Metafísica Médica IV

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“O status epistemológico insatisfatório da medicina reside na sua original e inevitável conexão com a prática”
Hans-Georg Gadamer (The Enigma of Health)

Um médico é um humanista secular (o que não o impede de ter crenças individuais quaisquer), detentor de técnicas e saberes utilizados com o objetivo de aliviar o sofrimento humano. Este último, refere-se aqui “apenas” aos aspectos que envolvem os conceitos de saúde e doença. Para exercer sua profissão, o médico agindo como técnico e como agente ético é, essencialmente, um tomador de decisões, um decididor. São decisões as mais variadas, desde prescrever aspirina a fazer um transplante de fígado. Decisões de tratar, de não tratar, de investir toda a tecnologia médica possível para determinado paciente, ou de utilizar todo o conhecimento disponível com intuito de aliviar a dor e o sofrimento. Mas o médico toma suas decisões baseado em quê? Qual é (ou quais são) a(s) base(s) de sustentação de uma decisão médica?

Em uma primeira aproximação, podemos dizer que o médico decide por meio de seus saberes já que sua técnica direciona-o ao fazer, que, claro, depende de uma decisão prévia. Qual seria, então, a natureza dos saberes médicos? Basicamente, seriam duas as vertentes principais. A decisão médica levaria em consideração o saber técnico-empírico e o juízo clínico global. Chamemos de saber técnico-empírico um conhecimento nomotético que busca leis e regras gerais, utiliza a lógica e também o senso-comum. É um conhecimento teórico, transmissível, que almeja a objetividade e a coletividade, pertencendo ao domínio do público, portanto. O juízo clínico global é um conhecimento idiográfico, individual e específico. Leva em consideração a intuição e a experiência pessoal. É eminentemente prático e muito difícil de transmitir. Pode ser considerado subjetivo e diz respeito muito mais à individualidade de seu objeto, sendo portanto, radicado no domínio do privado. Este movimento dialético tem raízes profundas no pensamento médico, oriundo da oposição clássica da medicina grega, entre o vitalismo da escola de Cos (cidade de Hipócrates) e o organicismo da escola de Cnide (ou Cnidos), de inspiração empirista-atomista, por uma explicação mecânica das doenças (Biggart, 1971)[1]. Gadamer divide ainda, o saber técnico-empírico utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral. Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.

Saber Médico 1. Juízo Clínico Global
                                   2. Técnico-Empírico 2.1. Ciência
                                                                           2.2. Empírico Geral


A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte maneira. Imagine um paciente com uma doença com a qual um médico jamais se defrontou anteriormente, digamos, por exemplo, a gripe suína com insuficiência respiratória aguda grave. Cada médico tem uma experiência prévia que carrega consigo além de tudo o que estudou e estuda. Essa experiência e o que ele estudou de ciência médica fazem parte do saber técnico-empírico.
É tarefa do poder de julgamento do tal juízo clínico global reconhecer em dada situação a aplicabilidade de uma regra geral. O médico lembra de outras insuficiências respiratórias que teve e como tratou, ou das “burradas” que fez, e tenta aplicá-las (ou não) ao caso específico. Até aqui tudo normal. O problema está exatamente quando o médico resolve fazer alguma coisa (intubar o paciente, dar corticosteroides, outras drogas, etc). A ciência médica não embasa seu procedimento, não há publicações suficientes sobre o assunto, cada médico diz uma coisa, o que fazer? Utilizei esse exemplo extremo mas, isso ocorre a todo momento, com qualquer médico de qualquer especialidade, porque as decisões práticas necessitam de uma ciência que seja completa e forneça certezas que as embase. Completa, é exatamente o que a Ciência não é, por definição. E agora? E se o médica errar? Quem irá salvá-lo?

Isso nos remete às relações entre Epistemologia e Ética que estão no âmago da medicina. A epistemologia procura justificar nosso conhecimento, certas crenças ou nosso entendimento de certos fenômenos. A ética nos diz como conduzir-nos de maneira correta na busca, disseminação e uso do conhecimento, seja ele certo ou não. A ética nos ensina através da virtude intelectual, conforme Aristóteles, a encontrar a maneira correta de proceder frente a incerteza.
Na Ciência, o conhecimento científico (2.1, no esquema acima) e o empírico (2.2) caminham juntos, um corrigindo o outro. É assim que funciona e sempre funcionou. Na Clínica, a decisão prática confronta os dois tipos de conhecimento porque nunca se sabe se a aplicação de uma regra geral a um caso específico vai dar certo ou não. Só dá pra saber isso post hoc e chamamos o resultado de empírico. Isso resulta em uma tensão irredutível a qualquer processo de tomada de decisão que envolva conhecimento. Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, a tecnologia e suas aplicações. Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras de Gadamer:

Quanto mais a esfera de aplicação se torna racionalizada, mais o exercício de julgamento associado à experiência prática no sentido próprio do termo, deixa de ocorrer

Isso explica muito da tecnologização de medicina e de sua “impessoalização”. Não queremos mais médicos idiossincrásicos, individualistas, artistas de suas especialidades. Queremos opiniões uniformes, alinhadas com as últimas “notícias” produzidas pela literatura científica, a última “moda” em exames de imagem, etc. Os médicos também se acostumam a guidelines, diretrizes, algoritmos de conduta e terminam por pensar que essa é a única racionalidade correta da medicina. Há um imperativo ético na conduta de um médico. Ele tem que oferecer a seus pacientes o que ele tem de melhor. Sempre. A questão é saber se a Ciência Médica é a única capaz de julgar a eticidade dessa conduta ou se há outras formas de fazê-lo. Se a racionalidade clássica que é quem provoca essa tensão tem alguma alternativa (Cronje, 2003) talvez seja ainda cedo para dizer. E somos então remetidos à Ética da Crença. Mas isso é outra história e será um outro post, espero.

[1] Há quem diga que essa dicotomia não se justifica e que faz muito mais parte de uma lenda antiga sobre a história da medicina. Para mais detalhes ver o livro de ANTOINE THIVEL, Cnide et Cos? Essai sur les doctrines medicales dans la Collection Hippocratique, Paris, Les Belles Lettres, 1981, 8vo, pp. 435. Há uma boa resenha aqui e que pode ser baixada gratuitamente.

ResearchBlogging.org Biggart JH (1971). Cnidos v. Cos. The Ulster medical journal, 41 (1), 1-9 PMID: 4948495

ResearchBlogging.org Cronje, R., & Fullan, A. (2003). Evidence-Based Medicine: Toward a New Definition of `Rational’ Medicine Health:, 7 (3), 353-369 DOI: 10.1177/1363459303007003006

Metafísica Médica III


ResearchBlogging.orgHume: Pense na seguinte afirmação: “O evento A causa o evento B”. Exemplo, toda vez que dou uma pequena martelada no seu tendão patelar, um arco reflexo faz com que você dê um chute para frente. Podemos indicar isso da seguinte forma: martelada -> chute. Ou, genericamente, A -> B que podemos ler “por extenso” assim: eventos do tipo A (marteladas no tendão patelar) são sempre seguidos de eventos do tipo B (chute). Mais, permite-se uma intervenção na cadeia de eventos pois, se tenho controle sobre os eventos do tipo A (força, local, etc), terei também sobre os de tipo B (força, ou se o evento acontecerá mesmo ou não).

Mill: Mas a coisa não ficou por aí. Numa tentativa de aproximar este raciocínio cada vez mais da prática, pensou-se o seguinte: na verdade, o que temos não é simplesmente A -> B, mas uma conjunção de eventos em uma situação bem mais complexa (chamemo-la de Ci). Para dizermos que existe uma relação causal do tipo A -> B, os possíveis fatores confundidores de Ci devem ser determinados [1]. Isso implica em determinarmos os efeitos de Ci sem A, por um lado, e de A sem Ci, por outro. Stuart Mill, que pensou essas mirabolâncias, chamava isso de “métodos de concordância e diferença”. Esses métodos formaram a base de nossa ideia moderna de experimentação controlada.

No século XX, começaram experiências de maior fôlego na medicina, coincidindo com o surgimento da Estatística na Inglaterra. O problema é que, em medicina, raramente se encontram generalizações universais do tipo A -> B. No exemplo acima, temos vários fatores que podem fazer com que o chute reflexo não saia sempre da mesma forma. O reflexo em si, é esgotável e altamente influenciado pela atenção do paciente. Assim, as generalizações que podemos fazer em medicina são normalmente do tipo “A é seguido por B em um certo número de vezes”. O problema é obviamente o “um certo número de vezes”. Hume chamou a atenção para a inferência indutiva que as generalizações universais permitem sem nenhuma garantia em troca, por exemplo, “o fato de o dia ter nascido ontem e sempre, me garante que o dia nascerá amanhã”. Pensamos assim o tempo todo. Mas, no caso de uma afirmação do tipo “A é seguido por B em um certo número de vezes”, a inferência indutiva fica estranha assim: “Existe uma certa chance de o próximo A ser seguido por um B”. Agora esculachou tudo!! Colocamos o termo “chance” no raciocínio e para abordar isso formalmente necessitamos de uma Teoria de Inferência Estatística [1].

Uma teoria de inferência estatística é um arcabouço teórico que permite que “dados observacionais (por exemplo, porcentagens de imunização após vacina para malária) modelados como variáveis aleatórias forneçam uma base para conclusões indutivas sobre os mecanismos que geraram os dados” (por exemplo, taxa de imunização baixa, logo, essa vacina é uma porcaria!). Fisher dizia que essas conclusões eram incertas, mas que esse “incerto” não quer dizer que não exista uma matemática rigorosa por trás das conclusões! Em medicina, existem duas teorias de inferência estatística principais. A diferença entre as duas é o “jeito” de olhar os dados. Uma, objetiva, deu origem aos ensaios clínicos randomizados de que tanto falamos, a toda a base teórica da Medicina Baseada em Evidências e, porque não dizer, da prática médica atual (olha eu generalizando, hehe). A outra, tem cada vez mais adeptos, dá conta de estudar alguns eventos que a primeira não dá, mas é tachada de subjetiva. É sobre elas que vamos falar nos próximos posts.


ResearchBlogging.org [1] Derek Bolton, . (2009). The Epistemology of Randomized, Controlled Trials and Application in Psychiatry Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 15 (2), 159-165 DOI: 10.1353/ppp.0.0171

Metafísica Médica II

ResearchBlogging.org1. Sabe-se hoje, que o infarto agudo do miocárdio é provocado por um coágulo que se forma sobre uma placa de aterosclerose (ateroma) rota dentro das artérias coronárias que suprem o músculo cardíaco de oxigênio e nutrientes. Ao se formar, esse coágulo obstrui o suprimento arterial e submete o tecido irrigado a uma “asfixia” que chamamos tecnicamente de isquemia. Se a isquemia se prolonga por muito tempo, pode haver morte de células musculares, processo que chamamos de infarto (a forma “enfarte” também é aceita, mas não é norma técnica). A partir daí, a coisa se complica bastante. Desde arritmias fatais à insuficiência cardíaca, o infarto pode causar morte ou levar o indivíduo a uma vida bastante limitada.

2. Esse rapaz ao lado, chamava-se Bill Tillet, era médico e trabalhava na Divisão Biológica do Departamento de Medicina da Johns Hopkins, em Baltimore nos EUA, na década de 30. Já tinha feito algumas descobertas interessantes como a proteína C-reativa, um marcador inflamatório muito utilizado até hoje, estudando os efeitos da pneumonia causada por pneumococos (Streptococcus pneumoniae). Depois, começou a estudar as intrigantes propriedades hemolíticas de um primo do pneumococo, o Streptococcus beta-hemolítico. Como seu nome diz, essa bactéria tem a propriedade de dissolver coágulos humanos em minutos. Isso é útil a ela porque facilita a invasão de tecidos, que é seu passatempo predileto, podendo causar amidalites, celulites, erisipelas, infecções pulmonares graves e até sepse e morte. Ele e seu colega Garner conseguiram isolar uma proteína que chamaram de fibrinolisina estreptocócica (sem nenhuma noção de que esse nome enorme jamais pegaria!). Posteriormente, Tillett e outro colega aplicaram a estreptoquinase (bem melhor!) na pleura (tecido que envolve o pulmão) para dissolver coágulos e facilitar a expansão pulmonar de pacientes que tiveram pleurites e derrames pleurais complicados.

3. Nessa época, já se sabia, em linhas gerais, o funcionamento da cascata da coagulação, entretanto, não se tinha o conceito de como ela se dava in vivo. O sistema da coagulação é uma das coisas mais interessantes no organismo. A nós, bastará saber agora que um coágulo não é um tipo de “rolha” estanque que entope um vaso sanguíneo e muda seu nome para trombo. Um coágulo é a própria metáfora da criação/destruição tão comum em algumas filosofias orientais. Ele está a todo momento, formando-se e dissolvendo-se no interior de um vaso. Isso porque sobre ele intervém dois poderosos sistemas, um pró-coagulante, o outro, anticoagulante. Se bloqueamos um, o outro prevalecerá. Se favorecermos um, o outro não resistirá. O corpo e o tamanho do coágulo dependerão desse jogo de forças. Trombolíticos utilizam a via anticoagulante de forma poderosa levando à fibrinólise. A fibrina é como um rede de sustentação sem a qual o coágulo desmorona.

4. A partir do momento que os médicos entenderam que o infarto do miocárdio era causado por um coágulo nas coronárias e que existiam substâncias que poderiam dissolvê-lo, não demorou muito para que um gaiato resolvesse injetar as tais substâncias nas pessoas com objetivo de livrá-las de alguma obstrução incômoda. As primeiras experiências foram terríveis. Efeitos colaterais graves como hipotensão e choque, alergias e alterações imprevisíveis na coagulação não demoveram os médicos da ideia dos trombolíticos apesar de haver cirurgias bem estabelecidas onde o trombo era removido por meio da abertura cirúrgica da artéria envolvida[1]. Era preciso simplificar e ser menos invasivo. O primeiro estudo positivo foi a desobstrução de membros inferiores, onde o agente trombolítico (no caso a uroquinase) foi injetado diretamente na artéria femoral em 1956. Na década de 70, estudos sobre trombólise intracoronariana começaram a ser publicados, mas uma coisa é utilizarmos um cateter na artéria femoral que é de relativamente fácil acesso. Outra, totalmente diferente, é cateterizar a artéria coronária obstruída (normalmente existem 3 grandes ramos) e injetar o trombolítico. É preciso um laboratório de hemodinâmica, pois esses procedimentos são realizados, até hoje, com uso de raios-x contínuos (escopia) de modo a monitorizar a progressão do cateter até o local correto. Mas, era preciso simplificar mais. Era preciso estender o benefício do tratamento a todas as pessoas que por acaso necessitassem dele. E não eram poucas. Estima-se que mais de 70.000 pessoas morram atualmente por ano no Brasil vítimas do infarto e de suas complicações.

5. Há 25 anos, no dia 22 de Fevereiro de 1986, um sábado, foi publicado no Lancet o estudo chamado GISSI (Gruppo Italiano per lo Studio della Streptochinasi nell’ Infarto Miocardico)[2]. Esse foi o primeiro grande estudo a demonstrar claramente que o uso de agentes trombolíticos aplicados a uma veia periférica poderia reduzir a mortalidade no infarto agudo do miocárdio. Entretanto, já era possível saber disso em 1977[3], quase 10 anos antes. Demoramos 10 anos para comprovar algo que nossa leitura intuitiva das experiências realizadas em laboratório ou com um pequeno número de pacientes, já suspeitava. Isso significou a perda de muitas vidas. O GISSI foi um ensaio clínico randomizado (aleatorizado em português) não duplo cego, que reuniu mais de 11.800 pacientes em várias UTIs na Itália. O que ele nos disse que os outros não disseram? Como ele nos convenceu e por que?

ResearchBlogging.org1. Ouriel, K. (2004). A History of
Thrombolytic Therapy Journal of Endovascular Therapy, 11 (Supplement II) DOI: 10.1583/04-1340.1


ResearchBlogging.org2. Effectiveness of intravenous thrombolytic treatment in Acute Myocardial Infarction. GISSI. The Lancet, 327 (8478) DOI: 10.1016/S0140-6736(86)92368-8

ResearchBlogging.org 3. Egger M, & Smith GD (1995). Misleading meta-analysis. BMJ (Clinical research ed.), 310 (6982), 752-4 PMID: 7711568

Metafísica Médica

ResearchBlogging.orgO que é a Medicina? O lugar-comum das respostas é a tal “fusão entre Ciência e Arte”. Dado que não há uma definição universalmente aceita para Ciência e muito menos para Arte, eis que ficamos em situação bastante pior, posto que uma fusão entre duas coisas indefinidas é uma confusão! Praticar medicina baseado apenas nas evidências científicas, nos processos de generalização e indução, é tratar dos pacientes como sendo iguais em suas diferenças, o que favorece um tratamento massificado; por outro lado, a recusa aos dados científicos nos leva de volta às experiências pessoais, anedóticas de uma medicina pré-científica.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/Turkey_ancient_region_map_ionia.JPGCostuma-se dizer que a Medicina é uma profissão e isto é bem verdade. Assim como o sapateiro, o mascate e o barbeiro, o médico procura, com sua técnica, facilitar a vida da espécie humana em troca de alguma remuneração. Uma separação de ordem conceitual, entretanto, começou a ocorrer entre a Medicina e outras profissões há mais ou menos 2500 anos. “Segundo Werner Jaeger (Paidéia – página 198) o conceito de physis foi o ponto de partida de pensadores naturalistas do século VI AC, dando origem a um movimento espiritual e a uma forma de especulação. Na verdade, seu interesse fundamental seria o que chamamos hoje metafísica, por seu interesse nas causas primordiais dos fenômenos.” Esse tipo de pensamento surgiu numa região chamada Jônia (território da atual Turquia – foto ao lado, clique para aumentar e ver os créditos).

Hipócrates e seus seguidores eram da ilha de Cós, de população e língua dóricas, e escreveram todo o Corpus Hippocraticum em jônico. A razão disso é que o jônico era como se fosse um tipo de linguagem científica da época e da região, a exemplo do que é o inglês para o mundo hoje. Ainda segundo Jaeger, a incorporação do pensamento jônico fez com que a medicina se tornasse uma techné consciente, metódica e, principalmente, distante do pensamento mágico, este último o responsável pela estagnação da medicina egípcia desde suas grandes descobertas, todas bem anteriores aos progressos da medicina grega. Longe de querer repetir toda a bela história da medicina, essa minúscula retrospectiva teve o intuito de dizer que a medicina está, desde sempre, apoiada sobre uma base científica para exercer sua profissão. Como é, ou como está, essa base hoje? Posto de outra forma, de que áreas do conhecimento humano se constitui a ciência médica – as bases científicas da prática médica? A tabela abaixo é uma tentativa de resposta sintética para essa difícil pergunta (clique para aumentar – modificado da referência 1).

Já abordamos o assunto sob a ótica do público e do privado e penso que uma das principais confusões sobre a prática médica chamada de “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) seja o fato de que ela pertence ao “privado”, tendo sido sequestrada pelo “público”. Mas, isso é outra história. Quero me aprofundar desta vez, no conteúdo da tabela. A ciência médica compreende, segundo Williams [1], três domínios de pesquisa, a saber, o laboratório experimental, pacientes e, por fim, populações. Cada um desses domínios têm um tipo de abordagem, trabalha com determinadas ferramentas, necessitando de infraestruturas específicas. Nos EUA, têm programas de treinamento diferentes, que em geral se assemelham aos brasileiros. Apesar de bastante abrangente, a tabela dá uma ideia errônea da ciência médica pois supõe que os vários domínios sejam equivalentes em relevância para a prática clínica. Não são. Há, por assim dizer, uma hipertrofia enorme do domínio “pacientes” e de suas ferramentas, em especial, os ensaios clínicos, sobre a forma de se conduzir do médico contemporâneo.

Tentarei me aprofundar nessa questão no(s) próximo(s) post(s). Investigar o porque disso ter ocorrido e tentar estabelecer questões epistemológicas a respeito desse conhecimento que vem dando base à prática médica é uma tarefa talvez demasiado grande, mas tem bastante medaglia chegando. E eu vou atrás…


ResearchBlogging.org1. Williams GH (1999). The conundrum of clinical research: bridges, linchpins, and keystones. The American journal of medicine, 107 (5), 522-4 PMID: 10569311

Dança com os Pulmões

ResearchBlogging.orgPodemos dividir uma música em melodia, harmonia e ritmo (as melodias são o que podemos assobiar em uma canção; as harmonias consistem em sua base musical). Uma vez, me disseram (um músico) que nossa memória musical é muito boa para reconhecermos melodias e até harmonias. Todavia, apesar de podermos repetir ritmos na forma de palmas, auto-percussão, estalar de dedos e outras coisas, não temos uma maneira tão eficiente de lembrar de ritmos.

Por isso, dançamos! A memória de um ritmo exigiria algo mais, talvez o auxílio de outros tipos de percepção como a propriocepção. A propriocepção é a modalidade sensorial que nos permite, mesmo de olhos fechados, saber se estamos com as pernas dobradas ou não, se estamos fazendo uma curva para direita ou esquerda, em suma, qual é a posição do nosso corpo no espaço sem a necessidade da visão. A ideia de dançar de acordo com um ritmo como forma de “percebê-lo” e apreendê-lo sempre me pareceu muito elegante. E também muito compatível com a abordagem fenomenológica de acordo com a qual eu não tenho um corpo: eu sou um corpo. Se o corpo é nosso ponto de vista sobre o mundo, nada mais natural que usá-lo para captar ritmos.

steez-headphone-monkey.jpgMas como músico entende muito pouco de neurofisiologia, há, sim, uma memória de ritmos. Interessante, notar que os ritmos “quebrados” utilizam mais (e também de forma diferente) os “recursos” do sistema nervoso central, a saber, a memória operacional, geralmente relacionada à área pré-frontal e o cerebelo. É, talvez seja mais difícil “gostar” de bebop e free-jazz mesmo. (Também não dá para dançar esse gênero de música!)

O fato é que há um processamento desse tipo de informação. Dado que ritmo é tempo, sabe-se hoje que existe uma hierarquização da percepção do tempo. A íntima relação entre os sistemas límbico, auditivo e motor permite uma representação sui generis (leia-se, humana) do tempo e pode fornecer as bases biológicas de nosso comportamento musical, incluindo o canto e a dança. É interessante perguntar porque, do ponto de vista evolucionista, temos esse tipo de percepção. Em que essa qualidade pode ter auxiliado nossa sobrevivência em épocas remotas já que, se por um lado, ritmos naturais existiram desde sempre (cachoeiras, goteiras, galopes, batimentos cardíacos), ritmos produzidos pelo homem são coisa bem mais recente (Homo habilis?).

Fascinado que sou pelo sistema respiratório não poderia deixar de explicar o título do post. É possível dançar com os pulmões? Sim, é. Não exatamente com eles, mas mais especificamente com o sistema respiratório como um todo. A ventilação pulmonar que vulgarmente chamamos de respiração, é por si, um evento rítmico. A novidade é que esse ritmo pode ser capturado por ritmos externos num fenômeno batizado em inglês de entrainment. Em um estudo [3], pesquisadores tomaram 10 músicos e 10 indivíduos sem formação musical qualquer. Ao expor tais indivíduos a ritmos musicais, verificaram que havia uma captura da respiração bastante mais evidente nos músicos (trained), como mostra a figura.

Até que tem uma certa lógica biológica correr ouvindo uns bate-estacas, hehe. Feliz Ano Novo pra todo mundo.

Referências

1. Sakai K, Hikosaka O, Miyauchi S, Takino R, Tamada T, Iwata NK, & Nielsen M (1999). Neural representation of a rhythm depends on its interval ratio. The Journal of neuroscience : the official journal of the Society for Neuroscience, 19 (22), 10074-81 PMID: 10559415
2.
Fujioka, T., Zendel, B., & Ross, B. (2010). Endogenous Neuromagnetic Activity for Mental Hierarchy of Timing Journal of Neuroscience, 30 (9), 3458-3466 DOI: 10.1523/JNEUROSCI.3086-09.2010
3. Haas F, Distenfeld S, & Axen K (1986). Effects of perceived musical rhythm on respiratory pattern. Journal of applied physiology (Bethesda, Md. : 1985), 61 (3), 1185-91 PMID: 3759758
4. Ver excelente post no Marco

Como Fazer a Homeopatia Funcionar

Esse post é uma (tentativa de) tradução do original escrito por Greg Laden em seu blog. O autor autorizou sua reprodução integral no Ecce Medicus. Caso os leitores encontrem soluções translacionais mais adequadas que as minhas, a caixa de comentários está à disposição.

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A Homeopatia envolve a manipulação de substâncias geralmente escolhidas devido a sua natureza nociva (mas também por outros motivos), seguida pela diluição dessas substâncias, ou de um extrato das mesmas, inúmeras vezes
em água, até que a substância em si não seja encontrada, mas de tal forma que a memória da substância seja retida pela água. Essa água com memória é então, considerada pelos praticantes homeopáticos um tratamento eficaz para várias condições clínicas.

O princípio básico de uma substância nociva produzir uma contra-reação, ou uma reação benéfica, é interessante. E a ideia de usar um tipo de memória biológica também é interessante e potencialmente muito eficaz, desde que possamos utiliza-la em outro contexto. A maioria dos meus colegas de science-based skepticism descarta a homeopatia como inconsequente e ineficaz, em geral porque não existem estudos duplo-cego controlados com tamanhos de amostras úteis, apropriadamente selecionadas, trabalhadas com estatísticas apropriadas e análises biologicamente confiáveis que demonstrem sua eficácia, e também porque não há provas de que a água guarde uma “memória” de substâncias diluídas nela. Mas eu acho que eles podem ter desistido muito facilmente da ideia básica da homeopatia e que ela pode funcionar de fato. Basta que alteremos alguns parâmetros.

Em primeiro lugar, a substância que é usada em forma diluída tem de ser uma substância biologicamente potente, e não apenas alguma coisa que alguém achou que poderia funcionar. Por exemplo, se você pegar cristais à base de sílica, como quartzo e moe-los em pó, ingerindo uma pequena quantidade, haverá um efeito mínimo (ou mesmo pequeno) semelhante ao do consumo de suplementos de fibras. Eu não recomendo tentar isso porque se o cristal contiver certos minerais, a substância pode ser muito venenosa, e mesmo se o pó de sílica for 99,9999999% puro, pode ser prejudicial (se inalado). No entanto, do ponto de vista de como funcionam os sistemas naturais, cristais deveriam causar pequenos efeitos por si, especialmente na forma original.

Por outro lado, substâncias orgânicas, que são as compostas de células ou partes de células, podem ter efeitos naturais muito poderosos. Isso ocorre porque nosso corpo contém moléculas naturais que interagem não só entre si, mas também com moléculas naturais de origem orgânica que são introduzidas no corpo. E, mais interessante, tem sido demonstrado em vários estudos que essas reações podem literalmente mudar, de uma forma natural e orgânica, a estrutura das moléculas originais. Mais, e isso pode parecer difícil de acreditar, mas é realmente maravilhoso e demonstrado em vários estudos, as moléculas modificadas podem “aprender” a auxiliar células a produzir mais moléculas que, por sua vez, são modificadas da mesma forma. Estou simplificando um pouco, mas acho que você já deve ter adivinhado para onde estou indo com isso: A introdução de determinados materiais orgânicos naturais no organismo pode provocar o desenvolvimento de uma memória de longo prazo dessas moléculas. Estudos têm demonstrado que esta memória, em muitos casos, dura uma vida inteira, ou pelo menos, por várias décadas.

Então, nós temos todos os elementos homeopáticos: Substâncias que podem ser muito potentes, processadas e em menor concentração, são introduzidas no organismo causando uma reação de memória, não na água onde a substância foi originalmente diluída, mas NO PRÓPRIO CORPO, usando processos orgânicos exclusivamente naturais. Esta “lembrança” vai durar a vida toda, ou quase isso. Desta forma, uma substância natural orgânica adequadamente selecionada pode causar uma altamente desejável re-conformação das reações do organismo a insultos externos, de uma maneira totalmente natural e orgânica.

As moléculas introduzidas no corpo são chamadas de antígenos. As moléculas que o corpo aprende a produzir são chamados anticorpos. Todo o processo é chamado de vacinação.

Anemia Falciforme

A anemia falciforme é uma doença estranha. A molécula de hemoglobina tem uma estrutura muito especial que permite o transporte do oxigênio. Os humanos adultos têm 3 tipos de hemoglobinas, a saber: a hemoglobina A (HbA), a hemoglobina A2 (HbA2) e a hemoglobina fetal (HbF). Sim, temos um pouco de HbF, mais ou menos uns 2%. A HbA é a grande maioria, uns 95% ou mais. Mas, depois da “invenção” das mutações genéticas, as hemoglobinopatias – termo que os médicos usam para falar das doenças da hemoglobina – resolveram tornar a vida dos pacientes (e dos médicos) um pouco mais complexa.

Vejam só que exemplo bunito de mediquês: “As doenças falciformes se caracterizam pela presença em homozigose ou dupla heterozigose da hemoglobina S (HbS), que resulta de uma mutação no sexto códon do gene da betaglobina (cromossomo 11) com substituição da adenina pela timina (GAG -> GTG), codificando valina em vez de ácido glutâmico na sexta posição da cadeia beta da hemoglobina (beta6 glu->val). A substituição glu -> val diminui a solubilidade da HbS no estado desoxigenado, fazendo as moléculas de desoxiHbS se polimerizarem. O polímero é uma estrutura helicoidal que se dispõe ao longo do eixo longitudinal do eritrócito, distorcendo a célula, a qual assume o formato de uma foice ou crescente.”

A tradução disso tudo é que devido a uma mísera troca de aminoácidos na molécula, a hemoglobina de uma pessoa fica muito sensível à falta de oxigênio, que normalmente ocorre na periferia da circulação, e deforma a célula vermelha ou hemácea ou eritrócito. O vídeo abaixo mostra esse processo.

Bom, e o que uma hemácea deformada faz. Na verdade, a pergunta é o que ela não faz. Ela não consegue passar pelos estreitamentos normais do sistema circulatório levando a obstruções e a sua própria destruição. Pacientes homozigotos para a Doença Falciforme podem chegar a ter 95% de sua hemoglobina do tipo HbS! Isso torna seu sangue altamente instável para alterações do meio ambiente, infecções e, devido à dificuldade de reposição de hemáceas pela medula óssea, anemia.

Vai daí, que existem vários tipos de sintomas que podem ser causados pela Doença Falciforme. Existem “crises de falcização”: situações onde um paciente entra em um círculo vicioso e tem quase todo o sangue acaba entrando nesse processo. Há um “entupimento” geral dos vasos e instala-se um quadro clínico emergencial. Um dos tratamentos possíveis, além do controle da dor, oxigenação e hidratação vigorosos é a transfusão de sangue “bom” para o pobre paciente.

Juliana Bonfim da Silva, de 13 anos, morreu em 22 de julho de 1993. Ela tinha um tipo grave de Doença Falciforme. Seu nome veio a público porque os pais da menina, o militar da reserva Hélio Vitório dos Santos, de 68 anos, e a dona de casa Ildemir Bonfim de Souza, de 57, não autorizaram uma transfusão de sangue que poderia ter salvo a vida da garota. Essa semana, “desembargadores da 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram por maioria de votos, que Juliana morreu por não ter recebido transfusão de sangue e mandaram os pais a júri popular”. A mãe dela é testemunha de Jeová e o procedimento vai contra os preceitos dessa crença.

O assunto não teve a repercussão que eu esperava, mesmo dentro do SBBr. Por tratar-se de mais um caso de interferência do pensamento metafísico, uma racionalidade mágica, na medicina, tentarei discutir um pouco sobre isso no próximo post. Aguardo, entretanto, manifestações sobre o tema.

KPC, Sabonetes e as Bactérias Irresistíveis

Chegando atrasado de novo… Levei cravada dos leitores, dos colegas do Scienceblogs, da minha mãe… Vamos tentar dar uma organizada na confusão que se instalou no Twitter, na mídia e na minha casa. Vai ser meio longo, então vamos direto ao assunto.

Bom, em primeiro lugar vamos falar de antibióticos ou, mais precisamente, agentes antimicrobianos (vamos usar antibiótico, mesmo). Um antibiótico é uma substância produzida por algumas espécies de microorganismos (bactérias, fungos e actinomicetos) que suprimem o crescimento de outros microorganismos. Normalmente, estendemos a terminologia para antimicrobianos sintéticos como sulfas e quinolonas. Existem trocentos tipos de antibióticos e várias classificações já foram propostas para organizar a confusão. Todas têm imprecisões. A mais utilizada é a que leva em consideração a estrutura química e o mecanismo de ação, e isso nos interessará mais pra frente.

1. Agentes que inibem a síntese da parede celular de bactérias. Aqui podemos incluir as penicilinas (Benzetacil), cefalosporinas (cefalexina, Keflex, etc), a vancomicina (um antibiótico ruim mas extremamente útil) e os antifúngicos chamados azólicos muito utilizados como o fluconazol.

2. Agentes que agem diretamente na membrana celular do microorganismo. (Você pode estar achando que membrana e parede são a mesma coisa, né? Mas, não são. A figura abaixo [clique para aumentar], mostra diferenças entre as bactérias Gram positivas e Gram negativas, uma classificação de microorganismos muito utilizada na clínica. Ela se baseia na coloração que as bactérias assumem com determinado corante [Gram]. Isso ocorre porque as bactérias têm uma composição da parede diferente como pode ser visto na figura. As gram positivas têm uma parede celular grossa e uma membrana celular. As gram negativas têm uma membrana celular dupla com uma parede celular fininha no meio, como um sanduíche.) Esses agentes possibilitam uma lesão osmótica no microorganismo. Como exemplo, temos  polimixina, nistatina.

3. Agentes que causam inibição da síntese proteica (ligação às subunidades ribossômicas 30S e 50S). Por exemplo, o velho cloranfenicol, clindamicina.

4. Agentes que modificam a síntese proteica (ligação à subunidade 30S). Exemplo: aminoglicosídeos (a famosa gentamicina).

5. Agentes que afetam o metabolismos dos ácidos nucleicos. Rifampicinas e as quinolonas (exemplo, o Cipro e a norfloxacina).

6. Antimetabólitos que bloqueiam enzimas essenciais do metabolismo do folato, por exemplo, o Bactrin.

7. São os agentes antivirais. Não vou falar deles neste post.

Perdemos bastante tempo para mostrar que os antibióticos agem de maneiras muito diferentes. As bactérias espertamente, desenvolvem vários mecanismos para combater essas ameaças. São, também, mecanismos bastante específicos e há muita gente estudando isso pelo seríssimo problema que bactérias multirresistentes têm causado.

Recentemente houve uma enxurrada notícias, um pouco alarmantes até, sobre uma superbactéria “chamada” KPC. Em primeiro lugar KPC não é uma bactéria. É uma sigla que deu nome a uma enzima inativadora de antibióticos: Klebsiella pneumoniae carbapenemase. Médico não é muito bom para dar nome, mas esse saiu porque a tal enzima foi encontrada nessa bactéria (a klebsiella) e acabou ficando. O quadro abaixo mostra as enzimas inativadoras de um tipo de antibiótico chamado beta-lactâmico. A última coluna mostra as bactérias onde podem ser encontradas. Os beta-lactâmicos incluem todas as penicilinas, sintéticas e semi-sintéticas bem como os carbapenêmicos. Estes últimos, têm sido considerados antimicrobianos de última linha, pois têm espectro bastante amplo e são reservadas para casos graves e/ou que necessitam de intervenções rápidas.

Como podemos notar, a KPC (ver a seta vermelha) é um tipo de carbapenemase que inativa TODOS os beta-lactâmicos, o que é bem preocupante. Mas, ela não está sozinha. Temos a GES, a SME, as carbapenemases classe D (OXA-48, -23, -24, -58) e as Metaloproteinases (classe B). Estamos vivendo um surto de KPCs no HCFMUSP desde o início de 2010. Há possibilidades terapêuticas, mas são exíguas, de antibióticos mais tóxicos que os carbapenêmicos e de difícil administração em pacientes graves; ou seja, estamos longe de uma condição confortável, mas não estamos em PÂNICO. Temos lidado com resistências bacterianas desde a invenção descoberta dos antibióticos. Confesso que os tempos de hoje não estão fáceis. Medidas cada vez mais restritivas têm sido tomadas pelas comissões de infecção hospitalar no sentido de controlar os surtos.

É muito importante dizer que as bactérias portadoras dessas enzimas não são “mais fortes” que as bactérias sensíveis a antibióticos comuns. Muito pelo contrário! Bactérias “da rua”, em geral, são mais agressivas e suplantam suas amigas hospitalares. As bactérias resistentes aos antibióticos só conseguem viver no meio hospitalar, onde os antibióticos são utilizados e matam as bobinhas permitindo apenas às resistentes sobreviver. Por isso, nossa flora bacteriana normal é eficaz em nos proteger de infecções patogênicas, em especial, as multirresistentes.

Posto isso, um cara, talvez pegando carona na paranóia generalizada da mídia, resolveu escrever que alguns sabonetes têm antibiótico e que por isso, poderiam induzir resistência bacteriana. Ops, wrong way! Eu não conheço NENHUM sabonete com antibiótico. Os sabonetes contém antissépticos. Antissépticos são substâncias que geralmente não podem ser administradas aos seres humanos por serem extremamente tóxicas. Por isso, também são excelentes em matar qualquer ser vivo, bactérias incluso. São, por essa razão, chamados mais modernamente de biocidas. Os biocidas tornam o meio em que a bactéria vive inapropriado para sua reprodução e diminuem drasticamente o número de bactérias. Há alguns anos atrás, uma polêmica envolveu os biocidas: será que eles não poderiam também causar resistência bacteriana? Quem mais publicou isso foi um autor chamado Russell (ver abaixo). No artigo citado, ele escreve que uma cultura pode ser considerada resistente a um biocida quando não é inativada pela concentração em uso da substância ou pela concentração que normalmente inativa outras cepas. O conceito de “resistência bacteriana” não pode ser aplicado aos biocidas por isso, usa-se o termo “insuscetibilidade” ou “tolerância”, o primeiro sendo preferível. A figura ao lado mostra aspectos envolvidos na ação dos biocidas.

É possível “treinar” bactérias a serem insuscetíveis a biocidas cultivando-as em meios com pequenas concentrações de droga que podem ser aumentadas progressivamente. Em 2002, Levy (J Antimicrob Chemother 2002;49: 25-30) levantou a possibilidade de que o uso indiscriminado dos biocidas pudesse induzir insuscetibilidade e também resistência bacteriana, o que foi parece ter sido uma das teses do texto sobre os “sabonetes antibióticos”. Não há evidência de que isso possa ocorrer. Russell conclui seu artigo com essa frase: “Resistant bacteria were not seen in greater numbers in areas where biocides had been employed than in areas where they had not been used. When used correctly, biocides have had and will continue to have an important role in controlling infectious diseases.” (grifos meus).

Conclusões

1. KPC não é bactéria. É uma enzima que inativa potentes antibióticos. Estamos vivendo um surto de bactérias com essa enzima e isso não é bom. Ela não é a única enzima e outras notícias ruins poderão vir. Medidas severas estão sendo tomadas por orgãos competentes.
2. Eu não conheço sabonete com antibiótico. Se alguém descobrir algum, me avise que eu vou denunciar na ANVISA. Os sabonetes e liquidos desinfetantes têm antissépticos (biocidas).
3. Resistência aos biocidas é chamada de insuscetibilidade. Não há, até o momento, descrição de fenômenos de resistência bacteriana induzida por biocidas.

Bibliografia

1. Chambers, HF. Antimicrobial Agents. Goodman & Gilman’s – The Pharmacological Basis of Therapeutics. 5th ed. pag 1143.

ResearchBlogging.org2. Pfeifer, Y., Cullik, A., & Witte, W. (2010). Resistance to cephalosporins and carbapenems in Gram-negative bacterial pathogens International Journal of Medical Microbiology, 300 (6), 371-379 DOI: 10.1016/j.ijmm.2010.04.005
3.ResearchBlogging.orgRussell AD (2003). Biocide use and antibiotic resistance: the relevance of laboratory findings to clinical and environmental situations. The Lancet infectious diseases, 3 (12), 794-803 PMID: 14652205

Atualização

Ver também excelente post do Takata no Gene Reporter.

 

A Máquina de Escolher

ResearchBlogging.orgInteressante artigo cujo título é “Nascido para Escolher”. Publicado no “Tendências em Ciências Cognitivas”, os autores defendem a ideia de que a escolha e a decisão sobre algo são biologicamente determinados e não aprendidos, como se pensava. Escolher dá sensação de controle e auto-confiança. Reforça crenças e a auto-eficiência. Parece que o desejo por controle está presente em animais e em crianças mesmo antes de valores sociais e culturais serem aprendidos. A grande pergunta é se houve uma adaptação para que essa sensação de controle que a escolha propicia fosse percebida como recompensa. Sua ausência parece ser mesmo aversiva e o exercimento do controle está relacionado a uma diminuição do estresse ambiental sofrido pelo “bicho”. O artigo cita até possíveis vias neurais responsáveis por isso (veja figura abaixo).

Se a necessidade básica de controle pode ser biologicamente motivada, é possível que a percepção de controle e a preferência em exercê-lo pode ser modificada como resultado da experiência pessoal e também aprendida, via recompensas, em um meio social favorável. Como os autores escrevem na conclusão “ (…) but what is important cross-culturally is that the exercise of choice acts to energize and reinforce an individual’s sense of agency. Anything that undermines this perception of control might be harmful to an individual’s wellbeing.” Eu acho difícil traduzir agency (quem quiser, pode ajudar), mas a conclusão se refere ao fato de que escolher/decidir reforça o sentimento do indivíduo ser o agente de sua própria realidade e não um mero coadjuvante, o que, convenhamos, faz bastante sentido.

Fiquei conhecendo esse artigo por meio de um grupo de médicos do qual participo e me chamou a atenção o fato de que o colega que o enviou estava bastante frustrado quando “transpôs” as conclusões do artigo para a prática médica da Terapia Intensiva. Como ele “publicou” esse email no grupo, fico à vontade de reproduzi-lo aqui (obviamente preservando-lhe a identidade):

“Transportando a análise dos autores para a UTI fico me perguntando o quanto nós, intensivistas, conseguimos racionalizar que muitos resultados de nossas intervenções são frutos do acaso… como lidar com isso? o nosso cérebro é suficientemente adaptado para “individualizar/isolar” o resultado de nossas decisões? ou ele só enxerga decisões -> intervenções -> desfechos? não é nada fácil lidar com o acaso, não é? Parece que precisamos sempre de “maior n” ou “mais estudos para elucidar a questão”!”

A falta de controle de fato é aversiva. Veja só:

“Entender que não temos controle estrito do doente e sobre o mundo pode ser frustrante para quem não se acostuma com essa idéia… Quantas vezes por dia nos indagamos que, se estivéssemos esperado um pouco, o desfecho/resultado seria igual? O hábito do fazer mais, supranormalizar, etc., tem se mostrado infrutífero… e os estudos randomizados?… ao invés de aceitarmos que nos adaptamos para decidir (e aprender com isso) tentamos justificar a falta de resultados positivos com editoriais do tipo “estudos randomizados não respondem tudo” ou “metanálises caíram em descrédito pois muitas são reuniões de trabalhos antigos e malfeitos” ou “desfecho mortalidade é muito duro para o ambiente de UTI” (…) Desculpem se me prolongo, mas ser intensivista é dureza e temos que lutar até com a estrutura do nosso raciocínio…. O que vocês acham, amigos? Será que o “problema” está no método? ou no processo adaptivo?”

Convenhamos, é um apelo dramático, não? Aqui, novamente a (neuro)ciência se junta com a filosofia (eu adoro quando isso acontece para desbancar positivistas utópicos que substituem Deus pela Ciência): o Fazer é mais fácil que o Não-Fazer. O Fazer, principalmente quando embasado em alguma diretriz ou mesmo quando “decidido” pelo agente, provoca alívio e sensação de bem-estar. O artigo em questão diz que isso é porque exercemos um controle sobre o meio ambiente que nos envolve. No caso do médico, sobre o paciente. Colocando de lado a insatisfação pelo efeito do acaso na prática médica, os médicos parecem estar entendendo que são diferentes dos cientistas. Antes tarde do que nunca. Parece que a “máquina de escolher” está dentro de outra máquina: a de desejar.

Leotti LA, Iyengar SS, & Ochsner KN (2010). Born to choose: the origins and value of the need for control. Trends in cognitive sciences, 14 (10), 457-63 PMID: 20817592

Sobre Candidatos e Doenças

A campanha eleitoral me deu um exemplo bem interessante do que vem ocorrendo com o conceito de doença.

Não sou analista político, mas pelo que tenho visto e (para minha surpresa!) em concordância com alguns autores bem famosões, o debate político foi propositalmente evaporado da propaganda eleitoral. Cada vez mais o objetivo dos marqueteiros eleitorais é “construir” seus candidatos fortalecendo os pontos positivos que têm e “trabalhando” os negativos, de modo a “produzir” uma imagem que seja não só forte, mas que, literalmente, engula a do adversário, angariando o que importa: o voto, tal como um produto a ser comprado. Por impulso, de preferência. O debate político mesmo, tipo esquerda vs direita, oposição e governo, política externa, reforma política, reforma fiscal, etc, etc, este foi para o beleléu faz tempo.

Grosso modo, o caso dos candidatos serve para entender o que aconteceu com o que se pode chamar de “conceito de doença contemporâneo”. A exemplo do que ocorre com o marketing político em relação aos candidatos, houve uma virtualização da doença. A influência da tecnologia, em especial das novas tecnologias de imagem (mas também da nova patologia – depois eu falo mais dela), sobre a racionalidade médica é tão grande que elas passaram a constituir a doença. Se por um lado, isso significa que algumas doenças não podem ser concebidas sem essa “visão tecnológica” o que, por si só, não se configura como uma coisa ruim; por outro, essa abordagem pode, ao levar-nos para um substituto virtual de realidade, ela mesma criar algumas doenças/problemas. A tendência em se tratar os exames é muito grande com todos os problemas que isso possa acarretar. O mais interessante é que vários pacientes PEDEM por isso. O diagnóstico de uma doença baseado apenas em critérios clínicos é muito difícil de ser aceito. “Mas doutor, não há nenhum exame que comprove isso que está dizendo?” Não, não há. O diagnóstico é clínico, baseado APENAS na história e no exame físico.

Se o paradigma de racionalidade fosse simplesmente a ciência, não acho que seria de todo ruim. Mas, nosso paradigma de racionalidade atual é o que a ciência tem de mais hollywoodiano: a tecnologia. Em especial, a tecnologia que aparece na mídia. Visto dessa forma, é muito difícil estar “racionalmente correto” sem a utilização de uma “tecnologia avançada” consensualmente aceita. Já foi o ultrassom, a tomografia, a ressonância. Hoje é o PET, as múltiplas biópsias, os robôs.

Com o perdão da comparação de mau gosto entre candidatos e doenças, o paralelo me foi inevitável. A discussão política passou ao largo, assim como passa a discussão real sobre o impacto de determinado achado de exame na possibilidade de um ser humano específico ser feliz.