Abortamentos e Cesarianas

Parto Cesárea

– Nasceu?! Que legal! Foi parto normal?

– Normal…. Pro médico, né?

Diálogo entre uma puérpera e o editor deste blog.

Foi manchete este fim-de-semana a informação do Ministério da Saúde dando conta de que, pela primeira vez, o Brasil registrou mais cesarianas do que partos normais num ano: 52% no total. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, no setor privado, a taxa de cesarianas é estável desde 2004 e gira em torno de 80%. No Sistema Único de Saúde (SUS), o número vem aumentando e passou de 24% para 37% na última década.

Os termos cesárea ou cesariana não parecem ter a ver com Júlio César, supostamente nascido deste procedimento, como me foi ensinado na faculdade. Como o professor Joffre ressalta “a palavra cesárea e as expressões parto cesáreo operação cesariana vinculam-se ao verbo latino caedocaesum, caedere, que equivale ao grego témno, cortarDele derivam caesus,a,um, cortado; caeso, onis, ceso ou cesão; caesura, corte;e caesar, aris, com o mesmo sentido decaeso, onis, isto é, aquele que é tirado do ventre da mãe, ou “qui caeso matris utero nascitur”. As palavras cisão e ciso vêm da mesma raiz. (Não confundir com siso, do latim sensum, que originou o tal dente do juízo).

É conhecido o fato de o Brasil ser o campeão mundial de cesarianas tendo, inclusive, sido bastante criticado por isso (uma pequena compilação de links: unnecesarean, guttmacher com uma referência brasileira, outra referência em pdf, outro estudo do Lancet [assinantes], entre outros tantos). Mas, como o título do post sugere, gostaria de fazer um paralelo aqui entre abortamentos e cesarianas.

Vamos aos conflitos de interesse primeiro. Não acredito no abortamento como método anticoncepcional em saúde pública porque ele não funciona bem para isso. Mas, quer queiram setores da igreja, o Estado Teocrático Brasileiro, sociologistas, médicos e etc, etc, ele é uma prerrogativa feminina. O abortamento deve ser “acessível, seguro e extremamente raro”, como já se disse. É um dos sinais do abismo existente entre as classes sociais brasileiras a maneira como sua prática permeia os vários segmentos da população feminina do país: de agulhas de tricô, citotecs e o seja-o-que-deus-quiser, a clínicas altamente aparelhadas e com mordomias de grandes hospitais. (Não vou nem discutir sobre as questões dos fetos mal-formados e do risco de morte da mãe, porque aí já seria muito para esse post. Veja minhas posições sobre o assunto aqui, aqui e aqui).

Voltando ao espanto causado pelas cesarianas. O parto cesárea seguiria o mesmo raciocínio do abortamento. É uma prerrogativa da mulher querer ter seu bebê por via vaginal ou cirúrgica. O problema é que essa decisão nunca é totalmente esclarecida e aqui entra o papel do médico. Eu fiz 5 partos normais durante meu curso médico. Em alguns, passei a noite ao lado de moças se contorcendo de dor sem alívio nenhum. Se não houvesse alternativa, tudo bem, o presente da maternidade sempre vai compensar qualquer coisa, pelo menos é o que elas dizem. Mas se há uma forma diferente na qual a relação risco/benefício é aceitável, por que não tentar? Quem decide? O médico e a mãe, mais ninguém.

O médico entretanto, deve fazer o mesmo papel que faria quando se lhe apresenta alguém querendo retirar um feto indesejado. Expor, com a maior isenção moral possível, os riscos dos procedimentos e posicionar-se. Essas não são decisões que cabem apenas ao paciente. Dizer que não faz ou prescreve procedimentos abortivos é totalmente legítimo. O paciente deve saber que isso é proibido no Brasil e que o médico que o faz está em importante risco de processo. Com a cesárea, a situação é atenuada, mas semelhante. Não há proibição, mas há indicações clínicas mais ou menos precisas. Se a gestante quer uma cesariana, o médico deve expor os riscos e posicionar-se. O problema é que há um viés do médico favorecendo o procedimento. Aí junta a fome com a vontade de comer. E com isso, eu não posso concordar.

Vamos colocar uns dados nessa discussão. Os obstetras e a Organização Mundial de Saúde estimam que aproximadamente 15% dos partos devam ser cesarianos por complicações relacionadas aos mesmos. Se nos hospitais privados de São Paulo – capital, a taxa está em torno de 80%, segundo a Folha, temos que explicar o excesso de 65% em favor das cesarianas. Há uma entidade batizada em inglês com a sigla CDMR para Caesarean delivery on maternal request (cesárea por solicitação da mãe). Existem fortes indícios, segundo o estudo do Lancet citado acima, de que esse “movimento” tenha se iniciado no Brazil e disseminado-se para outros países. Estima-se que esse tipo de “indicação” possa responder por até 20% dos casos de partos cirúrgicos. O estudo de Zhang (abaixo) avaliou 1,1 milhão de partos não-gemelares durante 13 anos no sudeste da China e mostrou um aumento significativo no número de partos cesarianos em grande parte devidos a CDMR. Em alguns locais, as indicações por solicitação das mães chegaram a 50% das cesáreas. No Brasil, Osis e colegas (abaixo) foram tentar entender porque tanta cesárea. Avaliaram 656 mulheres de São Paulo e Pernambuco, usuárias do serviço público, e as dividiram em 2 grupos. O primeiro constituído de mulheres que tinham a experiência de um parto vaginal prévio e que depois tiveram um cesariano. O outro, constituído apenas de mulheres com parto cesariano. 90,4% das mulheres que tinham tido pelo menos um parto vaginal consideraram-no melhor, contra 75,9% entre as que só tinham cesárea (o número das que tinham tido apenas partos normais é muito pequeno no estudo e isso se constitui num viés importante). Se as que tinham cesárea tivessem entrado em trabalho de parto, o resultado ficava semelhante (45,5% e 42,8%). 47,1% das que tiveram parto vaginal disseram que ele não tinha desvantagens, contra 30,3% das que não tiveram. Por outro lado, 56,7% das mulheres que só tiveram cesarianas referiram que não ter contrações era a principal vantagem do método, contra 41,7% das outras. A conclusão do artigo é que a dor é importante mas as mulheres avaliam-na como secundária. Em primeiro lugar a saúde da criança e o pós-operatório. Além disso, no Brasil é muito importante a possibilidade de realizar uma laqueadura (“amarrar as trompas”) para esterilização e isso pesou na escolha da via para o parto. Isso se constitui numa falha grave das políticas de Saúde Pública desses dois estados no que se refere ao controle da natalidade, segundo outro artigo. Não se pode substituir um erro por outro.

Para concluir esse longo post, eu diria que:

1. É legítimo uma mãe querer uma cesárea (CDMR), assim como é legítimo uma mãe não querer levar adiante uma gravidez indesejada – prerrogativas dela, exclusivamente – desde que ela esteja totalmente esclarecida das consequências que tais procedimentos realmente implicam.  (Há quem discuta sobre o que é estar “totalmente esclarecido” afirmando ser impossível ao leigo esclarecer sobre procedimentos com consequências tão complexas, o que gera implicações no tal consentimento informado, instrumento sem o qual não se faz NENHUMA pesquisa clínica, só para se ter uma ideia do tamanho do problema com o qual estamos a lidar).

2. O médico tem um papel fundamental na escolha da via do parto e deve despir-se de suas preferências individuais para aconselhar a gestante. Dada a enorme dificuldade em se fazer isso (até porque, um médico confia nas suas habilidades tanto para um como para o outro procedimento), não é totalmente descabido ouvir uma segunda opinião sobre o assunto. Isso diminui, com certeza, o viés. Mas aumenta a insegurança; outra escolha difícil.

3. O excesso de cesáreas é um dos exemplos de medicalização da medicina. Como a calvície, a timidez e a agitação infantil, nos mostra como transformar “desvios” arbitrários da normalidade em patologias manipuláveis tecnicamente.

Foto tirada do blog Parir é Nascer.

ResearchBlogging.orgZhang, J., Liu, Y., Meikle, S., Zheng, J., Sun, W., & Li, Z. (2008). Cesarean Delivery on Maternal Request in Southeast China Obstetrics & Gynecology, 111 (5), 1077-1082 DOI: 10.1097/AOG.0b013e31816e349e

ResearchBlogging.orgOsis MJ, Pádua KS, Duarte GA, Souza TR, & Faúndes A (2001). The opinion of Brazilian women regarding vaginal labor and cesarean section. International journal of gynaecology and obstetrics: the official organ of the International Federation of Gynaecology and Obstetrics, 75 Suppl 1 PMID: 11742644

O Livrinho do Convênio

 

O livrinho do convênio vem com os médicos que você pode escolher de acordo com seu plano. É uma escolha “livre” teoricamente porque você tem várias opções de especialistas médicos e profissionais da área da saúde.

Nada representa tão bem a promessa do capitalismo tardio na relação que constitui a medicina:

O poder verdadeiro das falsas escolhas.

Laringe e Ressentimento

O tumor laríngeo do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva foi notícia durante todo o fim-de-semana e manchete em jornais de todo o mundo. O tumor é do tipo comum e de agressividade médiadiz o laudo da biópsia de hoje ontem e Lula deverá instalar um cateter para realização de quimioterapia. Não é caso cirúrgico. Dois comentários sobre tudo isso.

1. O problema começou com uma rouquidão. Das causas conhecidas, os tumores malignos não são a maioria. A lista abaixo mostra as causas possíveis. De longe, as laringites e as lesões benignas são as mais comuns.

– Laringite aguda, auto-limitada e relacionada às doenças respiratórias e uso errado da voz.
– Laringite crônica. Muito associada à doença do refluxo ou a mecanismos de fala viciosos.
– Lesões benignas das cordas vocais (os famosos pólipos).
– Tumores malignos
– Quadros neurológicos (Parkinson, derrames ou lesões dos nervos laríngeo recorrente).
– Quadros psiquiátricos
– Doenças sistêmicas (amiloidose) e outros quadros muito raros

Toda vez que alguém famoso tem um diagnóstico bombástico, eu fico apreensivo. Alguns médicos ganham destaque e procedimentos que nem sempre são os mais recomendados, ganham os meios de comunicação. Como vivemos na sociedade do espetáculo, o resultado é que as pessoas acabam achando que é melhor fazer uma tomografia ou ressonância de corpo inteiro e procurar por bolinhas ou bolotas espalhadas pelo organismo e solicitar, então, que um bom cirurgião as retire. Gente, a medicina não funciona assim. Hoje, um paciente muito sagaz e fazedor contumaz de check-ups me perguntou por que neles não se realizam exames neurológicos, eletroencefalogramas ou mesmo uma tomografia nesse tipo de “medicina”. É mesmo, né? – pensei. Talvez porque saibamos menos a respeito do sistema nervoso? Ou porque o coração tem mais marketing? O que dizer da laringe, então? Ninguém lembrou de fazer uma fibronasolaringoscopia num paciente com história de tabagismo, ingesta alcoólica moderada, meia idade, meio rouco e com antecedentes familiares de tumores, inclusive de laringe? Não?! Poxa, o que pensam os grandes cérebros defensores do check-up sobre isso?
2. A enxurrada de protestos raivosos que o tratamento do presidente em um grande hospital particular de São Paulo gerou é o grande destaque negativo. O melhor, mais sincero e mais contundente texto que vi sobre o assunto foi este. Bom feriado a todos.

A Autópsia de Gaddafi

A morte do ditador líbio vem causando furor nos meios de comunicação e não era para menos. Longe de querer revisar todo o papel político de Gaddafi e o que representa seu assassinato por forças militares ocidentais nessa eterna cruzada que teima em não terminar – pelo amor de Deus! – gostaria de chamar a atenção para a posição que uma possível autópsia em seu cadáver está adquirindo na opinião pública mundial.

Muamar Gaddafi. Lider líbio morto essa semana.

Em primeiro lugar, é preferível o termo autópsia a necrópsia, mas ambos são aceitáveis. Segundo, que, na sociedade ocidental atual, o número de autópsias clínicas vem caindo vertiginosamente enquanto que o número de autópsias médico-legais aumenta (ver aqui e aqui). Podemos chamar de autópsias clínicas aquelas em que a equipe médica tem interesse em descobrir a doença ou evento que causou a morte do paciente. Isso era bastante comum em hospitais-escola e as salas de autópsias eram um local de grande aprendizado. Era possível observar o grau de acometimento hepático em um quadro de insuficiência cardíaca, por exemplo, “ao vivo” e à cores, o que nem sempre era agradável. A integração dos orgãos e a forma como se comportam frente a uma doença é, talvez, uma das melhores formas de “raciocínio integrativo”, tão em falta na medicina hoje. As autópsias médico-legais são aquelas que visam descobrir como alguém foi assassinado e sob quais condições. Essas têm aumentado e até se transformado em séries de TV (CSI, por exemplo).

Chamo a atenção para dois fatos. Dado que Gaddafi aparece em um vídeo, capturado e vivo, e, depois em um outro vídeo, já morto, faz levantar fortes suspeitas de que tenha sido assassinado em cativeiro. Péssimo se for verdade. Segundo, uma pergunta: a quem interessa ou não interessa a autópsia de Gaddafi? É uma autópsia médico-legal, sem dúvida. Dessas que o mundo está fazendo cada vez mais. Há quem não queira a autópsia dos dois lados da guerra, perdedores e vencedores. Os perdedores têm medo de macular o corpo de um líder quase divino da Líbia. Os vencedores têm medo de quê?

A ideia de que a autópsia possa macular o corpo (e talvez o espírito) de alguém é muito forte. Há religiões que proibem a violação do cadáver, como a judaica. No Brasil, a demora na realização do procedimento e a desfiguração do corpo são os principais argumentos. Esta última, não se justifica absolutamente porque os procedimentos são realizados de forma a não causar nenhum tipo de mutilação visível. Quanto à demora e o atraso nos funerais, sou obrigado a concordar.

Gaddafi foi assassinado, provavelmente não em consequência de uma resistência à prisão e seu corpo está exposto em um frigorífico onde as pessoas (inclusive crianças) podem entrar e fotografar. Imagens detalhadas com orifícios de armas de fogo foram divulgadas na rede. Gaddafi já foi autopsiado. É mais um caso de autópsia moral que tem o corpo foucaultiano como palco dos poderes que se nos perpassam. Isso faz muito mal à autópsia como procedimento médico. E, por isso, faz mal à medicina; e sendo a medicina uma forma de humanidade, para a humanidade, em geral, faz muito mal também.

Conversa de Médico

O Clínico e o Cirurgião

Um diálogo (quase) real entre um clínico e um cirurgião. Para entender mais detalhes, comece lendo aqui. Encontram-se nos corredores de um grande hospital. Um chama o outro para tomar um café necessário àquela altura da tarde, quando o cansaço começa a atravessar a noção de risco …

Clínico (gaiato): – A cirurgia vai acabar, hehe – e toma um gole de café esfumaçante.

Cirurgião (sem mudar o semblante): – Magina. Isso é o que vocês, clínicos, querem.

Clínico: – Veja o que aconteceu com a cirurgia cardíaca. Hoje, cirurgião cardíaco só opera os casos muito complicados. Com a chegada da cardiologia intervencionista houve uma redução drástica do número de procedimentos cardíacos abertos. Hoje é tudo minimamente invasivo. Tudo por cateter.

Cirurgião (sorrindo): – É verdade. Mas não tem como não operar. Estamos ainda no século dos cirurgiões!

Clínico: – Pra você ver como a medicina está atrasada… Mas já melhoramos. Antes, vocês operavam úlcera péptica. Aí, os “clínicos” inventaram uma medicação que, tomada pela boca, na forma de um comprimidinho inofensivo, cura a úlcera e vocês ficaram a ver navios.

Cirurgião: – Nada. Aí, nós “inventamos” a cirurgia para obesidade, hehe.

Clínico: – Verdade. Mas, vamos inventar um remédio que faça emagrecer definitivamente, pode ter certeza.

Cirurgião: – Não duvido. Até lá, estarei aposentado. Prefiro assim que ficar enrolando os pacientes como vocês clínicos fazem.

Clínico: – Enrolar ?! Nós não enrolamos ninguém!

Cirurgião: – Ah, não enrola? Tá bom. Então me diz quando foi a última vez que você escreveu num resumo de alta hospitalar que o paciente estava curado? Vocês só marcam o melhorado e o óbito.

Clínico: Buscando pela memória. Volta-se com olhar frustrado. Quando ia balbuciar algo é interrompido pelo interlocutor que cresce à medida que toma o controle do debate.

Cirurgião: – Não é possível curar alguém sem tirar alguma coisa, emendar alguma coisa ou desentupir alguma coisa no organismo da pessoa. Conscientize-se disso.

Clínico: – Pode ser. O problema é que a cirurgia deve ser encarada como uma forma de tratamento como outras que existem. Há o tratamento endoscópico, o medicamentoso e o cirúrgico, por exemplo. O grande problema da cirurgia, pensando dessa forma, é o conflito de interesse entre quem prescreve o tratamento e quem o realiza. São a mesma pessoa!

Cirurgião: (um pouco surpreso com o contragolpe) – É por essa razão que temos que indicar bem as cirurgias.

Clínico: – Claro. Mas o problema é irredutível. O julgamento clínico estará para sempre comprometido pelo fato de que quem decide é quem faz. Algumas especialidades e alguns grupos passaram a decisão de operar ou não para equipes multiespecialidades, com clínicos e profissionais não-médicos inclusive. Alguns grupos de transplantes, por exemplo, são assim.

Segue-se um momento de pequeno silêncio. Ambos com as xícaras coladas aos lábios e com olhar perdido em pensamentos.

Clínico: – Se eu tiver uma apendicite, VOCÊ me opera, Ok? Laparoscopia. Sem pedir tomografia, hehe.

Cirurgião: – Ok. Mais três cafés e a conta!

Clínico: – Epa! Você vai ter arritmia de novo, hein? hahaha

Cirurgião (pagando a conta): – Tenho um bom clínico… – e piscou o olho para o ortopedista que acabara de chegar.

A Náusea, A Fome e Ella

ResearchBlogging.orgVolta e meia me deparo com pacientes precisando de tratamento para “enjoo”. Mais raramente (pois não sou pediatra), mães, esposas, avós, etc me pedem algo que “abra o apetite” de seus queridos anoréticos. Apesar de já ter notado que as medicações utilizadas para tratar náuseas e vômitos, quando administradas a pacientes sem tais sintomas, não despertavam o paladar, e vice-versa, pois remédios para “abrir o apetite” não são lá muito eficazes em tratar seres humanos nauseabundos; eu imaginava que a náusea era o exato oposto da fome e que nesse caminho, o indivíduo necessariamente passaria pela saciedade. Isso porque, para mim, era inadmissível alguém estando nauseado, sentir fome! Mas um amigo, médico, estando em tratamento para um câncer, me disse claramente que as náuseas causadas pelos quimioterápicos não atrapalhavam sua fome. Fiquei com isso na cabeça. Recentemente, por força de um procedimento e de medicamentos que tive que ingerir, tive a mesma sensação: estando totalmente nauseado, sendo capaz até de vomitar sem muita dificuldade caso fosse até o vaso, consegui comer nhoque! Descobri-me errado e tentarei esclarecer aqui alguns conceitos.

O que é náusea?
– É a sensação que normalmente precede o vômito, em geral referida na garganta ou na região epigástrica.

O que é “ânsia de vômito”? (em inglês retching)
– É a movimentação muscular involuntária que precede o ato de vomitar propriamente dito.

clique na figura para aumentar e ver os créditos

O que é o ato de vomitar?
– É uma resposta autonômica, altamente organizada, mediada por uma complexa interação entre receptores, neuromediadores e a musculatura efetora, visando a ejeção do conteúdo gástrico. O vômito é considerado um mecanismo de defesa selecionado para nossa espécie. Muitos venenos naturais desencadeiam o vômito ao simples contato com a língua ou estômago.

O que é a fome?
– É a sensação que experimentamos quando necessitamos comer. É causada por contrações gástricas mediadas por hormônios liberados pelo hipotálamo, orgão do sistema nervoso central responsável pelo controle da fome e da saciedade. O hipotálamo é também responsável pelos mecanismos capazes de causar vômitos.

Nem todo mundo vomita pelas mesmas razões. Na verdade, existem 5 sindromes eméticas que podem estar sozinhas ou em conjunto fazendo com que uma pessoa apresente vômitos:
1. Toxinas na Luz Intestinal (quimioterapia, alimentos estragados, venenos)
2. Toxinas no Sangue (Área Postrema)
3. Doenças Intestinais (Gastrite, Diarreia, Pós-operatório)
4. Estímulos do sistema nervoso (medo, antecipação)
5. Doenças do labirinto (o orgão do equilíbrio)

Cada uma destas sindromes acaba estimulando principalmente uma ou mais das vias do intrincado mecanismo responsável pelo reflexo do vômito e isso tem grandes implicações terapêuticas visto que cada uma das vias têm um receptor farmacológico que lhe é mais específico e que pode ser bloqueado ou estimulado por medicações.

Ver créditos abaixo

É interessante notar que nem todas as sindromes eméticas causam náuseas, algumas provocando o que os médicos chamam de “vômitos em jato” que é exatamente o episódio de vômito não precedido por náusea ou “ânsia”, sem aviso prévio. A náusea parece ser um sintoma menos específico, mais sistêmico e que deve levar muito mais em consideração fatores relacionados ao córtex cerebral pois está bastante vinculada à vontade e à consciência. É possível nausear só de lembrar de determinadas situações, o que de fato acontecia com meu valente amigo médico, que só de passar pela rua onde recebia a quimioterapia, sentia-se mal. Sendo assim, fica mais fácil entender que a fome não é o oposto da náusea, talvez o seja da saciedade, mas isso é outra história.

Parece que Sartre tinha mesmo razão em relacionar a náusea a um sentimento existencialista de ilogicidade e incompreensão do mundo. Essa náusea sartreana só cedia com a música “Some of these days”. Eu a prefiro com Ella, musa de poderes curativos que deixo aos meus leitores para que não fiquem impregnados com o fel que escorre deste post…

O esquema acima foi modificado de Wender RH (2009). Do current antiemetic practices result in positive patient outcomes? Results of a new study. American journal of health-system pharmacy : AJHP : official journal of the American Society of Health-System Pharmacists, 66 (1 Suppl 1) PMID: 19106335

Intensive Care

ResearchBlogging.orgPara quem acha que é impossível definir alguma coisa utilizando-se de uma linguagem difusa e pouco precisa encaminho a impressionante poesia de Donna Doyle. Não sei se ela é médica, mas trabalha na Faculdade de Medicina do Tennessee. Embaixo, minha versão.


Intensive Care
“Now that you have been there
you recognize them, bodies
a languid blend of love and loss,
every movement fluid, as if
limbs have been surrendered by bones.
No language for this limbo, an island
where time is measured by visiting hours,
and purpose shines clear as the world
that seems to remain outside these walls.
Later is filled with wandering,
each step a pooled reminder
of liquid without a vessel,
the wading between widow and wife.”
Terapia Intensiva

Agora que você já passou por lá
os reconhece, corpos
uma lânguida comunhão de amor e perda,
cada fluido em movimento, como se
os membros rendessem-se aos ossos.
Nenhum verbo a este limbo, uma ilha
onde o tempo é medido em horas de visita,
e o propósito resplandece como o mundo
que insiste em estar fora destas paredes.
A tarde é preenchida com vagar,
cada passo uma lembrança represada
do líquido sem um vaso,
numa poça entre a viúva e a esposa.

Não me lembro de ter visto uma definição de Terapia Intensiva tão doída.

Donna Doyle (2011). Intensive Care JAMA, 306 (2), 134-134

A Morte de um Leão

A  L.F.P.F

Lição de Biologia Comportamental – quando um leão morre, os outros leões, de juba sensivelmente menor, ficam cabisbaixos. Leões mais velhos ficam como que por apreender o sentido que seus pelos brancos no focinho não traduziram em signos inteligíveis. O leão morto jazz on the ground. O sentido se descola da coisa-em-si, como se algum dia estivesse unido à ela, hehe. Aquele chumacinho preto de pelos da ponta do rabo do leão, que já não tinha nenhum significado, não tem o menor propósito ali, no chão. O bando caminha de um lado para o outro sem querer chegar a lugar nenhum. É curioso o andar dos leões. Eles dobram a pata mais do que o necessário para caminhar. Isso, às vezes, dá um ar jocoso ao andar mas, sem dúvida, elegante. Leões são preguiçosos e não costumam andar à toa. Matam e não lidam com a morte.

De repente, um leão mais jovem lança um rugido terrível. Um rugido de dor e sentimento. Magnetizados, leões e leoas, filhotes, hienas, macacos, toda a variedade de pássaros e passarinhos se orienta pelo vetor do rugido. Em Biologia Comportamental moderna isso pode muito bem ser interpretado como uma tentativa de demarcação territorial e liderança. Em leonês, é saudade mesmo.

Tchau, Leão.


Toca do Leão (hoje de manhã)

Ainda Sobre Vestuários Médicos

Em resolução aprovada no dia 8 de Junho último, foi transformado em lei projeto 757/2009 do deputado Vitor Sapienza do PPS. Segue o texto do Diário Oficial do Estado que reproduzo integralmente.

LEI Nº 14.466, DE 8 DE JUNHO DE 2011

O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:

Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei:

Artigo 1º – Ficam todos os profissionais de saúde que atuam no âmbito do Estado proibidos de circular fora do ambiente de trabalho vestindo equipamentos de proteção individual com os quais trabalham, tais como jalecos e aventais.

Artigo 2º – O profissional de saúde que infringir as disposições contidas nesta lei estará sujeito à multa de 10 (dez) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESP), aplicada em dobro em caso de reincidência.

Parágrafo único – As penalidades decorrentes de infrações às disposições desta lei serão impostas, nos respectivos âmbitos de atribuições, pelos órgãos estaduais de vigilância sanitária.

Artigo 3º – As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Artigo 4º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Palácio dos Bandeirantes, 8 de junho de 2011.

GERALDO ALCKMIN

Giovanni Guido Cerri

Secretário da Saúde

Sidney Estanislau Beraldo

Secretário-Chefe da Casa Civil

Publicada na Assessoria Técnico-Legislativa, aos 8 de junho de 2011.

Agora a discussão acaba. Virou lei. Eu achei bom. E melhor assim.

Zacarias Conceitual: O Humor na Saúde e na Doença

Os Trapalhões – Zacarias, um médico bom de bisturi

Em 1:59 minuto, uma crítica contundente à atuação da medicina privada e seus preços quando se põe em busca da saúde. Dizia que a medicina privada tem planos de saúde mas não tem um plano para saúde (com raríssimas e honrosas exceções). Quando busca “causar” saúde, por possuir um arcabouço teórico inadequado, em geral, tudo o que consegue, é a falsa sensação de esvaziamento de um “estado de doença”. Zacarias genial, interpreta um cirurgião de jaleco (o verdadeiro).