DEK – J e a Polêmica do Vestuário Médico

ResearchBlogging.orgRecentemente, vem ganhando corpo uma campanha interna do ScienceBlogs Brasil contra o uso indevido do vestuário médico em locais inapropriados como lanchonetes, restaurantes e até metrôs e ônibus. A campanha é mais que justa. Jalecos, aventais, guarda-pós, estetoscópios e outros apetrechos utilizados pelos médicos não são de fato, para ficar perambulando por aí, tendo em vista o enorme problema das infecções cruzadas e o surgimento de germes multirresistentes.

Entretanto, há um tom iconoclasta na campanha que me incomoda. Eu fiquei pensando muito no porquê ficar incomodado com um assunto pelo qual luto diuturnamente e que tem um embasamento científico bastante razoável como pode ser visto aqui (em inglês). Digo razoável, porque o papel desses veículos (dizemos fômites) na transmissão de doenças ainda está para ser estabelecido. Estar contaminado, por mais nojento, incorreto e reprovável, que possa ser, não quer dizer estar  ou deixar doente, apesar de tornar mais provável.

Este é o Dicionário Etimológico do Karl e esta é a letra J, e vou usar este espaço para psicoanalisar um pouco do meu comportamento médico. Afinal, esse é um dos fins deste blog.

J (jota) de jaleco s.m., segundo o Houaiss, (1605) ‘jaleco, jaqueta turca cujas mangas chegavam só aos cotovelos’ (tur. yelék, pelo ár. argelino djalíka ‘casaco de cativo’; segundo Corominas, s.v. chaleco, Haedo descreve o jaleco da seguinte forma: ‘um gibão de pano, de mangas curtas, até o cotovelo, que os turcos argelinos usavam, debaixo do cafetã’; trata-se de um dos vários nomes de trajes transmitidos ao esp. e ao it. pela língua franca dos portos africanos; f.hist. 1725 jalecu, 1725 galleco, 1727 jaleco. Chamavam os portugueses “galegos” de jalecos também. Há um tamanduá de nome jaleco. Para nós, jaleco é uma capa curta de mangas também curtas que pode ser usada sobre a camisa, como na foto acima. É utilizada por dentistas, farmacêuticos, churrasqueiros e balconistas em geral, entre outros tantos. Eu já usei jaleco. Parei porque achava o jaleco meio churrasqueiro demais. Gosto mais de usar o (ainda segundo o Houaiss):

Avental: peça de pano, plástico ou couro, presa pelo pescoço e pela cintura, usada para proteger a roupa em certos tipos de trabalho. Etimologia: avante + -al, com alteração do -a- pré-tônico para -e-; f.hist. sXIV auantal, sXIV uantal. (Atualização: eu acho que o nome mais correto para esse tipo de vestimenta é guarda-pó ou simplesmente, capa, como no inglês)

Avental e gravata constituem um “uniforme médico” de respeito não só porque a imagem do médico veiculada em muitos filmes é essa, mas também porque nas faculdades de medicina, em geral, formam a vestimenta padrão dos professores. A gravata já foi alvo de várias críticas [1] e muitos já a abandonaram. Mas isso não nos exime da pergunta: Mas então, o que é que um médico deve trajar?

Tive uma experiência interessante com a série “Sala de Espera I e II” e recomendo a leitura dos comentários porque são bastante esclarecedores quanto às expectativas dos pacientes quanto a aparência dos médicos(as). Cito abaixo as respostas de 3 sciencebloggers à pergunta, como seria a aparência de um médico importante para você?

Para mim, estereótipo de médico mesmo. Meia-idade, cabelo meio grisalho, sem brincos ou tatuagens. Este primeiro resultado do Google Images é bem o que imagino mesmo” Kentaro Mori do 100nexos.

Irei contra todos os comentários acima e direi que meu ideal de médico é um sujeito novo, recém-saído da universidade, doido para colocar em prática anos de estudo e assumir, enfim, a responsabilidade por isso, sem alguém olhando por cima do seu ombro. Um médico jovem, empolgado, atualizado, que lê muito e sabe a importância de uma batidinha no abdome e uma puxada de pálpebra. Quanto mais estetoscópio no pescoço e esfigmomanômetro no bolso melhor. Na minha cabeça, quanto mais velho o médico, mais antiquados os seus métodos, chegando numa zona dos formados entre dez e vinte anos atrás para os quais “pedir exame” é sinônimo de “examinar”.” Igor Santos do 42. (grifo + sublinhado, meus)

Fico com o cientista, principalmente pelo jaleco branco.” Atila do Rainha Vermelha.

Scientist Cartoon 0779

Isso já foi até tema de um estudo [2] cuja conclusão foi que, “em contraste com os médicos que veem os aventais brancos como risco de infecção, muitos pacientes, e especialmente aqueles com mais de 70 anos, acham que os médicos devem vestir aventais brancos para sua identificação ficar mais fácil.” Com isso, quero chamar a atenção para o fato de que a vestimenta do médico é algo que está além do simples fato da proteção, higiene e etc. Há sim, uma identificação visual, uma comparação cognitiva com uma imagem pré-concebida proveniente das experiências particulares que cada pessoa teve em contato com a doença e com a possibilidade de ser assistida por alguém no qual depositaram sua confiança. Repito aqui o que já escrevi e que acho que se adequa perfeitamente ao tema:

“Acho mesmo que essa imagem pré-concebida do médico varia muito, não
só com a especialidade, mas também com o local onde o médico trabalha,
que tipo de público atende e assim por diante. Tudo isso para dizer que o médico é INDISSOCIÁVEL da população que
atende. Isso pode soar óbvio a essa altura da discussão mas, acredite,
muitos médicos não pensam assim. Além disso, a instituição que abriga o
médico, seja um hospital público ou particular, seja seu próprio
consultório (e no caso a instituição é ele mesmo) faz diferença, não só
na aparência que o médico busca, como também na sua forma de atuar. Isso
é bastante polêmico, eu sei, mas alguns anos de experiência me
mostraram o problema de forma bastante clara. Não reconhecer essa
diferença, que os advogados já reconheceram há alguns milênios, é abrir
mão da oportunidade de minimizar seus efeitos.

A ciência médica é uma só, a medicina não. Isso decorre do fato de
ela ser uma forma, talvez a mais perversa, de aplicação científica
prática! A prática, como já abordei em diversos posts, tem a tensão
irredutível da decisão que envolve o conhecimento tecno-científico e a
experiência prévia. Essa tensão deixa o médico inseguro. Sempre. A
aparência do médico é um modo de “vender o peixe”. Quanto mais adequada a
aparência for à imagem que o paciente faz do médico, mais fácil
conseguir sua confiança, aderência ao tratamento e, consequentemente,
bons resultados. Isso tem a ver com o mercado? Sim. Mas tem muito mais a
ver com o fato de que o médico precisa penetrar em algo bem mais
profundo que o mero organismo de seu paciente.”

Isso não exclui o médico do conceito de adequação. Ser atendido por uma médica atraente com minissaia e decote matador inspira muitos sentimentos, menos os de acolhimento, segurança e confiança profissional. Sentar em uma lanchonete com médicos comendo de avental e esteto no pescoço é desagradável também. A adequação do traje ao local é uma forma de educação e esta, por sua vez, visa o bem-estar de todos.

[1] McGovern, B., Doyle, E., Fenelon, L., & FitzGerald, S. (2010). The necktie as a potential vector of infection: are doctors happy to do without? Journal of Hospital Infection, 75 (2), 138-139 DOI: 10.1016/j.jhin.2009.12.008

[2] Douse, J. (2004). Should doctors wear white coats? Postgraduate Medical Journal, 80 (943), 284-286 DOI: 10.1136/pgmj.2003.017483

Technopathology

“La maquina la hace el hombre… Y es lo que el hombre hace con ella.”
Jorge Drexler

Na prática médica em geral, e numa unidade de terapia intensiva em especial, utilizamos vários dispositivos que substituem os sentidos humanos na tarefa de captar dados dos pacientes. Uma vez captados, esses dados serão processados e uma ação deve ocorrer: prescrição de alguma medicação, intubação orotraqueal, solicitação de algum exame, são exemplos de ações possíveis em determinadas situações. A substituição dos sentidos humanos por dispositivos que geram dados sobre os pacientes é tão intrinsecamente relacionada à atividade médica moderna que muitas vezes não nos damos conta de que estamos sobre-utilizando um recurso que, diferentemente de um toque ou um olhar, pode trazer alguma consequência indesejável ao paciente submetido a ele.

Pensando nisso, um instituto independente sem fins lucrativos chamado ECRI Institute, cuja preocupação principal é segurança, qualidade e custo-efetividade do atendimento médico, mantem uma publicação chamada Health Devices. Todo final de ano, é publicada uma lista com as 10 maiores fontes de dano aos pacientes provenientes do (mal)uso da tecnologia médica. Chamei, por minha conta e risco, esse ramo da nosologia humana de Tecnopatologia (em inglês no título para chamar a atenção dos gringos, hehe). Aqui vai a lista de possíveis danos a pacientes (e profissionais da saúde) causada pela tecnologia médica para 2011 (publicada em novembro/2010):

1. Radioterapia em excesso ou mal aplicada
2. Mal-uso dos alarmes
3. Contaminação cruzada relacionada à endoscopia
4. Excesso de radiação na tomografia
5. Perda de dados, incompatibilidades de sistema e outros problemas com a tecnologia de informação em saúde
6. Conexões erradas de tubos e cateteres
7. Excesso de sedação com dispositivos acionados pelo pacientes (PCA)
8. Punções acidentais, contaminadas ou não, de agentes da saúde ou pacientes
9. Fogo acidental no centro cirúrgico
10. Não ou Mal funcionamento de desfibriladores durante paradas cardíacas

Dentre os itens da lista, algumas surpresas. Os problemas relacionados à radiação são sensíveis e vem cada vez mais chamando a atenção de administradores hospitalares e profissionais da área. Vários outros relacionados a infecções são também figurinhas carimbadas de listas como essa. Gostaria de destacar 2 itens.

O primeiro é a importância da tecnologias de informação no atendimento aos pacientes. Em quase todos os hospitais que trabalho há um “sistema” que tenta englobar prescrições, solicitações à farmácia, anotações de enfermagem e médicas, enfim, tudo que gira em torno de uma internação. (Em geral, os “sistemas” são muito bons para cobranças e ruins para os usuários – enfermagem, médicos e fisioterapeutas). Imaginem se o “sistema” cair ou dados importantes forem perdidos antes de um backup. É isso que o artigo destaca.

Outro item da lista que me chamou a atenção foi a questão dos alarmes. Quem já entrou em uma UTI sabe que é um local de grande poluição sonora. Muitos alarmes soam desesperadamente sem que alguém vá ver o que está acontecendo. A esmagadora maioria é interferência ou má regulagem, sem que acarrete problemas quaisquer para o paciente. Entretanto, como na história do menino e o lobo, de tanto tocar inutilmente, podemos perder um evento relevante e colocar a vida do paciente em risco. Em 2002, a Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations, orgão americano que tem acreditado várias instituições brasileiras, reviu 23 relatos de morte ou lesão grave relacionadas à ventilação mecânica: 19 eventos resultaram em morte, 4 em coma. Destes, 65% foram relacionados aos alarmes (2). Muito se tem estudado sobre a ciência dos alarmes e o modo como eles podem nos ajudar, nos atrapalhando o menos possível.

É isso. Tecnologia também causa doença e morte. Pode ser muito difícil explicar isso para a sociedade contemporânea. Ela é viciada em tecnologia e novidades. Os médicos vão no embalo pois apesar de cuidar da sociedade, também fazem parte dela.

Fonte:
1. HEALTH DEVICES NOVEMBER 2010. TOP 10 TECHNOLOGY HAZARDS FOR 2011 (clique para baixar o pdf).
2. Clinical Alarms and the Impact on Patient Safety. Maria Cvach MS, RN, CCRN, Deborah Dang, PhD, RN, NEA BC, Jan Foster,PhD, APRN, CNS, and Janice Irechukwu, BSN, RN, MSN. (clique para baixar o pdf).

Infecções e Seres Humanos

Estamos mesmo vivendo um tempo de dificuldades no que diz respeito à luta contra as bactérias multirresistentes. Recentemente, tive acesso a alguns dados de uma unidade de terapia intensiva que compartilho com vocês agora na figura abaixo.


As barras vermelhas dão o número de infecções de corrente sanguínea (ICS) em cada mês de 2009. Chamamos de ICS o aparecimento de bactérias (ou fungos) no sangue obedecendo de determinados critérios. A linha horizontal azul é uma média das infecções em UTIs da cidade de São Paulo. Como podemos ver, a referida unidade, excetuando-se o mês de abril, tinha níveis acima da média de ICS no primeiro semestre. Mas, nos meses de junho, julho, agosto, setembro e outubro a taxa de ICS foi ZERO!

Esses dados só foram avaliados no final do ano e os médicos ficaram procurando a razão dessa diminuição drástica e do retorno das taxas “habituais” a partir de novembro. E descobriram:

Sim. Esse período coincide justamente com a epidemia de Influenza H1N1 no inverno de 2009, durante o qual as precauções de contato foram maximizadas, em especial, pelo medo de contaminação pelos próprios profissionais de saúde. O relaxamento das medidas de proteção, a desatenção na lavagem das mãos, o cuidado com a manipulação de sondas e cateteres, particularmente, o manejo adequado de secreções, são o que nos resta para combater infecções por bactérias multirresistentes. Antibióticos já não são suficientes.

É surpreendente que uma equipe treinada, frente a um novo e ameaçador inimigo, no caso a gripe H1N1, tenha respondido com tal eficácia a ponto de influenciar a densidade de outras infecções endêmicas na UTI e zerá-la. Resta-me então concluir que os staffs das unidades de terapia intensiva não estão convencidos de que a infecção hospitalar é uma ameaça séria e por isso, não dão o seu máximo. A tabela abaixo mostra que isso não se justifica.

Table 1. Deaths and death rates in the United States, 1997 (1)

No. of deaths Crude death rate
Cause of death (thousands) (per 100,000) % of all deaths

Heart disease 725.8 271.2 31.4
Malignancies 537.4 200.8 23.2
Cerebrovascular disease 159.9 59.7 6.9
Pneumonia and influenza 88.4 33.0 3.8
Septicemia 22.6 8.4 0.97

Numa modelagem, se 25%-50% de todas as ICS ocorressem nas UTIs, um aumento de 25% na lavagem de mãos poderia prevenir 25% das ICS e salvar de 469 a 1.874 vidas (dependendo do que se considera mortalidade atribuída ao problema). Ver tabela abaixo.

Table 3. Handwashing and nosocomial bloodstream infections and deaths

No. of lives saved  No. of lives saved
Attributable if 25% of BSIa    if 50% of BSI 
mortality rate (%) Expected deaths occur in ICUsb occur in ICUs

15 1,875 469 938
20 2,500 625 1,250
25 3,125 781 1,562
30 3,750 937 1,874

Será que é só assim que conseguiremos eliminar infecções potencialmente evitáveis? Será que a conduta e a atitude de profissionais da saúde se equipara assim, de modo tão vulgar, ao pensamento pseudo-antropológico de que o “ser humano” só reage quando pisam no SEU calo?

As tabelas foram retiradas do site do CDC [link]

Santa Teresa, Orgasmos e o 11° Mandamento

Parece que as opiniões veiculadas nesse blog andam valendo alguma coisa. Ganhei outro livro para “resenhar”, que é o verbo que uso para substituir a expressão “ler e viajar na maionese” que, por fim, é uma atividade que gosto muito de fazer. Então, sem querer torrar a paciência do leitor que, se chegou aqui pelo título absurdo do post, vai se decepcionar de qualquer jeito, vamos lá.

Ganhei, já o disse, de uma amiga, com a promessa de que escreveria uma “resenha”, o livro “O 11° Mandamento” de Abraham Verghese. Não li o livro todo ainda, mas o prólogo e o primeiro capítulo já me agradaram. É um romance. E se você é daqueles que acha que ler romances é o mesmo que ler histórias da carochinha, ou seja, uma perda de tempo irreparável, melhor nem começar. O livro é um toledão de 626 páginas.

Começa contando a história de uma freira que era vidrada em Santa Teresa de Ávila (1515-1582). Essa santa escreveu uma autobiografia com o nome sugestivo de “A vida de Teresa de Jesus”. Nela, Santa Teresa descreve uma experiência mística com um anjo como segue (em livre tradução daqui):

“Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro cuja ponta parecia ser um pequeno fogo. Ele parecia penetrá-la várias vezes no meu coração e perfurar minhas entranhas; quando ele a tirou, parecia atraí-los para fora também, e deixando-me em fogo, com um grande amor em Deus. A dor era tão grande, que me fez gemer, e ainda assim foi superando a doçura desta dor excessiva, eu não pude querer livrar-me dela. A alma está satisfeita agora com nada menos que o próprio Deus. A dor não é física mas espiritual; embora o corpo dela partilhe. É uma carícia de amor tão doce que agora tem lugar entre minha alma e Deus, que rezo a Deus pela dádiva dessa experiência, que podem pensar que estou mentindo.”

Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), um escultor napolitano, que de bobo não tinha nada, fez a escultura abaixo, baseada no relato da santa:

Detalhe Santa Teresa.jpgA escultura chama-se “O Êxtase de Santa Teresa” (clique na figura para aumentar e ver os créditos). Vários autores chamaram a atenção para o fato de que havia muitos indícios de que a freira pudesse estar tendo um orgasmo (ver detalhe ao lado). Muitos até, especulam sobre a possibilidade de orgasmos espontâneos, possível em algumas disfunções sexuais como a Sindrome do Despertar Genital Persistente ou mesmo esquizofrenia. Esse negócio de ficar atribuindo doenças a pessoas com comportamento atípico não é lá muito recomendável [1]. Temos um exemplo bem recente em relação ao que convencionou-se chamar o massacre de Realengo. De qualquer forma, a obra de Santa Teresa vai bem além desses episódios extáticos.

A história de uma freira-enfermeira que, após uma viagem fatídica de navio, conhece um cirurgião inglês (e cuida dele!), mudando totalmente seu destino é
narrada por um de seus filhos! Gêmeos! Além de ficar fascinada por uma santa de hábitos orgásticos e ter filhos, ela marca a história do lugar para onde vai. Só isso, já seria suficiente para despertar algum interesse. Para os que gostam de histórias de médicos da velha guarda, o livro é um prato cheio. Bem narrado e fiel com as descrições técnicas de época, a leitura é bem fácil e prazerosa. Abraham Verghese tem alguns livros de sucesso. Esse, segundo consta, vendeu mais de 1 milhão de exemplares nos EUA. Médicos são bons contadores de histórias. Talvez porque tenham muitas mesmo para contar. Esse livro é sobre a história de médicos. O que também não deixa de ser interessante.

ResearchBlogging.org[1] Rogelio Luque & José M. Villagrán (2009). Teresian Visions Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 15 (3), 273-276 DOI: 10.1353/ppp.0.0191

Dois Pesos, Duas Medidas

Muito tenho escrito no blog sobre os conceitos de saúde e doença (ver aqui, por exemplo). Isso porque os conceitos de saúde e doença, longe de ser entidades abstratas que povoam a cabeça de gente que não está “com a mão na massa”, são muito importantes no exercício da medicina. Mas, não continuariam as pessoas a ser atendidas em consultórios, postos de saúde e hospitais? De que adianta ficarmos discutindo esses conceitos se isso pouco influencia o trabalho do médico, enfermeira, fisioterapeuta e de outros membros da equipe de profissionais da saúde na outra ponta?

Influencia, sim. E bastante. Já falamos sobre as diferenças entre os conceitos de saúde e doença, mas gostaria de ressaltar esta passagem: “Saúde e doença fazem parte de universos bastante diferentes, falam de coisas diferentes e de maneiras inteiramente diferentes. Alguém com diabetes controlado ou soropositivo para o HIV pode responder que se sente saudável apesar de ter de fato, uma doença. Por outro lado, um indivíduo em quem não se diagnostica nenhuma doença, pode não ter a vivência da saúde. (…) O significado de ‘diabetes’ e ‘HIV’ está validado em qualquer discussão sobre o assunto. Isso quer dizer que tem validade intersubjetiva (entre sujeitos). Dito de outro modo, no caso do diabetes, uma ‘racionalidade de caráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogo que o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicose circulante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alterações morfofuncionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraqueza até a morte.’ O lado da saúde, não tem a mesma validação. Existe, portanto, uma assimetria enorme de legitimidade de discursos, favorecendo o que se chamou de discurso casual-controlista da abordagem biomédica que predomina amplamente.” E por aí vai.

O que me chamou a atenção é a possibilidade de que as políticas públicas e privadas de saúde utilizem-se dos conceitos não superponíveis de saúde e doença de acordo com suas necessidades. Nas palavras da Dra. Luiza Sterman Heimann, médica sanitarista, coordenadora do Núcleo de Investigação em Serviços e Sistema de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (NISIS) “no Sistema Público, a saúde está relacionada a condições de vida e é resultante das diferentes políticas, sejam elas econômicas sejam sociais, no Privado, a saúde é definida a partir da doença exclusivamente e a doença é entendida como uma mercadoria. Quanto às características do sistema, o Público se organiza a partir de princípios – universalidade, integralidade e equidade – e o Privado, ao contrário, seleciona e segmenta a clientela. Enquanto o Público é integral, o Privado é parcial, porque também seleciona o tipo de oferta ou de atendimento dado a essa clientela. O sistema Público tem como princípio, a equidade, isto é, trata de forma diferente os “diferentes”, para atingir a universalidade e a integralidade, enquanto que, no sistema Privado, os direitos dependem do poder aquisitivo.”

É isso? O Sistema Público é pautado por políticas que visam a ação, como não poderia deixar de ser. Tais políticas necessitam de uma teoria, um arcabouço filosófico que as sustente. A própria existência de um poder público que coloque em prática uma política de saúde (necessariamente pública, ora pois) requer um tipo de abordagem do binômio saúde-doença que penderia para o lado da saúde e pela visão integral do indivíduo ou da coletividade de indivíduos. Não há, pelo lado do Sistema Privado, algo equivalente! As tentativas de abordagem integral, políticas de promoção de saúde, centros de check-up, etc por parte da Saúde Suplementar no Brasil são incipientes e não convencem os usuários. Estes, por sua vez, acabam adotando ações individuais, notadamente bastante mais dispendiosas, a depender de a) seu poder aquisitivo; b) seu contrato com a operadora; c) seu vínculo com uma empresa que exija algum tipo de teste prognóstico (pois já que investem em um profissional, querem saber qual a chance dele estar vivo nos próximos 5 anos); d) a tênue linha entre a hipocondria e a autonegligência, espaço pulsional onde ocorre a decisão de procurar um médico sem que necessariamente se esteja tecnicamente doente.

Em termos de política ou de filosofia de atendimento, o sistema público “enxergaria” mais a Saúde e o privado, a Doença? O privado, em íntima conexão com o mercado drenaria dele suas vantagens e vicissitudes. O Público funcionando dentro de uma máquina burocrática drenaria dela sua extensão e sua lentidão. Esta visão simplista do problema não me impede de dizer que tentativas de ver o outro lado em ambos os domínios seriam muito bem-vindas.

-o-o-o-

Foto de Janus, o deus romano de duas faces.

Consultei “A interface entre a saúde pública e a saúde suplementar Coordenação: SINPSI-SP – Luis Carlos de Araújo Lima. Palestrantes: Luiza Sterman Heimann e Maria Mello de Malta. Pesquisa: público e privado na saúde. Disponível aqui.

Taxonomia das Racionalidades Científicas

http://streetanatomy.com/wp-content/uploads/2011/03/brainlight2.jpg
by Maria and Igor Solovyov in Street Anatomy

Publico aqui uma taxonomia das racionalidades científicas segundo Alistair Cameron Crombie, autor de uma história das ciências (que vi em [1] e achei legal). Segundo ele, há seis tipos de racionalidades científicas possíveis, a saber:

1. Busca de Princípios e Derivação. Tudo começa com os gregos. Eles se caracterizam pela busca dos princípios e derivação a partir deles. Não à toa, foram os gregos os “inventores” da metafísica, da lógica (Aristóteles), da geometria e da filosofia, entre outros, além de terem uma cosmologia interessante. A medicina grega foi a primeira a se livrar de alguns conceitos religiosos e, assim, florescer.

2. Análise/Síntese ou Resolução/Composição. Este estilo foi consolidado nos séculos XIII e XVII pelos arquitetos, engenheiros civis e músicos e outros “práticos”, médicos inclusos. Visa o fazer e talvez tivesse mais a ver com os cirurgiões que, nessa época, “ainda” não pensavam cientificamente.

3. Modelização. Aqui surge a medicina experimental. Constrói-se um análogo de um pulmão e as dificuldades nos ajudam a entender como um pulmão de verdade funciona. Saber é saber reproduzir. A modelização talvez seja a racionalidade mais importante na medicina desde a introdução do estudo de modelos animais, em especial, por Claude Bernard. A modelização matemática parece ter sido introduzida por Lawrence Joseph Henderson e também gerou muitos desdobramentos.

4. Taxonomia. Tendo como próprio exemplo esse post. Surgiu com Aristóteles e com a escola hipocrática. Sem ter muito o que fazer com as doenças, Hipócrates e seus seguidores tentaram ao menos, classificá-las. Aliás, coisa que fazemos até hoje.

5. Estudo das Probabilidades. O cálculo das chances em situações de incerteza foi ampliado para o entendimento da natureza como um grande sistema probabilista. Não preciso nem comentar, né? Vivemos hoje, sob o paradigma do risco na medicina tal a força dessa abordagem em especial, no meio médico.

6. Derivação Histórica. O pensamento historicista teve seu auge no romantismo alemão do século XIX, com Dilthey, Kuno Fischer, Frederic Scheleiermacher, entre outros tantos. Têm a raiz nesse pensamento tanto o método genealógico de Nietzsche e o arqueológico de Foucault (ver esse comentário), como também as empreitadas históricas que permitiram descobrir, por exemplo, a deriva continental. A medicina e, em especial, a psicanálise, têm seus fundamentos na historicização das queixas do paciente. A inclusão da racionalidade histórica entre as científicas é interessante e não sei porque isso ainda provoca tanta polêmica.

Parece não haver outros tipos de racionalidade. Pelo menos, fiquei pensando e não consegui imaginar uma que aqui não se encaixasse. A medicina ciência médica está, portanto, apoiada em 1, 3 e 5, não?

[1] Filosofia da Ciência I – Andler, D; Fagot-Largeault, A; Saint-Sernin, B. 2005.

Metafísica Médica IV

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“O status epistemológico insatisfatório da medicina reside na sua original e inevitável conexão com a prática”
Hans-Georg Gadamer (The Enigma of Health)

Um médico é um humanista secular (o que não o impede de ter crenças individuais quaisquer), detentor de técnicas e saberes utilizados com o objetivo de aliviar o sofrimento humano. Este último, refere-se aqui “apenas” aos aspectos que envolvem os conceitos de saúde e doença. Para exercer sua profissão, o médico agindo como técnico e como agente ético é, essencialmente, um tomador de decisões, um decididor. São decisões as mais variadas, desde prescrever aspirina a fazer um transplante de fígado. Decisões de tratar, de não tratar, de investir toda a tecnologia médica possível para determinado paciente, ou de utilizar todo o conhecimento disponível com intuito de aliviar a dor e o sofrimento. Mas o médico toma suas decisões baseado em quê? Qual é (ou quais são) a(s) base(s) de sustentação de uma decisão médica?

Em uma primeira aproximação, podemos dizer que o médico decide por meio de seus saberes já que sua técnica direciona-o ao fazer, que, claro, depende de uma decisão prévia. Qual seria, então, a natureza dos saberes médicos? Basicamente, seriam duas as vertentes principais. A decisão médica levaria em consideração o saber técnico-empírico e o juízo clínico global. Chamemos de saber técnico-empírico um conhecimento nomotético que busca leis e regras gerais, utiliza a lógica e também o senso-comum. É um conhecimento teórico, transmissível, que almeja a objetividade e a coletividade, pertencendo ao domínio do público, portanto. O juízo clínico global é um conhecimento idiográfico, individual e específico. Leva em consideração a intuição e a experiência pessoal. É eminentemente prático e muito difícil de transmitir. Pode ser considerado subjetivo e diz respeito muito mais à individualidade de seu objeto, sendo portanto, radicado no domínio do privado. Este movimento dialético tem raízes profundas no pensamento médico, oriundo da oposição clássica da medicina grega, entre o vitalismo da escola de Cos (cidade de Hipócrates) e o organicismo da escola de Cnide (ou Cnidos), de inspiração empirista-atomista, por uma explicação mecânica das doenças (Biggart, 1971)[1]. Gadamer divide ainda, o saber técnico-empírico utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral. Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.

Saber Médico 1. Juízo Clínico Global
                                   2. Técnico-Empírico 2.1. Ciência
                                                                           2.2. Empírico Geral


A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte maneira. Imagine um paciente com uma doença com a qual um médico jamais se defrontou anteriormente, digamos, por exemplo, a gripe suína com insuficiência respiratória aguda grave. Cada médico tem uma experiência prévia que carrega consigo além de tudo o que estudou e estuda. Essa experiência e o que ele estudou de ciência médica fazem parte do saber técnico-empírico.
É tarefa do poder de julgamento do tal juízo clínico global reconhecer em dada situação a aplicabilidade de uma regra geral. O médico lembra de outras insuficiências respiratórias que teve e como tratou, ou das “burradas” que fez, e tenta aplicá-las (ou não) ao caso específico. Até aqui tudo normal. O problema está exatamente quando o médico resolve fazer alguma coisa (intubar o paciente, dar corticosteroides, outras drogas, etc). A ciência médica não embasa seu procedimento, não há publicações suficientes sobre o assunto, cada médico diz uma coisa, o que fazer? Utilizei esse exemplo extremo mas, isso ocorre a todo momento, com qualquer médico de qualquer especialidade, porque as decisões práticas necessitam de uma ciência que seja completa e forneça certezas que as embase. Completa, é exatamente o que a Ciência não é, por definição. E agora? E se o médica errar? Quem irá salvá-lo?

Isso nos remete às relações entre Epistemologia e Ética que estão no âmago da medicina. A epistemologia procura justificar nosso conhecimento, certas crenças ou nosso entendimento de certos fenômenos. A ética nos diz como conduzir-nos de maneira correta na busca, disseminação e uso do conhecimento, seja ele certo ou não. A ética nos ensina através da virtude intelectual, conforme Aristóteles, a encontrar a maneira correta de proceder frente a incerteza.
Na Ciência, o conhecimento científico (2.1, no esquema acima) e o empírico (2.2) caminham juntos, um corrigindo o outro. É assim que funciona e sempre funcionou. Na Clínica, a decisão prática confronta os dois tipos de conhecimento porque nunca se sabe se a aplicação de uma regra geral a um caso específico vai dar certo ou não. Só dá pra saber isso post hoc e chamamos o resultado de empírico. Isso resulta em uma tensão irredutível a qualquer processo de tomada de decisão que envolva conhecimento. Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, a tecnologia e suas aplicações. Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras de Gadamer:

Quanto mais a esfera de aplicação se torna racionalizada, mais o exercício de julgamento associado à experiência prática no sentido próprio do termo, deixa de ocorrer

Isso explica muito da tecnologização de medicina e de sua “impessoalização”. Não queremos mais médicos idiossincrásicos, individualistas, artistas de suas especialidades. Queremos opiniões uniformes, alinhadas com as últimas “notícias” produzidas pela literatura científica, a última “moda” em exames de imagem, etc. Os médicos também se acostumam a guidelines, diretrizes, algoritmos de conduta e terminam por pensar que essa é a única racionalidade correta da medicina. Há um imperativo ético na conduta de um médico. Ele tem que oferecer a seus pacientes o que ele tem de melhor. Sempre. A questão é saber se a Ciência Médica é a única capaz de julgar a eticidade dessa conduta ou se há outras formas de fazê-lo. Se a racionalidade clássica que é quem provoca essa tensão tem alguma alternativa (Cronje, 2003) talvez seja ainda cedo para dizer. E somos então remetidos à Ética da Crença. Mas isso é outra história e será um outro post, espero.

[1] Há quem diga que essa dicotomia não se justifica e que faz muito mais parte de uma lenda antiga sobre a história da medicina. Para mais detalhes ver o livro de ANTOINE THIVEL, Cnide et Cos? Essai sur les doctrines medicales dans la Collection Hippocratique, Paris, Les Belles Lettres, 1981, 8vo, pp. 435. Há uma boa resenha aqui e que pode ser baixada gratuitamente.

ResearchBlogging.org Biggart JH (1971). Cnidos v. Cos. The Ulster medical journal, 41 (1), 1-9 PMID: 4948495

ResearchBlogging.org Cronje, R., & Fullan, A. (2003). Evidence-Based Medicine: Toward a New Definition of `Rational’ Medicine Health:, 7 (3), 353-369 DOI: 10.1177/1363459303007003006

Metafísica Médica II

ResearchBlogging.org1. Sabe-se hoje, que o infarto agudo do miocárdio é provocado por um coágulo que se forma sobre uma placa de aterosclerose (ateroma) rota dentro das artérias coronárias que suprem o músculo cardíaco de oxigênio e nutrientes. Ao se formar, esse coágulo obstrui o suprimento arterial e submete o tecido irrigado a uma “asfixia” que chamamos tecnicamente de isquemia. Se a isquemia se prolonga por muito tempo, pode haver morte de células musculares, processo que chamamos de infarto (a forma “enfarte” também é aceita, mas não é norma técnica). A partir daí, a coisa se complica bastante. Desde arritmias fatais à insuficiência cardíaca, o infarto pode causar morte ou levar o indivíduo a uma vida bastante limitada.

2. Esse rapaz ao lado, chamava-se Bill Tillet, era médico e trabalhava na Divisão Biológica do Departamento de Medicina da Johns Hopkins, em Baltimore nos EUA, na década de 30. Já tinha feito algumas descobertas interessantes como a proteína C-reativa, um marcador inflamatório muito utilizado até hoje, estudando os efeitos da pneumonia causada por pneumococos (Streptococcus pneumoniae). Depois, começou a estudar as intrigantes propriedades hemolíticas de um primo do pneumococo, o Streptococcus beta-hemolítico. Como seu nome diz, essa bactéria tem a propriedade de dissolver coágulos humanos em minutos. Isso é útil a ela porque facilita a invasão de tecidos, que é seu passatempo predileto, podendo causar amidalites, celulites, erisipelas, infecções pulmonares graves e até sepse e morte. Ele e seu colega Garner conseguiram isolar uma proteína que chamaram de fibrinolisina estreptocócica (sem nenhuma noção de que esse nome enorme jamais pegaria!). Posteriormente, Tillett e outro colega aplicaram a estreptoquinase (bem melhor!) na pleura (tecido que envolve o pulmão) para dissolver coágulos e facilitar a expansão pulmonar de pacientes que tiveram pleurites e derrames pleurais complicados.

3. Nessa época, já se sabia, em linhas gerais, o funcionamento da cascata da coagulação, entretanto, não se tinha o conceito de como ela se dava in vivo. O sistema da coagulação é uma das coisas mais interessantes no organismo. A nós, bastará saber agora que um coágulo não é um tipo de “rolha” estanque que entope um vaso sanguíneo e muda seu nome para trombo. Um coágulo é a própria metáfora da criação/destruição tão comum em algumas filosofias orientais. Ele está a todo momento, formando-se e dissolvendo-se no interior de um vaso. Isso porque sobre ele intervém dois poderosos sistemas, um pró-coagulante, o outro, anticoagulante. Se bloqueamos um, o outro prevalecerá. Se favorecermos um, o outro não resistirá. O corpo e o tamanho do coágulo dependerão desse jogo de forças. Trombolíticos utilizam a via anticoagulante de forma poderosa levando à fibrinólise. A fibrina é como um rede de sustentação sem a qual o coágulo desmorona.

4. A partir do momento que os médicos entenderam que o infarto do miocárdio era causado por um coágulo nas coronárias e que existiam substâncias que poderiam dissolvê-lo, não demorou muito para que um gaiato resolvesse injetar as tais substâncias nas pessoas com objetivo de livrá-las de alguma obstrução incômoda. As primeiras experiências foram terríveis. Efeitos colaterais graves como hipotensão e choque, alergias e alterações imprevisíveis na coagulação não demoveram os médicos da ideia dos trombolíticos apesar de haver cirurgias bem estabelecidas onde o trombo era removido por meio da abertura cirúrgica da artéria envolvida[1]. Era preciso simplificar e ser menos invasivo. O primeiro estudo positivo foi a desobstrução de membros inferiores, onde o agente trombolítico (no caso a uroquinase) foi injetado diretamente na artéria femoral em 1956. Na década de 70, estudos sobre trombólise intracoronariana começaram a ser publicados, mas uma coisa é utilizarmos um cateter na artéria femoral que é de relativamente fácil acesso. Outra, totalmente diferente, é cateterizar a artéria coronária obstruída (normalmente existem 3 grandes ramos) e injetar o trombolítico. É preciso um laboratório de hemodinâmica, pois esses procedimentos são realizados, até hoje, com uso de raios-x contínuos (escopia) de modo a monitorizar a progressão do cateter até o local correto. Mas, era preciso simplificar mais. Era preciso estender o benefício do tratamento a todas as pessoas que por acaso necessitassem dele. E não eram poucas. Estima-se que mais de 70.000 pessoas morram atualmente por ano no Brasil vítimas do infarto e de suas complicações.

5. Há 25 anos, no dia 22 de Fevereiro de 1986, um sábado, foi publicado no Lancet o estudo chamado GISSI (Gruppo Italiano per lo Studio della Streptochinasi nell’ Infarto Miocardico)[2]. Esse foi o primeiro grande estudo a demonstrar claramente que o uso de agentes trombolíticos aplicados a uma veia periférica poderia reduzir a mortalidade no infarto agudo do miocárdio. Entretanto, já era possível saber disso em 1977[3], quase 10 anos antes. Demoramos 10 anos para comprovar algo que nossa leitura intuitiva das experiências realizadas em laboratório ou com um pequeno número de pacientes, já suspeitava. Isso significou a perda de muitas vidas. O GISSI foi um ensaio clínico randomizado (aleatorizado em português) não duplo cego, que reuniu mais de 11.800 pacientes em várias UTIs na Itália. O que ele nos disse que os outros não disseram? Como ele nos convenceu e por que?

ResearchBlogging.org1. Ouriel, K. (2004). A History of
Thrombolytic Therapy Journal of Endovascular Therapy, 11 (Supplement II) DOI: 10.1583/04-1340.1


ResearchBlogging.org2. Effectiveness of intravenous thrombolytic treatment in Acute Myocardial Infarction. GISSI. The Lancet, 327 (8478) DOI: 10.1016/S0140-6736(86)92368-8

ResearchBlogging.org 3. Egger M, & Smith GD (1995). Misleading meta-analysis. BMJ (Clinical research ed.), 310 (6982), 752-4 PMID: 7711568

Metafísica Médica

ResearchBlogging.orgO que é a Medicina? O lugar-comum das respostas é a tal “fusão entre Ciência e Arte”. Dado que não há uma definição universalmente aceita para Ciência e muito menos para Arte, eis que ficamos em situação bastante pior, posto que uma fusão entre duas coisas indefinidas é uma confusão! Praticar medicina baseado apenas nas evidências científicas, nos processos de generalização e indução, é tratar dos pacientes como sendo iguais em suas diferenças, o que favorece um tratamento massificado; por outro lado, a recusa aos dados científicos nos leva de volta às experiências pessoais, anedóticas de uma medicina pré-científica.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/Turkey_ancient_region_map_ionia.JPGCostuma-se dizer que a Medicina é uma profissão e isto é bem verdade. Assim como o sapateiro, o mascate e o barbeiro, o médico procura, com sua técnica, facilitar a vida da espécie humana em troca de alguma remuneração. Uma separação de ordem conceitual, entretanto, começou a ocorrer entre a Medicina e outras profissões há mais ou menos 2500 anos. “Segundo Werner Jaeger (Paidéia – página 198) o conceito de physis foi o ponto de partida de pensadores naturalistas do século VI AC, dando origem a um movimento espiritual e a uma forma de especulação. Na verdade, seu interesse fundamental seria o que chamamos hoje metafísica, por seu interesse nas causas primordiais dos fenômenos.” Esse tipo de pensamento surgiu numa região chamada Jônia (território da atual Turquia – foto ao lado, clique para aumentar e ver os créditos).

Hipócrates e seus seguidores eram da ilha de Cós, de população e língua dóricas, e escreveram todo o Corpus Hippocraticum em jônico. A razão disso é que o jônico era como se fosse um tipo de linguagem científica da época e da região, a exemplo do que é o inglês para o mundo hoje. Ainda segundo Jaeger, a incorporação do pensamento jônico fez com que a medicina se tornasse uma techné consciente, metódica e, principalmente, distante do pensamento mágico, este último o responsável pela estagnação da medicina egípcia desde suas grandes descobertas, todas bem anteriores aos progressos da medicina grega. Longe de querer repetir toda a bela história da medicina, essa minúscula retrospectiva teve o intuito de dizer que a medicina está, desde sempre, apoiada sobre uma base científica para exercer sua profissão. Como é, ou como está, essa base hoje? Posto de outra forma, de que áreas do conhecimento humano se constitui a ciência médica – as bases científicas da prática médica? A tabela abaixo é uma tentativa de resposta sintética para essa difícil pergunta (clique para aumentar – modificado da referência 1).

Já abordamos o assunto sob a ótica do público e do privado e penso que uma das principais confusões sobre a prática médica chamada de “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) seja o fato de que ela pertence ao “privado”, tendo sido sequestrada pelo “público”. Mas, isso é outra história. Quero me aprofundar desta vez, no conteúdo da tabela. A ciência médica compreende, segundo Williams [1], três domínios de pesquisa, a saber, o laboratório experimental, pacientes e, por fim, populações. Cada um desses domínios têm um tipo de abordagem, trabalha com determinadas ferramentas, necessitando de infraestruturas específicas. Nos EUA, têm programas de treinamento diferentes, que em geral se assemelham aos brasileiros. Apesar de bastante abrangente, a tabela dá uma ideia errônea da ciência médica pois supõe que os vários domínios sejam equivalentes em relevância para a prática clínica. Não são. Há, por assim dizer, uma hipertrofia enorme do domínio “pacientes” e de suas ferramentas, em especial, os ensaios clínicos, sobre a forma de se conduzir do médico contemporâneo.

Tentarei me aprofundar nessa questão no(s) próximo(s) post(s). Investigar o porque disso ter ocorrido e tentar estabelecer questões epistemológicas a respeito desse conhecimento que vem dando base à prática médica é uma tarefa talvez demasiado grande, mas tem bastante medaglia chegando. E eu vou atrás…


ResearchBlogging.org1. Williams GH (1999). The conundrum of clinical research: bridges, linchpins, and keystones. The American journal of medicine, 107 (5), 522-4 PMID: 10569311

M*A*S*H

Existem outros motivos que levam uma pessoa a se decidir por fazer uma faculdade de medicina e se tornar um médico(a), além de um certo tipo de loucura, hehe. Até porque, o fato de fazer uma faculdade de medicina não torna ninguém médico. A “ficha” meio que vai caindo durante o curso, tanto para um lado, como para o outro. Muitos desistem no meio do caminho (alguns até se suicidam!), a maioria “entende” o que é a medicina e acaba entrando no esquema. Outros ficam frustrados depois, mas aí já é tarde.

Dentre os vários motivos listados (ver por exemplo, aqui e aqui), há, sem dúvida, alguns inusitados. Coisas como “meu pai exigiu”, “queria ficar rico”(!) ou “tenho uma família de médicos” ainda são comuns, infelizmente. No meu caso específico, o meu motivo inusitado, nunca escondi de ninguém, foi um seriado de TV chamado M*A*S*H.

O seriado se passa na guerra da Coreia (1950-53) e foi originado de um filme homônimo que, por sua vez, é uma adaptação do livro de Richard Hooker, também com o título de “MASH: Uma novela sobre três médicos do Exército“. M.A.S.H é uma sigla que quer dizer Mobile Army Surgical Hospital, acampamentos com estrutura hospitalar para traumas de guerra que realmente existiram. O “4077th MASH” é o campo onde tudo acontece. A série fez um enorme sucesso e durou de 17 de Setembro de 1972 a 28 de Fevereiro de 1983, quase 11 anos. Este último episódio teve 2 horas e meia de duração e foi, durante muitos anos, o programa de TV mais assistido da história nos EUA: quase 106 milhões de telespectadores. Esse recorde só foi batido em Fevereiro de 2010 pela final do SuperBowl (106,5 milhões). Infelizmente, não tenho notícia desse episódio, que chama-se Goodbye, Farewell and Amen, ter sido exibido no Brasil.

M*A*S*H equilibra o humor sarcástico de Hawkeye Pierce (Falcão, no Brasil) interpretado por Alan Alda e Trapper John (Caçador) de Wayne Rogers, e o drama de participar de uma campanha sem sentido. Ver jovens americanos morrendo e sendo mutilados afeta a rotina de todos. Apesar de ser rotulado de comédia, há muitos episódios dramáticos e melancólicos, como os que Falcão escreve cartas a seu pai. Quando foi ao ar em 1974 pela Bandeirantes, eu era um mísero adolescente e ainda sonhava em ser jogador de futebol. Mas, lá pelas 6 da tarde, eu ficava sentado em frente à TV esperando tocar a musiquinha triste junto com o ruído dos helicópteros. (ouça a música aqui: Mash.wav e um tributo à série com a música cantada com sua letra original, bem pessimista. Só para ter uma ideia, o título da música é Suicide is Painless). Adorava ver Falcão insubordinar-se às rígidas leis do Exército americano para salvar pacientes ou deixá-los de alguma forma, felizes. Sua postura era revolucionária, seu sarcasmo e ironia, infinitos, só rivalizando com sua competência e dedicação. Apesar de mulherengo incorrigível, as mulheres gostavam dele e há um episódio em que a namorada o “empresta” para uma enfermeira solitária (o 13o da primeira temporada “Edwina”).

A série não é sobre médicos DO exército. É sobre médicos NO exército, porque não sei se os primeiros de fato existem. Medicina e guerras são de uma incongruência pérsica, entretanto convivem bem, às vezes até de forma promíscua. As guerras precisam da medicina porque ela é estratégica e um fator que sempre pesa na balança. A medicina, por sua vez, se beneficia das guerras, morbidamente. Sendo a medicina um tipo de humanismo, o Homem, toda sua cultura e tecnologia estão no seu centro. A guerra é o pior dos anti-humanismos pois coloca o Homem e, por conseguinte, toda a sua cultura e tecnologia, contra outros homens o que equivale a dizer, contra si. É como uma auto-imunidade, uma implosão existencial. Um médico na guerra é um E.T. depressivo em busca de sentido para sua existência e suas ações. Pierce é isso. No último episódio ele pira! A intensidade de seus conflitos sublimam-se em ironia, sarcasmo, insubordinação e muita competência e dedicação. Que doença essa! A Medicina… Uma busca de sentido comum a todos os humanos traduzida, porém em dedicação e competência tendo o Homem e suas chagas como medida sofística de todas as coisas…

Antes de querer ser médico, eu queria ser Pierce…

Clique nas fotos para ver os créditos.

Atualização: Alan Alda fez no dia 28 de Janeiro último 75 anos. Que esse mísero post seja minha homenagem a quem tanto me influenciou.