Boaventura, Baptista e as Ciências em Bom Português

“Atribui-se, é possível que apocrificamente, a Richard Feynman, o comentário jocoso de que a filosofia da ciência é tão útil para os cientistas como a ornitologia para as aves. (…) Mas recorde-se, por exemplo, o que aconteceu quando o Grande Timoneiro lançou uma das suas famosas campanhas contra as aves que destruíam, segundo ele, as culturas agrícolas da China. Foi uma guerra sem quartel que quase exterminou os pássaros e, assim, quase destruiu as culturas agrícolas na China. Qualquer ornitólogo poderia ter informado os ideólogos do partido que, em particular, os odiados pássaros se alimentavam dos insectos que constituíam, esses sim, um perigo muito maior para a agricultura do que as próprias aves.”
António Manuel Baptista –  DISCURSO PÓS-MODERNO CONTRA A CIÊNCIA
Obscurantismo e Irresponsabilidade


Imaginem a cena. Um professor de Zoologia é chamado para um grupo de estudo cujo o tema é “o que é ciência?”. Um dos textos propostos para discussão foi o “Um Discurso sobre as Ciências” do polêmico sociólogo português Boaventura Sousa Santos. Pânico! O texto é recheado de parágrafos rococós, idas e vindas e de fato, imprecisões científicas. A inteligibilidade do texto é um desafio para quem está acostumado ao estilo enxuto e direto da linguagem científica. Que fazer?Antes de mais nada, é necessário entender as raízes de uma “pósmodernofobia” da qual cientistas, divulgadores científicos e alguns sciencebloggers sofrem. Isso porque o Pós-modernismo é visto como uma relativização do discurso da ciência; ou pelo menos assim foi apresentado a ela. Mas, o fato é que o Pós-modernismo não é bem isso. Já é tradicional tentar defini-lo pelo que ele não é, pois que existe muita contradição sobre o que ele é ou deixa de ser. Definição? Nem pensar. Um jeito de entender é que o Pós-modernismo questiona do pensamento moderno (leia-se iluminista) seus próprios fundamentos que antes eram considerados imutáveis, supra-históricos, transcendentais. Ao fazer isso, o pensamento pós-moderno tira de centro o próprio Sujeito cognoscente, veja só. O Sujeito todo-poderoso que havia sido colocado ali por Descartes e toda turma, e também pela sucessão de fantásticos resultados obtidos a partir de então. Ao questionar quem é esse Sujeito, o Pós-modernismo dissipa a objetividade [1], desafia a autoridade e “truca” a adequação entre objeto e experiências impostas a ele pelo Sujeito, o que convencionamos chamar de Verdade científica, porque diz, por exemplo, que isso pode depender de quem é esse sujeito, ou que essa adequação é feita entre o objeto e um discurso que se produz sobre ele, entre outras. Putz, experimenta falar para um cientista dos bons que seu método é contingente (tipo, depende de outras variáveis que não dele próprio), que outro resultado poderia ter sido obtido se fosse conduzido de outra forma, por outra pessoa, etc. Daí toda essa aversão e as reduções perigosas que todo preconceito termina por efetuar: pós-moderno = relativo, sem base, inconsequente, etc. Tudo isso com requintes de crueldade quando um matemático meio irresponsável publicou um monte de baboseiras em um jornal “pós-moderno” e disse, depois, que era tudo uma farsa. “Hahaha, vocês publicam qualquer porcaria bastando para isto escrever um monte de termos rebuscados e difícieis. Isso é que é ciência? Hahahaha”. (No final, até acho que foi bom mesmo, porque os ‘pós-modernistas’ estavam exagerando).Entretanto, o Pós-modernismo, seja lá o que isso queira realmente dizer, trouxe algumas ideias interessantes e algo incômodas para os carinhas de óculos, avental e crachá (alguns têm gravatas também), preenchedores-de-formulários-para-conseguir-$ (provocação explícita a uma certa lista de emails, =)). Em primeiro lugar, toda vez que falamos de ciência, já deixamos de fazer ciência há muito tempo. Qualquer cientista, por melhor que seja, quando fala de ciência está produzindo um discurso (escrito ou não) sobre a ciência. Podemos chamar isto de metadiscurso. Um metadiscurso quando produz uma visão convincente das coisas pode ser chamado de metanarrativa. O Pós-modernismo tem como passatempo predileto dissolver essas metanarrativas e deixar todo mundo com as calças na mão exatamente por mexer com os fundamentos do conhecimento como dito acima! Em segundo lugar, resolveram perguntar pro cientista se o que ele estava fazendo (pressupostamente, Ciência, oras) melhorava o mundo e o ser humano. O cientista ficou bem bravo porque para ele a Ciência é: “Primeiro, uma atividade executada por cientistas, com certas matérias-primas, propósitos e metodologia. Segunda, é o resultado desta atividade: Um corpo bem estabelecido e bem testado de fatos, leis e modelos que descrevem o mundo natural.” E podem prevê-lo. Você não voa de avião? Não tem GPS no carro? Então, não enche meu saco! Óbvio que o mundo é melhor. Mas…… se quando falamos de Ciência já estamos distantes do ponto de vista científico, a partir de qual ponto de vista falamos, então? A rigor, segundo D. Christino, qualquer um” “(..) pode ser filosófico, mas também sociológico, como crê Boaventura de Sousa Santos, ou antropológico, como argumenta Bruno Latour, ou (mesmo) ético-jurídico.” Pois é, Boaventura Sousa Santos (também conhecido como BSS) aborda a Ciência de um ponto de vista sociológico e não poderia ser diferente porque o homem é um baita sociólogo. Por mais defeitos que a Sociologia possa ter (deu-nos até um presidente!), ela tem lá seu jeito peculiar de ver o mundo. E esse jeito peculiar de ver o mundo vê a Ciência e a critica a partir de seu ponto de vista. O livro em questão (“Um Discurso sobre a Ciência”) é muito polêmico mesmo, tendo sido criticado tanto dentro da Sociologia como fora dela. De fora, em especial pelo físico António Manuel Baptista que publicou dois livros em resposta a tese de BSS, rebatendo suas imprecisões. Cristina Pereira publicou um estudo sobre o livro que vale a pena ser lido onde explica toda a polêmica. É sua conclusão que comento abaixo:“‘Um discurso sobre as ciências’, é uma obra polémica que versa o tema da epistemologia das ciências sociais, é nesse campo que nos demonstra que nos encontramos numa fase de transição, uma vez que face à existência de um paradigma dominante, já é possível encontrarem-se vestígios um paradigma emergente.” Apesar de criticas de dentro e fora da Sociologia, segue a autora “A obra está no centro da discussão sociológica e há que lhe reconhecer a qualidade de 21anos depois da sua primeira edição ainda despertar o interesse do público académico, tendo dado origem a outras obras, quer como resposta, quer como defesa de teoria.” 
Ao Eduardo Bessa e à sinceridade de suas dúvidas

Estação Elegância

Acabei de ler o livro “A Elegância do Ouriço” de Muriel Barbery. O livro é um tratado sobre “elegância” mesmo. Aliás, ô palavrinha difícil de definir! Tem a mesma raiz de “eleição” e significa “escolher com cuidado”. Encontrei algumas tentativas e muitas frases sobre ela, o que quer dizer que não tem nenhuma que dê realmente conta do recado. Talvez seja preciso muitas frases, um post, ou mesmo um livro, para dar uma ideia do que seja essa ocasião chamada elegância. Me explico:

O livro é um romance filosófico com duas narradoras bastante improváveis. Uma é Reneé, a zeladora filósofa de um condomínio parisiense luxuoso onde moram famílias estereotípicas da alta sociedade francesa contemporânea. A outra é Paloma (irmã de Colombe, vai gostar de pomba assim…) uma menina de 12,5 anos, superdotada, ela mesma moradora do condomínio. Narrando em primeira pessoa, com divagações profundíssimas, elas vão definindo o que a autora acha que é a elegância. Talvez, pelo fato de que as duas protagonistas sejam do sexo feminino, e também a autora, o livro trata do universo pela lente das mulheres e pode ser difícil para um leitor masculino navegar sobre descrições de enfeites de casa, tipos de lingerie, receitas de doces, tecidos, rendas etc, mas, não pensem que isso tudo é chato. Pelo contrário, as mulheres têm um olhar para a elegância e a valorizam. (O livro, nesse ponto, é bastante didático, viu, rapaziada).

No final, após avaliar receitas elegantes, homens e mulheres elegantes, músicas, arte, moda, linguagem, esportes, atitudes elegantes, o que ficou? Se me perguntarem, ainda não sei definir elegância, mas digo que ela é uma propriedade do humano. Não se diz que uma cachoeira ou uma praia são elegantes. São bonitas ou lindas ou feias. Um vestido ou terno não são elegantes, ficam (ou não) quando os vestimos. Mas, um móvel pode ser elegante, mesmo que não tenha ninguém perto. Há um movimento caracteristicamente humano implícito na elegância. Já me é, então, possível separar elegância de beleza. Sim, porque a beleza causa um prazer estético imediato, vale dizer, não-mediado, direto, na veia. A elegância, não. Ela depende de um aprendizado, de um tipo de leitura de signos patognomônicos da humanidade; depende de uma decifração. Por isso, o prazer estético que proporciona é maior do que o da beleza em si. Aliás, coisas muito belas, por afetar diretamente nossos sentidos, muitas vezes nos impedem de degustar momentos ou pessoas elegantes.

A elegância é uma ocasião e está no cruzamento do Humano com o Belo. É parte integrante da cultura humana e por isso varia entre as várias culturas. Está fora de moda porque depende de um aprendizado e ninguém quer perder um segundo, tudo tem que ser ao mesmo tempo e agora e isso é um dos contrários de elegante, ou seja, brega ou kitsch. Então é que a elegância parece também ter a ver com Tempo, outra de nossas dimensões, daí o movimento humano implícito em seu interior. E o ciclo se fecha. “Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte“, nas palavras de Paloma (grifos meus). Nada mais humano que a morte (agora entendi, cachoeiras e praias não são elegantes exatamente porque são eternas!).

A eternidade do tempo é o trem onde o efêmero da vida humana sofre da consciência de sua finitude. Uns viajam de cabeça baixa. Outros esperam à janela, ansiosos pela ocasião da dádiva de um cruzamento no qual vislumbrem a humanidade estética e trágica da vida. Mesmo que isso perdure apenas até uma próxima estação qualquer.

Doenças Também Morrem ou Sobre o Morbicídio

hysteria.png“Prigogine, em Les Lois du chaos, cita Popper, que ‘fala de relógios e nuvens. A física clássica interessava-se antes de tudo pelos relógios; a física de hoje, mais pelas nuvens. Ele explica que a precisão dos relógios continua a obcecar nosso pensamento, levando-nos a acreditar que se pode atingir a precisão dos modelos particulares, e praticamente únicos, estudados pela física clássica. Mas o que predomina na natureza e no nosso ambiente é a nuvem, forma desesperadamente complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento.”

Serge Gruzinski

Algumas doenças morrem. Sim, pois se tratamos as doenças como “seres” – ou, como diria um filósofo, se as abordamos ontologicamente – é possível matá-las, pois tudo que é pode, um dia, deixar de sê-lo. (Seja por morte natural ou por assassinato!). A abordagem ontológica das doenças é interessante e trouxe aquisições importantes para a medicina. Uma alternativa a ela é a abordagem fisiopatológica segundo a qual a doença nada mais é que um desvio da fisiologia normal do sujeito. Não há um ente que invade o organismo e o modifica. É o próprio que, ao funcionar incorretamente, apresenta sinais e sintomas que podem constituir a doença. Mas não é isso que quero falar aqui.

Quero falar sobre metáforas médicas; sobre gavetas metafóricas, na verdade. Recipientes com rótulos que podem ser organizados, catalogados (e muitas vezes, essa é a única coisa que se pode fazer!) que chamamos de doenças, males, sindromes, etc. Qual seria a substância de que é constituído o conteúdo desses recipientes? A linguagem, claro! Por isso, ao criarmos “seres” linguísticos capazes de facilitar a comunicação entre os médicos e destes, com seus pacientes, podemos passar a considerá-los, em determinado momento, obsoletos, contraproducentes, falsos. E então, temos que eliminá-los.

Querem um exemplo de doença que morreu?

Há vários. Já falei disso em outro lugar, mas vale lembrar a Drapetomania. Uma “estranha” doença que acometia apenas negros escravos que “teimavam” em fugir de seus senhorios mesmo sofrendo penas horrorosas por isso. Mas, um dos casos mais interessantes de morbicídio é o da histeria. Por longos 2000 anos, a histeria foi um problema para os médicos. Pode-se dizer que “inventamos” a psicanálise a partir de um caso de histeria. Acho que a história da histeria mereceria um post só dela (há boas referências em inglês como por exemplo, essa).

Mas, o que nos contam as histórias sobre a histeria e outras doenças que já se foram? Nos dizem, primeiro, que somos desejo e linguagem. Que o social pode ser anterior ao biológico, ao menos no que diz respeito à formação do sujeito humano. (E não há doença sem um sujeito-doente). Ao buscar as formas como o sujeito se relaciona com o conjunto de referências que o caracteriza, o médico o compreende (no sentido de entender totalmente). O médico deveria então flanar sobre a fluidez dos diagnósticos, nuvens conceituais. Não, chafurdar nelas.

Vibes Linguísticas

“Não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”.(MILLER, Henry. L’obscénité et la loi de réflexion. Paris, Pierre Seghers, 1949, p.9 e 17. [Tradução de D. Kotchouhey.]). (in MORAES, ER)

Devo muito do meu gosto por escrever a esse cara (quem sabe um dia aprendo, né?). No dia 26 de Dezembro de 2010 ele faria 119 anos. Henry Valentine Miller foi meu companheiro de plantões em clubes. Fazia “exame de piscina”. Se fazia sol, trabalhava muito. Mas, quando chovia, viajava com ele por Paris e Nova Iorque. Por entre “pernas e delícias”, eu, menino nerd e sem dinheiro, fui aprendendo que só há um meio de sermos verdadeiramente livres: a literatura. Quando (e se) transformamos nossa vida em literatura então, a coisa fica bem mais interessante. Foi o que ele fez.

“O homem que conta a história não é mais aquele que experimentou os acontecimentos narrados. Distorção e deformação são inevitáveis no processo de re-viver a nossa vida. O propósito íntimo de tal desfiguração, obviamente, é captar a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos. (O Mundo do Sexo).”

O mundo de Miller é um mundo onde o sexo tem uma dimensão sacra. Liberdade e criação. A redenção do humano em seu comportamento sexual. Ou como disse Luis Horácio: “Entram em cena amor e sexo, ora unidos ora antagonistas, existe bem e mal em ambas possibilidades, a liberdade permite a escolha. Os hipócritas optarão pelo antagonismo e perceberão no sexo a devassidão, a sujeira, aqueles que anseiam por liberdade, incluo-me nessa turma, entenderão o sexo como motor fundamental da criação.”

Mas Miller é muito mais que isso. É a própria liberdade em explosão. É uma anti-depressão direto na jugular; uma vertigem explícita da vida. Ele e Nietzsche são perspectivas de uma mesma ambição. A trilogia Sexus, Plexus, Nexus chamada por Miller de “Crucificação Encarnada” é o Zaratustra nietzscheano sem o recalque sexual. Dos dois “amigos” extemporâneos, Miller é o que “fica” com as mocinhas. Miller “vive” a filosofia iconoclasta e libertadora de Nietzsche tendo como porta de entrada algo jamais imaginado pelo filósofo alemão: o mundo do sexo.

A pergunta emblemática de ambos é: Quanto de verdade podemos suportar? O paradoxo é que, se por um lado, somos verdade-aditos, sempre em busca do que acreditamos ser a verdade, por outro, criamos mundos fantasiosos para fugirmos dela. Pode-se quebrar esse encanto de várias formas, todas elas tendo em comum o fato de nos reafirmarmos como animais mortais. Um jeito é filosofar com o martelo. Um outro é… bem, leiam Miller.

A Máquina de Escolher

ResearchBlogging.orgInteressante artigo cujo título é “Nascido para Escolher”. Publicado no “Tendências em Ciências Cognitivas”, os autores defendem a ideia de que a escolha e a decisão sobre algo são biologicamente determinados e não aprendidos, como se pensava. Escolher dá sensação de controle e auto-confiança. Reforça crenças e a auto-eficiência. Parece que o desejo por controle está presente em animais e em crianças mesmo antes de valores sociais e culturais serem aprendidos. A grande pergunta é se houve uma adaptação para que essa sensação de controle que a escolha propicia fosse percebida como recompensa. Sua ausência parece ser mesmo aversiva e o exercimento do controle está relacionado a uma diminuição do estresse ambiental sofrido pelo “bicho”. O artigo cita até possíveis vias neurais responsáveis por isso (veja figura abaixo).

Se a necessidade básica de controle pode ser biologicamente motivada, é possível que a percepção de controle e a preferência em exercê-lo pode ser modificada como resultado da experiência pessoal e também aprendida, via recompensas, em um meio social favorável. Como os autores escrevem na conclusão “ (…) but what is important cross-culturally is that the exercise of choice acts to energize and reinforce an individual’s sense of agency. Anything that undermines this perception of control might be harmful to an individual’s wellbeing.” Eu acho difícil traduzir agency (quem quiser, pode ajudar), mas a conclusão se refere ao fato de que escolher/decidir reforça o sentimento do indivíduo ser o agente de sua própria realidade e não um mero coadjuvante, o que, convenhamos, faz bastante sentido.

Fiquei conhecendo esse artigo por meio de um grupo de médicos do qual participo e me chamou a atenção o fato de que o colega que o enviou estava bastante frustrado quando “transpôs” as conclusões do artigo para a prática médica da Terapia Intensiva. Como ele “publicou” esse email no grupo, fico à vontade de reproduzi-lo aqui (obviamente preservando-lhe a identidade):

“Transportando a análise dos autores para a UTI fico me perguntando o quanto nós, intensivistas, conseguimos racionalizar que muitos resultados de nossas intervenções são frutos do acaso… como lidar com isso? o nosso cérebro é suficientemente adaptado para “individualizar/isolar” o resultado de nossas decisões? ou ele só enxerga decisões -> intervenções -> desfechos? não é nada fácil lidar com o acaso, não é? Parece que precisamos sempre de “maior n” ou “mais estudos para elucidar a questão”!”

A falta de controle de fato é aversiva. Veja só:

“Entender que não temos controle estrito do doente e sobre o mundo pode ser frustrante para quem não se acostuma com essa idéia… Quantas vezes por dia nos indagamos que, se estivéssemos esperado um pouco, o desfecho/resultado seria igual? O hábito do fazer mais, supranormalizar, etc., tem se mostrado infrutífero… e os estudos randomizados?… ao invés de aceitarmos que nos adaptamos para decidir (e aprender com isso) tentamos justificar a falta de resultados positivos com editoriais do tipo “estudos randomizados não respondem tudo” ou “metanálises caíram em descrédito pois muitas são reuniões de trabalhos antigos e malfeitos” ou “desfecho mortalidade é muito duro para o ambiente de UTI” (…) Desculpem se me prolongo, mas ser intensivista é dureza e temos que lutar até com a estrutura do nosso raciocínio…. O que vocês acham, amigos? Será que o “problema” está no método? ou no processo adaptivo?”

Convenhamos, é um apelo dramático, não? Aqui, novamente a (neuro)ciência se junta com a filosofia (eu adoro quando isso acontece para desbancar positivistas utópicos que substituem Deus pela Ciência): o Fazer é mais fácil que o Não-Fazer. O Fazer, principalmente quando embasado em alguma diretriz ou mesmo quando “decidido” pelo agente, provoca alívio e sensação de bem-estar. O artigo em questão diz que isso é porque exercemos um controle sobre o meio ambiente que nos envolve. No caso do médico, sobre o paciente. Colocando de lado a insatisfação pelo efeito do acaso na prática médica, os médicos parecem estar entendendo que são diferentes dos cientistas. Antes tarde do que nunca. Parece que a “máquina de escolher” está dentro de outra máquina: a de desejar.

Leotti LA, Iyengar SS, & Ochsner KN (2010). Born to choose: the origins and value of the need for control. Trends in cognitive sciences, 14 (10), 457-63 PMID: 20817592

Perguntinha Pragmática

Makoto

Quando podemos considerar que uma pessoa é sincera? Quando diz aquilo que acha que pode “justificar”? Ou quando diz o que crê ser “verdadeiro”?

Onde está a sinceridade?

Clique na figura para ver os créditos.
Makoto = Sinceridade no bushido

Mineiros do Chile, Tebas e o Mito

http://www.utexas.edu/courses/mythologein/images/72907dragonteeth.jpgEu vi as imagens do resgate dos mineiros do Chile aliás, quem não viu, né? Prestei uma especial atenção ao nacionalismo que elas despertaram. Bandeiras, gritos de guerra (Chi-chi-chi, le-le-le, Chile, Chile…), presidentes. Por que tudo isso? Parece que homens brotando do chão costumam despertar esse tipo de sentimento desde que a espécie humana começou a lavrar a terra em busca de seu próprio sustento. A alegoria de se ter nascido do chão de determinado lugar foi inevitável para quem se estabeleceu no local e necessitava de uma legitimação da posse.

Isso lembra o mito da fundação de Tebas, a arcaica cidade grega. JP Vernant em seu fantástico livro “O Universo, os Deuses e os Homens”, narra esse mito no capítulo referente a Dioniso e me permito resumi-lo (perigosamente).

Cadmo era filho de Teléfassa e Agenor, o casal real de Tiro. Tinha uma irmã chamada Europa (que deu nome ao continente) beeem gata. Zeus, que era taradaço e não podia ver uma ninfetinha, a viu tomando banho de mar, meio nua (sempre melhor que totalmente nua!), e tomou a forma de um touro branco magnífico para seduzi-la (magina!). Raptou a menina e a levou para Creta onde teve dois filhos  – Radamanto e Minos – com ela. Agenor mobilizou toda a família para procurar sua filha. Cadmo foi com a mãe, Teléfassa, para a planície da Trácia, onde ela morre. Após uma passagem rápida pelo oráculo de Delfos, Cadmo chega a conclusão que precisa seguir uma vaca (predomínio de vacuns na história!) até onde ela se deitar para fundar uma cidade. Ao chegar ao local indicado pelo animal, ele solicita a seus soldados água de uma fonte para fazer um sacrifício à deusa Atena. A fonte de água, entretanto, era guardada por um dragão que mata todos os soldados. Cadmo vai até lá e mata o dragão. Atena então, aparece a ele pedindo que termine o sacrifício e que semeie os dentes da besta num terreno plano, como para um colheita (ver figura – clique para ampliar e ver a origem). Mal ele termina o serviço, surgem da terra guerreiros plenamente vestidos para batalha. Cadmo temeroso de ser atacado, os ilude e faz com que eles comecem a brigar entre si. Matam-se uns aos outros sobrando apenas cinco. Estes são os chamados Spartói, que significa, os Semeados, mesma raiz de sperma, semente. São guerreiros autóctones. Um deles, Equíon, casa com uma filha de Cadmo chamada Ágave, com quem terá um filho chamado Penteu e que será rei de Tebas.

O início do reino de Tebas representa o equilíbrio tenso entre duas estirpes. De um lado Cadmo, o estrangeiro, feito rei por vontade e obra divina e, de outro, os spartói, nascidos da terra, autóctones. As tragédias se sucedem e essa linhagem ainda dará origem a Édipo, veja só. O conflito entre o estrangeiro e o autóctone está enraizado em nossas entranhas e é fonte inesgotável de conflitos. Olgária Matos descreve a fisiopatologia do estranhamento: “A crítica à identidade significa dissolver todo o essencialismo filosófico, teológico-político ou ético-religioso. (…) Todas as formas de dogmatismo – que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade – provém da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da comunicação uma ruptura na compreensão recíproca que a perturba, resultando em desconfiança universal.”

O salvamento dos mineiros do Chile foi um alívio geral. A vida de 33 pessoas tragicamente aprisionadas a centenas de metros de profundidade foi acompanhada por pessoas ao redor de todo mundo. Era de se esperar reações efusivas e a extensa cobertura por parte da mídia. Mas, meu ponto é que uma parte da força dessas imagens vem de um mito: o “brotamento” de homens do seio da terra.

Religião, Ciência, Bolsa de Valores e Bullying

113E61_2.jpgE como havia eu de suportar ser homem, se o homem não fosse também poeta adivinho de enigmas e redentor do azar?!
Redimir os passados e transformar todo “foi” num “assim o quis”: só isto é redenção para mim.
Assim Falou Zaratustra
F. Nietzsche

Para os gregos antigos, a verdade era ἀλήθεια (aletheia), no sentido de desvelamento: de a-, “negação”, e lethe “esquecimento”. Ou seja, o não esquecido, mas também, o não-escondido, não-dissimulado. A verdade é o que se mostra, a realidade da coisa e fala por si. O contrário dessa verdade é a aparência, o pseudos, aquilo que parece mas não é. Em latim, verdade se diz veritas e se refere muito mais à precisão, à exatidão. Está mais ligada ao discurso, à documentação e à linguagem, portanto. Diferentemente da aletheia, a veritas não se refere às próprias coisas, mas a discursos sobre elas. Seu oposto é a mentira ou falsificação. Em hebraico, verdade se diz emunah e significa “confiança”. Aqui, a verdade é encarnada nas pessoas e em Deus. A verdade está vinculada a uma confiança em alguém que não nos decepcionará, amigo ou Deus. Uma promessa que se cumprirá e que na sua expressão mais perfeita é uma revelação divina ou profecia. Se aletheia se refere as coisas como são, veritas diz como as coisas foram e emunah como serão. Segundo M. Chaui [1], nossa concepção de verdade é uma síntese dessas três vertentes.

Esse tipo de verdade é fundamentado em um evento; seja na suposição da realidade da coisa-em-si, seja na fidelidade de um relato, seja, por fim, na esperança de que uma profecia se cumpra. Esse é o tipo de verdade da qual se nutrem ciência e religião. Tanto para uma como para outra, a verdade é algo tangível ou porque corresponde a uma expectativa (emunah) no caso da religião, ou porque se adequa a um modelo proposto que funcione (aletheia com um véu a menos) no caso da ciência. Mas não só a tangibilidade da verdade importa. Importa saber que existe um “gabarito”, um porto-seguro onde encontraremos a Verdade sem que ninguém possa constestá-la, bastando para isso a pureza do método ou infinita luz revelada. E assim, nos redimiremos de todo o mal. A ciência é a minha religião. A religião é minha ciência…

Essa é a incômoda proximidade de Ratzinger aos cientistas como chamei a atenção aqui, aqui e aqui. Sim, eles todos acreditam em essências e na Verdade. Fundamentalistas a combater o relativismo, seja sob a forma de uma ética laica — impossível para o Vaticano; seja de uma verdade consensual, voltada ao bem-estar de uma sociedade, “cadáveres de metáforas que formam redes de conceitos utilizados como valores de verdade.” No final, são todos uns relativistas pós-modernos, dizem.

Na Bolsa de Valores há dois tipos de abordagem do “mercado”: os “fundamentalistas” e os “grafistas”. Os fundamentalistas, grosso modo, baseiam-se nos “fundamentos” da empresa, como lucro, grau de endividamento e participação no mercado. Eles querem conhecer a realidade da empresa para saber quanto ela vale. Nada mais justo! Seu guru Warren Buffett. Mas há os grafistas. “Um analista grafista usa figuras desenhadas com base em critérios subjetivos, do tamanho e na posição que ele acha que deveria ser, como base em suas preferências pessoais, e com isso acredita ser capaz de montar estratégias vitoriosas. Há muitos exemplos de analistas grafistas, porém não saberia citar nenhum comparável a Buffett ou Simons.” Os grafistas estudam o histórico da ação: eles observam a ação no passado e tentam perceber o que irá ocorrer com as cotações nas próximas semanas”. A análise dos grafistas é baseada em… em história?! em comportamento passado e curvinhas sobe-desce?! Alguém poderia dizer que os grafistas construiram “castelos de fumaça” e moram dentro deles. Eu diria diferente. Diria que além de construir esses castelos, eles os vendem por preços bastante interessantes. Eles também ganham (e perdem, eu sei) dinheiro na Bolsa, mas o importante aqui é entender que os dois tipos de análise são exatamente opostos: um se baseando numa “realidade” presumida, construída, com endereço certo, tijolo e ferro. O outro baseado em tendências que geram padrões donde se tiram comportamentos, tudo fincado num terreno bastante pantanoso da nóia geral que é o mercado, totalmente criado pelo homem!

Ratzinger, fundamentalistas da bolsa e cientistas têm boas razões para crer no que creem. As ciências ditas “humanas” ou históricas (que Aristóteles chamava de Política, Dilthey, de Geistwissenschaften – literalmente, ciências do espírito – e Kant, de razão prática) têm, porém, um status epistemológico diferente. Nesse caso, o homem é a medida de todas as coisas. Sim, o diagnóstico parece ser correto: Protágoras sofreu bullying por parte de Sócrates.

[1]Convite a Filosofia. Marilena Chauí.

O Matador de Metáforas

Confesso que não vai ser muito fácil. Também não sei se minha prosa tem a envergadura simplificadora que o empreedimento exige. Mas como tudo é exercício, mãos a obra. Que as musas me alumiem o caminho (que vai ser um pouco mais longo que o habitual – haja luz!)…

I

Retomemos o livro de Giannetti, (mal) resumido abaixo. Ao adotar um “fisicalismo reducionista” o personagem-narrador se mete numa enrascada existencial pois, acha ele, tal posição filosófica afeta a forma como se vê no mundo, tolhendo-lhe o significado do verdadeiro “eu” e colocando no lugar uma sopa de neuromediadores de concentração variável. O capítulo 55 (último) é pródigo neste tipo de questionamento existencial (que eu achei meio exagerada, como tentarei mostrar a seguir):

“É possível termos acreditado falsamente durante milênios que a vontade consciente rege os nossos músculos quando, na verdade, ela é o subproduto inócuo de uma cadeia de eventos eletroquímicos no cérebro, como a fosforescência no rasto de um fósforo aceso no escuro ou a espuma de uma onda neural? E que, portanto, fazer de um propósito ou de uma intenção consciente a causa de uma ação humana é tão desprovido de fundamento como falar do propósito de uma espermatozoide ao fecundar um óvulo ou da cigarra ao entoar sua cantoria ou do Sol ao irradiar calor? Sim, é possível.”

Vai daí, que entram no rol do “é possível” as reflexões ético-morais, as guerras ideológicas e religiosas, a psicologia, o ateísmo militante e outras coisas até chegarmos ao engodo da consciência. Um tipo de farsa onde acreditamos que somos os personagens que representamos. Isso pode causar um imobilismo, um mal-estar trans-histórico (que vem desde a antiguidade); nos tornar a-morais, como parodiando a tese ivankaramazoviana: se não há um “eu”, nem uma alma, (então) tudo é permitido”. E assim, termina o livro e aqui vamos começar a discutir essa tese que foi criticada de várias formas, por vários autores.

II

O fisicalismo, entendido de modo um pouco mais rigoroso, é um tipo de materialismo onde todo e qualquer evento pode ser descrito em termos estruturais microfísicos, sendo microfísica a física das partículas elementares e tudo que gira no seu entorno. Foi descrito pelos positivistas lógicos do Círculo de Viena (não foi à toa!). As primeiras formas de fisicalismo ou fisicismo eram todas reducionistas, ou seja, propunham dissolver a descrição de todo o tipo de fenômeno observável às leis da física. O fisicalismo do livro em questão é também eliminativista, pois considera que não há estados psicológicos de jeito nenhum, e nem psicologia, portanto. Daí, tudo o que chamei de “enrascada existencial” do personagem do livro.Um jeito de sair dela é fazer como o médico-pesquisador do livro, que leva duas vidas. Como cientista é fisicalista radical e assim faz, pensa e trabalha. Na vida “comum”, finge que “eso non ecziste” e pensa em alma, livre-arbítrio, problemas ético-morais como qualquer mortal. É uma vida dualista. O personagem, pelo contrário, vive seus “pensamentos”. Conflituado por suas conclusões, não consegue separar as coisas. Monista. Um outro jeito, é o pragmático.

III

Antes de mais nada, é importante saber que essa forma de sair do problema é também bastante criticada, em especial, por um coreano radicado nos EUA chamado Jaegwon Kim (de onde tirei o esquema acima), mas vamos lá. As ideias são de Donald Davidson, aluno de Quine, compiladas por Richard Rorty num ensaio chamado “Fisicalismo Não-Reducionista” que, por sua vez, está na página 157 do livro Objetivismo, Relativismo e Verdade – Escritos Filosóficos Vol. 1 – 2a Edição – tradução de Marco Antônio Casanova, pela Relume Dumará – Rio de Janeiro, 2002. Também consultei esse artigo de Ronald Arendt. Vou começar ao contrário de Rorty e do Arendt.Nós normalmente não falamos em “conhecimento literário”, certo? Podemos no máximo falar que um romance nos dá certos “insights” sobre algumas questões que podem ser relevantes. Os de ficção científica trazem questões científicas mas são bem a minoria. Acreditamos até que as visões literárias (e aqui eu incluo grande parte da filosofia, no que me seguiriam muitos cientistas e/ou divulgadores de ciência) são incompatíveis com a visão físico-naturalista da realidade. Segundo Rorty, uma das causas para que isso ocorra é a confusão que fazemos de naturalismo com reducionismo. Para Rorty, reducionismo aqui significa a procura de uma linguagem singular o suficiente para estabelecer todas as verdades que há para serem estabelecidas – um graal linguístico. Segundo suas próprias palavras:

“Uma tal tentativa é associada com a tentativa de identificar a ‘verdade literal’ com a ‘verdade científica’ e a tratar a literatura como oferecendo meramente ‘verdades metafóricas’, algo que não pode realmente ser denominado de verdade acima de tudo. A concepção usual, desde Platão, tem sido a de que um entre os vários vocabulários que nós usamos espelha a realidade, e que os outros são na melhor das hipóteses ‘heurísticos’ ou ‘sugestivos'”.

Aqui entra Davidson, filósofo da linguagem, e o título do post. Uma de suas premissas é que metáforas não têm significados. Isso quer dizer que sua ocorrência é como um efeito colateral da utilização de uma linguagem, não há nada implementado com intuito de produzi-las. Entretanto, apesar de surgirem assim, quase sem querer, elas têm um papel fundamental quando se “literalizam”. Literalizar uma metáfora é matá-la, mas no momento em que isso ocorre, reformulam-se nossas crenças, conceitos e desejos. Sem a morte de metáforas “não haveria nenhuma coisa tal como uma revolução científica ou uma ruptura cultural, mas meramente o processo de alterar os valores de verdade das asserções formuladas em um vocabulário para sempre imutável.” Desse ponto de vista, uma teoria científica é simplesmente uma redescrição metafórica. Por exemplo, quando os cristãos disseram ‘O amor é a única lei’, quando Copérnico disse ‘A Terra gira em torno do Sol’, ou Marx ‘A história é a história da luta de classes’ ou ainda os físicos afirmaram que ‘a matéria pode ser transformada em energia’, tais frases pareciam mais com um modo de falar que com uma verdade. Um filósofo analítico naïve diria que são confusas. O que queremos dizer com “lei”, “sol”, “história” ou “matéria”? Mas quando cristãos, copernicanos, marxistas e físicos começaram a redescrever porções da realidade sob a luz dessas sentenças – e comprovar o valor de tais redescrições – nós começamos a falar delas como afirmações com grande valor de verdade.

Nesse ponto, nos aproximamos do cume. Eu disse que subir não ia ser tão fácil, mas não vamos parar aqui, né?
Vamos para uma citação do texto de Rorty:

“Esse fenômeno da produção e ‘literalização’ de metáforas é o fenômeno que a tradição filosófica ocidental sentiu como sendo necessário para avaliação a partir de uma oposição entre matéria e espírito. Essa tradição pensou a criatividade artística, bem como a ‘inspiração’ moral ou religiosa, como incapazes de serem explicadas nos termos usados para explicar o comportamento da ‘realidade meramente física’. (Nota do Blogueiro: dizem que tudo começa com Platão e aqui, em especial, isso é bem verdade, ver A República e o artigo de Maria Villela-Petit. Além disso, Rorty se coloca em uma linhagem de pragmatistas americanos que começou com Pierce, James e Dewey e que vem combatendo, a seu modo, a tradição filosófica ocidental que é como eles chamam o pensamento que começou com Platão e atingiu o seu ápice em Kant, com vários desdobramentos atuais). Em vista disso, surgiram as oposições entre ‘liberdade’ e ‘mecanismo’ que dominaram o período pós-kantiano na filosofia ocidental. Mas segundo a visão de Davidson, ‘criatividade’ e ‘inspiração’ são meramente casos especiais da capacidade do organismo humano articular sentenças sem significado – isto é, sentenças que não se ajustam a velhos jogos de linguagem e que servem enquanto ocasiões para modificar esses jogos de linguagem e criar novos. Essa capacidade é exercida constantemente, em toda e qualquer área da cultura e da vida cotidiana. Nesta última, ela aparece como chiste. Nas artes e nas ciências ela aparece, retrospectivamente, como gênio.”

IV
Tudo isso para dizer que para um pragmatista o importante é “afinar o discurso”, ou seja, utilizar a linguagem correta para cada situação e acabar com essa divisão arbitrária de matéria e espírito. Tudo é fruto de uma (re)interpretação, (re)arranjos de cadáveres de metáforas que formam redes de conceitos utilizados como valores de verdade. A parcimônia ontológica (aqui querendo dizer um tipo de consenso enxuto) não é para ser alcançada (como os positivistas pensavam) por meio de uma “análise linguística”. Se for possível fazê-lo, melhor que seja pela prática cotidiana. Esse tipo de abordagem não-reducionista é perfeitamente compatível com a afirmação de que nós provavelmente continuaremos a falar sobre entidades mentais – crenças, desejos, e tudo o mais – para sempre! Aqui, voltamos finalmente ao livro, segundo Rorty, repare que essa fala (crenças, desejos, etc) NÃO é metafórica; é uma rede de metáforas já literalizadas. Por isso, não necessita ser tornada mais científica ou precisa, além dos ajustes “normais”, e, por outro lado, não necessita de clarificação filosófica com esse intuito específico. Dizer que nós sempre falaremos sobre crenças e desejos, é dizer que a psicologia provavelmente permanecerá a melhor forma de descrever estados mentais e abordá-los com entendimento entre pares.Mais um pouco sobre as redes. Rorty acha possível abdicarmos da noção de “consciência”, mas acha que temos um “Si próprio”que consiste nos estados mentais do ser humano (os tais desejos, medos, crenças, de novo). Note-se bem, essa coleção de estados mentais É o tal Si próprio. O Si próprio não as tem, ele as é. Isso funcionaria como uma rede em contínuo processo de auto-reformulação em respostas a estímulos como novas crenças, por exemplo. Essa imagem é bem diferente da dualista cartesiana (e é o que Kim critica alegando impossibilidade) de um “eu” distinto de suas próprias crenças e desejos. Não há mais, de forma alguma, um centro que seja o Si próprio, como não o há para o cérebro. E aqui o arremate:

“Exatamente como as sinapses neurais estão em contínua interação umas com as outras, constantemente formulando uma diferente configuração de descargas elétricas, também nossas crenças e desejos estão em contínua interação, redistribuindo valores de verdade entre asserções. Exatamente como o cérebro não é algo que “tenha” tais sinapses, mas É simplesmente um aglomerado delas, assim o Si próprio não é algo que “tenha” as crenças e os desejos, mas simplesmente a rede que as reúne e conecta.”

Isso implica que ter uma crença ou desejo significa ter muitas crenças e desejos; significa ter o fio de uma extensa trama que nos constitui.

V

Como conclusão, temos que a dissolução pragmática de uma metafísica da dualidade matéria-espírito na filosofia da linguagem de Davidson, respinga na filosofia mente-cérebro produzindo uma visão dos seres humanos, que segundo Rorty, é “naturalista” e não-reducionista, dado que o processo de redução é um processo linguístico como foi demonstrado; e, portanto, relativo. As consequências disso são bastante abrangentes. A nós, interessaria a ultrapassagem do dilema do narrador-personagem do livro de Giannetti. É possível descrever fenômenos em vários níveis de especificidade. Ao descolarmos esse ato da vinculação à Verdade, à pretensão do conhecimento da “coisa-em-si”, poderemos trabalhar em níveis superiores de entendimento humano mútuo sem nos imobilizarmos. O amoralismo proposto também não se sustenta por estar embutido na questão do consenso entre os seres humanos. Tentarei, levando em consideração o texto de Ratzinger abaixo, traçar um paralelo entre a ciência e a religião e mostrar como, ao menos nessas questões, elas mais se aproximam que se opõem.

VI

Por fim, esse trabalho de desmistificação do fisicalismo reducionista também foi feito com muita simplicidade, a exemplo do silogismo de Giannetti na parte IV do post abaixo, por Hempel com o raciocínio que se segue:

“Talvez uma das críticas mais incisivas ao fisicalismo esteja no dilema apontado por
Hempel (1980): se o fisicalismo for definido de acordo com a ciência Física atual, então se
trata de uma tese possivelmente falsa, já que a Física atual não é, de maneira alguma, uma
ciência completa. Por outro lado, se o fisicalismo apoiar-se em uma ciência Física hipotética,
uma ciência completa que ainda está por vir, então o fisicalismo perde sua força, pois não
sabemos como será essa Física e que coisas farão parte desse mundo físico que ainda não
somos capazes de conceber.”

Do excelente artigo de Diego Zilio em Ciências & Cognição 2010; Vol 15 (1): 217-240.

Acho que dá para falar no “Erro de Giannetti” e em tempestade em copo de água, né?

Relativismo e Fé

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Em livre tradução, segue o fragmento:

“Por esta razão, os eventos políticos de 1989 (queda do muro) também mudaram o cenário teológico. Até então, o marxismo vinha sendo a última tentativa a fornecer uma fórmula válida para a correta configuração da ação histórica. O marxismo acreditou que conhecia a estrutura da história mundial e a partir dela tentou demonstrar como poderia conduzi-la ao caminho correto. O fato de que essa presunção era baseada estritamente em um método científico que substituiria totalmente a fé pela ciência e fazendo desta última uma praxis, lhe deu um forte apelo. Todas as promessas não cumpridas das religiões pareceram então, possíveis por meio de uma praxis política baseada cientificamente.

A não-cumprimento da promessa trouxe grande desilusão que está ainda longe de ser assimilada. Consequentemente, me parece provável que novas formas de concepcão marxista do mundo aparecerão no futuro. No momento, não há outra alternativa senão a perplexidade. A falha do único sistema com base científica para resolver os problemas humanos poderia apenas justificar o nihilismo ou mesmo, o relativismo total.”

Continua…

“Por sua vez, o relativismo parece ser o fundamento filosófico da democracia. Diz-se que a democracia baseia-se no princípio de que ninguém pode ter a pretensão de saber qual é o caminho certo a tomar e é enriquecida pelo fato de que todos os caminhos são mutuamente reconhecidos como fragmentos de um esforço em direção ao que é melhor por meio do diálogo. Um sistema livre deve ser essencialmente um sistema de posições interconectadas e relacionadas pois são dependentes de situações históricas abertas a novos acontecimentos. Assim, uma sociedade liberal seria uma sociedade relativista: apenas sob esta condição ela poderia continuar livre e aberta ao futuro.”

Perguntinha: alguém sabe de quem seria este texto? Vou desenvolver uma ideia polêmica no próximo post e isso faz alguma diferença. Inté…