O Sherpa Subterrâneo

Caspar Friederich - O andarilho

A melhor forma de aproximar-se de um “conhecimento” e operacionalizá-lo de modo a poder emitir juízos com valor de verdade sobre ele é, na minha opinião, escalar-lhe os caminhos montanhosos de suas várias faces dotados das “ferramentas” que nossa condição humana permite. Ciência, literatura, filosofia, artes, são formas de captar o que nos cabe da coisa-em-si humana. Argue-se que um desequilíbrio axiológico em relação ao que representa uma verdade científica e uma literária ou pictórica, pode inviabilizar essa discussão, como a disputa entre o rochedo e o mar. Muito foi escrito sobre isso e tal debate está mesmo na base de uma teoria da verdade que tem na ciência seu modelo mais bem acabado. Por isso, é possível concordar com Albert Levi quando ele diz que “mesmo nossas armas foram roubadas”, pois ao tentar atribuir verdades a obras literárias, p.ex., as julgamos com os “juízes da ciência”.

Esse assunto me é bastante caro como pode ser notado por sua recorrência nesse blog, mas me justifico. Se a medicina não deve ser confundida com a ciência médica – um de seus pilares de sustentação – é porque o paciente não pode ser reduzido à fisiologia, fisiopatologia e farmacologia de suas agruras. Qualquer médico que não seja um cientista em exercício ilegal da profissão sabe que a ciência médica não dá conta do todo de seus pacientes. Adoecer é uma forma de ser-no-mundo que pode ser entendida de várias maneiras. Se assim é, deve haver outros caminhos que conduzam às verdades deste ou daquele pacientes individuais. Mas que caminhos? Perdemos a inocência quando descobrimos o viés. Tais individualidades assemelham-se mais a idiossincrasias sem padrões definidos, a um labirinto no qual não se trilha o mesmo caminho duas vezes.

A nós, médicos de um tempo em que a informação e sua velocidade viral formam a tessitura do real que nos afeta, resta conhecer as outras faces da montanha que constituem um paciente de carne e ossos. Como se não bastasse as centenas de artigos, livros e prática árdua e incessante que visam a resposta à pergunta “o que é?”, ao médico ainda urge a indagação abissal: “quem é esse ser que sofre?” Do que é ele constituído e como esse “material” afeta seu ser-no-mundo? Ah, há ainda o mundo…

Compreenderia melhor se eu sentisse as dores que sentem? Se sentisse a falta de ar que sentem? Acolheria melhor se me acometesse o medo que os acomete? Mestre da interpretação dos signos, sou o mero usuário de um programa escrito pelo paciente no que se refere a este “lado oculto da montanha”. Esse programa, construído ao longo de toda sua vida com a vasta riqueza que flui do contato entre humanos e suas humanidades, me ilude e confunde. Eu precisava “falar” a linguagem de máquina subjacente a esse software. (E não me venham com a psicanálise! Também ela, software. E, ainda pior, metalinguistico).

Foi então que entendi que não estavam nas alturas as minhas respostas. De fato e ao contrário,  precisava de algo como um sherpa subterrâneo, senhor dos caminhos intrínsecos de seu próprio ser. Precisava de um super-paciente com poderes de expressão além do homem que pudesse levar-me ao nível primitivo de sua constituição primordial. Que me conduzisse à crueza e à violência de seus impulsos mais básicos para eu então ver, com meus próprios olhos, onde está a semente que se desdobra em doença lá em cima, lá na superfície revolta e poluída das convenções sociais onde se dá o fatídico encontro. Mas, um paciente assim subverte o equilíbrio de forças na relação com médico subvertendo também, a própria medicina. Ao médico é necessário deixar-se sequestrar por ele o que não acontecerá se ele não tiver a consciência do querer. O médico é treinado para não fazê-lo e, se for bom, não o fará de fato. A única alternativa possível então, é abandonar a arena de embate onde se dá o contato com o paciente e procurá-lo em outros lugares sem deixar de “estar” médico sob o risco de perder o olho clínico que o identifica. E onde encontrá-lo? Antes, onde procurá-lo?

Se consideramos, como acima, outras formas de obtenção de “verdades” com todos os problemas que disso possam decorrer, temos que procurar pelos grandes mestres e por seus vestígios patológicos. Ora, quem dentre os humanos domina a linguagem das artes? Quem dentre nós traduz melhor seus interstícios mais febris em quadros, poesias, livros, esculturas, personagens, música e todas as manifestações do espírito humano? Como é quando um gênio das artes escreve, pinta, compõe, representa, sobre suas doenças ou sobre a forma como percebe as doenças? Ao conceber uma obra de caráter universal, um artista contribui para o corpus cultural da humanidade, criando novos gostos, novas formas de subjetivação, novas formas de ser-no-mundo e com elas, novas formas de adoecer. E o ciclo se fecha.

Por isso, quando um pintor como Cézanne faz a pergunta da criança “se eu desenho o que eu vejo, a pessoa que olha, tipo, vê o quê? O que eu vi?” a resposta vem na forma de uma sabedoria profunda. É como se perguntasse “quando eu conto a você a dor que sinto, o que é que você sente?”

ResearchBlogging.orgLevi, A. (1966). Literary Truth The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 24 (3) DOI: 10.2307/427972

As Deformações do Ver

Viajando de carro por uma estrada cercada de vegetação exuberante.

Filho: “Vai demorar muito, Pai?”

Pai: “Acho que mais 1 hora.”

Filho: “Uma hora! Que chato! Não aguento mais “tipo” ficar no carro…”

Esse diálogo repetiu-se por 3 vezes com intervalos cada vez menores e variações regressivas na estimativa de chegada do grande, assim como nas interjeições de extremo enfado do pequeno, acercadas de “tipos” por todos os lados. Foi quando o pai resolveu jogar sujo.

Pai: “Filho, o que você acha dessa floresta?”

Filho: “Bonita, ué. Por quê?”

Pai: “E de que cor ela é?”

Filho (espantado pelo retrovisor): “Verde, ora. Como assim?”

Pai: “Verde. Mas como eu sei que o verde que você vê é igual ao verde que eu vejo?”

Filho: “Porque é.”

Pai: “Como você sabe? E se o que nós chamamos de verde for, digamos, um tipo de vermelho pra você que desde bebê achou que aquilo era um verde e ficou por isso mesmo?”

Filho (começando a sentir o efeito): “Só um nome?”

Pai (com um olho no retrovisor onde vê o menino com o olhar perdido pela janela do carro e o outro na mãe que com as sombrancelhas fletidas expressava uma certa reprovação pelo conhecido golpe baixo): “Isso. Só um nome” – tirando uma das mãos do volante, para apontar o céu com o indicador.

Entrando numa pequena estrada.

Filho: “Mas, então. Tipo… Mas o que isso afeta (verbo utilizado por crianças habituadas ao game Pokémon da Nintendo dado que determinados golpes não afetam o oponente, no sentido de diminuir sua energia vital, p.ex. golpes de água afetarão pouco pokemons aquáticos que, por sua vez, são bastante afetados por golpes de fogo e assim por diante)?”

Pai (Pensando: “Maldito moleque pragmático! Puxou a mãe!” Esta não conseguiu evitar que sua boca se deslocasse leve e charmosamente para direita. Ele conhecia aquele sorriso. Mantinha os olhos na estrada, um pouco mais perigosa e movimentada agora. A floresta havia dado lugar a casinhas e pequenas propriedades): “Isso ‘afeta’ que cada um de nós tem um jeito de ver as coisas.” (seja o que Deus quiser, pensou de novo).

Filho: “Mas, Pai… (mudando o tom enfezado e esboçando um certo cansaço pelo esforço de abstração)… E meus desenhos?”

Acabando de entrar numa estrada de terra com pedregulhos que, ao atingir o chão do carro, soavam como o inverso de uma chuva seca.

Pai: “Que é que tem seus desenhos?”

Filho: “Se eu desenho o que eu vejo, a pessoa que olha, tipo, vê o quê? O que eu vi?”

Foi quando uma voz feminina aveludada e calma disse, em bom sotaque português: “Chegando ao seu destino”.

Coisa-Em-Si

O gráfico abaixo é só para lembrar você, macaco pelado que brinca de compreender, que a “coisa-em-si” não lhe é acessível, ok? Seus aparelhinhos de surdez e lentes de aumento foram bem longe, devo admitir, mas tudo que conseguiram foi alargar o buraco da fechadura. Abaixa a bola, cuida da tua casa e olha pro espelho. Nele não está a natureza, só um macaco pelado desesperado em busca de sentido.

(via Drunkeynesian, que por sua vez, via Abstruse Goose)

Deus Não Existe

2946162595_b6e8b16e60_o“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele” (João 1:1-3)

 

Deus não existe. Nem poderia jamais ter existido. Pelo menos do ponto de vista linguístico. Existir vem do verbo latino ex-istere e significa “sair de”, “manifestar-se” tomando um sentido de “vir a ser”. Existir, portanto, não pode ser uma característica do Deus monoteísta. Ele jamais poderia ter vindo a ser em determinado momento porque, nesse caso, não seria eterno.

Se eu digo então, que Deus é… vou compará-lo com algo que conheço e esta é uma metáfora que estará fadada à imortalidade, o que não é bom para quem quer saber das coisas. Segundo Umberto Eco (Kant e o Ornitorrinco, pág 17-54) ninguém jamais estudou semânticamente de forma satisfatória o verbo ser. Parece ter sido Pascal o primeiro a notar a dificuldade: “Não podemos nos preparar para definir o ser sem incorrer neste absurdo: porque não podemos definir uma palavra sem começarmos pelo termo é, expresso ou subentendido. Então, para definir o ser, é preciso dizer é, e assim usar o termo definido na definição”. Problema semelhante ocorre com as afirmações sobre a essência divina. Quanto mais poder é dado a Ele, menos apreensível fica. Veja a encrenca.

Talvez haja apenas uma só chance de Deus existir de fato. Isso ocorre quando Ele se manifesta, vem a ser, dentro do próprio indivíduo que Nele crê. Acho que Santo Agostinho tratou disso no Livro X das Confissões e Espinoza foi excomungado de duas religiões por pensar algo parecido com isso. Engraçado que este Deus parece não bastar para muita gente. Talvez, sua popularidade não seja muito alta porque, tal indivíduo, um portador de Deus, não pode exportá-lo. Seria preciso que Ele despertasse no outro e isso, além de não depender de uma decisão racional, cria um Deus ao qual um outro não teria acesso. De qualquer forma, não é um Deus muito “útil” porque cada um tem o Seu com todos os corolários decorrentes dessa limitação.

O caso contrário, o do Deus eterno que é, simplesmente, se torna, de fato, uma grande sacada. De cara, já causa um nó em quem tenta “pensá-Lo” ao cair no dilema de Pascal (de fato, existem outros dilemas muito mais cabeludos que esse. Veja por exemplo, o verbete “Ser” no Abbagnano). Sendo inapreensível ou “impensável” formalmente (ou pelo menos difícil de pensar, nem o Kant!), faz-se divino pela intangibilidade.

Gênio. O sujeito que escreveu “no princípio, era o Verbo” sabia exatamente o que queria não dizer.

Hollywood e a Dissolução do Sujeito

“ (…) se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos”.

René Descartes – 2a Meditação

 

Em conversa com um menino hoje, surgiu a questão filosófica do sujeito cognoscente e a realidade conhecida. As velhas perguntas de como conhecemos o que conhecemos e se o que conhecemos é realmente a realidade. Fiquei pensando em um jeito de explicar isso sem recorrer aos cânones filosóficos chatos e me lembrei de alguns filmes.

É interessante notar, como nota introdutória, que a noção de EU surgiu no século V, na Grécia de Péricles. Descartes, muitos anos depois deu a esse EU poderes quase sobrenaturais e o fez sinônimo de racionalidade. Kant colocou o sujeito como princípio determinante do mundo do conhecimento e da ação. O sujeito kantiano é o fundamento da verdade. Esse foi o modelo adotado pelo ocidente apesar de muita gente avisar dos perigos decorrentes dessa visão. Quando analisamos a constituição desse EU vemos que há um “espírito” que raciocina, sente e interpreta; e um corpo, sede de desejos, doenças e outras características animais. Nada disso faz sentido se não tivéssemos um mundo, pressupostamente inteligível e oxalá pré-planejado, acessível ao EU, doravante denominado sujeito, pois que irá interagir neste mundo dado. Hollywood ama dualismos – no caso, corpo e espírito, bom e ruim, etc – e isso é um prato cheio para roteiristas espertos. Vamos ver como os diferentes diretores e roteiristas jogaram com esses elementos, mas antes, um aviso: é riquíssimo o objeto de análise e o leitor pode encontrar várias outras interpretações diferentes. A ideia aqui é despertar a atenção para algumas simetrias e discutir, mesmo superficialmente, um pouco de filosofia.

Podemos analisar os blockbusters Matrix (1999), Avatar (2009), a Origem (Inception/2010) e Sem Limites (Limitless/2011) porque quase todo mundo viu. Em Matrix, os humanos viviam em casulos tendo seus respectivos sistemas nervosos conectados diretamente a uma realidade virtual (a tal Matrix) onde passavam a vida toda sem poder tocar em algo real. Na Origem, uma máquina de sonhos possibilitava a grupos de pessoas sonhar o mesmo sonho (aliás, um antigo desejo humano). Em Avatar, um planeta paradisíaco, mas inóspito aos humanos, era o palco de uma guerra entre a ganância e o amor a natureza. Em Sem Limites, um escritor mal-sucedido descobre uma droga que aumenta seus poderes mentais e ganha fama e dinheiro. Feito esse resumo mega-resumido, totalmente sujeito a críticas, vejamos o esquema abaixo:

Podemos imaginar 2 eixos de análise sendo um o sujeito e o outro o mundo onde o sujeito atua conforme a figura. Em Matrix, o mundo e o sujeito atuante são virtuais, tanto que o sujeito precisa ser “libertado” para o mundo real. Na Origem, o mundo é virtual mas o sujeito que sonha é real, até porque o autor do sonho que é invadido pelos ladrões faz a maior diferença na história. Em Avatar, o mundo é real, mas inacessível aos humanos sendo necessária a incorporação ou conexão neural com um boneco semelhante aos N’avi criado geneticamente. No Sem Limites, tudo é real, exceto a “intuição” que o sujeito tem do mundo, amplificada por uma droga sintética.

Variações sobre um mesmo tema, nenhuma película abordou a dilaceração do sujeito que ocorreu a partir do século XIX. Todas elas creem no sujeito clássico transcendental. Sujeito que Nietzsche, Marx e Freud demonstraram estar sob o jugo de outros fatores. Com o risco da imprecisão da síntese, Nietzsche considerou o sujeito e a consciência como máscaras da vontade de poder; Marx, o colocou sob o jugo da influência das classes e das relações de produção e Freud, o pôs sob a influência dos subterrâneos da consciência, a psique como máquina desejante, todos manipulando nossos juízos e interpretações da realidade. Filmes que abordam esses assuntos não costumam ser sucesso de bilheteria. Dos inúmeros existentes, alguns que vi e que recomendaria são: Martin Scorsese e Ingmar Bergman. Talvez o Hotel Ruanda, pelos vários conflitos ético-morais. Godard, Ken Loach (esse último indicação do D. Christino. Talvez a Fabiana pudesse indicar alguns também!)

Cabe uma referência ao excelente “O Show de Truman“. Não soube como classificá-lo segundo o esquema acima. O sujeito é, com certeza, real, mas o mundo em que ele atua é dúbio: fictício, dado que há uma realidade externa a ele que o compreende, porém com pessoas reais, que até entram em conflito por participar da enorme farsa. Chama a atenção o fato do filme utilizar a linguagem dos reality shows para falar sobre simulação o que já diz muito sobre esse tipo de reality. De qualquer forma, o filme mostra o sujeito em uma grande tomada de consciência e busca pela liberdade. Emancipação é um bom nome para isso.

Manifesto Ateológico

Casa nova. Cara nova. Gente nova no espaço. Talvez seja um momento interessante para reforçar algumas ideias. Com Onfray.

Meu ateísmo é tripartide. É, antes de mais nada, um anti-platonismo. Uma economia brutal de imaginação. Um artificialismo rossetiano. Por que não “propor-se o prazer, a felicidade, a utilidade comum, o contrato jubiloso”? Por que não “compor com o corpo em vez de propor detestá-lo”?; compreender paixões e pulsões, desejos e emoções, em vez de extirpá-los num dilaceramento de si. Para quê uma outra vida, uma outra história, um outro sentido? O sentido é esse mesmo que você sente; não há outro. Por que não, apenas e tão sómente, um puro prazer de existir?

Meu ateísmo é, também, uma anti-ciência. Anti-ciência dos fariseus, anti-ciência como mito da sociedade moderna com a resposta para todas as dúvidas e anseios da besta humana. Contra a figura ascética e monástica do cientista-sacerdote, único caminho para a Verdade. Contra o proselitismo pagão. A vontade de saber é apenas um outro afeto humano, apesar de ser o mais potente deles. Não compreender isso, é não saber. É ser um “ateu cristão”. É acreditar nas formas divinizadas da natureza, do homem, da história e do mundo.

Meu ateísmo, por fim, é uma Não-Crença e não uma “crença no não”. É uma vigilância metafísica. É a reafirmação da vida, estética, elegante, ética, atômica. É a encarnação do viver aqui e agora. É o morrer heróico, como a morte de um leão.

Evidência

Talvez, essa seja uma das palavras que teve seu significado mais conspurcado na medicina nos últimos 20 anos. Grande parte dos médicos pouco sabe de sua origem. Aqui, minhas tentativas de apreender o significado de uma palavra-conceito que, de tão importante, forjou as relações entre a evidência produzida pela ciência médica, e os conceitos de verdade, validade e confiabilidade, atributos da realidade sem os quais não é possível tomar decisões. E, como sabemos, um médico é um decididor.

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Uma vez, perguntaram a Bertrand Russello que ele faria se, após sua morte, fosse levado à presença de Deus e lhe perguntassem porque, durante toda sua vida, não acreditou Nele. O filósofo e matemático inglês, ateu de carteirinha, disse que olharia bem de frente para o Criador e diria: “Sem evidências suficientes, Senhor! Sem evidências suficientes!!”A literatura anglófona dá a palavra evidence uma força que não é equivalente a sua correspondente em português: evidência. Em inglês, a palavra toma rumos quase metafísicos e dita o tom da realidade. Qualquer episódio de CSI pode comprovar isso. Basta uma evidência para que o indivíduo seja incriminado. Em português, ao menos no Brasil – e agora escrevo para meus leitores de além-mar que, descobri recentemente, não são poucos – confundimos evidência com fato. Evidência é diferente de fato. Veja-se por exemplo, ninguém fala “é evidente que chove” ou “é evidente que hoje é dia 23”, a menos que uma pergunta fora de propósito tenha sido feita e a resposta, com um pouco de ironia, tenha o objetivo de demonstrar nossa admiração ou encerrar a discussão. Não que a chuva ou a data de hoje não sejam evidentes, muito pelo contrário, elas o são em demasia. São fatos. E muito fáceis de confirmar. Um bom resumo de como a ciência utiliza esses termos pode ser encontrado aqui.

É importante frisar que evidência é uma certa experiência do pensamento e do mundo. Só poderá ser chamado de evidente um juízo acerca de algo atual ou intemporal. A existência simples é por demais evidente. Dizemos assim “é evidente que ontem choveu, pois o chão está molhado”, ou “é evidente que hoje é quinta-feira pois ontem foi quarta”. A evidência é portanto, uma relação. Segundo Fernando Gil, a afirmação “é evidente” pertence a uma família de expressões que traduzem as atitudes do locutor perante o valor de verdade de uma proposição. Esse valor de verdade que atribuímos a algumas afirmações formam um continuum que vai do evidentemente, sem dúvida nenhuma ao é duvidoso, estranhamente, passando por com certeza, aparentemente, mais ou menos, se é que, enfim, o fato é que, etc. Esse continuum é a expectativa de crença do locutor em determinada afirmação proferida. O preenchimento de uma expectativa é um dos eixos conceituais da evidência. Isso nos leva à perspectiva do sujeito sobre o estabelecimento de verdades e captação da realidade a partir do objeto e isso, eu sei, cheira bem fenomenologia. Pode-se então, entender a evidência como uma adequação entre expectativa (que não deixa de ser o desejo modificado) e a razão (aqui encarada como um pensamento com qualquer tipo de formalização). “A satisfação da evidência advém de uma compreensão que não precisa ser aprofundada: reunindo a completude da alegria (satis + facere) e a clausura de um contentamento (de contineo) que é também apaziguamento (Befriedigung).”

Apaziguamento vem de paz. Seria esse tipo de paz um daqueles que eu não deveria conservar?

Consultei

1. Gil, Fernando. Tratado da Evidência. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 1996.
2. Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete “Evidência”. Pág 457-458.

Dois Pesos, Duas Medidas

Muito tenho escrito no blog sobre os conceitos de saúde e doença (ver aqui, por exemplo). Isso porque os conceitos de saúde e doença, longe de ser entidades abstratas que povoam a cabeça de gente que não está “com a mão na massa”, são muito importantes no exercício da medicina. Mas, não continuariam as pessoas a ser atendidas em consultórios, postos de saúde e hospitais? De que adianta ficarmos discutindo esses conceitos se isso pouco influencia o trabalho do médico, enfermeira, fisioterapeuta e de outros membros da equipe de profissionais da saúde na outra ponta?

Influencia, sim. E bastante. Já falamos sobre as diferenças entre os conceitos de saúde e doença, mas gostaria de ressaltar esta passagem: “Saúde e doença fazem parte de universos bastante diferentes, falam de coisas diferentes e de maneiras inteiramente diferentes. Alguém com diabetes controlado ou soropositivo para o HIV pode responder que se sente saudável apesar de ter de fato, uma doença. Por outro lado, um indivíduo em quem não se diagnostica nenhuma doença, pode não ter a vivência da saúde. (…) O significado de ‘diabetes’ e ‘HIV’ está validado em qualquer discussão sobre o assunto. Isso quer dizer que tem validade intersubjetiva (entre sujeitos). Dito de outro modo, no caso do diabetes, uma ‘racionalidade de caráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogo que o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicose circulante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alterações morfofuncionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraqueza até a morte.’ O lado da saúde, não tem a mesma validação. Existe, portanto, uma assimetria enorme de legitimidade de discursos, favorecendo o que se chamou de discurso casual-controlista da abordagem biomédica que predomina amplamente.” E por aí vai.

O que me chamou a atenção é a possibilidade de que as políticas públicas e privadas de saúde utilizem-se dos conceitos não superponíveis de saúde e doença de acordo com suas necessidades. Nas palavras da Dra. Luiza Sterman Heimann, médica sanitarista, coordenadora do Núcleo de Investigação em Serviços e Sistema de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (NISIS) “no Sistema Público, a saúde está relacionada a condições de vida e é resultante das diferentes políticas, sejam elas econômicas sejam sociais, no Privado, a saúde é definida a partir da doença exclusivamente e a doença é entendida como uma mercadoria. Quanto às características do sistema, o Público se organiza a partir de princípios – universalidade, integralidade e equidade – e o Privado, ao contrário, seleciona e segmenta a clientela. Enquanto o Público é integral, o Privado é parcial, porque também seleciona o tipo de oferta ou de atendimento dado a essa clientela. O sistema Público tem como princípio, a equidade, isto é, trata de forma diferente os “diferentes”, para atingir a universalidade e a integralidade, enquanto que, no sistema Privado, os direitos dependem do poder aquisitivo.”

É isso? O Sistema Público é pautado por políticas que visam a ação, como não poderia deixar de ser. Tais políticas necessitam de uma teoria, um arcabouço filosófico que as sustente. A própria existência de um poder público que coloque em prática uma política de saúde (necessariamente pública, ora pois) requer um tipo de abordagem do binômio saúde-doença que penderia para o lado da saúde e pela visão integral do indivíduo ou da coletividade de indivíduos. Não há, pelo lado do Sistema Privado, algo equivalente! As tentativas de abordagem integral, políticas de promoção de saúde, centros de check-up, etc por parte da Saúde Suplementar no Brasil são incipientes e não convencem os usuários. Estes, por sua vez, acabam adotando ações individuais, notadamente bastante mais dispendiosas, a depender de a) seu poder aquisitivo; b) seu contrato com a operadora; c) seu vínculo com uma empresa que exija algum tipo de teste prognóstico (pois já que investem em um profissional, querem saber qual a chance dele estar vivo nos próximos 5 anos); d) a tênue linha entre a hipocondria e a autonegligência, espaço pulsional onde ocorre a decisão de procurar um médico sem que necessariamente se esteja tecnicamente doente.

Em termos de política ou de filosofia de atendimento, o sistema público “enxergaria” mais a Saúde e o privado, a Doença? O privado, em íntima conexão com o mercado drenaria dele suas vantagens e vicissitudes. O Público funcionando dentro de uma máquina burocrática drenaria dela sua extensão e sua lentidão. Esta visão simplista do problema não me impede de dizer que tentativas de ver o outro lado em ambos os domínios seriam muito bem-vindas.

-o-o-o-

Foto de Janus, o deus romano de duas faces.

Consultei “A interface entre a saúde pública e a saúde suplementar Coordenação: SINPSI-SP – Luis Carlos de Araújo Lima. Palestrantes: Luiza Sterman Heimann e Maria Mello de Malta. Pesquisa: público e privado na saúde. Disponível aqui.

O Diabo da Ciência

Prof. Dr. Karl-Otto Apel “O Diabo só pode se tornar independente de Deus por meio de um ato de destruição”

Karl-Otto Apel (O a priori da comunidade comunicacional)

Recebi dois emails provocativos essa semana. O primeiro sobre o novo livro de  José Arthur Giannotti “Lições de Filosofia Primeira”. Ele defende que “num mundo em que as coisas e as pessoas se tornam descartáveis, a filosofia e o filósofo também se tornam dispensáveis.” Não li o livro (mais de 40 paus!) mas fiquei com vontade. Engoli o batráquio pensativo e logo veio o segundo. Um link do blog Neurologica (muito bom, aliás) sobre uma declaração de Stephen Hawking de que a filosofia da ciência estaria morta. O próprio Neurologica tem um link com uma defesa boa de Christopher Norris. Norris envereda pela crítica que todo cientista faz à filosofia após a “virada linguística” em sua vertente relativística, apelidada de “pós-moderna“, hermética, com termos abstrusos e textos difíceis, e se defende muitíssimo bem (é do ramo!).

Numa coisa, entretanto, discordo totalmente de Norris: a filosofia não precisa de defesa. Ela é uma atitude natural do ser humano. É mais fácil impedir uma pessoa de sonhar que de filosofar (o que, muitos sciencebloggers diriam, é quase a mesma coisa, hehe). A formalização do negócio é que é complicada e muitas vezes envereda para caminhos não muito frutíferos.

Gostaria, entretanto, de abordar o problema com algumas ferramentas frankfurtianas. Meu xará Karl-Otto Apel move uma ofensiva contra o falibilismo dos popperianos acusando-os de ceticismo desenfreiado. Estes últimos (em especial Albert), alegam que ao buscarmos um fundamento (ou critério) para verdade terminamos em um beco sem saída. Quando se tenta derivar o fundamento de outro e este, de outro e assim indefinidamente, ou chegamos a uma causa primeira o que dá, invariavelmente, em alguma divindade; ou giramos em círculos sem chegar a lugar nenhum. Por isso, a melhor saída seria o falibilismo popperiano. Há que se duvidar de tudo, quem estiver se sustentando, sobrevive.

Mas, como não poderia deixar de ser em se tratando de um frankfurtiano da gema como Apel, ele diz que Albert ignora uma terceira via para a fundação do critério de verdade. Assim, diz ele que: 1. O que você diz é verdadeiro se sua sintaxe lógica estiver correta (definição sintática). Há uma regra no jogo e você deve obedecê-la. 2. O que você diz é verdadeiro se suas proposições de base corresponderem à realidade, a tal história da “adequação”, a linguagem como referência à realidade. Para avaliar essa “correspondência” é preciso pressupor uma consciência, também conhecida como sujeito. 3. Quando esse sujeito argumenta, ele o faz com quem? A polemização leva à validação de um conceito e isso só pode ser atingido se tivermos com quem validá-lo, ou seja, outros sujeitos. E chegamos então, a uma comunidade de sujeitos. É essa a terceira saída do beco encontrada pelos frankfurtianos. Wittgenstein já dizia que “o jogo da dúvida pressupõe uma certeza”. Onde existe a dúvida, o sujeito da dúvida não é eliminável. O cético radical tem que duvidar de seu método, ou não? Há um ceticismo ingênuo que nos assola e que tem como único critério de verificação a própria ciência, o que é um argumento circular, já dizia o próprio Popper. A ciência não pode cumprir esse papel que, de tão importante, nos indivíduos teístas é atribuído ao próprio Deus (e é o que aproxima, mais do que se supõe, as ciências de outras racionalidades dogmáticas). Isso não é relativismo, é pensar sobre as formas do pensamento.

Se queremos discutir conceitos temos primeiramente, que admitir uma comunidade que possa fazê-lo. “Criticar, argumentar é pressupor em ato que a comunidade de argumentação é instituída e funciona!” Como diz Apel:

” […] a comunidade dos sujeitos argumentadores não é idêntica à comunidade dos especialistas, embora esta a pressuponha. No a priori da argumentação reside a pretensão de justificar não apenas todas as ‘asserções’ da ciência mas, além disso, todas as pretensões humanas – inclusive as pretensões implícitas dos homens em relação a outros homens que estão contidas nas ações e instituições. Aquele que argumenta reconhece implicitamente todas aquelas pretensões possíveis de todos os membros da comunidade de comunicação que podem ser justificadas por meio de argumentos razoáveis – na falta disso, a pretensão da argumentação se limitaria tematicamente a ela própria[…]”.

Em suma, não é possível, para a infelicidade geral, “matar” ou descartar a filosofia, nem mesmo um pequeno ramo dela, a filosofia da ciência. A ciência seria uma atividade chata e solipsista se assim o fosse, sem jamais alcançar o brilho de hoje. É quase como o indivíduo “temente” a Deus tentar expurgar o Diabo! Ele faz parte das regras do jogo. Ainda bem que cientistas gostam de falar de suas pesquisas e descobertas e que outros cientistas interessam-se em discutir e duvidar de suas premissas porque, ao fazê-lo, já estão a filosofar… =)

Bibliografia

1. Filosofia da Ciência I – Andler, D; Fagot-Largeault, A; Saint-Sernin, B. 2005.
Foto da home-page de K.O. Apel.

Metafísica Médica IV

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“O status epistemológico insatisfatório da medicina reside na sua original e inevitável conexão com a prática”
Hans-Georg Gadamer (The Enigma of Health)

Um médico é um humanista secular (o que não o impede de ter crenças individuais quaisquer), detentor de técnicas e saberes utilizados com o objetivo de aliviar o sofrimento humano. Este último, refere-se aqui “apenas” aos aspectos que envolvem os conceitos de saúde e doença. Para exercer sua profissão, o médico agindo como técnico e como agente ético é, essencialmente, um tomador de decisões, um decididor. São decisões as mais variadas, desde prescrever aspirina a fazer um transplante de fígado. Decisões de tratar, de não tratar, de investir toda a tecnologia médica possível para determinado paciente, ou de utilizar todo o conhecimento disponível com intuito de aliviar a dor e o sofrimento. Mas o médico toma suas decisões baseado em quê? Qual é (ou quais são) a(s) base(s) de sustentação de uma decisão médica?

Em uma primeira aproximação, podemos dizer que o médico decide por meio de seus saberes já que sua técnica direciona-o ao fazer, que, claro, depende de uma decisão prévia. Qual seria, então, a natureza dos saberes médicos? Basicamente, seriam duas as vertentes principais. A decisão médica levaria em consideração o saber técnico-empírico e o juízo clínico global. Chamemos de saber técnico-empírico um conhecimento nomotético que busca leis e regras gerais, utiliza a lógica e também o senso-comum. É um conhecimento teórico, transmissível, que almeja a objetividade e a coletividade, pertencendo ao domínio do público, portanto. O juízo clínico global é um conhecimento idiográfico, individual e específico. Leva em consideração a intuição e a experiência pessoal. É eminentemente prático e muito difícil de transmitir. Pode ser considerado subjetivo e diz respeito muito mais à individualidade de seu objeto, sendo portanto, radicado no domínio do privado. Este movimento dialético tem raízes profundas no pensamento médico, oriundo da oposição clássica da medicina grega, entre o vitalismo da escola de Cos (cidade de Hipócrates) e o organicismo da escola de Cnide (ou Cnidos), de inspiração empirista-atomista, por uma explicação mecânica das doenças (Biggart, 1971)[1]. Gadamer divide ainda, o saber técnico-empírico utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral. Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.

Saber Médico 1. Juízo Clínico Global
                                   2. Técnico-Empírico 2.1. Ciência
                                                                           2.2. Empírico Geral


A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte maneira. Imagine um paciente com uma doença com a qual um médico jamais se defrontou anteriormente, digamos, por exemplo, a gripe suína com insuficiência respiratória aguda grave. Cada médico tem uma experiência prévia que carrega consigo além de tudo o que estudou e estuda. Essa experiência e o que ele estudou de ciência médica fazem parte do saber técnico-empírico.
É tarefa do poder de julgamento do tal juízo clínico global reconhecer em dada situação a aplicabilidade de uma regra geral. O médico lembra de outras insuficiências respiratórias que teve e como tratou, ou das “burradas” que fez, e tenta aplicá-las (ou não) ao caso específico. Até aqui tudo normal. O problema está exatamente quando o médico resolve fazer alguma coisa (intubar o paciente, dar corticosteroides, outras drogas, etc). A ciência médica não embasa seu procedimento, não há publicações suficientes sobre o assunto, cada médico diz uma coisa, o que fazer? Utilizei esse exemplo extremo mas, isso ocorre a todo momento, com qualquer médico de qualquer especialidade, porque as decisões práticas necessitam de uma ciência que seja completa e forneça certezas que as embase. Completa, é exatamente o que a Ciência não é, por definição. E agora? E se o médica errar? Quem irá salvá-lo?

Isso nos remete às relações entre Epistemologia e Ética que estão no âmago da medicina. A epistemologia procura justificar nosso conhecimento, certas crenças ou nosso entendimento de certos fenômenos. A ética nos diz como conduzir-nos de maneira correta na busca, disseminação e uso do conhecimento, seja ele certo ou não. A ética nos ensina através da virtude intelectual, conforme Aristóteles, a encontrar a maneira correta de proceder frente a incerteza.
Na Ciência, o conhecimento científico (2.1, no esquema acima) e o empírico (2.2) caminham juntos, um corrigindo o outro. É assim que funciona e sempre funcionou. Na Clínica, a decisão prática confronta os dois tipos de conhecimento porque nunca se sabe se a aplicação de uma regra geral a um caso específico vai dar certo ou não. Só dá pra saber isso post hoc e chamamos o resultado de empírico. Isso resulta em uma tensão irredutível a qualquer processo de tomada de decisão que envolva conhecimento. Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, a tecnologia e suas aplicações. Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras de Gadamer:

Quanto mais a esfera de aplicação se torna racionalizada, mais o exercício de julgamento associado à experiência prática no sentido próprio do termo, deixa de ocorrer

Isso explica muito da tecnologização de medicina e de sua “impessoalização”. Não queremos mais médicos idiossincrásicos, individualistas, artistas de suas especialidades. Queremos opiniões uniformes, alinhadas com as últimas “notícias” produzidas pela literatura científica, a última “moda” em exames de imagem, etc. Os médicos também se acostumam a guidelines, diretrizes, algoritmos de conduta e terminam por pensar que essa é a única racionalidade correta da medicina. Há um imperativo ético na conduta de um médico. Ele tem que oferecer a seus pacientes o que ele tem de melhor. Sempre. A questão é saber se a Ciência Médica é a única capaz de julgar a eticidade dessa conduta ou se há outras formas de fazê-lo. Se a racionalidade clássica que é quem provoca essa tensão tem alguma alternativa (Cronje, 2003) talvez seja ainda cedo para dizer. E somos então remetidos à Ética da Crença. Mas isso é outra história e será um outro post, espero.

[1] Há quem diga que essa dicotomia não se justifica e que faz muito mais parte de uma lenda antiga sobre a história da medicina. Para mais detalhes ver o livro de ANTOINE THIVEL, Cnide et Cos? Essai sur les doctrines medicales dans la Collection Hippocratique, Paris, Les Belles Lettres, 1981, 8vo, pp. 435. Há uma boa resenha aqui e que pode ser baixada gratuitamente.

ResearchBlogging.org Biggart JH (1971). Cnidos v. Cos. The Ulster medical journal, 41 (1), 1-9 PMID: 4948495

ResearchBlogging.org Cronje, R., & Fullan, A. (2003). Evidence-Based Medicine: Toward a New Definition of `Rational’ Medicine Health:, 7 (3), 353-369 DOI: 10.1177/1363459303007003006