Antiseri. Hans-Georg Gadamer e a Teoria Hermenêutica. in História da Filosofia, pag 627-639.

PS. A conotação extremamente negativa que temos hoje do preconceito vem do Esclarecimento. Para o homem iluminista, cartesiano, um juízo acerca de alguma coisa deve ser tomado de forma isenta e desprovida de qualquer pré-concepção a respeito do assunto. Como uma tabula rasa, deveríamos absorver as evidências e chegar a conclusões óbvias, conclusões as quais qualquer pessoa racional chegaria ao analisar as mesmas provas. No Esclarecimento, o objetivo é o projeto cartesiano de obter um conhecimento metodologicamente seguro, limpo de interferências e inferências pessoais. Posteriormente, essa pre-concepção das coisas adquiriu um valor moral – como no pecado de “julgar um livro pela capa” -, até incorporar temas diversos como racismo, xenofobia, diversidade cultural, sexual e etc.

UTI. Uma boa referência às virtudes de Aristóteles, além claro, do “Ética a Nicômaco” é o livro de Enrico Berti “As Razões de Aristóteles“.

Eu Sem Mim

ET de MIB I "aprisionado" em seu corpo

A característica principal de quem dirige um veículo com prática é a automaticidade dos procedimentos. Mudam-se marchas e acionam-se dispositivos de maneira quase inconsciente. O todo das ações forma então, um conjunto harmônico de atitudes que fazem com que a condução do carro se torne parte de um ambiente “normal”. Dessa forma, é possível ouvirmos músicas e até conversarmos dentro de um veículo, esquecendo-nos que ele está em movimento, por vezes, em alta velocidade. Assim é o funcionamento do nosso organismo. Quantos processos automáticos não coexistem sem que sequer saibamos de suas causas ou de seus efeitos? Reações, pulsações, contrações, explosão de -ações em um concerto mudo. Já se disse que a saúde é a vida no silêncio dos orgãos. Mas algumas parcas notas dessa sinfonia nos são dadas a ouvir. Imagine-se, por exemplo, como seria se tivéssemos de nos “lembrar” de nossas “funções fisiológicas”, como evacuar ou esvaziar a bexiga de tempos em tempos, se o corpo não nos “avisasse” de suas necessidades. Suponhamos que não sentíssemos fome, sono, sede, libido, amor (?)…

A continuarmos por esse caminho, podemos começar a supor que muitas de nossas escolhas “conscientes” podem ser originárias de uma outra fonte que não a própria vontade do nosso Eu. Um caminho que levado às últimas consequências pode conduzir à armadilha – semântica e vazia – do fisicalismo, por um lado, e, por outro, a um determinismo biológico muito próximo de um materialismo cientificista, também incapaz de satisfazer as condições de possibilidade desse Eu, alma, Self, Selbst, sujeito, ou o que quer que seja. Mas como negar a existência desse Eu, sujeito ou Self, proprietário de um corpo que o carrega para lá e para cá e o insere no mundo da vida? Existiria algo como o ET do filme “Homens de Preto“, que, autopsiado, revela seu verdadeiro Eu como o proprietário de uma carcaça mecânica (figura) que fingia ser um ser humano? Será essa a metáfora de uma existência bipartida?

A criação de um Eu todo poderoso excluso do corpo que lhe dá abrigo, é sacramentada em Descartes. Nietzsche chama esse tipo de pensamento de descuidado.

Sejamos mais cuidadosos que Descartes, que se manteve preso à armadilha das palavras. Cogito é decididamente apenas uma palavra, mas ela significa algo múltiplo: algo é múltiplo e nós, grosseiramente, o deixamos escapar, na boa-fé de que seja uno. Naquele célebre cogito se encontram: 1) pensa-se; 2) eu creio que sou eu quem pensa; 3) mesmo admitindo-se que o segundo ponto permanecesse implicado, como artigo de fé, ainda assim o primeiro “pensa-se” contém ainda uma crença, a saber: que “pensar” seja uma atividade para a qual um sujeito, no mínimo um “isso”, deva ser pensado – além disso, o ergo sum nada significa! Mas isso é fé na gramática; já são aqui instituídas “coisas” e suas “atividades”, e nós nos afastamos da certeza imediata.[1]

Para Nietzsche, a extração de um Eu do processo do pensamento é um efeito das funções lógicas e gramaticais que atuam inconscientemente. Um efeito colateral do processo do pensar. É como se o motorista, para abusar da analogia acima, ao automatizar todos os movimentos da direção, passasse a sentir o “corpo” do carro como seu. No parágrafo 16 de “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche desconstrói a célebre formulação cartesiana.

uma série de afirmações ousadas, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível; – por exemplo, que sou eu que pensa, que, em geral, tem que haver um ‘algo’ que pensa, que pensar é uma atividade e um efeito de parte de um ser, que é pensado como causa, que existe um ‘eu’, finalmente que já está estabelecido o que deve ser designado com pensar, – que eu sei o que é pensar.[3]

Para então, escrever

Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez sentir, ou querer? Em resumo, aquele eu penso pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um saber de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma certeza imediata.[3]

Há como diferenciar sentir ou querer de pensar? Em caso negativo, é possível, então, abolir a alma ou o tal Eu – res cogitans de Descartes-; em caso positivo, estaríamos comparando configurações mentais diferentes e a conclusão seria sempre relacionada – comparada – à outra coisa, impedindo-me assim, de chegar à certeza nuclear, fundacional de todo o conhecimento humano. Nietzsche inverte, portanto, a lógica herdada da tradição: “existo, logo o conjunto de meus pensamentos produz um Eu”. Chega-se à conclusão então, que “esse Eu, esse si-mesmo, é infinitamente mais complexo do que a unidade aparentemente simples da autoconsciência”.[2] Está enraizado muito mais profundamente na existência do indivíduo: funda-se na própria animalidade de suas origens e ocupa um espaço do qual a autoconsciência é apenas a ponta do iceberg. E aí, entra o Zaratustra: “Por detrás de teus pensamentos e dos teus sentimentos, irmão, há um rei poderoso e um sábio desconhecido – que tem por nome Si. Vive no teu corpo, é o teu corpo. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria.”[4]

“(O corpo) não é apenas ‘a carne’ e a sede das paixões, desejos e desgarramentos, nem mesmo a res extensa, de que cogitara Descartes; ao contrário do que pensara o platonismo e o cristianismo, o corpo não é a prisão do espírito, o oposto da razão. Para Nietzsche, o corpo é a Grande Razão.”[2, grifos meus]. A pequena razão é o Eu. Um brinquedo na mão da Grande Razão. Um subproduto, um epifenômeno. O que faz perguntar, mas, então, para que uma pequena razão tão desenvolvida a ponto de nos enganar como fim em-si, sede do Eu e de mim, por tantos séculos?

(continua…)

1. Nietzsche, F. Fragmento Póstumo 40 [23], agosto-setembro de 1885, apud Giacóia Jr, O. Metafísica e Subjetividade in as Ilusões do Eu – Spinoza e Nietzsche. pg 425-444. Org. André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva. Civilização Brasileira, 2011.

2. Giacóia Jr, OMetafísica e Subjetividade in as Ilusões do Eu – Spinoza e Nietzsche. pg 425-444. Org. André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva. Civilização Brasileira, 2011.

3. Nietzsche, F. Além do Bem e do Mal. ¶16, pg 21-22. Trad Paulo César de Souza. Companhia das Letras. 1992.

4. Nietzsche, F. Assim Falou Zaratustra. Dos desprezadores de corpo. Trad M de Campos. Publicações Europa-América. pg 29-31. Portugal. 1988.

O Enigma do Ver

Não sei quando comecei a gostar de Cézanne. Talvez tenha sido quando adquiri meu primeiro PC (e único, hehe), um 486, em entrada + 11 prestações para escrever minha tese. Lembro de ficar me divertindo com minha internet discada num sítio de papeis de parede e de ter escolhido este para o computador.

Gardanne - Paul Cézanne, cerca 1885

Vi que era de dele. Não estudei pintura e sei pouco a respeito da biografia de outros pintores, mas Cézanne me pegou de jeito. Sua personalidade introspectiva e tosca, sua tenacidade em perseguir seus objetivos, a amizade com Émile Zola e com os impressionistas parecem tiradas de um roteiro cinematográfico. Mas talvez, o que tenha drenado mais fortemente minha atenção foi sua angústia (tenho tendência a gostar dos angustiados). Toda a cólera e a misantropia de Cézanne podem muito bem ser colocadas na conta de sua monomania, de sua verdadeira obsessão. De sua doença. Merleau-Ponty chega a diagnosticar um tipo de constituição mórbida, uma esquizoidia,  [1, pg 125]. E afirma: “A incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam, no essencial, por sua constituição nervosa, mas pela intenção de sua obra” [1, pg 135]. E então, eu descobri exatamente porque comecei a gostar de Cézanne:

Há uma relação entre a constituição esquizóide e a obra de Cézanne porque a obra revela um sentido metafísico da doença – a esquizoidia como redução do mundo à totalidade das aparências imobilizadas e suspensão dos valores expressivos -, porque a doença cessa então de ser um fato absurdo e um destino para tornar-se uma possibilidade geral da existência humana quando enfrenta de forma consequente um de seus paradoxos – o fenômeno da expressão -, e enfim, porque é a mesma coisa, nesse sentido particular, ser Cézanne e ser esquizóide. [1, pg 136-137]

A doença deixar de ser “um fato absurdo e sem sentido para tornar-se uma possibilidade de existência humana” é a maior das consolações que alguém poderia querer para si. O desejo de sentido transmuta-se em obra. Vários autores assim o fizeram Proust, Nietzsche, Beethoven para ficar em uns poucos. Além disso, e para mim tal pergunta se reveste de grande importância, onde estava a doença de Cézanne? Qual a semente interior que se desdobrava em doença lá em cima? Cézanne se comporta como um portador de uma patologia da expressão. Em neurologia, aos transtornos da compreensão e expressão da linguagem chamamos afasia. Há afasias de compreensão e afasias de expressão. Estas últimas são especialmente angustiantes. Mostramos aos pacientes um relógio ou uma caneta e eles não os nomeiam. Dizem “hora”, “escrever” mas não o nome do objeto permitindo supor que sabem o que é, mas não são capazes de traduzir seu conhecimento em palavras. Cézanne, ouso dizer por tudo que li, tinha um tipo incomum de afasia.

Impressionismo

Princesa de Broglie - Ingres, 1853 - Fonte Wikipédia

Apesar de contemporâneo aos impressionistas e de ter aprendido com eles, em especial com Camille Pissarro, Cézanne nunca se considerou um impressionista de fato. Os impressionistas opuseram-se à escola anterior, neo-clássica, que em Paris tinha como seu maior expoente Dominique Ingres. O estilo de Ingres chega a ser apavorante, tal a capacidade de reproduzir os efeitos luminosos da realidade. Sua técnica era, segundo ele próprio, baseada no “rigor da linha”. Às cores, não era atribuída maior importância, afinal, “não constituíam a forma”, dizia. Seus temas clássicos, com figuras “posadas” e em situações pouco à vontade, formatavam o “bom-gosto” parisiense da época. Para Ingres, as sombras são escuras e as cores equilibradas. Num retrato indoor nada choca ou agride a visão.

Os impressionistas, por outro lado, tinham interesse em captar a luz solar ao iluminar o mundo e impactar a visão. A linha é compreendida como mais uma abstração do ser humano para representar imagens, quem precisa de contornos nítidos sob a implacável luz solar? As sombras têm de ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam, e não escuras ou em tons de cinza ou preto. Contrastes de luz e sombra deveriam ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares. Quando colocamos uma rosa cor-de-rosa sobre uma cartolina cinza, o fundo adquire tons esverdeados. Um pintor clássico pintará o fundo de cinza, confiando que o quadro, como objeto real, produzirá esse efeito de contraste. A pintura impressionista, com o objetivo de levar os fortes contrastes solares dos ambientes externos para a visualização dos quadros, em geral, em salões fechados e com pouca luz, pinta a rosa sob um fundo verde e a faz saltar aos olhos [1, pg 129]. Veja-se esse exemplo de Claude Monet.

Nenúfares, Claude Monet, 1914-17

Mas Cézanne logo se separou dos impressionistas. Chegou mesmo fazer a afirmação “Monet é apenas um olho” referindo-se ao projeto impressionista de descrever “a dança da luz sobre os olhos” [5, pg 103].

A “Afasia de Cor”

Cézanne queria pintar com a cabeça. Conta-se [1, pg 131] que Balzac em “A Pele de Onagro” descreve uma “toalha branca como uma camada de neve recém-caída e sobre a qual elevavam-se simetricamente os pratos e talheres coroados de pãezinhos dourados”. Cézanne confessou que em toda sua juventude quis pintar isso. Entretanto, “agora eu sei” – dizia – “que se deve querer pintar apenas o ‘elevavam-se simetricamente os pratos e talheres e os pãezinhos dourados’. Se eu pintar os ‘coroados’, estou perdido, compreende? Se realmente equilibro e matizo meus pratos e talheres, e meus pãezinhos como no modelo natural, esteja certo de que as coroas, a neve e tudo o mais estarão ali”. Cézanne tinha uma verdadeira devoção pela cor. Segundo o professor Marcelo Duprat [2, pg 67-68]

A cor em Cézanne funciona como um princípio. Isto ocorre à medida que a aplicação das pequenas áreas de cor rege e conduz o desenho e o claro-escuro das formas. É bem verdade que a distribuição da cor em pequenas pinceladas já era um procedimento típico do impressionismo, como podemos constatar na obra de Renoir, e sobretudo na fase final do impressionismo — no divisionismo pontilhista. Mas, se o impressionismo dissolve as formas pelas vibrações da cor, as formas permanecem lá, submersas, sustentando a obra, enquanto as cores se distribuem de forma independente sobre elas. É, portanto, o tratamento tonal e cromático das formas que é problematizado e não sua estrutura. No impressionismo a estrutura das formas, mesmo sendo trabalhada posteriormente, é compreendida como um dado precedente. Já em Cézanne, é a cor que estrutura, não há um desenho sobre o qual a cor é aplicada, são as cores que formam.

Ou ainda, em uma carta a um jovem pintor [1, pg 130]

O desenho e a cor não são mais distintos, à medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o desenho… Quando a cor está em sua riqueza, a forma está em sua plenitude.

Mas o que seria sua “afasia”, então? Cézanne queria, mais que ninguém, captar a realidade da natureza. Sabia que somos seres visuais e que dentre as coisas que vemos, a que mais nos impressiona é a luz que deve ser traduzida na forma de cor, como nesta carta a Émile Bernard, jovem pintor e teórico que escreveu um livro sobre Cézanne [3. pg 251].

Aqui está, sem contestação possível — tenho plena certeza: — no nosso órgão visual produz-se uma sensação óptica que nos faz classificar como luz, meio tom e quarto de tom os planos representados pelas sensações colorantes. A luz, portanto, não existe para o pintor.

Ou também quando afirma que “a luz é algo que não se pode reproduzir, mas que se deve representar por outra coisa, pela cor. Fiquei satisfeito comigo quando descobri isso” [2, pg 59]. Tudo o mais seria consequência dos contrastes. Sabia também, do delírio que a cor provoca e entendia as técnicas de pintura como abstrações utilizadas para iludir o observador. Ele queria transcender isso e tentar pintar em “linguagem de máquina”. Como, abstendo-se das técnicas mais rebuscadas, conseguir o efeito visual da realidade? Nesse sentido, Cézanne é um primitivista. Também “distorceu” a perspectiva – ela mesma, outro truque -, de suas formas procurando a harmonia mais natural entre os elementos de seus quadros [2, pg 10-24]. Merleau-Ponty é certeiro [1, pg 127]: “Sua pintura seria um paradoxo: buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro. É o que Bernard chama o suicídio de Cézanne: ele visa a realidade e proíbe-se os meios de alcançá-la”. Apesar de saber e conhecer e dominar técnicas, a linguagem que quer criar é “infalável”. Cézanne é um afásico da expressão naquilo que mais lhe é caro, naquilo que ele mesmo criou. O apego a essa condição faz Cézanne sofrer e tentar e tentar… Pinta lentamente. Cada pincelada devendo cumprir uma enorme série de exigências “de luz, cor, profundidade, linha, etc”. Raríssimamente assina um quadro porque também raramente, o considera pronto. É um embotamento, essa insistência, que produz quadros.

E o que eu, finalmente, vejo quando olho para um quadro de Cézanne? Ele dedicou sua vida para que eu visse as coisas como ele via, sem tentar me enganar. Trabalhou arduamente para construir uma linguagem pictórica que fosse primordial e anterior às interpolações cerebrais que faço ao ver/interpretar uma imagem. Fez um desenho de como via as coisas e pediu que víssemos como ele via. Não sei se conseguiu e jamais o saberemos. Entretanto, é possível que ele tenha conseguido ao menos desvendar uma parte que seja, do enigma que é ver. Talvez, no final seja isso mesmo, às doenças caberão o papel de nos mostrar os caminhos de nossa humanidade. Quem disse que não temos um algo mais? Nosso vitalismo não é outro senão esse mesmo, um morbimortalismo que demanda uma escolha: superá-lo ou sucumbir-lhe.

Jogadores de Cartas. Cézanne, 1893-6

PS. O quadro acima – quase um estudo de Cézanne –  foi comprado em 2012 pelo maior valor já pago por uma obra de arte na História.

Referências Bibliográficas

1. Merleau-Ponty M. A dúvida de Cézanne. in O Olho e o Espírito. Cosac & Naify, 2004. Capa dura. Edição bem cuidada de ensaios do filósofo.
2. Duprat M. A Expressão da Natureza na Obra de Paul Cézanne. Ebook em pdf. Interessantíssimo ensaio sobre os aspectos que fizeram revolucionária a obra de Cézanne, pelo pintor e professor M. Duprat.
3. Cézanne P. Correspondência. Martins Fontes, 1992. Compilação de sua correspondência com prefácio de John Rewald.
4. Nonhoff N. Cézanne, vida e obra. Könemann, 2001 (para a edição portuguesa). Bom resumo da biografia e principais obras. Inclusive uma Lot e suas filhas, que não se encontra em lugar algum da web.
5. Lehrer J. Proust was a neuroscientist. Cannongate, 2007.