A Velha Medicina

Costumo dizer aos meus alunos para nunca se esquecerem que a medicina é mais velha que a ciência. Aliás, bem mais velha. Assim como os barbeiros, alfaiates, cozinheiros e açougueiros exercem profissões bem mais antigas que a ciência pós-iluminista que conhecemos hoje, o médico também tem uma profissão que por muitos anos prescindiu da ciência para existir. E nem por isso os médicos eram menos respeitados. A bem da verdade, a máxima de um velho professor de Radiologia e Clínica Médica aposentado era: “Sou do tempo em que a Medicina era péssima e os médicos, ótimos. Hoje, a Medicina é ótima, já os médicos…” Guardadas as devidas proporções e respeitada a ranzinzice própria da idade, a máxima tem um certo fundo de verdade: a associação com a ciência trouxe melhores resultados aos pacientes, mas não garantiu maior prestígio aos médicos. Diriam alguns que o que importa é o resultado com os pacientes. Eu diria que sim. Mas por que tanta infelicidade e doenças? Tanta insatisfação com a medicina, com os médicos, consigo mesmo! Esse “prestígio” que reclamo não é para minha vaidade. Esse “prestígio” é fruto de um reconhecimento que por sua vez, é fruto de um bem-estar, despertado ou provocado por um agente curador (healer), que não existe mais.

É interessante procurarmos então, o momento em que, pela primeira vez, o médico despiu suas vestes obscurantistas, preconceituosas e, porque não dizer, místico-religiosas, e vestiu um avental branco, com intuito de entender o que ocorria com um semelhante que insistia em sofrer. Detalhe, ainda não nos despimos totalmente de tais vestes: o avental não é nossa única fantasia. Nem sei se os pacientes querem isso – acho que não. Mas, quando foi esse momento inicial precursor da virada que transformou a medicina numa profissão diferente do açougue, da barbearia, da alfaiataria e da cozinha profissional?

Foi ao cuidar de seus mortos. Ironia da história. Somente quando o homem propôs-se a tratar seus mortos de modo a conservá-los – por motivos místico-religiosos, é verdade – pelo maior tempo possível é que surgiram teorias que permitiram propostas de tratamento para algumas doenças. Isso ocorreu há mais de 4000 anos atrás, no Egito.

Pensando na origem das certezas médicas para o post que completará a série, cheguei ao Egito e digo que, certamente, muitas de nossas atuais certezas, vêm de lá.

Desenho do Jok do Jokbox.

As Certezas Médicas

Outro dia, conversávamos, eu e meu amigo Kretinas, sobre os mecanismos geradores de certeza. Recomendo a leitura dos dois posts e também dos comentários para que se acompanhe o raciocínio desenvolvido neste.

Qual é o principal mecanismo gerador de certeza de um médico? Melhor, o que faz um médico se convencer de que determinado procedimento deve ser realizado ou não? Dois elementos principais: o primeiro é sua própria experiência; o segundo, a experiência dos outros. O paradigma tradicional era baseado na experiência do médico, no número de casos acumulados durante a vida e na conduta do professor, que era quem trazia informações novas de outros serviços ou de congressos internacionais. O paradigma atual é a literatura médica e a metodologia desenvolvida para avaliá-la criticamente: a medicina baseada em evidências. Ensaios clínicos randomizados (ou aleatorizados) com grande número de pacientes são o modelo para demonstração do efeito de tratamentos experimentais. As metanálises são, grosso modo, conjuntos de ensaios clínicos com tratamento estatístico, de modo a multiplicar o poder para responder perguntas relevantes. Metanálises e ensaios clínicos embasam normas que serão reunidas em diretrizes. Uma diretriz pretende ser um conjunto de normas para tratar uma doença ou situação clínica. Nem todas as normas de uma diretriz têm embasamento suficiente de acordo com o modelo atual, baseado em metanálises e ensaios clínicos, por isso foram atribuídas notas aos graus de “evidência” que embasam determinada norma e as maiores notas são para os dois tipos de estudos descritos acima. A experiência individual dos médicos tem nivel bastante inferior de acordo com esse sistema de classificação.

Voltemos à conversa do início. Um dos pontos defendidos no meu post é de que uma “certeza” é um estado psíquico e, sendo assim, só pode ser avaliada criticamente por quem a possui. Dizia que esse talvez fosse o paradoxo do ceticismo: se os céticos não tem as certezas para que possam criticá-las, os crédulos que as possuem, não querem fazê-lo. Em seu post, Kretinas critica minha postura racionalista, mas rebato com o que os médicos têm de mais peculiar em relação aos filósofos: a prática. Um médico tem, deve, precisa tomar decisões a todo momento. Mesmo que se tome decisões sem a certeza absoluta de que é isso o melhor a ser feito no momento — e essa situação ocorre muito mais frequentemente do que seria desejável –, o mero fato de que a decisão tenha sido tomada, indica um viés de certeza sobre determinado assunto ou situação, viés que deve, no médico honesto, estar amalgamado com intuição e com grandes doses de literatura médica, sob a pena de virar um exercício de palpites, no caso inverso.

Críticas há, sobre esse tipo de metodologia. Um exemplo já foi sugerido. O de que algumas decisões não são tomadas “com certeza”, mas muito mais pela necessidade de agir. Outra crítica seria a de que nem toda certeza se manifestaria diretamente na forma de uma decisão ou ato externos. De qualquer forma, convenhamos que para um médico “abrir a barriga” de alguém ou prescrever uma medicação que tem efeitos colaterais, algum grau de certeza ele deve ter ou então, seria um irresponsável. Isto é suficiente para essa análise. Se a medicina é uma profissão fortemente baseada na ciência médica – mas não reduzida à ela, como canso de repetir – uma abordagem como a “medicina baseada em evidências” deveria ser suficiente para, se não “convencer”, pelo menos deixar bastante propenso qualquer médico a adotar (ou abandonar) determinada conduta.

Preciso então, de ao menos um exemplo no qual uma conduta médica vá contra as evidências científicas para mostrar que uma certeza — pelo menos as certezas médicas — não dependem de uma racionalidade imediata que liga diretamente o raciocínio lógico ao ato. Um exemplo para mostrar que entre a conclusão lógica e a “certeza” há um universo – provavelmente afetivo, na falta de um termo mais adequado – que adiciona um fator de imprevisibilidade à certeza e que, sendo esta necessária à decisão, gera, digamos, um “frio na barriga”. Só um exemplo para mostrar que a “certeza” talvez seja simplesmente um sentimento demasiado humano.

Foto by *c h r i s* at Flickr

O Médico e o Especialista

Ao avaliar pacientes internados, invariavelmente com alguma(s) doença(s) complexa(s), sou frequentemente intimado a responder a seguinte questão: “Doutor, o senhor não acha melhor chamar o especialista?”. Muitas vezes, no caso, o especialista sou eu mesmo. Outras tantas, não. Há sempre um especialista que pode ser chamado em uma situação de estresse e perigo de morte. Quando o cenário permite, respondo com outra indagação: “E qual pergunta você gostaria que ele respondesse?” As respostas são muito variáveis, mas a maioria se sai com o seguinte raciocínio circular: “Só gostaria de ouvir a opinião de um especialista”.

Antes de mais nada, vamos combinar o significado de alguns termos. Em primeiro lugar, “médico” é o profissional que está cuidando de um determinado paciente (e que obviamente, tem uma licença reconhecida para exercer esse ofício). Esse médico pode ter qualquer “especialidade” seja clínico, cirurgião ou pediatra. “Especialista” é um outro médico, especializado em algum orgão ou, o que frequentemente vem ocorrendo, em alguma doença, que é chamado a dar um parecer sobre um determinado caso. A diferença entre o “médico” e o “especialista” não é a simples diferença entre a “extensão” e a “profundidade”, respectivamente, como querem alguns com a analogia oceânica do conhecimento. Nem tampouco o velho chavão de que o “médico” é o responsável pelo doente e o “especialista”, o responsável pela doença, captaria a totalidade desse encontro. Talvez, essa sutil diferença seja melhor expressa pela dúvida que sempre gira em torno de casos difíceis. É na dúvida que se diferencia o “médico” do “especialista”. O “médico” convive com a dúvida caso veja nisso um benefício ao paciente. O “especialista” quando chamado a opinar sobre um caso que pode ter uma doença que é objeto de seu estudo, não pode tolerar a dúvida. O “médico” pensa em conceitos vagos como qualidade de vida, conforto, convivência com a família. Incansavelmente, o “especialista” procurará excluir ou “incluir” sua doença de modo a definir o que deve ser feito com o paciente. O “olhar” é diferente.

A primeira pergunta do post pode sugerir uma ideia de complementaridade que seria, como de fato muitas vezes o é, benéfica ao pobre paciente. Mas, quando é que esse poço de boas intenções pode dar totalmente errado, colocando o paciente em muito mais risco? A resposta é: quando se confundem os papéis. Um “especialista” deve ser chamado para responder a uma pergunta específica. Não convém ser convocado a dar “uma olhada” ou dar um palpite sobre o paciente. Em situações assim, a opinião de um especialista pode ser desastrosa em termos de exames, custos e sofrimento ao paciente. Por outro lado, há “médicos” que acham que podem dar conta de tudo e atrasam tratamentos, confundem situações ou tratam de maneira obsoleta alguma patologia, também causando prejuízo ao paciente.

Tenho visto pacientes internados com várias equipes médicas a assisti-los, a grande maioria, “especialistas”. De maneira geral, quando a figura do “médico” não existe (ou é fraca), a coisa se complica. Aqui, além de quantidade não ser qualidade, pode ser ainda sinônimo de perigo.

O Cobre e a Menina

Eu era residente, dentre os leitos dos quais era responsável na enfermaria de Clínica Médica, havia uma vaga. Isso significava encrenca. Ou os médicos do staff vinham solicitar alguma internação vip, ou o pronto-socorro queria subir algum paciente grave, o que, de qualquer forma, era igual a muito trabalho.

Peguei meu interno (estudante do 5o ano da faculdade de medicina) e fomos dar uma olhada no pronto-socorro antes que alguém soubesse da existência da vaga. Lá encontramos uma menina de 14 anos bastante ictérica. Os médicos do PS não tinham ideia do que poderia ser. Sabiam apenas que não era um caso para cirurgia. Fiquei bastante intrigado com o caso e resolvemos interná-la.

Na enfermaria, a história dela era muito peculiar. Veio ao hospital proveniente do interior da Bahia porque estava com medo de acabar como a irmã. “Como assim?” Tinha uma irmã que morreu amarela, urinando escuro e gritando, isso aos 16 anos. Agora que ela tinha ficado amarela, tinha medo de enlouquecer também. Fiquei preocupado. Disparamos a “cavar” os exames de laboratório e imagem dentro de um raciocínio que contemplasse o diagnóstico de insuficiência hepática, que era o cabível pelo seu quadro clínico.

Seu estado piorou rapidamente. Ficou sonolenta no dia seguinte. Hematomas começaram a aparecer nos locais de punção venosa. A icterícia piorou. Sua urina ficou bastante colúrica (cor de coca-cola). No outro dia ela ficou agitada, tendo de ser restrita ao leito. Confusa, não obedecia a qualquer tipo de ordem e começou a gritar… Ficamos 24 horas por dia monitorando tudo e correndo com exames e procedimentos. Morreu dois dias depois sem que pudéssemos fazer absolutamente nada.

Os exames colhidos revelaram uma ceruloplasmina muito baixa e um cobre sérico de 225 mcg/dL (normal < 15). A menina tinha uma forma fulminante da Doença de Wilson de característica hereditária, autossômica recessiva, provavelmente a mesma que levou sua irmã anos antes. A única possibilidade era um transplante hepático que não era realizado de rotina no hospital àquela época.

Só no ano de 2009, até julho mais de 200 transplantes hepáticos foram realizados na cidade de São Paulo. Em especial um, era muito parecido com o da menina.

Os 10 Anos da Lei “Mário Covas”

Deixei passar a data inexplicavelmente. Faço então, um post tardio desse que foi um dos maiores avanços médicos do Brasil e pouca gente tem conhecimento.

File:Mário Covas.jpgEm 6 de março de 2001, Mário Covas falecia em um quarto do Instituto do Coração. Recusara-se a ir para a UTI. Tinha o diagnóstico de adenocarcinoma de bexiga, doença altamente relacionada ao hábito do tabagismo, na forma avançada e considerado fora de possibilidades terapêuticas, optou por ficar com os familiares. Essa decisão não é nada fácil. Mas, apesar de estar em uma condição clínica bastante deteriorada e sob efeitos de medicações para dor (morfina e derivados) que alteram a capacidade de raciocinar, Covas, como grande político que era, havia tomado suas precauções.

Alguns anos antes, mais precisamente em 17 de Março de 1999, já sabedor de seu diagnóstico e também do prognóstico ominoso, Covas sancionou a Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo (n. 10.241/99), conhecida hoje como Lei Mário Covas, que assegura em seu art. 2º: “são direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: ­ recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”.

Muito se discutiu sobre cuidados paliativos desde então. Termos como distanásia e ortotanásia fazem parte do vocabulário médico e leigo agora. Uma alternativa aos extremos da assistência médica se impôs: nem a obstinação terapêutica, nem a eutanásia. A opção depende da capacidade de abstrair-se de religiosismos mal ajambrados, de transcender legislações empoeiradas e de desafiar tecnologias ultra-hipermodernas, em detrimento à humanidade que, afinal, é ou não é o que nos caracteriza?

Se houve alguém nesse país que legislou em causa própria, esse foi Mário Covas. E ao fazê-lo, pode beneficiar milhares de pessoas tão dignas quanto ele cuja opção de morrer sem um tubo na goela cercado de máquinas frias foi feita (e muitas vezes registrada em cartório!), mas que algum parente fariseu auto-referente solicitou à equipe médica que “fizesse tudo o que fosse preciso” (desde que com o dinheiro do convênio) para mantê-las vivas a todo e qualquer custo, seja lá o que se entenda por “vivo” nesse contexto, não havendo possibilidade de que os últimos desejos de extinguir-se em paz fossem assim, realizados. O Conselho Federal de Medicina aprovou em 2006 a resolução CFM nº 1.805/06 que autorizava a ortotanásia mas que infelizmente foi caçada cassada por liminar federal e, pelo que sei, permanece no limbo jurídico desse país.

São 10 anos de uma lei paulista que vale a dignidade de vidas humanas. Dá para saber de quanto estamos falando?

Sobre a Letalidade da Gripe Suína no Brasil

Temos discutido os dados sobre a epidemia de gripe H1N1 (^::^)~. Como tenho sido questionado sobre a letalidade da nova cepa, resolvi publicar algumas ponderações que foram feitas por especialistas:

1. Quando se fala que a mortalidade pelo H1N1 é de 0,4 – 0,5% e isso é igual a da gripe comum, não é totalmente verdade. Nos países com muitos casos, a enorme maioria dos casos confirmados são em jovens, possivelmente pelo fluxo migratório maior dessas populações. Os óbitos, por conseqüência lógica, também se concentram nesta faixa etária. Daí tiramos duas conclusões interessantes:

A- Não sabemos, se realmente os idosos são menos afetados por terem anticorpos protetores de Influenzas geneticamente similares de décadas atrás e os mais jovens estariam mais susceptíveis. A distribuição de casos e óbitos pode ser somente uma questão epidemiológica e não fisiológica…
B- Letalidade de 0,5% é normal para gripe sazonal em grupos de alto risco. Em pacientes jovens e sem co-morbidades, a letalidade seria de 1/100.000 casos. Assim, considerando o grupo atualmente afetado, a letalidade é muito maior que da influenza sazonal. Com a endemicidade crescente iremos ver qual é a mortalidade nos pneumopatas, cardiopatas e idosos algo que, apesar dos números crescentes, ainda não temos n para nenhuma conclusão estatística.

Comentários do Blog:

1. É muito importante a percepção de que o cálculo de letalidade da gripe suína é BEM superestimado em função do número real de pacientes ser desconhecido atualmente.
2. Venho colecionando casos de insuficiência respiratória grave – algumas fatais –  decorrentes de gripe sazonal. Tenho um caso em cada hospital que trabalho. Não fazíamos diagnóstico dos agentes etiológicos desses casos, mas agora com as sorologias disponíveis, temos confirmado os dados da literatura.
3. Com isso, chegamos a conclusão que nossa letalidade da gripe sazonal também não deve ser a correta e que não temos estatísticas confiáveis. Talvez esse o grande aprendizado de toda a pandemia. Precisamos de dados. Todas as projeções feitas com as estatísticas disponíveis poderão incorrer no mesmo erro.
4. As sorologias demoram. O screening com pesquisa rápida de vírus respiratórios nas secreções (lavado de naso/orofaringe) é um painel de vários vírus respiratórios e fica pronto em 24-48h. Custa 350 reais em laboratórios particulares. Há relatos de falso positivo e falso negativo com o H1N1 e o CDC não recomenda o teste de rotina.
5. Está havendo confusão de orientações entre os médicos pois elas têm mudado mais rápido do que o possível para sua assimilação.
6. Ainda não vi faltar oseltamivir para ninguém que precisou nos hospitais em que trabalho.

Judicialização do Direito à Saúde no Brasil

O Brasil é um dos 115 países do mundo no qual o direito à saúde está garantido pela Carta Magna. Isso é bom. Já não tenho tanta certeza quanto à validade das interpretações que estão sendo dadas sobre esse direito constitucional. Foi publicado no Lancet, um comentário de um grupo gaúcho sobre os problemas que o estado vem enfrentando em relação ao número crescente de processos com objetivo de custeio de tratamento pelo erário público estadual.

Se considerarmos que uma parte da saúde, talvez não a mais importante, observariam uns, seja a administração de medicamentos e que há, entre o arsenal terapêutico disponível, alguns medicamentos de alto custo e ainda o fato de que o governo garante o acesso à saúde na constituição, não é muito difícil pensar em contratar um advogado para redigir um recurso e que um juiz sensibilizado dê parecer favorável a que o Estado custeie a medicação ao paciente que dela necessite. Dentro de um estado democrático de direito (como insistem em afirmar velhas vozes ditatoriais!) esse é um procedimento regimental e aceitável. É Direito. Entretanto, os autores do artigo entrevistaram alguns personagens dessa história:

“Our recent interviews indicate conflicting views. Many judges and public defenders working on right-to-health cases feel they are responding to state failures to provide needed drugs, and some judges admit a lack of expertise to make informed decisions consistently. Administrators contend that the judiciary is overstepping its role, although some acknowledge that, because of these legal cases, distribution of several drugs has risen. Patients’ associations have a highly contested role. Officials claim that at least some organisations are funded by drug companies eager to sell to the government high-cost drugs.”

Como é complicado o mundo do Direito! O artigo tem como referência uma exposição de um dos autores, Paulo Dornelles Picon da Comissão de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, disponível na rede. Os números são impressionantes. O número de ações judiciais por medicamentos parece seguir uma exponencial nos últimos anos. O pior é que alguns desses medicamentos conseguidos por meios judiciais não têm sequer registro na ANVISA, enquanto outros têm sua efdicácia e/ou segurança ainda não justificados por ensaios clínicos bem conduzidos ou reproduzidos em outros contextos.

Um exemplo frequentemente citado é o dos inibidores da COX2. Essa classe de medicamentos foi envolvida em polêmica desde o primeiro estudo que permitiu seu uso clínico. Em um determinado momento em 2002, segundo Picon, havia nos tribunais gaúchos mais de 28 kg da mesma carta solicitando o rofecoxibe para tratamento (sintomático) da artrite reumatóide. No mesmo ano, o PDCT – Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, documento do Ministério da Saúde que regulamenta o uso de medicamentos excepcionais apontava na página 87 que o uso continuado desses medicamentos tinha uma associação ainda não bem elucidada com o infarto do miocárdio, um dos motivos de sua retirada do mercado anos mais tarde.

O artigo conclui que a judicialização do direito a saúde é uma etapa na história do acesso à saúde no Brasil. Isso envolve direitos humanos, políticas de saúde e práticas de mercado, por isso é necessário aumentar a transparência dos processos que envolvem a liberação de medicações de alto custo, porque de fato, existem pessoas que se beneficiam dessa política. Porém, em decorrência do montante de gastos, tais políticas podem prejudicar a aplicação de recursos em medicina preventiva bem como sua racionalização, caso sejam mal empregados.

Tenho pacientes com processos para receber medicações de alto custo. Alguns necessitam verdadeiramente das drogas, outros nem tanto. Há um caso em que um quimioterápico de última geração e de prescrição off-label, baseada em um relato de uma série pequena de pacientes, foi estocado para uso eventual, caso o oncologista resolvesse prescrever. Não posso julgar os direitos de cada cidadão, minha função não é essa. Por trabalhar em um serviço estadual e também na iniciativa privada, reconheço as falhas e os excessos na estrutura de ambos os lados. A questão é: a corda sempre rompe do lado mais fraco, se é que me faço entender.

O Paciente Subsidiário

Muitas vezes, em consultas, sou obrigado a explicar alguns conceitos de estatística para que os pacientes não caiam em alguns engôdos bastante frequentes. O mais comum desses conceitos diz respeito à normalidade dos exames laboratoriais. Vamos a ele.

Suponhamos que alguém invente uma nova técnica laboratorial para se medir a glicose no sangue. Como seriam determinados os valores normais desse teste? Uma vez aprovada o procedimento (assegurado o fato de que ninguém morrerá fazendo o exame!), um sujeito sai a caça de voluntários SAUDÁVEIS (isso é importante) para examinar seu sangue de acordo com a nova técnica. Colherá milhares de amostras de sangue, colocará tudo num gráfico e o que encontrará?

http://curvebank.calstatela.edu/gaussdist/normal.jpg
Curva Normal

Uma curva parecida com essa (se não for, estatísticos darão um jeito de ser). No nosso exemplo, as ordenadas são o número de pessoas com uma dosagem específica; as abscissas mostram a concentração de glicose no sangue de cada uma das pessoas testadas. Podemos inferir que algumas poucas pessoas têm a glicemia alta, outras poucas, bem baixa. A grande maioria fica no “pico” da curva, com glicemias intermediárias. O μ do gráfico é a média de todas as glicemias. O σ é o desvio-padrão, uma medida da dispersão da amostra (não entre em pânico, ainda). O σ mede a variação das medidas, a distância em relação à média. Essa curva tem várias propriedades interessantes. A que vamos utilizar aqui é a que está demonstrada no gráfico. É possível calcular a porcentagem da amostra (área sob a curva) de cada ponto. Se avaliarmos a área compreendida entre μ-2σ e μ+2σ, veremos que ela corresponde a 95,44% de toda a amostra. Pronto. Arbitrariamente determino que os valores normais de um teste laboratorial estão compreendidos entre μ-2σ e μ+2σ, sendo que mais de 95% de todas as pessoas SAUDÁVEIS estão nesse intervalo. Essa é a minha normalidade.

Quando um paciente for ao consultório e eu resolver testar sua glicemia utilizando esse teste que acabamos de descrever, existirá uma chance, intrínseca ao método, de que o exame tenha um resultado FORA dos valores considerados normais, portanto vir alterado ou positivo, e o paciente não apresentar absolutamente NADA! Essa chance é, pelo exposto, de 5% (2,5% de cada rabicho da curva, arredondei para 95%). Alguém poderia dizer “Tudo bem, Karl. Nem tudo é perfeito e sempre existe uma margem de erro”. Eu concordo. Porém, o problema é que nunca se pede um único exame. Pacientes adoram fazer check-up “Dr., pede tudo aí porque é o convênio que paga mesmo!”; os médicos adoram pedir exame “Bom, vou pedir tudo, já que vai ter que tirar sangue mesmo!” e são pedidos em média, há estatísticas para isso, 10 a 20 testes por consulta, dependendo da especialidade, plano de saúde, etc.

(Agora é a hora de entrar em pânico!) Quando pedimos 1 teste, a chance deste teste vir NORMAL e o paciente NÃO ter a doença que ele testa é 95% ou 0,95, como vimos. Quando pedimos 2 testes, a chance dos dois resultarem NORMAIS e o paciente NÃO ter doença é 0,95×0,95 = 0,9025. OU SEJA, há 10% de chance (1-0,9025) de pelo menos 1 teste vir alterado e o paciente NÃO ter doença nenhuma. Com 4 testes, a conta fica 0,8145 e a chance de pelo menos um vir alterado e o paciente ser saudável é 1-0,8145 mais ou menos 18%. Quando chegamos ao número de 16 testes, a chance de pelo menos 1 vir alterado e o paciente ser inteiramente saudável é de 1-0,66 ou seja 34%: UM TERÇO! A conclusão disso é muito importante. Quando peço a famosa “batelada” de exames a um paciente, a chance de pelo menos 1 desses exames vir alterado e o paciente ser saudável é enorme. Se eu sou um médico “rifado”, como costumo dizer, dos exames dos pacientes, vou achar doença onde não existe! Vou ficar tentando encaixar o paciente nos exames e não o contrário. É o que eu chamo de paciente subsidiário! O exame é o principal.

Há alguns anos estava na moda uma absurda análise de fio de cabelo na qual uma amostra era enviada aos EUA (sempre lá) onde eram realizados testes para quase todos os elementos da tabela periódica! Eram mais de 50 exames. Sabe-se lá de onde tiraram os valores normais, por exemplo do Cádmio, no fio de cabelo. A chance de pelo menos 1 teste vir fora dos padrões normais independentemente da arbitrariedade com que foram determinados beirava os 100%. Daí, o “médico” de posse dessa poderosa ferramenta dizia: “Minha filha, seus níveis de Cádmio estão muito altos. Você precisa desintoxicar-se!” E prescrevia umas poções, em geral feitas em alguma farmácia da qual ele tinha uma porcentagem sobre os lucros. Alguns pacientes melhoravam, claro. E lá ia toda a manada arrancar os cabelos e beber poções para tentar resolver seus problemas…

Eu fico pensando… Que tipo de médico teria ainda hoje, a coragem de desprezar um teste laboratorial positivo apenas porque ele não se encaixa no racional que montou para seu paciente? Pergunta difícil. Outra. Que tipo de paciente confiaria no médico que lhe dissesse isso? Essa é mais fácil. Um paciente que não quer ser subsidiário.

Atualização

1. O link para o post no Brazillion Thoughts.
2. Comentário no DrugMonkey.

Mortes por Gripe Suína

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Instituto de Infectologia Emílio Ribas

Tenho escrito pouco sobre a gripe (^::^)~ suína. Escrevo após a confirmação da primeira morte pelo vírus influenza A H1N1. Longe de estar despreocupado sobre o assunto, escrevo para reafirmar o que venho dizendo há mais de 1 mês. Que a gripe viria de qualquer forma e que mortes, infelizmente, ocorreriam, como ocorrem todos os anos, aliás. Mas, por que essa gripe preocupa então?

A gripe suína é uma zoonose que teria comportamento ainda não definido e portanto, imprevisível. Entretanto, Carlos Frederico D. dos Anjos, ex-diretor do Hospital Emílio Ribas, escreve um artigo na Folha de São Paulo (para assinantes), do qual destaco os seguintes pontos:

“Por outro lado, o perfil clínico e epidemiológico da gripe suína se caracteriza por acometer jovens e com baixa letalidade (em média, 0,4% dos casos). No Brasil, onde mais de 70% dos casos são importados, 85% têm entre 10 e 49 anos, mais de 90% dos quais com quadros clínicos leves e moderados (Sinam/MS). Nos EUA, só 9% dos casos requereram hospitalização, 41% destes portadores de doenças crônicas (NEJM, 2009)”.

“Chamo a atenção para o fato de que mesmo os casos mais graves são similares a pessoas infectadas com outros vírus de origem suína ou influenza sazonal, cuja morbimortalidade associada resulta de complicações secundárias, como pneumonia viral e bacteriana secundária ou como exacerbação de doença crônica.”

Por fim, o Emílio Ribas não é o único hospital que atende casos suspeitos: “Acontece que o IIER (Instituto de Infectologia Emílio Ribas) é 1 dos 5 hospitais na grande São Paulo que são referência para o atendimento desses pacientes, ao lado do Hospital das Clínicas, hospital São Paulo-Unifesp, hospital do Grajaú, Hospital Geral de Guarulhos e hospital Mário Covas-Santo André.”

Conclusão:
1. Essa gripe preocupa porque é de um vírus diferente, ainda não o conhecemos totalmente. Acomete pessoas mais jovens. Tem baixa letalidade. Apenas 9% necessitaram hospitalização nos EUA, metade com doenças crônicas. Parece estar se comportando como uma gripe comum.
2. Atualmente, é indistinguível de um caso de gripe sazonal, inclusive na gravidade.
3. O Hospital Emílio Ribas não é o único que pode atender casos suspeitos, fazer sorologias ou administrar medicamentos caso necessário. Outros 4 hospitais na Grande São Paulo estão preparados com um plano de contingência para isso (ver acima).

É isso.

Artigonistas e Libronios

2008_09_21_22_30_36_livros_abertos.jpg Já se vão alguns anos desde minha formatura (jamais saberão quantos, hehe) e tive a oportunidade de ver algumas mudanças importantes na medicina, na ciência médica e, como não poderia deixar de ser, na prática médica – um corolário das duas primeiras. Uma das mudanças das quais já falei foi a digitalização dos artigos e a facilidade de encontrá-los em contraposição com a enorme dificuldade de fazer um levantamento bibliográfico antes do advento da National Library of Medicine e do PubMed.

Bem antes disso tudo, a transmissão do saber médico estava vinculada à figura do “professor de medicina”. Era esse professor a fonte das novidades. Era ele quem atravessava o Atlântico uma vez por ano de navio, normalmente em direção à França, mas também á Inglaterra em busca de novidades que seriam repassadas em doses homeopáticas em grandes visitas à beira leito. Depois, os livros importados, as revistas fotocopiadas para, finalmente, chegarmos à verdadeira devassidão de arquivos pdf trocados em emails e pendrives individuais ou grupos de estudo com disseminação geral do conhecimento, computadores de mão e até celulares, levando centenas de megabytes de informações ao bolso dos médicos.

Essa facilidade de estar atualizado às vezes, com estudos que ainda não foram publicados, de ter acesso a centenas de publicações tão facilmente, não poderia deixar de influenciar a conduta do médico. A medicina é uma profissão que depende de um saber científico e a tensão da decisão prática da qual já falamos tanto, é irredutível. Com isso, houve uma diminuição da utilização dos livros técnicos em detrimento aos artigos científicos. Chegando ao ponto dos “pais fundadores” da medicina baseada em evidência decretarem a morte dos livros de medicina.

artigos.JPGQual o papel dos livros de medicina na formação do médico? Será que o conhecimento adquirido por meio de artigos científicos e revisões é do mesmo tipo daquele adquirido junto aos livros?

Poderíamos dividir os médicos em duas populações: os provenientes do planeta Artigon e os do planeta Libron. Artigonistas argumentam que livros demoram a ser escritos e quando publicados já apresentam um grau de obsolescência considerado inaceitável. Os artigos permitem trabalhar dentro da melhor evidência possível por serem atualíssimos. Libronios dizem porém, que artigos causam fragmentação do conhecimento. Não permitem um conhecimento exegético do assunto. “Mas quem quer conhecimento exegético?” – perguntaria um artigonista. “Aqueles que querem ter uma visão crítica de um assunto!” – responderia um libronio, numa discussão sem fim.

A medicina pela sua inerente relação com a prática, talvez seja uma das únicas atividades de cunho científico que permite essa dúvida. Medicina de livro ou de artigo?