Sonho de Memória

Sob a história, a memória e o esquecimento.

Sob a memória e o esquecimento, a vida.

Mas escrever a vida é outra história.

Inacabamento.

Paul Ricoeur

Como a memória se relaciona com o real?

~ o ~

Dona Alzira tem 84 anos e nenhum problema grave de saúde, exceto um Alzheimer avançado. Bebe sua cervejinha e dorme a sesta durante o dia. É capaz de entabular uma conversa na qual, apenas após uns 5 minutos de papo, o interlocutor começa a perceber que alguma coisa não se encaixa muito bem. É divertida e adora um palavrão.

Precisamente hoje, Dona Alzira recebeu, no café da manhã, a notícia de que um grande amigo seu, Vicé (pronuncia-se Vitché), veio a falecer. Olhou para baixo e ficou triste. “Morreu de infarto, dormindo. Pelo menos não sofreu, não ficou numa cama…” Ela não chorou e terminou o café em silêncio.

Foi para seu quarto, tomou banho, trocou de roupas e chamou a filha. Após alguns segundos de insuportável silêncio, começou a chorar bem baixinho. “Que foi, Mãe?” “Não sei. Tive um sonho ruim. Sonhei com o Vicé…”

A Incomensurável Distância do Ser

Homem:- Você nem liga pra mim…

Mulher: – Claro que ligo!
Homem: – Liga nada. Você só se preocupa com sua mãe e com as crianças. Não vejo você se preocupar comigo.
Mulher: – Você não sabe de nada. Me preocupo muito com você.
Homem: – É? Como?
Mulher: – Rezo para você todos os dias!
Homem: – Isso é se preocupar? Como vou saber que reza mesmo? E depois outra, em que isso exatamente se traduz? Tipo, nenhum santo ou mesmo Deus, veio falar comigo dizendo que você liga pra mim!
Mulher: – Como você é besta! Você não está saudável, trabalhando?
Homem: – Tirando uma dorzinha nas costas, tô, né? Que jeito…
Mulher: – Então. Não reclama.
Homem: – Como “não reclama”? Você não se preocupa comigo, nem liga pra mim… Nem lembro quando transamos a última vez!
Mulher: – Rá. Sabia que ia acabar nisso. Entendi tudo. Para você “se preocupar comigo” é transar.
Homem: – Bom. Veja bem. Não. Não é só isso…
Mulher: – Não? O que é se preocupar então?
Homem: – Se preocupar também é telefonar, saber se eu estou vivo…
Mulher: – O quê?!!! Não foi você que falou para eu nunca ligar no banco, exceto em emergências? Que fica falando que seus amigos tiram sarro de você e que eu tenho fama de brava!!!?
Homem: – Desisto. Não dá pra conversar com você.
Mulher: – Pois fique então sabendo que eu me preocupo com você, sim. E muito. Meus santinhos são testemunhas.
Homem: – Santo nunca é testemunha de nada… Só na cabeça das pessoas.
Mulher: – Pois é. Pra mim, isso basta.
Homem: – Pois pra mim, não. Precisa ter alguma coisa mais concreta que uma “reza” para eu acreditar.
Mulher: – Tipo “ter relação”?
Homem: – Não fala assim. Você sabe que eu brocho!
Mulher: – Quanto mais velho, mais besta.
Homem: – Pois, quanto mais reza, menos transa!
Mulher: – Ei! Não fala assim. Você sabe que eu brocho…

PS. Esse post gostaria de fazer parte da Campanha do Ceticismo Aberto “Não seja um cretino” sobre a Ética do Ceticismo.

Ein Wunder

“Karl, gostaria que você acompanhasse a parte clínica dela. Precisamos tirar a medicação para abaixar a pressão”.

Lothar é zelador de uma escola primária em uma pequena cidade próxima a Frankfurt. Birgitt trabalha em um banco na mesma cidade. Duas vezes por semana. Coisas da Alemanha. O filho faz parte das Forças Armadas alemãs e foi convocado para ir ao Afeganistão. A filha é enfermeira e professora de enfermagem, veja só. O casal, na faixa dos 50, resolveu fazer uma viagem pela América do Sul. Chile, Peru, Argentina e, claro, Brasil.

“Ok. Podemos tentar. Mas, como vou conversar com ele e, em especial, com ela?”Ela está em coma.”

No aeroporto de Guarulhos, Birgitt sentiu-se mal. Procurou um toalete e chegando lá, perdeu os sentidos. Foi um corre-corre danado no banheiro. Lothar sem falar inglês, espanhol ou outra língua que não o alemão, conseguiu entender que Birgitt seria levada a um hospital público em Guarulhos. Lá, ela recebeu os cuidados iniciais e o tenebroso diagnóstico: hemorragia subaracnóide aguda. Um parêntesis rápido, esse é um dos diagnósticos mais temidos que existem em uma unidade de terapia intensiva, pelo menos para mim. Acomete, quase sempre, pessoas jovens, em idade produtiva e tem, em geral, consequências devastadoras. Era o caso de Birgitt. Após uma negociação complicada com o consulado alemão, burocracias relacionadas ao seguro saúde e dificuldades técnicas em geral, Birgitt  foi transferida para o nosso hospital.

“Você já sabe de toda a história? Não?! Putz, parece mesmo um conto de Natal! É o seguinte…”

Os exames indicavam que Birgitt tinha um aneurisma na artéria cerebral média. Esse aneurisma, uma dilatação da artéria, apresentara uma pequena ruptura suficiente para derramar sangue entre o cérebro e as meninges. Além da dor, a inflamação provoca um tipo de inchaço no cérebro que é responsável pelo coma. O aneurisma precisava ter sua base fechada cirurgicamente pois corre-se o risco de um novo sangramento, o que em geral é fatal. Além disso, a presença de sangue nesse espaço faz com que haja uma vasoconstrição de outras artérias reflexamente. Isso provoca uma isquemia cerebral que pode ser grave a ponto de causar morte do tecido cerebral e que é chamada de vasoespasmo. A cirurgia também ajuda a prevenir o vasoespasmo. Birgitt foi submetida à uma clipagem do aneurisma nas vésperas do Natal.

“Minha mãe estava internada no quarto 34 e Birgitt foi internada no 31. Sou alemã, mas fui criada no Brasil. Fiquei sabendo das dificuldades deles e me ofereci para, pelo menos, intermediar a comunicação entre ele e os médicos. No dia de Natal, levei-o para minha casa. Demos uma volta por São Paulo. Ele não imaginava que era tão grande…”

Birgitt evoluiu com aumento da pressão intracraniana. Isso é um problema porque o crânio é uma caixa rígida que contém o cérebro molenga dentro. Se o cérebro inchar, não há para onde se expandir. Em determinadas situações, a parte inferior do cérebro sai pelo orifício da medula da mesma forma que uma bexiga escapa pelo vão dos dedos quando tentamos espremê-la na mão. Estruturas vitais são comprimidas nessa situação e o paciente pode caminhar rapidamente para um quadro de morte cerebral, necessitando medidas emergenciais e, não raro, uma neurocirurgia de urgência.

“O alemão soa para mim muito bonito, mas não entendo nem uma palavra”. “Hipotermia e coma barbitúrico”. “Eu associei um antifúngico. Não sabia o que fazer porque a febre não parava de subir!””Explique a ele que ela não pode sair do ventilador mecânico porque está em coma induzido.” “Ah, esses bombons? O marido que trouxe.”

Tirei a medicação para abaixar a pressão. Tiramos o ventilador, a sonda vesical, os cateteres e os antibióticos. Hoje, ele deu uma papinha a ela e foi almoçar na casa teuto-brasileira onde reside parcialmente em terras bandeirantes. Com as mãos em prece, disse para mim: “É um milagrrre!”. Literalmente, não há chocolate que expresse a gratidão que sente. A filha enfermeira vem ao Brasil, finalmente. Ele pediu para trazer pão, veja só! Como disse uma amiga, por detrás dos monitores não há números. Há histórias. Com finais surpreendentes. Tem que saber onde lê-las.

O Cérebro (e as Orelhas) do Médico

Que tal? Lindo, não?

PS. Ressonância não é mole, não!! (Copiando Suzana Houzel, cujo endereço está no blogroll ao lado).
PS1. Ainda aguardando respostas ao post anterior.

Fumar e o Vício da Morte

“A fumaça contém toda uma estética do efêmero, como as bolhas de sabão, embora aquela, ao contrário destas, excite também o paladar. Temo que, ao fim e ao cabo, tudo vá acabar em câncer; mas é um medo longínquo ainda, mera possibilidade. Não importa. Sem querer ser perverso, a própria idéia de que embrulhado neste prazer há um impulso de morte, de finitude, apenas o acentua mais, dá-lhe profundidade e textura. Se morri um pouco agora à noite, foi uma boa morte. Bela.”

Outro dia, escrevi um post onde deixei umas coisas a discutir e aqui as retomo, ao menos em parte. A pergunta é: “seria o médico um aconselhador crônico do paciente do tipo ‘não fume’, ‘não beba’, ‘faça sexo seguro’; ou o médico seria alguém para nos tirar de enrascadas ético-morais com repercussões orgânicas nas quais nos metemos irremediavelmente pelo puro fato de vivermos?”

Sou contra a ideia do médico como um tirano comportamental, cheio de conselhos e ordens, impositor de normas de conduta. Também não acho correta a postura do médico permissivo, que acaba por estimular o paciente a cometer certos “delitos” contra sua própria saúde. São sintomáticas as recomendações de sociedades médicas que têm aconselhado os médicos a não estimular o consumo de vinho com objetivo de diminuição do risco cardiovascular. Entretanto, a prática nos obriga a tomar decisões, nem sempre as que os livros e consensos recomendam.

Antônio é um engenheiro de uma grande multinacional do setor tecnológico. Tem 60 anos e esclerose lateral amiotrófica. Tem enormes dificuldades para andar e realizar tarefas simples do dia-a-dia. A doença o obriga a usar quase que constantemente um dispositivo de ventilação mecânica que insufla seus pulmões por meio de uma máscara nasal. Antônio está de tal forma adaptado ao dispositivo que consegue trabalhar em casa, tendo todo o apoio da empresa. Aprendeu a falar usando o aparelho, a comer e até, a fazer amor! Com tanta comodidade, ele não se entusiasmou a parar de fumar. No ano passado, teve um infarto agudo do miocárdio. Sua família tem uma predisposição enorme à doença da artéria coronária e com ele não foi diferente. Após a internação na qual colocou um stent em uma das artérias do coração, eu dei um “chega-prá-lá”. Aleguei que não bastasse o diagnóstico neurológico que o obrigava a usar um aparelho de ventilação a maior parte do dia, acabara de ter um infarto. Nenhum ser humano racional continuaria fumando depois disso. A esposa concordou comigo e, após muita pressão, ele resolveu parar com o vício. Mais ou menos…

As consultas seguintes foram muito ruins. Ele chegou a dizer que sua vida acabara. Eu perguntei como alguém poderia basear a vida inteira em um bastão de nicotina. Ele disse que eu não entenderia. Eu apelei para a estatística e para a esposa… Passado um par de meses, sua mulher me liga. “Está muito deprimido. Nunca o vi assim. E se deixássemos que fumasse uns dois ou três…”

É a hora de reler o excerto acima e, como lição de casa, meditar sobre os termos “boa morte”, “bela (morte)”. Meditar sobre o que é o trágico na existência humana e porque essas coisas dão textura e profundidade a certos tipos de sensação que a cognição de nosso sistema nervoso – nossa melhor ferramenta de sobreviver, testada em milênios e milênios de luta feroz – insiste em chamar de prazer

O Sorriso Jedi

Uma vez, no consultório, um casal já de idade entrou e ficamos conversando depois da consulta. Eu deixei escapar que eles eram parecidos ao que o velhinho me respondeu: “É porque já passamos muita coisa juntos, doutor! Quando uma sequência de emoções e acontecimentos se sucede em pessoas próximas, as marcas que deixam fazem com que as pessoas se pareçam.” Eu disse: Seu Antônio, o que somos é determinado geneticamente e pela ação do ambiente. Se vocês são parecidos é por pura obra do acaso ou uma simples “impressão” pessoal minha. Não há evidência científica segura de que isso possa ocorrer de fato…

Foi quando vi um clarão e em seguida, ouvi aquele barulho característico dos bons sabres de luz. Minha ciência caiu no chão de granito frio do consultório em dois pedaços fumegantes, totalmente sem sentido.

Ele simplesmente dissera: “Eu sei” e me expunha um sorriso quase pornográfico em conluio com o dela… Mestres Jedis riem assim.

 

Futebol, Shopping e Medicina

http://www.gilsoncamargo.com.br/blog/uploads/2008/10/futebol_de_varzea_foto_gilsoncamargo_piraquara_brasil1.jpg“Quando eu era criança pequena”, morava no Butantã, bem ali, na entrada do campus da USP. O trânsito da região era bem outro e costumávamos jogar bola no asfalto da Rua Catequese. Mas esse “estádio” era para embates de pequeno porte. Os grandes clássicos eram disputados no “Areião”, pois era a única cancha que comportava um “11×11” ou mesmo “12×12”. Mas, isso era um evento raro. Eram necessários muitos moleques e o que acontecia apenas de vez em quando. Além do que, para irmos ao “Areião”, era preciso atravessarmos a ponte Eusébio Matoso que cruza a Marginal do Rio Pinheiros e depois a própria Eusébio, o que mesmo para essa época, já não era muito simples.

Aos fins-de-semana, o “Areião” era impossível para nós. Os campos, num total de nove, eram tomados por legiões de times amadores, marmanjos, que jogavam até acabar a iluminação natural. Ficávamos olhando e, como eles punham redes nos gols, aproveitávamos os intervalos para chutar bolas e bater alguns pênaltis, com intuito único de “estufar o barbante”, até sermos enxotados pelos grandalhões, e voltar a nossa posição de espectadores.

Eis que, um belo dia, depois da aula, resolvemos bater uma bolinha no “Areião”, não tínhamos um time completo mas, mesmo assim, optamos pelo “estádio” para nos acostumarmos ao gol oficial. Bicicletas, bola, o Rogério foi em casa pegar as luvas, tudo pronto. Alguns iam na garupa da Caloi, em pé; outros “tabelando” pela calçada. Atravessamos a ponte, depois a Eusébio Matoso, que não tinha passarela e começamos a notar uma movimentação anormal. Ao nos aproximarmos, a surpresa. O “Areião” estava tomado por tratores, máquinas escavadeiras e caminhões. Os gols haviam sido arrancados e jaziam, empilhados num canto. O Edvaldo cogitou levar um. Perguntamos na casa de quem ia ficar e ele desistiu. A mãe dele era muito brava. Saímos cabisbaixos, com o Edvaldo praguejando contra as poderosas máquinas e contra quem as mandara destruir nossa querida praça esportiva.

Logo um enorme shopping center foi construído e inaugurado no ano seguinte (1981). Ficamos sem os campos de futebol mas, ganhamos cinema, sorveteria. Restou, porém, uma enorme nostalgia dos campos do “Areião”.

X – X – X – X – X – X

A secretária colocou o seu Manuel, 88 anos com sua cuidadora no consultório. Muito bem vestido, de terno e gravata, apesar das sequelas motora à direita e de fala, contou, com um identificável sotaque português, toda sua história com detalhes impressionantes. Fora dono de uma grande rede de supermercados, bastante famosos em São Paulo. No final da década de 70, entrou num empreendimento revolucionário e bastante ambicioso. Devagar, foi me contando de sua vida, o estresse enorme que passou na época, até que, finalmente, disse que teve um derrame 15 dias após a inauguração de seu maior projeto: um shopping na zona sul, às margens da Marginal Pinheiros! Eu não aguentei e disse: – Seu Manuel, desculpe, mas o Edvaldo não teve a intenção!

Foto de Gilson Camargo.

A Insustentável Leveza do Exame

http://farm4.static.flickr.com/3235/2734340546_a58cf5649a_o.jpgO Dr. Nelson, um médico sênior de um grande hospital público de São Paulo, foi avisado por sua mãe de que o pai, Seu Nilson, não andava nada bem. Ao fazer uma visita, verificou mesmo que o velho pai, que tinha 80 e alguns anos, de fato não apresentava o vigor de outrora. Tinha um conjunto de queixas vagas e algumas palpitações. Levou-o ao hospital onde resolveu fazer uma “bateria de exames”. Colheu várias amostras de sangue e fazendo os “x” nos quadradinhos do impresso do laboratório, ficou com alguma dúvida se solicitaria os exames de marcadores tumorais, mais especificamente um, chamado antígeno carcinoembrionário (CEA na sigla em inglês). Solicitou também exames cardiológicos e radiografias.

Os exames regulares vieram com poucas alterações, que ele mesmo corrigiu. O ecocardiograma revelou alguma disfunção cardíaca; o eletrocardiograma, arritmias próprias da idade, sem repercussão clínica; as radiografias não mostraram achados dignos de nota. Entretanto, o tal do CEA resultou algo elevado. CEA é uma proteína oncofetal que aumenta no plasma de pacientes com vários tipos de cânceres, inclusive o carcinoma colorretal. A tentação de usá-lo como uma ferramenta diagnóstica é muito grande, mas lhe faltam duas qualidades básicas: sensibilidade e especificidade. Ou seja, o exame tem muitos falsos positivos e muitos falsos negativos, o que o inviabiliza como ferramenta de rastreamento.

Sem saber muito bem o que fazer, realizou algumas “consultinhas de corredor” (procedimento amplamente disseminado entre a classe médica) com gastroenterologistas que conhecia. Corta para uma dessas consultas, mas vamos acompanhar o raciocínio do Gastro e não do Dr. Nelson que começa: “Putz, fiz uns exames no meu pai. Dá uma olhada”. Dr. Gastro “Ah. Tá bom, né? Só o CEA tá um pouquinho elevado”. Dr. Nelson “Então. Faz o quê?”. Dr. Gastro pensa <<pô, o cara é médico, me traz os exames do pai, com CEA elevado. Por que raios ele pediu o CEA? E se for um câncer de cólon? Não posso “comer bola”…>> e diz “Ah, pede uma colonoscopia…” Dr. Nelson “Melhor, né? Tira a dúvida”. Dr. Gastro “É. Tira a dúvida”. Repetiu esse procedimento algumas vezes, sempre obtendo a mesma resposta. Resolveu fazer o exame.

Marcou a colonoscopia num hospital privado e bem aparelhado da cidade. A colonoscopia, como já se disse, é um procedimento que necessita uma limpeza mecânica dos cólons para poder visualizar-se os detalhes do intestino grosso internamente. No preparo, que consiste de fortes laxantes, Seu Nilson ficou completamente confuso, desidratou-se e sua pressão arterial caiu. Foi levado à sala de exame e, como é praxe, foi sedado. Ou tentou-se sedá-lo. Ficou mais agitado, combativo. O exame transcorreu com extrema dificuldade e terminou com Dr. Nelson sobre o Seu Nilson, enquanto o médico realizava a colonoscopia! O paciente ficou sonolento quando tudo acabou e apresentou certo desconforto respiratório. De comum acordo, o médico e o Dr. Nelson resolveram encaminhar o Seu Nilson à UTI para observação. Quem estava de plantão? ==> Karl!

Recebi o paciente e por muito pouco não o coloquei sob ventilação mecânica, por meio de um tubo orotraqueal. A radiografia estava alterada, a oxigenação, ruim. Colocamos uma máscara para ventilação com pressão positiva com melhora. Mais tarde, ele apresentou febre e foram iniciados antibióticos. Ficou uns três ou quatro dias na UTI e mais alguns no hospital, a confusão foi passando devagar e ele teve alta bem.

Ah, esqueci. Logo depois de sua admissão na UTI, recebi um laudo médico: “Colonoscopia normal”.

Foto:Éderson Silva’s photostream

O Cobre e a Menina

Eu era residente, dentre os leitos dos quais era responsável na enfermaria de Clínica Médica, havia uma vaga. Isso significava encrenca. Ou os médicos do staff vinham solicitar alguma internação vip, ou o pronto-socorro queria subir algum paciente grave, o que, de qualquer forma, era igual a muito trabalho.

Peguei meu interno (estudante do 5o ano da faculdade de medicina) e fomos dar uma olhada no pronto-socorro antes que alguém soubesse da existência da vaga. Lá encontramos uma menina de 14 anos bastante ictérica. Os médicos do PS não tinham ideia do que poderia ser. Sabiam apenas que não era um caso para cirurgia. Fiquei bastante intrigado com o caso e resolvemos interná-la.

Na enfermaria, a história dela era muito peculiar. Veio ao hospital proveniente do interior da Bahia porque estava com medo de acabar como a irmã. “Como assim?” Tinha uma irmã que morreu amarela, urinando escuro e gritando, isso aos 16 anos. Agora que ela tinha ficado amarela, tinha medo de enlouquecer também. Fiquei preocupado. Disparamos a “cavar” os exames de laboratório e imagem dentro de um raciocínio que contemplasse o diagnóstico de insuficiência hepática, que era o cabível pelo seu quadro clínico.

Seu estado piorou rapidamente. Ficou sonolenta no dia seguinte. Hematomas começaram a aparecer nos locais de punção venosa. A icterícia piorou. Sua urina ficou bastante colúrica (cor de coca-cola). No outro dia ela ficou agitada, tendo de ser restrita ao leito. Confusa, não obedecia a qualquer tipo de ordem e começou a gritar… Ficamos 24 horas por dia monitorando tudo e correndo com exames e procedimentos. Morreu dois dias depois sem que pudéssemos fazer absolutamente nada.

Os exames colhidos revelaram uma ceruloplasmina muito baixa e um cobre sérico de 225 mcg/dL (normal < 15). A menina tinha uma forma fulminante da Doença de Wilson de característica hereditária, autossômica recessiva, provavelmente a mesma que levou sua irmã anos antes. A única possibilidade era um transplante hepático que não era realizado de rotina no hospital àquela época.

Só no ano de 2009, até julho mais de 200 transplantes hepáticos foram realizados na cidade de São Paulo. Em especial um, era muito parecido com o da menina.