Nhém-Nhém-Nhém Filosófico
Tendo em vista o último post e a discussão por ele gerada, vou retomar um ponto que tem ganho um certo volume nos bastidores do SBB. Trata-se do papel da filosofia na ciência moderna ou, mais especificamente, da resposta à pergunta: por que é que alguém que se proponha a <divulgar> ciência precisa de algum tipo de filosofia? Não. De forma nenhuma pretendo esboçar algo como uma “Filosofia da Ciência” num post ou, muito menos, ensinar alguma coisa a ninguém. Apenas julgo necessário esclarecer minha posição em relação a alguns pontos e, principalmente, justificar de onde os pontos de vista, aqui defendidos vêm. Como um bom cientista faz.
A atividade filosófica poderia ser dividida em 3 níveis de profundidade: a) nível da vida cotidiana; b) nível da vida científica e c) nível reflexivo propriamente dito. Se pensarmos bem, veremos que ela está sempre envolvida, nos três níveis, com os problemas de fundamento e de origem, como diz Hilton Japiassú. “Filosofar” é, no fundo, voltar à velha questão aristotélica do “que é o ser?”. Seguindo ainda, Japiassú: “Após o cogito cartesiano, esse tipo de atividade se dividiu em duas: de um lado, a questão do ser, da natureza e de Deus; do outro, a questão do homem. Daí o duplo sentido da filosofia posterior, sempre oscilando entre esses dois pólos. Essa tensão constitui o caráter dramático (eu diria trágico) da filosofia. Há duas possibilidades de existir, de viver, de o homem compreender a si mesmo e de explicar as coisas: reagrupar tudo em torno do único centro que é o homem, ou fazer com que tudo convirja para um pólo mais forte e que seria o fundamento de sua vida. (grifos meus)”
Esse bifurcação trágica do campo ontológico do homem, ou seja, do principío do princípio de toda a fundamentação de sua noção de mundo, é o ponto de partida para o conhecimento que ele vai produzir e do qual se utilizará para viver. Esse “viver” é <dominar>, <conquistar>, <melhorar a sobrevida>, <aumentar a população>, mas também é <não ter medo de raio>, <suplantar a finitude>(se é que isso é possível!), <criar filhos>, <ser avô>. E aqui voltamos aos 3 níveis de profundidade. O papel da filosofia seria basicamente esclarecer as implicações de cada escolha, não só para a vida pessoal, mas também para que se dialogue com as ciências e elas entre si.
Conclui Hilton Japiassú, que a filosofia “precisa cavar as fundações do conhecimento científico para descobrir sobre que solo ele se constrói. E a presença do homem ao mundo é este solo primitivo sobre o qual se edificam as ciências. Assim, encontramo-nos diante de uma volta ao fundamento, de um retorno às fundações. E é somente depois das ciências que o filósofo tem o direito de voltar (para) antes delas. Em outras palavras, é no ponto mais avançado de uma ciência que ele pode e deve colocar o problema de suas raízes, de seus fundamentos e, por conseguinte, de seu sentido.”
Penso com isso, que divulgadores de ciência – assim como os críticos de arte em relação à própria arte – têm uma posição bastante privilegiada, já que crítica, em relação à ciência. Ao exercitarmos nosso senso crítico em relação à produção científica, já estamos “filosofando” sobre ciência (o Ignobel que o diga). Quem sabe se com um pouquinho de filosofia não percebamos o quanto a ciência tem sido eficaz em disfarçar-se de “questão do homem” quando na realidade, está se tornando uma grande “questão do ser” para quem trabalha com ela, aumentando ainda mais, a já enorme tragicomicidade da aventura humana nesse planeta.
Foto do bonito blog de Fernando Pimenta.

Hermenêutica Médica
Acho que o momento é propício (καιρός). Qual a melhor forma de combater “medicinas alternativas” e “pseudociências” em geral?
Segundo Boaventura de Souza Santos[1]:
1. Todo conhecimento é em si uma prática social, cujo trabalho específico consiste em dar sentido a outras práticas sociais e contribuir para a transformação destas;
2. Uma sociedade complexa é uma configuração de conhecimentos, constituída por várias formas de conhecimento adequadas às várias práticas sociais;
3. A verdade de cada conhecimento reside na sua adequação concreta à prática que visa constituir;
4. Sendo assim, a crítica de uma dada forma de conhecimento implica sempre a crítica da prática social a que ele se pretende adequar;
5. Tal crítica não se pode confundir com a crítica dessa forma de conhecimento, enquanto prática social, pois a prática que se conhece e o conhecimento que se pratica estão sujeitos a determinações parcialmente diferentes.
Tratamos do problema do conhecimento como fator de transformação social, em geral e em particular, das relações entre a ciência e o senso-comum. A racionalidade utilizada pelo senso-comum é objetivista, individualista e naturalista no sentido de conservadora do status-quo. Um conhecimento, científico ou não, que pretende mudar esse panorama será fútil se pretender corroer o sistema por meio de uma elaboração teórica da prática social a que esse conhecimento se refere utilizando sua própria racionalidade. Esse procedimento termina por duplicar o senso-comum ou seja, tendemos a pensar esse conhecimento também de forma objetivista, individualista e naturalista com vistas a manter o status-quo! É ingênuo pensar que a ciência tendo apenas seu método como arma, possa ir além da crítica, se não se unir ao processo de transformação da realidade de tal forma a transformar também, o critério de verdade, do qual fazem parte os mais variados aspectos da humanidade.
Me é irresistível concluir: Dawkins e seus partidários pregam no vazio.
[1]. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Boaventura de Souza Santos. 4a edição. Graal. 1989. Rio de Janeiro.

Pára-Quedas, a Ciência e Eu
Reconheço que ser médico algumas vezes me causa certos problemas que vão bem além de consultas em festas de aniversário. Me explico: já disse que fazer parte de uma comunidade como o Scienceblogs Brasil, me obriga a rever certas posições quase fossilizadas que temos no meio médico; fazem-me sair da “área de conforto”. Pois bem, um exemplo ilustrativo é a visão bastante particular que os médicos têm da ciência. Excetuando-se os cientistas que formaram-se em medicina, pois alguns deles são mesmo cientistas – sendo uns poucos, em exercício ilegal da medicina! -, a grande maioria dos médicos têm uma visão utilitarista da ciência. Não nos apropriamos da ciência como fim, mas como meio de melhor cuidar dos pacientes. Isso ocorre devido a congênita relação da medicina com a prática (iatriké techné de Platão) e culmina com a afirmação seminal de que “a medicina é mais velha do que a ciência“. O Ecce Medicus é pródigo em posts que tratam da diferença entre medicina e ciência médica (ver aqui e aqui, por exemplo).
Tudo isso para dizer que meu apego pela ciência é, digamos, relativo. Isso significa, entre outras coisas, por exemplo, que rejeito veementemente o método científico como único guia e indicador dos procedimentos médicos. A ciência não é um imperativo ético! Posso utilizar minha experiência prévia que não é baseada no método científico. Posso utilizar a experiência prévia de outro médico mais velho que, além de não ser baseada no método científico, é ainda transmitida a mim de forma enviesada, fantasiosa e, às vezes, preconceituosa. Não há estudo metodologicamente bem desenhado (nem mal) que demonstre o benefício do uso de pára-quedas em prevenir mortes e politraumatismos de saltos de avião. Que fazer? Não “prescrevê-los”? Esse exemplo é semelhante ao uso dos suplementos vitamínicos e outros tantos que nunca, jamais serão testados de acordo com metodologia aplicável de modo a gerar a “certeza” exigida nos pesquisadores. Esse é o dia-a-dia do médico. Trabalhar com uns “sujeitos bem individuais”, não-encaixotáveis em ensaios clínicos e ter que usar o conhecimento científico disponível aplicado com bom-senso (mas, o que é bom-senso mesmo?). Às vezes, é bem fácil. Não infrequentemente, você só tem o seu juízo clínico com que contar: A ciência é um luxo que não se pode ter sempre!
Espero que tais fatos ajudem a explicar a minha total falta de ânimo e entusiasmo em “combater” medicinas alternativas e outras pseudociências em geral, com o vigor do método científico. Pululam exemplos em que pais estúpidos deixam seus filhos morrerem à míngua por utilizarem-se de homeopatia ou “rezas bravas” enquanto os pequenos agonizavam em seus berços. Eu mesmo já postei sobre a imbecilidade de um grupo de fundamentalistas americanos em não vacinar crianças. Entretanto, acredito ser não só impossível, como anti-ético, julgar os atos de outrem tendo como base única e exclusiva o método científico e os fatos por ele gerados. A ciência é uma ferramenta, talvez a melhor que temos, mas está longe de ser um código de ética. Ela é uma geradora de problemas éticos mas não os resolve. Os conflitos éticos são habitualmente resolvidos em outras instâncias da sociedade (ou não!).
Vendo pessoas com crenças não-científicas agir dessa maneira, penso sempre na atitude humana frente ao conhecimento. Pessoas assim, utilizam-se de um conhecimento adquirido de forma diferente, mas que desempenha o mesmo papel e ocupa os mesmo espaços e as mesmas sinápses que o conhecimento científico no cérebro humano. Todos, científicos ou não, são conhecimentos arrogantes e possessivos. Utilizam a racionalidade do sujeito vs objeto, com a petulância da posse, do entender para dominar. Razões instrumentais. Então, eu olho para os leitos ocupados dos hospitais; olho para um lado e para o outro e vejo, pasmo, que estou cientificamente só.

Romances e Pacientes
Em artigo interessantíssimo na Piauí desse mês, Mário Vargas Llosa sai “Em defesa do romance”. Explica que não apenas nossa linguagem, mas também nossa imaginação e raciocínio são feitos de palavras. Em determinada passagem, afirma: “Os conhecimentos que nos transmitem os manuais científicos e os tratados técnicos são fundamentais; mas eles não nos ensinam a dominar as palavras nem a exprimi-las com propriedade: pelo contrário, amiúde são mal escritos e revelam certa confusão linguística porque os autores, às vezes eminências indiscutíveis em sua profissão, são literariamente incultos e não sabem se servir da linguagem para comunicar os tesouros conceituais de que são detentores.” Isso para dizer que o romance é a única peça cultural que pode, mais que qualquer gramática, mais que a TV ou a internet, ensinar o uso preciso de palavras conhecidas e nos apresentar novas. Eu acrescentaria, não só palavras mas também conceitos. Rorty concordaria. Para ele, a filosofia contemporânea deve explicar os romances. A tessitura do real é caricaturada nos romances. Os romances são como ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, placebo controlados do mundo da vida. Os “pacientes” reais não estão lá, mas como nos ensinam!
Li o longo artigo e me deparei com a seguinte frase: “A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.” O vocabulário específico nos isola numa armadilha solipsista. Quanto mais somos específicos, mais nos tornamos incapazes de avançar em outras arenas. Tive então, a certeza de que Vargas Llosa falava dos médicos. Se a dificuldade em se comunicar com um leigo é aceitável para qualquer profissional que utiliza conhecimentos científicos, no caso dos médicos, esse é o tipo de deficiência catastrófica. Sem essa habilidade, o médico não conseguirá persuadir o paciente de que seu tratamento é importante, não conseguirá aderência ao que for prescrito, nem a confiança do paciente, caso algo não corra bem.
Somente a literatura, conclui Vargas Llosa, conserva esse denominador comum à humanidade de todos nós. Sempre aprendi que os escritores descrevem as doenças melhor que os médicos. Me parece óbvio agora que isso é incorreto. Eles descrevem melhor os pacientes, e só o fazem porque os apoiam nessa base afetivo-sócio-patológico-cultural a que chamamos vulgarmente de vida. Esta última, parece não morar nos livros de medicina, é preciso incomodá-la em outro lugar…
Viver e Sobreviver – O Debate sobre Eutanásia
Scarlett Marton produziu um raro texto sobre o debate da eutanásia e cuja leitura recomendo fortemente. Por seu equilíbrio e abrangência, incomuns para um opúsculo de três páginas (mas não para escritores de sua envergadura), permite entender ao menos os tópicos envolvidos nessa importante questão não respondida da contemporaneidade: por que alguns países aceitam a pena de morte e não aceitam a eutanásia? Por que lutamos a todo custo para prolongar a sobrevivência, e consideramos que há vidas desprovidas de valor, como a de idosos e debilitados, que acabam isolados do convívio social?
Essas e outras incômodas perguntas são discutidas pela professora titular de filosofia contemporânea da USP, recém chegada de um ano sabático na Sorbonne – onde também leciona. Coordenadora do GEN – grupo de estudos de Nietzsche – tem várias publicações sobre esse filósofo, além de teses orientadas sobre aspectos de sua filosofia.
Pondé x Dawkins
Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé não é, propriamente, o que poderíamos chamar de agnóstico ou mesmo ateu. Que dizer de um homem que é coordenador geral de um Seminário e de um núcleo de estudos chamado NEMES – Núcleo de Estudos em Mística e Santidade – na PUC? Além disso, tem linhas de pesquisa em pensamento conservador, mística medieval e ciências da religião. Também por isso, não se pode dizer que não é um estudioso de um assunto que, para dizer o menos, “move montanhas”.
Pois, o que diria esse homem sobre o best-seller de Dawkins “Deus, Um Delírio” ? Foi exatamente esse o teor de uma entrevista dada a uma instituição de ensino ligada à igreja católica. Resolvi postar sobre a entrevista porque Pondé repete com os jargões do “lado de lá”, algumas das ideias que temos avançado no Ecce Medicus. Apesar de não concordar com tudo, principalmente algumas generalizações rasas – que considerei “licenças”, pois ele se sentia “em casa” – vamos ao que se pode aproveitar.
Em primeiro lugar, para Pondé, a dicotomia Deus x Ciência ou Esclarecimento x Escuridão só tem lugar dentro de uma utopia racionalista moderna na qual, razão é definida como “relação de causa-efeito empiricamente perceptível e suas funções instrumentais”. Não considerar outros tipos de racionalidade, seja metafísica ou não, é empobrecer o conceito lato de razão, a ponto de ele necessitar uma teoria de libertação (“saída do armário”) e, consequente busca de felicidade pela via científica, causa abraçada por Dawkins. Para Pondé: “Esse livro de Dawkins é uma auto-ajuda para ateus inseguros”. Outra dicotomia abordada é “fé x razão”. Ele diz: “Não há oposição entre fé e razão. Há uma relação de trabalho entre elas, ainda mais porque são centros de atividade do mesmo animal, o ser humano.”
Ao fazer uma análise política do livro de Dawkins – quando diz que Dawkins tenta convencer uma neo-esquerda que mistura iluminismo anti-clerical com foucaultismo de minorias oprimidas -, Pondé revive a discussão pós-metafísica e pós-moderna de como buscar o bem-estar e a felicidade e, também, da transmutação do desejo. Citando Chesterton ele diz: “não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que se acaba sempre acreditando em alguma besteira, como por exemplo, no bem-estar da humanidade”. Pensamento utilitário que ele mesmo critica na entrevista.
Como teísta que é, não resiste à tentação de, ao contrapor a crença em Deus a uma atitude antropocêntrica, em afirmar que “filosoficamente, o antropocentrismo é simples empobrecimento epistêmico, Deus é o melhor de todos os conceitos, e o contato com Ele nos torna mais inteligentes”. Reduz então, o antropocentrismo a “mania de políticas públicas + publicidade auto-ajuda”.
Eu diria que sim, o antropocentrismo é mesmo empobrecimento epistêmico. Trocar Deus pelo Homem, como fez Feuerbach, não resolve o problema. Daí, seu elogio às filosofias trágicas de Nietzsche e Rosset: únicas a combater o deus disfarçado em ciência, natureza e no próprio homem. Sim, é preciso matar Deus. Apenas autopsiá-lo enquanto ainda “vivo”, não será suficiente. É isso que Pondé combate, que Dawkins não vê e que pode ser chamado trágico.
As Certezas Médicas
Outro dia, conversávamos, eu e meu amigo Kretinas, sobre os mecanismos geradores de certeza. Recomendo a leitura dos dois posts e também dos comentários para que se acompanhe o raciocínio desenvolvido neste.
Qual é o principal mecanismo gerador de certeza de um médico? Melhor, o que faz um médico se convencer de que determinado procedimento deve ser realizado ou não? Dois elementos principais: o primeiro é sua própria experiência; o segundo, a experiência dos outros. O paradigma tradicional era baseado na experiência do médico, no número de casos acumulados durante a vida e na conduta do professor, que era quem trazia informações novas de outros serviços ou de congressos internacionais. O paradigma atual é a literatura médica e a metodologia desenvolvida para avaliá-la criticamente: a medicina baseada em evidências. Ensaios clínicos randomizados (ou aleatorizados) com grande número de pacientes são o modelo para demonstração do efeito de tratamentos experimentais. As metanálises são, grosso modo, conjuntos de ensaios clínicos com tratamento estatístico, de modo a multiplicar o poder para responder perguntas relevantes. Metanálises e ensaios clínicos embasam normas que serão reunidas em diretrizes. Uma diretriz pretende ser um conjunto de normas para tratar uma doença ou situação clínica. Nem todas as normas de uma diretriz têm embasamento suficiente de acordo com o modelo atual, baseado em metanálises e ensaios clínicos, por isso foram atribuídas notas aos graus de “evidência” que embasam determinada norma e as maiores notas são para os dois tipos de estudos descritos acima. A experiência individual dos médicos tem nivel bastante inferior de acordo com esse sistema de classificação.
Voltemos à conversa do início. Um dos pontos defendidos no meu post é de que uma “certeza” é um estado psíquico e, sendo assim, só pode ser avaliada criticamente por quem a possui. Dizia que esse talvez fosse o paradoxo do ceticismo: se os céticos não tem as certezas para que possam criticá-las, os crédulos que as possuem, não querem fazê-lo. Em seu post, Kretinas critica minha postura racionalista, mas rebato com o que os médicos têm de mais peculiar em relação aos filósofos: a prática. Um médico tem, deve, precisa tomar decisões a todo momento. Mesmo que se tome decisões sem a certeza absoluta de que é isso o melhor a ser feito no momento — e essa situação ocorre muito mais frequentemente do que seria desejável –, o mero fato de que a decisão tenha sido tomada, indica um viés de certeza sobre determinado assunto ou situação, viés que deve, no médico honesto, estar amalgamado com intuição e com grandes doses de literatura médica, sob a pena de virar um exercício de palpites, no caso inverso.
Críticas há, sobre esse tipo de metodologia. Um exemplo já foi sugerido. O de que algumas decisões não são tomadas “com certeza”, mas muito mais pela necessidade de agir. Outra crítica seria a de que nem toda certeza se manifestaria diretamente na forma de uma decisão ou ato externos. De qualquer forma, convenhamos que para um médico “abrir a barriga” de alguém ou prescrever uma medicação que tem efeitos colaterais, algum grau de certeza ele deve ter ou então, seria um irresponsável. Isto é suficiente para essa análise. Se a medicina é uma profissão fortemente baseada na ciência médica – mas não reduzida à ela, como canso de repetir – uma abordagem como a “medicina baseada em evidências” deveria ser suficiente para, se não “convencer”, pelo menos deixar bastante propenso qualquer médico a adotar (ou abandonar) determinada conduta.
Preciso então, de ao menos um exemplo no qual uma conduta médica vá contra as evidências científicas para mostrar que uma certeza — pelo menos as certezas médicas — não dependem de uma racionalidade imediata que liga diretamente o raciocínio lógico ao ato. Um exemplo para mostrar que entre a conclusão lógica e a “certeza” há um universo – provavelmente afetivo, na falta de um termo mais adequado – que adiciona um fator de imprevisibilidade à certeza e que, sendo esta necessária à decisão, gera, digamos, um “frio na barriga”. Só um exemplo para mostrar que a “certeza” talvez seja simplesmente um sentimento demasiado humano.
Foto by *c h r i s* at Flickr
Deus, um Desejo
O ateísmo “engajado” parece estar mesmo na moda. Textos agressivos, talvez motivados pela vinda de Richard Dawkins ao Brasil, conclamações, blogs, artigos vociferantes – parece que os ateus “pegaram em armas” e decidiram “sair do armário” contra a religiosidade em geral e Deus, em particular. Apesar de concordar que essa atitude é compreensível, tendo em vista certas notícias publicadas, e que a agressividade de algumas condutas teístas beira mesmo à discriminação, quando não a constitui descaradamente, acho-a ineficaz.
É engraçado: todo mundo lê Dawkins, mas pouca gente lê Michel Onfray. Ele devia ser mais citado e reverenciado nesses tempos de cólera. É dele a frase “Superemos portanto a laicidade ainda marcada demais por aquilo que ela pretende combater.” Dele, a justificativa: “Os excessos se explicam e se justificam pela rudeza do combate da época, pela rigidez dos adversários que dispõem de plenos poderes sobre os corpos, as almas, as consciências, e pelo confisco de todas as engrenagens da sociedade civil, política, militar pelos cristãos.” Dele ainda, o caminho a seguir: “A descristianização não passa por ninharias e quinquilharias, mas pelo trabalho sobre a episteme de uma época, por uma educação das consciências para a razão.” Segue, então, minha humilde contribuição a esse trabalho. (Nos passos de Clément Rosset.)
Episteme. Uma crença sabe sempre dizer porque crê, mas nunca no que exata e precisamente crê. Sim, pois o “grande inimigo da crença não é a ‘verdade’, mas a precisão”. Não sendo possível a “verdade” como resposta, o que seria então preferível, o silêncio ou a mentira? Leiamos juntos essa passagem: “A palavra precisa – seja ‘verídica’ ou ‘mentirosa’ – não possui continuidade nem consequência para a atividade intelectual em seu conjunto: no máximo pode engendrar um erro de fato. Em torno da fala solitária da mentira, tudo é silêncio. A palavra imprecisa, ao contrário – sempre mentirosa, e por omissão -, proporciona um ponto de apoio à representação das ideias: pode ser utilizada numa rede de relações ideais que encontrará sua coesão e sua justificação nessa argamassa imaginária”. Qual a relação entre a imprecisão e o silêncio?
Pode-se (re)visitar as expressões epistemológicas básicas da teoria do conhecimento de acordo com o tipo de silêncio que as violam. O racionalismo – atenção à ideia, indiferença ao detalhe – tem o silêncio ideológico. O empirismo – atenção ao detalhe, indiferença à ideia – tem o silêncio cético. O silêncio ideológico é prolixo e impreciso. Permite uma enxurrada de interpretações que se sustentam em uma rede praticamente invulnerável à crítica; permite que um rumor ideológico gire ao seu redor. Esse é o silêncio da imprecisão. O silêncio cético é cirúrgico e milimétrico em não afirmar e não causar rumor – não pode ser confundido com a metáfora do “armário”. A ideia de Deus e o que advem dela pertencem entretanto, ao silêncio ideológico.
O Desejo
Tenho defendido que o ateísmo engajado de Dawkins é inútil. Mais que isso, é contraproducente. Para facilitar a exposição do meu ponto de vista, consideremos isso como um debate. Essa estratégia ataca o opositor pelo seu lado mais forte; o lado no qual ele é invulnerável, blindado por uma carapaça ideológica difusa e densamente amarrada. Vamos dar meia volta e tentar a retaguarda. De onde vem o apego a essa ideia? O que faz um homem acreditar piamente em histórias fantásticas sem qualquer comprovação? A resposta de um século: O Desejo. “O homem não se engana porque ignora, mas porque deseja.” Mais, o homem que se ilude não mente jamais, pois o desejo nunca é preciso o suficiente para produzir um erro de fato. “Essa falta, não de crença, mas de objeto de crença, é precisamente o que define a especificidade da crença e lhe assegura a invulnerabilidade” – diz Clément Rosset.
Mesmo que se “convença” um homem ou mulher que ele(a) está errado(a) com fatos, números, lógica ou qualquer outro tipo de arma cognitiva que se queira usar, não se mata o desejo que ele(a) terá de que a história decorra assim, da forma como eles a veem, pois o desejo pertence a uma esfera não-cognitiva, instintiva ou animal, inerente ao humano. O desejo é inextirpável! Tentativas de extingui-lo podem danificar permanentemente o hardware humano: somos o que somos por desejarmos ardentemente. A psicopatologia desse desejo não é coisa para um post, nem mesmo uma tese e não se ousa aqui explicar o que filósofos e psicanalistas já tentaram com muito mais competência. Mas, posso avançar que talvez a ideia de Deus (e da própria Natureza divinizada que é a tese de Rosset) são os mais poderosos antídotos já elaborados pela imaginação humana contra a ideia de Acaso. A ideia de Acaso que implica em uma insignificância radical de todo e qualquer acontecimento, de toda e qualquer existência, é um soco no estômago do ser que ousou desejar.
Na impossibilidade do des-desejo, melhor seria compreender no que o desejo implica, no que ele tolhe a liberdade e a capacidade de tolerar. Caminho solitário e difícil. Enfrentar o desejo só lhe dá materialidade e força. A ele, dedico apenas meu silêncio cético e aprendo.
Mecanismos Geradores de Certeza
Quando uma pessoa diz, “tenho certeza absoluta disso” ou “isso é evidente” é de se perguntar qual o caminho percorrido até ter chegado a essa conclusão. Normalmente, quando pedimos para que nos explique esse caminho, os resultados são decepcionantes: não conseguimos ter a mesma impressão. Parece sempre que falta algo, um detalhe, um passo que a linguagem ou o interlocutor não foram capazes de traduzir. E falta mesmo. A certeza é mais um estado psíquico que uma verdade auto-evidente. É, como diz Fernando Gil, uma relação. (Daí a fascinação que alguns professores exercem sobre seus alunos ao passar a certeza dos conhecimentos com emoção contagiante.)
Sendo assim, só quem pode avaliar criticamente as certezas é quem as tem. (Talvez seja essa a principal desvantagem dos céticos.) Quais são os mecanismos geradores de certeza dos quais nos utilizamos? As certezas e a “verdade” são necessidades básicas da vida e podem ter sido fundamentais para o desenvolvimento de nossa espécie, de forma que nos agarramos a elas com as unhas de um afogado. Há poucas dúvidas de que os mecanismos geradores de certeza sejam exatamente os mesmos para qualquer tipo de “verdade”, seja revelada, experimental ou filosófica. Como então pedir a quem quer que seja para que analise suas certezas criticamente? E se o chão ruir? A aporia da “verdade” é essa: se os céticos não tem as certezas para que possam criticá-las, os crédulos que as possuem, não o querem.
Para muitas pessoas perguntar de onde tiram suas certezas é ofensivo por essas razões. Então a única possibilidade é: pergunte você mesmo! Que forma de convencimento funciona com você? Por que temos tanta certeza de certas coisas e de outras não? O primeiro passo é fazer a pergunta. Qual o mecanismo gerador de certeza que nos levou a acreditar naquilo como “verdade”? Provavelmente, possamos descobrir que não seja único. Seja preconceituoso e falho. Emocional e algo irracional: Humano!
Em demasia.
Habermas na Cult
Toni D’Agostinho é um caricaturista. Dos bons. Jürgen Habermas de certa forma, também. O que os dois têm em comum é um pouco mais que isso. Toni caricaturou Habermas na última capa da revista Cult. Ficou simplesmente demais. Habermas foi um feliz encontro que tive. Ele é tão fundamental para medicina que acho que deveria ser ensinado no ciclo básico do curso médico. Sério. É impossível entender as relações entre medicina, tecnologia e sociedade sem Habermas. Acho que a Cult da última semana é uma boa introdução aos estudantes e médicos interessados. Principalmente hoje, aniversário dele. Parabéns e obrigado.
Além disso, Toni talvez não saiba, mas Habermas também o caricaturou.