Desfazendo a “Injustiça”
“E segurou sua mão até adormecer
E dormentes ficaram: Eles e as mãos
Até que não mais soubessem se laçavam-se ou não
as mãos ou se seriam elas parte de seu próprio ser”
~ o ~
Esse verso abre o post “Injustiça Fisiológica” que fez parte de uma brincadeira muito interessante: o primeiro (porque acho que outros virão) Interciência, um tipo de amigo secreto de posts entre blogs de ciência. No final, esses foram os blogs participantes com os respectivos textos recebidos:
- Alison Felipe Chaves recebeu o texto-presente “Os meus dias já foram mais pequenos”
- Ana Arantes recebeu o texto-presente “São Michael, padroeiro dos inventores”
- Atila Iamarino recebeu o texto-presente “Walt Disney, Motörhead e Fungos”
- Emanuel Henn recebeu o texto-presente “Por quem os sinos dobram. Longa vida a Bell.”
- Gabriel Cunha recebeu o texto-presente “Injustiça Fisiológica”
- Igor Santos recebeu o texto-presente “A dança do sexo (com vídeos!)”
- Karl recebeu o texto-presente “As Origens do Emaranhamento”
- Luis Azevedo Rodrigues recebeu o texto-presente “Em algum lugar do passado… molecular.”
- Marcus Vinicius Alves recebeu o texto-presente “Procrastinação”
- Otto Heringer recebeu o texto-presente “Neurobiologia Sintética”
- Roberto Takata recebeu o texto-presente “42 vezes 42”
- Thanuci Silva recebeu o texto-presente “Rastro de Mercúrio”
Como vc pode ter notado, eu escrevi para o Ciensinando do Gabriel Cunha. Foi um post sobre a fisiologia da sensibilidade e o fato de sofrermos uma adaptação sensorial ao tato, mas não à dor. Daí a “injustiça”. Foi uma honra ter participado; gostei muito de ter caído no Ciensinando. Espero que a garotada tenha lido e gostado também. Aproveito para parabenizar quem acertou a autoria do texto: Aninha Arantes, Igor Santos, Roberto Takata e Fabiana Carelli e, acho, o próprio Gabriel. Aguardo ansiosamente as revelações dos outros textos do Interciência para calibrar meus próximos chutes.
Vamos de novo? Hehe
Burburinho e Risadas
A sala pequena do apartamento não comportava todos e alguns estavam na varanda, pouco mais espaçosa. O burburinho e as risadas misturavam-se ao som dos talheres batendo na louça dos pratos e às repreensões sobre não falar de boca cheia, sentar-se direito à mesa… Os meninos devoravam uma lasanha de longa-data-apreciada da avó. O dia era festivo e a avó trouxera sua mãe – a bisavó – de sua distante residência para apreciar a confusão da “juventude”, como gostava de dizer, e matar a saudade dos bisnetos.
Foi quando a avó chamou a atenção para o fato de que apesar de todos já se servirem, a bisavó ainda não estava à mesa. O burburinho e as risadas cessaram. “Vem vó”. Ela não quis vir. “Não precisa, eu como aqui mesmo”. “Não, vamos sentar com todos!” Foi quando ela chamou a filha e disse, com os olhos miúdos, no ouvido dela, que tinha medo de derrubar a comida na frente dos meninos…
Quase 35 anos antes, submetera-se a uma mastectomia radical e o consequente linfedema do seu braço direito – um edema persistente associado a terríveis e frequentes infecções – o tornaram pesado demais para movimentos tão simples quanto levar um garfo à boca, coisa que ela fazia então com o esquerdo, mesmo sendo dextra. Isso a obrigava a comer muito devagar e a, por vezes, “errar o alvo”, derrubando o alimento, o que transformava uma simples refeição em um momento de suplício, misto de acanhamento e decrepidez, só possível na intimidade do cuidado. “Sem querer” a avó deixou transparecer o desconforto da bisa aos meninos. Um deles, se levantou e desferiu: “Vem vó! Não tenha vergonha, a senhora já me deu comida na boca”. “Pra mim também”, disse o pai e neto. “Pra mim, também” disse a avó e filha. A radicalidade lógica, minimalista e feroz, que apenas as frases carregadas de conteúdo histórico-emocional podem ter não dá muita margem à discussão. Os olhinhos miúdos deram as mãos e ela sentou à mesa.
O burburinho e as risadas recomeçaram e foram – devagar – assumindo o controle da situação.
O (Infra)Vermelho e o Branco
O professor Miguel Nicolelis e sua equipe da Duke University Medical Center
conseguiu conseguiram fazer com que ratos “visualizassem” luz em comprimentos de onda na faixa do infravermelho, o que normalmente não é possível, nem para esses animais, nem para nós. De fato, o título da matéria divulgada afirma que os roedores adquiriram a habilidade de “tocar” a luz infravermelha após a colocação de uma neuroprótese. O experimento consistia em treinar ratos a escolher cores (luz visível portanto) dentro de uma gaiola com objetivo de receber uma recompensa. “Depois de treiná-los, os pesquisadores implantaram nos cérebros dos ratos um arranjo de microeletrodos com diâmetro aproximado de 1/10 de um fio de cabelo na região cortical responsável pela sensação táctil proveniente de seus bigodes. Ligado aos microeletrodos havia um detector de infravermelho. O sistema estava programado de tal forma que quando o sensor de infravermelho disparava, era gerado um impulso elétrico no córtex sensorial do rato. O sinal aumentava em frequência e intensidade conforme o animal se aproximava da luz. No início, os ratos se confundiam e coçavam o nariz. Depois de aproximadamente 1 mês de treinamento, os ratos utilizavam o focinho para localizar a fonte de infravermelho como alguém que procura algo no horizonte com a mão em aba sobre os olhos. Levavam a cabeça para frente e para trás, procurando pela intensidade do sinal. E funcionou. Um achado importante, segundo Nicolelis, foi o fato de que tal adaptação não causou uma perda da função primária – tátil – das vibrissas do rato. Uma avenida ficcional se abre diante dessa nova possibilidade. Imaginar homens com possibilidade de “ver” ondas eletromagnéticas e outros tipos de entes invisíveis aos nossos olhos é fantástico. Além disso, a possibilidade reparar lesões neurológicas (cegueira, surdez, afasias, etc), utilizando a plasticidade do sistema nervoso é uma consequência óbvia.
A coisa toda é muito interessante. Fiquei com isso na cabeça, quando no Twitter me aparece uma palestra do Augusto de Campos tentando responder à questão: “O que é a poesia?”. Nessa palestra, Campos usa uma estorinha contada por Arnold Schönberg, o “louco” do dodecafonismo na música, quando se defrontou com a pergunta “O que é a música?”. A anedota tal como Campos contou na palestra (apesar de que o interessante e bonito portal Musa Rara dá uma outra versão) é esta:
Um cego perguntou ao seu guia: — Como é o leite?
O outro: — O leite é branco.
O cego: — E o que é esse “branco”? Me dê um exemplo de algo que seja “branco“!
O guia: — Um cisne. Ele é totalmente branco e tem um pescoço longo e curvo.
O cego: — Pescoço curvo? Como é isso?
O guia, imitando a forma do pescoço do cisne com o braço, fez com que o cego o apalpasse.
O cego: “Ah! agora eu sei como é o branco…”
Se a anedota explica (ou complica) nossa compreensão do que é a música, deixo aos seletos leitores. Tudo isso foi mesmo para dizer que se alguém perguntasse a um rato stendhaliano neuroprotetizado de Nicolelis o que é o infravermelho, talvez ele respondesse: “Infravermelho? Não sei o que é. Só sei que me dá muita vontade de coçar o nariz…”
Eric Thomson, Rafael Carra e Miguel A. L. Nicolelis. February 12, 2013 in the online journal Nature Communications.
Veja a palestra de Augusto de Campos.
As Origens do Emaranhamento

oculto.:adj. Do latim occultu-, «idem», particípio passado de occulĕre, «esconder; ocultar»
1.subtraído à vista, escondido; encoberto; 2. que apenas se conhece pelos efeitos; 3. invisível; 4. ignorado; 5. misterioso; 6. que não pode ser explicado pelas leis naturais, sobrenatural; 7. não explorado
O conceito de “elemento oculto” permeia os mais variados campos do conhecimento humano. Em especial, na verdade, quando há algum nível de desconhecimento: é a incógnita das equações matemáticas ou o sujeito oculto da gramática, é ainda o contaminante de reações químicas ou o elemento que falta em Hamiltonianos na modelagem teórica correta de experimentos. À boca pequena, diz-se mesmo que quando médicos diagnosticam pacientes genericamente com uma “virose”, o que há de fato é algum elemento que eles desconhecem e previne um diagnóstico mais preciso.
Um dos elementos ocultos historicamente mais famosos são as “variáveis escondidas” propostas por Einstein e colegas a fim de justificar que a nascente Física Quântica não poderia ser como de fato é.
Não entendeu? Eu explico. Imagine um sistema formado por duas partes. Duas bolas, por exemplo. Uma azul, outra vermelha. Melhor ainda, pense quanticamente: cada bola pode ser azul ou vermelha e o estado quântico é uma-bola-azul-e-uma-bola-vermelha. Agora separe as duas partes. Quando você olhar para uma delas e descobrir que ela é vermelha, imediatamente você sabe, sem olhar para a outra, que ela é azul, e vice-versa. Mas, e aqui tem uma grande MAS exclusivamente quântico: a bola para a qual você olhou até o momento anterior à medida é azul E vermelha e só “define” sua cor no ato da medida. Consequentemente, a outra bola, não importa quão distante ela esteja, metros, quilômetros, anos-luz distante, IMEDIATAMENTE, define sua cor também.
Ora, “imediatamente” é um conceito completamente avesso à Teoria da Relatividade de Einstein. Em Relatividade não há NADA imediato: toda informação leva um tempo para se propagar e, no máximo, se propaga com a velocidade da luz. Com a interpretação do parágrafo anterior e sua Teoria da Relatividade em mãos, Einstein, Podolski e Rosen escreveram um trabalho onde afirmavam categoricamente que havia aí um paradoxo: a interpretação só poderia estar errada pois, afinal, a Relatividade estava correta. Abre parênteses: Einstein, dentre tantos, ajudou a construir a Física Quânica não apenas “positivamente”, desenvolvendo-a, mas especialmente por criticá-la, questioná-la, tentar mostrar que havia problemas e instigando seus colegas, defensores da Física Quântica, a achar interpretações coerentes para contornar os supostos problemas. Fecha Parênteses.
Desta feita, os três sugeriram duas possibilidades para resolver este aparente paradoxo: ou há, na Física Quântica, variáveis ocultas que fazem a transmissão da informação e, obviamente, ainda não haviam sido consideradas e/ou descobertas ou havia algum tipo de “ação fantasmagórica à distância” (olha os fantasmas que eu prometi aí!) responsável pelo efeito. Mais um parênteses: vindo de cientistas de alto gabarito, a menção explícita a “fantasmas” chega a ser engraçada e surpreendente.
A questão manteve-se e foi estudada por muitos e por muito tempo. Coube a Bell colocar a existência das variáveis ocultas numa simples desigualdade matemática (a desigualdade de Bell) e ao físico Alain Aspect a testar essa desigualdade e, surpreendentemente, violá-la, descartando definitivamente a existência das variáveis escondidas propostas por Einstein. Mas então, perguntará você: se a parte oculta da questão não existe, isso significa que há fantasmas agindo por aí? É claro que não.
De fato, a aventada “ação fantasmagórica à distância” tornou-se uma das mais emblemáticas e potencialmente aplicáveis faces da Física Quântica. Nascia ali o Emaranhamento. Em termos simples, e voltando ao nosso exemplo lá do começo do texto, as duas bolas estão emaranhadas e por isso, não importa quão distante elas estejam, ainda assim formam um único sistema, delocalizado e, por isso, quando a cor de uma se define, a da outra, imediatamente, também se define, pois elas formam um único sistema. Esse tipo de fenômeno é exclusivo da física quântica e não tem, nem pode ter, análogo clássico. De fato, é este fenômeno um dos pilares das propostas de transmissão, criptografia e computação quânticas, e do teletransporte (“Beam me up, Scotty!”) que um dia farão (farão mesmo?) seus caminhos para o nosso dia-a-dia e que hoje começam a se tornar reais em laboratórios ao redor do mundo.
[Este texto é parte da primeira rodada do InterCiência, o intercâmbio de divulgação científica. Saiba mais e participe em: http://scienceblogs.com.br/raiox/2013/01/interciencia/]
Subúrbio
Naquela época não se dizia “o trem que vai para ou que vem do subúrbio”; dizia-se apenas “o subúrbio”, sinônimo daquele trem.
Ele não devia ter mais que nove ou dez anos e andava de mãos dadas com aquela que parecia ser sua mãe. Na cabeça pelada, um boné com as três cores de seu clube preferido ganho numa dessas campanhas de final de ano. Encaminhavam-se para a estação em meio ao tropel da multidão líquida e amorfa de trabalhadores duas, às vezes, três vezes na semana, mas não iam trabalhar. O hospital ficava a duas horas e dois trens de distância, um “subúrbio” e depois, um metrô. Nas estações onde tomavam o subúrbio que os levaria ao centro, vários trens utilizavam a mesma plataforma. Era dessas estações, mais singelas, que ele gostava. Cada vez que um trem se aproximava, ele perguntava a ela: “É esse?”. Quando ela dizia não, é que o momento mágico começava.
Ele sabia que o trem não ia parar, então postava-se com o olhar fixo, perpendicular ao trem e observava sua passagem. Com o repetir de suas experiências aprendeu a olhar de duas formas diferentes. Uma, na qual transpassava o trem de modo que sua rápida passagem pela plataforma se tornava uma sequência contínua de brilhos inoxidáveis, alternância de claro/escuro, transparente/opaco e a sensação ao mesmo tempo gostosa e assustadora da velocidade. Na outra forma de ver, ele fixava um ponto, em geral, uma cabeça de passageiro ou um cartaz e tentava acompanhá-los até perder de vista. Depois, fixava outro ponto, e outro, cada vez mais próximos, até doerem os olhos castanhos ou então sentir uma vertigem, que era sempre maior quando ele tomava o soro vermelho. “Eram jeitos muito diferentes de ver o mesmo trem”, pensou.
Um dia de domingo, a viu chorando ao falar sobre o futuro a uma tia. Ao vê-lo, enxugou as lágrimas e sorriu mal-disfarçando. Ele ficou pensando muito no futuro e de como seria bom se pudesse dizer o que aconteceria nele para que ela não ficasse com medo. O futuro. “Por que ela tem medo do futuro, mas não tem do passado ou do presente?”
Na volta do hospital aquele dia, ficou aguardando o subúrbio que não pararia. Recebera o soro vermelho e estava com vontade de sentar em qualquer lugar, mas permanecia como sempre, em pé segurando a mão dela. “É esse?” “Ainda, não!” foi a resposta; mas os trens que eles esperavam não eram os mesmos e ele se preparou. Olhou para o trem da forma como sempre fazia, mas dessa vez, não fixou os olhos e não conseguiu acompanhar as pequenas cabeças dentro dos vagões. Viu outra coisa. Viu o trem passando. Olhou para frente e viu o trem que tinha acabado de passar, olhou para trás e viu o trem que ainda não havia passado. Na sua frente, o trem passando. “Quanto de trem passa agora?” – perguntou baixinho. “Já vem”, ouviu dela. Era fácil saber quanto de trem ainda faltava passar, quanto de trem havia passado, mas muito difícil saber quanto de trem passava exatamente agora na sua frente. Só uma fatia muito fininha de trem, mais fina que ele, mais fina que seu dedo magrelo, que ele colocou entre o nariz e o trem, “passa agora”. O resto ou já passou, ou passará. Então, o subúrbio tinha três partes que passavam ao mesmo tempo. “A que falta, a que passa e a que já passou, mas é o mesmo trem”. Se divertiu muito com a ideia de que quando voltava a cabeça em direção à frente ou ao final da composição, a fatia-fininha-do-trem-que-passa-agora também podia mudar de lugar e imaginou as pessoas em outros pontos da plataforma tendo as mesmas sensações. Só então fechou os olhos. Uma certa tontura um pouco diferente o acometeu. Eram muitos e complexos pensamentos. Imaginou um trem gigante e muito comprido que nunca parasse de passar e achou que isso era muito parecido com a vida das pessoas.
“Não precisa ter medo do futuro” – disse, ainda com os olhos fechados, e riu. “Vem, menino. Abriu as portas. Cuidado com o buraco”. Ela puxou-lhe pela mão e fez com que entrasse no subúrbio, novamente transformado em trem parado na estação.
Antropofagia
1° Ato
E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Este corpo, como você vê e toca, jamais verá e tocará de novo.” Se ele dissesse que seus olhos serão feitos de tal modo que nenhuma parte do seu corpo se exporá ao seu olhar e que um dispositivo maligno, deixando-o livre para alcançar todas as coisas, o impedirá de tocar sua própria carne. Que a partir desse fatídico momento, você será como uma partícula de poeira dotada apenas de consciência, sem a vivência de seu próprio corpo.
2° Ato
“A universidade aos poucos sucumbe aos efeitos colaterais de um mundo que, como diria Nietzsche, vomita “ideias modernas”. Os processos de democratização do saber, como suspeitava nosso filósofo, são processos de produção de nulidades em grandes quantidades.(…) A universidade está morta e só não sente o cheiro do cadáver quem tem vocação para se alimentar de lixo. Fosse Kafka vivo e escrevesse um conto sobre nós, acadêmicos, nos colocaria com cara de ratos.” (LF Pondé na FSP).
3° Ato
“Ai – dizia o rato – o mundo se torna cada dia mais pequeno. Primeiro era tão amplo que eu tinha medo, seguia adiante e sentia-me feliz ao ver à distância, à direita e à esquerda, alguns muros, mas esses longos muros se precipitam tão velozmente uns sobre os outros que já estou no último quarto e, ali no canto, está a armadilha para a qual vou. – Apenas tens de mudar a direção de tua marcha, disse o gato, e comeu-o.” (Franz Kafka – apud Jacó Guinsburg).
4° Ato
“A ausência de corpo não é tua alma, Rato. O melhor é comer-te a ti mesmo se o queres desprezar.” E assim, se fez…
Gran Finale
Agradecimento especial ao Dr. Hermes Prado Jr que gentilmente cedeu a figura que inspirou o texto.
Ricoeur, Metáforas, Narrativas e a Medicina
Conheço muita gente boa – boa mesmo – que não gosta de ler ficção. Mais especificamente, romances ou histórias contadas, ou mesmo narrativas. Uma vez, escrevi que os romances são como ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, placebo controlados do mundo da vida e continuo concordando com isso. Mas, confesso, ainda me faltava um certo embasamento teórico para sustentar isso. Paul Ricoeur talvez tenha resolvido o problema. Ele teve reeditada no Brasil sua obra máxima “Tempo e Narrativa” pela editora Martins Fontes. Segundo o que o próprio autor expõe na introdução ao livro, Tempo e Narrativa é uma obra gêmea de A Metáfora Viva. Este livro pode ser considerado uma consequência da “experiência de Ricoeur na academia norte-americana, especialmente por seu contato com a filosofia analítica anglo-saxônica e sua inclinação por estudar não apenas a natureza ontológica de cada categoria, mas seus mecanismos de funcionamento e de interação com o mundo”[1]. Em A Metáfora Viva, de 1975, Ricoeur defende, a exemplo de Rorty, que a metáfora provoca uma inovação, ou como gostaria o americano, uma redescrição.
Com a metáfora, a inovação consiste na produção de uma nova pertinência semântica por meio de uma atribuição impertinente: “A natureza é um templo onde viventes pilares…” A metáfora continua viva enquanto percebermos, através da nova pertinência semântica – e de certo modo em sua espessura -, a resistência das palavras em seu emprego usual e, portanto, também sua incompatibilidade no nível de uma interpretação literal da frase.”
Dito isso, Ricoeur passa a explicar que Tempo e Narrativa é fruto de uma tentativa de paralelismo entre metáforas e narrativas, veja só! No caso das narrativas,
… a inovação semântica consiste na invenção de uma intriga que, também ela, é uma obra de síntese: pela virtude da intriga, objetivos, causas, acasos são reunidos sob a unidade temporal de uma ação total e completa. É essa síntese do heterogêneo que aproxima a narrativa da metáfora. Em ambos os casos, algo novo – algo ainda não dito, algo inédito – surge na linguagem: aqui, a metáfora viva, isto é, uma nova pertinência na predicação, ali, uma intriga inventada, isto é, uma nova congruência no agenciamento dos incidentes.
Só por isso, o estudo de tais “literatices” por profissionais de saúde já estaria justificado, contudo, ainda assim, estaríamos a pisar em um campo bastante teórico. Mas, Ricoeur avança mais. Para ele, a imaginação produtiva é quem possibilita a compreensão. Metáforas e narrativas simulam (não estaria aqui embutida a ideia de ensaio?!) num nível superior de uma metalinguagem, a inteligência enraizada no esquematismo que nos aprisiona: o da linguagem. Como grande hermeneuta que é, escreve:
Consequentemente, quer se trate de metáfora ou de intriga, explicar mais é compreender melhor. Compreender, no primeiro caso [metáfora], é voltar a captar o dinamismo em virtude do qual um enunciado metafórico, uma nova pertinência semântica emergem das ruínas da pertinência semântica tal como aparece numa leitura literal da frase. Compreender, no segundo caso [narrativa], é voltar a captar a operação que unifica numa ação inteira e completa a diversidade constituída pelas circunstâncias, pelos objetivos e pelos meios, pelas iniciativas e pelas interações, pelas reviravoltas da fortuna e por todas as consequências não desejadas da ação humana.
É isso! Hoje, o discurso científico, por seus poderes pre-visionários e seus resultados, sobrescreve a medicina de tal forma que o médico se torna quase como um “papagaio-de-estudos-clínicos”, repetindo-os sem parar até que novos estudos substituam os antigos. Nossos pacientes não querem só isso. Sem abandonar a ciência, é preciso dar algum valor aos discursos que, feitos de linguagem, são quase como que abstraídos da relação entre os médicos e seus pacientes (e entre médicos também!), como interferentes, ruídos indesejáveis. Como fazer isso? Trata-se de um problema epistemológico pois refere-se ao valor de verdade que atribuímos a determinadas informações. Ricoeur vai no nervo:
O problema epistemológico levantado, quer pela metáfora, quer pela narrativa, consiste em grande medida em ligar a explicação empregada pelas ciências semio-linguisticas à compreensão prévia que decorre de uma familiaridade adquirida com a prática linguageira, tanto poética como narrativa.
Seria a partir do “estranhamento” à “familiaridade da prática linguageira” causado pela poesia (metáforas em trânsito) e pelas narrativas (ensaios de intrigas sintéticas do mundo da vida) que quebraríamos o transe cognitivo causado pelo costume. Se o discurso poético permite à linguagem acessar realidades que não são atingidas pelo discurso meramente descritivo, permitindo inclusive a Ricoeur falar em referência metafórica, em especial nos campos “sensorial, pático, estético e axiológico, constituintes do mundo habitável”, a função mimética das narrativas, por sua vez, se exerce de preferência no campo da ação e de seus valores temporais. As narrativas reconfiguram nossas experiências temporais. É daqui que elas retiram seu valor de verdade. Heidegger é foda.
(Desculpem o palavrão)
[1] Ver resenha “profissa” do livro aqui.
O Bloqueio dos Prótons
Este é o último post da série sobre as aquaporinas, um dos mais “geniais” sistemas de transporte molecular já descoberto, que contou com os posts O Poder dos Prótons e Uma Passagem para Água.
Do ponto de vista biológico, portanto, faz sentido as aquaporinas não permitirem a entrada de espécies protonizadas. Mas, do ponto de vista bioquímico isso não é tão simples. A pergunta “Como?” é a que deve ser cientificamente respondida, mas apenas recentemente estudos com simulações elucidaram os mecanismos de bloqueio dos prótons.
São três os dispositivos capazes de efetuar o bloqueio dos prótons pelas aquaporinas[1,2]. A pergunta sobre qual seria o mais importante, ainda se constitui objeto de discussão acadêmica. A figura abaixo mostra o canal de uma subunidade da AQP1 onde quatro moléculas de água (de cor mais forte, no centro) demonstram as interações com os resíduos aminoácidos da estrutura do canal. Os mecanismos são:
(a) Estreitamento. Por restrição de tamanho, pouco acima do ponto médio do canal, o poro se estreita de 8 Å para 2,8 Å (aproximadamente o diâmetro de uma molécula de água). Isso provoca a desidratação do H3O+, o que obrigaria a molécula a desfazer-se de sua carga.
Figura 1. Mecanismos de bloqueio de prótons pelas aquaporinas. (modificado de [1])
(b) Repulsão eletrostática. Um resíduo de arginina (R-195, na figura) na região de maior estreitamento do poro impõe uma barreira aos cátions, incluindo o H3O+. No foco da controvérsia, alguns estudos mostram que talvez esse mecanismo seja o mais importante no bloqueio dos prótons pois ele está presente virtualmente em toda família das AQP. A retirada deste resíduo reduz drasticamente a especificidade aos prótons.
(c) Reorientação do dipolo. Duas hélices parciais formadas por resíduos Asn-Pro-Ala (chamados NPA motifs) se encontram no meio do canal, formando um campo magnético bipolar que alinha a molécula de água através da formação de duas pontes de hidrogênio. Isso orienta perpendicularmente a água, fazendo com que as pontes O-H apontem para fora do canal, impedindo a condutância dos prótons pelo efeito Grotthuss. Mais elegante, esse mecanismo foi o proposto inicialmente [3,4]. A figura 2 mostra como o campo magnético bipolar exige que a molécula de água tenha uma orientação específica para entrar no canal a um baixo custo de energia.
Figura 2. Modelagem da organização preferencial da cadeia de moléculas de água da aquagliceroporina (GlpF) de E. Coli. (Acima) Três conformações representativas da cadeia de água. (A) Com as pontes de H orientadas para o extracelular. (B) Conformação preferível. Note que entre a molécula 6 e a 7, o alinhamento entre H e O (branco e vermelho, respectivamente) é quebrado. (C) Com as pontes de H orientadas para o intracelular. (Abaixo) Gráfico ilustrando a energia necessária para a reorientação das moléculas de água (nas abscissas) e a orientação das pontes de H (ordenadas) por duas metodologias diferentes (linhas vermelha e verde). As letras A, B e C correspondem às conformações acima, sendo a B a de menor trabalho termodinâmico . (A partir da referência [3])
Os dispositivos de bloquear prótons presentes nas aquaporinas, seja pelo posicionamento estratégico de cargas ao longo de um canal, seja pelo “desengajamento” da corrente de moléculas de água que quebra o “teletransporte” dos prótons, são exemplos interessantes da “luta” na qual os seres vivos se envolveram para chegarmos onde estamos. Tal luta não se dá apenas no nível macroscópico da concorrência entre as espécies e a seleção natural. Ela ocorre também no nível subcelular – das moléculas -, e mostra a dificuldade de resistir e manter-se estável na agressividade do ambiente natural, o que pode bem ser entendido como “viver”. Parece, então, ter sido evolutivamente vantajoso para célula manter os sistemas de transporte de água e prótons separados de modo a poder controlar o volume e a concentração dos solutos do citoplasma, por um lado, e o metabolismo energético, por outro, de forma independente[4]. A família das AQPs é filogeneticamente antiga, estando presente nos procariotas, o que indica a urgência desse controle já nos primórdios da vida na Terra. De fato, domar precocemente as vicissitudes da água parece mesmo ter sido imprescindível para que os seres vivos prosseguissem dependendo dela.
Referências Bibliográficas
[1] Kozono D, Yasui M, King LS, et al.: Aquaporin water channels: atomic structure molecular dynamics meet clinical medicine. J Clin Invest 109:1395-1399, 2002.
[2] Chen H, Wu Y, Voth GA: Origins of proton transport behavior from selectivity domain mutations of the aquaporin-1 channel. Biophys J 90:L73-75, 2006.
[3] Chakrabarti N, Tajkhorshid E, Roux B, et al.: Molecular basis of proton blockage in aquaporins. Structure 12:65-74, 2004.
[4] Eisenberg B: Why can’t protons move through water channels? Biophys J 85:3427-3428, 2003.
Uma Passagem para a Água
Este post faz parte de uma série cujo primeiro é O Poder dos Prótons.
Na fisiologia clássica, por volta da década de 20, quando se descobriu que a membrana plasmática das células era uma dupla camada lipídica, formulou-se a hipótese de que a água pudesse penetrar no meio intracelular através da própria membrana, seguindo forças osmóticas. Entretanto, uma série de pesquisadores, por meio de medidas biofísicas (que analisam potenciais de membrana), notaram que a permeabilidade de algumas membranas à água era 10 a 20 vezes maior do que a esperada caso a passagem ocorresse apenas através delas[1]. Previram, assim, a existência de um canal para passagem da água.
No início da década de 80, Peter Agre era um hematologista envolvido no estudo do fator Rh (o “positivo” ou “negativo” dos tipos sanguíneos) trabalhando no Instituto Nacional de Saúde dos EUA. Estava interessado em induzir a formação de anticorpos em coelhos sensibilizando-os com um peptídeo parcialmente purificado do fator Rh. Os coelhos reagiam fortemente produzindo anticorpos que, no entanto, não reagiam com o cerne da molécula de Rh mas sim, com uma outra proteína que acreditava-se ser um fragmento do grande polipeptídeo. Parecia uma contaminação do experimento. Mas essa proteína de 28 kilodaltons (kDa), tinha algumas propriedades estranhas. Não se corava com os procedimentos habituais e quando foram procurá-la na membrana de hemáceas, verificou-se que era extremamente abundante. Com aproximadamente 200.000 cópias por hemácea, era uma das proteínas mais comuns na célula! Nas palavras de Agre (descendente de imigrantes nórdicos) “era como se alguém, andando pelo norte desértico da Suécia, de repente, encontrasse uma cidade de 200.000 habitantes que não constasse em nenhum mapa”. Estudos subsequentes revelaram que a proteína tinha características de um canal pois dispunha-se ao longo da espessura da membrana. Uma série de elegantes experimentos revelou que ela era um canal de água sendo batizada com o sugestivo nome de aquaporina 1 (AQP1). Peter Agre recebeu o prêmio Nobel de Química em 2003 por sua descoberta (Figura abaixo). Orgulho do pai, que havia trabalhado com Linus Pauling, acabou abandonando a hematologia. (Veja a interessantíssima “palestra do prêmio” (em inglês, 45 min) no portal do Nobel).
Figura 1. Peter Agre. Prêmio Nobel de Química de 2003
As aquaporinas constituem uma família de, até o momento, algumas centenas de proteínas de membrana. Nos mamíferos já foram identificadas doze, sete das quais estão presentes no rim. Nos últimos anos, pesquisas têm explorado a seletividade e as funções multitransportadoras das aquaporinas. Isso levou a uma divisão do grupo em aquaporinas clássicas e aquagliceroporinas. Estas últimas também transportam passivamente glicerol e outros polióis bem como alguns solutos e, ao que parece, são filogeneticamente até mais antigas que as aquaporinas clássicas[2]. A AQP1 é uma proteína de membrana altamente permeável à água. Sua condutância é de aproximadamente 3 x 10^9 molec / subunidade / seg permitindo que uma molécula de água trafegue a ~0,02 cm/s [3]. A AQP1 forma 4 complexos na membrana celular (subunidades), cada um formando um canal de água independente (figura 2). Um quinto poro é formado no centro do complexo e há indícios de que possa conduzir íons, mas o transporte passivo de água através da membrana celular é mesmo a maior função fisiológica da AQP1 [4].
Figura 2. Foto de simulação do transporte de água por uma molécula de aquaporina. As subunidades são constituídas de túbulos que estão em cores diferentes. As moléculas de água (pequenos bumerangues azuis) permeiam a subunidade à direita (em dourado). Esta imagem ganhou o prêmio de melhor foto científica da revista Science™ na edição de 24 de Setembro de 2004 e pode ser encontrada aqui, juntamente com uma animação do transporte das moléculas de água.
É surpreendente o fato de que, mesmo transportando água tão eficientemente, as aquaporinas sejam impermeáveis aos íons. A razão disso seria a proteção do meio interior celular para que a maquinaria metabólica possa funcionar adequadamente e em “silêncio biológico” – o que pode até ser uma definição bonita de Saúde, mas teleológica demais para servir a nossos propósitos. Até o mais enxerido de todos íons, o próton e seu alterego H3O+, não consegue passar pelas reentrâncias do canal de água. Como isso se dá? Como isso ocorre se os prótons teleportam-se de um lugar para outro livremente na Mattrix aquática, materializando-se e evaporando em qualquer lugar bastando para isso um “fio de água” por onde possam passar…
É o que tentarei descrever no próximo e último post da série.
Referências Bibliográficas
[1] Finkelstein A: Water Movement Through Lipid Bilayers, Pores, and Plasma Membranes: Theory and Reality (Distinguished Lecture Series of the Society of General Physiologists). New York, John Wiley & Sons Inc, 1987.
[2] Nielsen S, Frokiaer J, Marples D, et al.: Aquaporins in the kidney: from molecules to medicine. Physiol Rev 82:205-244, 2002.
[3] Preston GM, Carroll TP, Guggino WB, et al.: Appearance of water channels in Xenopus oocytes expressing red cell CHIP28 protein. Science 256:385-387, 1992.
[4] Zhu F, Tajkhorshid E, Schulten K: Theory and simulation of water permeation in aquaporin-1. Biophys J 86:50-57, 2004.