Emancipação

Emancipate Yourself by deb5376 at Flickr

Emancipar tem a mesma raiz de mancebo, amancebar. Vem de manus=mão e cippus=segurar. Alguma coisa como segurar a mão, levar pela mão, conduzir. Um mancebo é alguém que lhe conduz pela mão. O “e” na verdade é um “ex” contraído. Tem o sentido de tirar. Emancipar então, seria um libertar-se, ficar independente. Procuro saber o que de meu pensamento é amancebado a outros, o que é independente. Do que depende? Quem me conduz?
Não. Não se fala aqui de originalidade. Falamos da angústia da influência. Quais grandes idéias me influenciaram, por que umas e não outras? Se essa pergunta é feita a um ser humano específico a resposta soa quase como uma “psicanálise”. E se essa pergunta é feita a uma área do conhecimento soa como o quê? Por exemplo, quais grandes idéias influenciam a racionalidade médica contemporânea? Por que essas e não outras?
É a completa emancipação possível? Se não, quero saber quem conduz meu pensamento. A pergunta da peça publicitária é bastante incômoda (daí seu sucesso): “O que faz você feliz?” Eu perguntaria: O que faz você pensar assim?

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Diferenciacionismo


Formalhaut – foto do Telescópio Hubble – NASA

Podemos abordar criticamente a ciência sob seus aspectos cognitivos. A forma como as idéias são geradas, a maneira como a realidade é interpretada e os conteúdos decorrentes dessa análise pertencem a esse tipo de interpretação. Convencionou-se chamá-la de epistemológica. Podemos, por outro lado, abordar a ciência do ponto de vista de suas relações sociais. Desde a década de 1990, em especial após o caso Sokal, o domínio sociológico da crítica à ciência vem sendo polarizado por duas correntes de pensamento: a diferenciacionista e a anti-diferenciacionista.
Este post tem o objetivo de discutir (bastante superficialmente, aliás) a perspectiva diferenciacionista da sociologia da ciência e sua relação com os métodos de avaliação de cientistas, ora reunidos sob o termo cientometria. Para isso, seguiremos o raciocínio de Terry Shinn e Pascal Ragouet no excelente “Controvérsias sobre a Ciência”.
A perspectiva diferenciacionista se destaca pelo trabalho de Robert Merton. Esse autor, trouxe à luz o papel das instituições na produção científica. Tanto do ponto de vista de regras institucionais que devem ser obedecidas como também, quanto ao sistema de recompensa oferecido ao cientista. Toda essa visão, que recebeu enormes contribuições de outros sociólogos posteriormente, inclusive do próprio Merton, parte do princípio de que a ciência é um modo de conhecimento epistemologicamente diferente dos outros modos de apreensão da realidade. Nas palavras dos autores:
“Por consequência, a ciência não somente é institucionalmente distinta das outras regiões do espaço social, mas ela se demarca como superior aos outros modos de cognição. É por isso que se pode caracterizar essa perspectiva como diferenciacionista”.

A visão diferenciacionista valoriza as instituições científicas como formatadoras e fomentadoras da ciência, principal modo de interpretar a realidade. Compostas por cientistas, que por enquanto ainda fazem parte da espécie humana, tais instituições começaram a apresentar enormes e indesejadas tensões em suas estruturas devido a busca por reconhecimento entre seus membros. Não é de se surpreender que surgisse nesse âmbito, uma estratificação das ciências e uma metaciência chamada de cientometria. O objetivo aqui seria então, medir notoriedade e produtividade. A cientometria na forma como a conhecemos hoje (Fator impacto, Citation idex, índice H, ISI, Thomson, etc) portanto, é um produto do diferenciacionismo. Lembrar que no diferenciacionismo a ciência se considera uma forma superior de cognição, diferente das formas de entendimento do senso comum.
Não bastasse o fato de estarmos confundindo ciência com publicação científica, começamos a utilizar dados (que foram produzidos para outros fins) para balizar políticas de fomento. Cada vez mais a ciência deve servir a objetivos econômicos de curto prazo. A ciência não é redutível a um punhado de publicações científicas. Tal comportamento tem gerado distorções por favorecer o que convencionou-se chamar efeito Mateus. Muito para poucos e pouco para muitos. O que parece fazer um certo sentido.
Mas seria o anti-diferenciacionismo uma solução?

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Questionamentos II…

Perguntinha frankfurtiana:
“O que ciência tem a ver com democracia?”

Blogs, Ciência, Religião e o Debate no Lablog

Talvez, o que mais irrite nos creacionistas e defensores do design inteligente (DI) é a forma de argumentação, principalmente quando utilizam-se de argumentos “científicos”, mas que em geral, são bastante diferentes dos utilizados por nós, simpatizantes da ciência. Também cometemos os mesmos erros quando tentamos discutir assuntos metafísicos com nosso arsenal argumentativo e quando esquecemos da metafísica presente na própria ciência! (Tenho um artigo interessante sobre a metafísica das espécies).
Quando colocamos um blog no ar, temos uma responsabilidade pública e social. Quero testar minhas opiniões sobre as coisas nas quais gosto de pensar. Quero testar a opinião de outras pessoas. Quero melhorar o mundo, por que não?! Posso tanto mudar de idéia, como também fazer com que outras pessoas comecem a raciocinar de forma diferente. Que fazer com idéias divergentes, muitas vezes agressivamente opostas, às vezes com objetivo explícito apenas de provocar? Acho “deletar” um tanto autoritário. Acredito (e isso é fé pura) na razão compartilhada. Isso implica em aceitar opiniões diversas e construir juntos afirmações com valor de verdade. E não em amar a Verdade. A Verdade é tão intangível quanto fadas, duendes e amigos imaginários deificados. Substituir Deus pela Verdade não alivia. Nietzsche já dizia que ciência e religião estão no mesmo terreno pois ambas acreditam na inestimabilidade e incriticabilidade da verdade e nisso, sempre serão aliadas (GM§25, 3a Dissertação). Da mesma forma como existem defensores irascíveis do DI, também conheci vários “ativistas” do ateísmo dogmático que agem como se a ciência fosse a sua religião. Demolir, destruir ou ridicularizar argumentos contrários é para quem acha que detém a Verdade (com “v” maiúsculo mesmo). É fazer o que um provocador quer. É não reconhecer aquela parcela de fé única e exclusiva da qual a ciência também depende.
Qual a diferença entre a crença nessa Verdade quase absoluta que achamos que possuímos e a crença em ETs? Qual é a razão de estudarmos ciência se não adquirirmos tolerância? Isso já não deu certo outras vezes. Que ao menos não se repita o mesmo erro.

Questionamentos…

Perguntinha wittgensteiniana:
“Se alguém diz: eu tenho um corpo! Não seria o caso de perguntar-lhe: Que bom! E quem está falando por essa boca? (On Certainty, §244).

O Ponto G da Medicina

Paul Cézanne – 1867

Uma reportagem na Folha de São Paulo (28/09/08) sobre um procedimento que visa aumentar o desempenho sexual das mulheres vem comprovar uma das afirmações que este blog vem repetindo há meses. Trata-se de uma injeção de colágeno (proteína fibrosa constituinte de tendões e ligamentos) numa região bastante mal definida conhecida como ponto G. Com isso a área aumentaria e o prazer proporcionado por sua estimulação, também.

A reportagem, escrita por uma mulher, tem opiniões balanceadas numa primeira passada d’olhos, esclarecendo sobre os benefícios e possíveis efeitos colaterais do procedimento. Uma leitura mais atenta entretanto, faz surgir a pergunta: por que tanta ênfase sobre um procedimento que não é aprovado pela ANVISA, não é consenso entre os médicos, sobre uma parte, ou seria um orgão (?), que muita gente acha que não existe, com o objetivo de otimizar um comportamento sexual presumivelmente alterado em comparação sabe-se lá com quê ?
Esse tipo de assunto está numa fronteira entre o que chamamos Medicina e o que pode ser chamado de tecnologia do corpo. Não por acaso, são cirurgiões plásticos e não ginecologistas, os vetores iniciais do procedimento. Digo isso, porque a especialidade juntamente com a psiquiatria, trabalha no limite entre o normal e o patológico e muitas condutas, tanto de uma quanto de outra, não resistiriam a uma reflexão mais elaborada sobre se o que se está fazendo pode ou não ser chamado de medicina. Isso de alguma forma contribui para a cirurgia plástica ser a campeã em processos no Cremesp.
As áreas de fronteira como essa, são especialmente úteis para identificar pontos de atrito. São excelentes para tentarmos saber o que é e o que não é determinada atividade humana. O médico, versado nos segredos, reentrâncias e arquiteturas do corpo, acostumado a tecnologias inovadoras, pode ser presa de valores que não pertencem diretamente à sua profissão. Valores dizem respeito a moral. Quem cuida desse tipo de reflexão são filósofos. E o ciclo se fecha. O cientista/médico não pode se pensar.

Bloguerização II

Interessantíssimo artigo da Plos sobre bloguerização da ciência, assunto já tratado aqui no Ecce Medicus e no Ciência e Idéias. Fala sobre a forma como a ciência evolui e de como os blogs podem fazer (e já fazem) parte disso:
“Scientific discovery occurs in the lab one experiment at a time, but science itself moves forward based on a series of ongoing conversations, from a Nobel Prize winner’s acceptance speech to collegial chats at a pub. When these conversations flow into the mainstream, they nurture the development of an informed public who understand the value of funding basic research and making evidence-based voting decisions. It is in the interests of scientists and academic institutions alike to bring these conversations into the public sphere.”
Acabam por propor uma forma de enquadrar blogs científicos nas atividades acadêmicas:
“We propose a roadmap for turning blogs into institutional educational tools and present examples of successful collaborations that can serve as a model for such efforts. We offer suggestions for improving upon the traditionally used blog platform to make it more palatable to institutional hosts and more trustworthy to readers; creating mechanisms for institutions to provide appropriate (but not stifling) oversight to blogs and to facilitate high-quality interactions between blogs, institutions, and readers; and incorporating blogs into meta-conversations within and between institutions.”
O artigo não comenta entretanto, uma idéia que me é extremamente cara: a da razão compartilhada. Como escrevi em outro lugar, um post não é nunca uma obra acabada. É uma criação, um objeto linguístico que o autor não sabe se é bom ou não, até que chega alguém e escreve um outro texto que se encaixa, põe uma referência ou intertextualiza. Por isso, acredito que um post é o melhor exemplo de intersubjetividade.
No mais puro estilo do “duas cabeças pensam melhor que uma”, que melhor maneira existiria atualmente para debater e construir argumentos com valor de verdade?

O Médico – Cientista ou Moralista?

Shaxmd’s photostream at Flickr

Em 1950, George Simpson escreveu logo na introdução de seu artigo THE SCIENTIST-TECHNICIAN OR MORALIST? que a “aparente bifurcação entre ciência e moralidade decorre do status social da própria ciência e dos cientistas, envolvendo uma aceitação acrítica dos valores sociais dominantes”. A ciência não seria amoral, mas se apropriaria da moralidade convencional, ou seja, funde-se a uma moralidade mainstream modificando-a e sendo modificada por ela. Na visão tardo-capitalista onde a tecnociência ocupa posição fundamental, são forjados conceitos morais dentro de uma ótica que tem como objetivo final o lucro, a apropriação, o domínio e o controle de variáveis que poderiam interferir com a caminhada do “progresso”.
Mas se a ciência tem uma convivência nada pacífica com a moralidade, como foi ocorrer essa apropriação da moralidade convencional pelos cientistas contemporâneos? Para G. Simpson, essa situação resulta de uma disjunção da auto-consciência do cientista, ele, figura importantíssima no quadro social atual; e também ele, demasiado humano, que necessita de uma rede social de outros humanos; que cotidianamente toma decisões não-baseadas em fatos científicos, mas cujo raciocínio não se desvencilha dos formalismos do método. O artigo caminha por esses argumentos, mas esse ponto merece uma parada.
E o médico é técno-cientista ou moralista? Digo que em algumas situações um, em outras, o outro. Como ser o mesmo em todas? Pelo menos é assim que deveria ser. Mas isso gera uma tensão insuportável quando se está a frente de um paciente e seus familiares! Quando se está a frente de outros médicos! É possível justificar uma ação moral pela ciência? Pelo parágrafo 25 da 3a Dissertação da Genealogia da Moral de Nietzsche, parece que não…

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Crenças Filosóficas e o Sarampo

Willem De Kooning’s “Police Gazette” at Crucial Talk

Interessante notícia da American Association of Family Physicians (AAFP). A epidemia de sarampo nos EUA caminha a passos largos. O mais incrível é a causa das não-imunizações:

“Of the 131 total cases reported to the CDC, 123 occurred in U.S. residents. Five of these residents had received a single dose of measles-mumps-rubella, or MMR, vaccine; six had received two MMR doses; and 112 were unvaccinated or had unknown vaccination status. Of those 112 cases, 16 occurred in patients who were too young to be vaccinated and one occurred in a patient who was born before 1957 and, therefore, was presumed to have immunity. Finally, of the 95 remaining patients eligible for vaccination, 63 had not been immunized because of their parents’ philosophical or religious beliefs.”

Pelo que andei lendo, algumas religiões acham falta de fé vacinar os filhos pois estariam subestimando a proteção divina. Não li nada, entretanto, sobre crenças filosóficas. Fico pensando que tipo de “crença filosófica” impediria alguém de tomar vacina.

Para um boletim atualizado da MMWR do CDC clique aqui.

O Risco

Photo by Ivan Makarov

Na Epidemiologia do Risco, a “velha” epidemiologia observacional das doenças infecciosas, com “inveja” das ciências médicas experimentais, abandona sua antiga metodologia da exposição e passa “a tratar principalmente das doenças crônicas não-transmissíveis, para as quais os métodos observacionais ainda não foram completamente explorados. Através do estudo das circunstâncias sob as quais essas doenças experimentam uma prevalência incomum, espera-se identificar áreas nas quais o trabalho experimental laboratorial possa se concentrar para a identificação dos agentes causais específicos.”
No Risco, a especulação causal é a razão de ser da investigação biomédica e deve sugerir vínculos causais para que as ciências biomédicas experimentais explorem “adequadamente” tais associações. Uma das principais críticas desse tipo de atitude é sua inerente “rarefação teórica”. Se quer dizer com isso que a validação das proposições geradas na epidemiologia do risco não vem de “dentro”, mas de “fora”, ou seja, das ciências biomédicas, ditas “duras”. Ao terceirizar seu discurso de verdade, a epidemiologia ficou refém da doença e de seus correlatos.
Essa situação abre caminho, na minha maneira de ver, para as deformações do pensamento médico da atualidade. Hoje a Epidemiologia do Risco (com toda sua rarefação teórica) substitui a Anatomia Patológica na racionalidade médica contemporânea! A validação do discurso da Anatomia Patológica era dada através da própria experimentação e análise post-mortem. A Epidemiologia do Risco não valida seu discurso, remete essa tarefa às ciências biomédicas que, por não terem o norte do bem-estar do indivíduo nem o conceito de saúde ou produção de felicidade, tecnologizam a relação médico-paciente, dando a exata sensação de caminhar em círculos (ora uma conduta é válida, ora não!). Ao transferir esse raciocínio para a esfera do mundo acadêmico, entendemos o porquê das “máquinas de publicação”, fator impacto, medicina baseada em evidências, medicalização, tecnologização e todos os fatores que tornam a medicina contemporânea tão estranha e assustadora aos olhos dos pacientes, médicos e fontes pagadoras. A impossibilidade da razão instrumental em se pensar. Quão distante estamos da fronésis aristotélica…