Certezas Médicas II

No primeiro post da série,  procurávamos por exemplos que tipificassem o fato de que “certezas” muitas vezes não são conseguidas apenas com argumentos de uma racionalidade, digamos, linear. Discutimos as limitações em detectar “certezas” nas pessoas e que elas, principalmente no que tange à profissão médica, têm a ver com condutas, ações ou tomadas de decisões, talvez a única forma de saber que existem na cabeça de outrem, por mais falha que seja este tipo de metodologia.

De qualquer forma, buscávamos um exemplo de conduta, ação ou decisão médica que não fosse embasada, por assim dizer, “cientificamente” e que ainda fizesse parte do repertório médico atual. Em tempos de medicina baseada em evidências, protocolos, diretrizes, e tantas outras interferências – algumas das quais, bastante positivas, diria – não seria mesmo fácil encontrá-lo. A medicina é uma profissão fortemente embasada em conceitos científicos mas, acho que tenho um exemplo.

http://www.meb.uni-bonn.de/cancer.gov/Media/CDR0000415499.jpgO câncer colorretal é uma das doenças mais prevalentes no Brasil. Está em quarto lugar para ambos os sexos e em 2002, o Datasus aponta o número de 8.772 brasileiros mortos pela doença e suas complicações. Sendo assim, o número de cirurgias para extração desses tumores é cada vez maior. De fato, centenas de milhares de colectomias, hemicolectomias e instrumentações dos cólons, sigmóide, reto e canal anal são realizadas anualmente no Brasil. O preparo para essas cirurgias inclui a limpeza mecânica dos cólons.

O raciocínio é simples: O cólon é “sujo” porque tem fezes em seu interior. As fezes têm uma população bacteriana muito grande. Em 1,0 g de fezes há aproximadamente 100000000000000 bactérias (10 elevado a 14!). Bactérias causam infecção. Logo, o cólon deve ser limpo antes da operação! São utilizadas medicações laxativas extremamente potentes para isso e quem já fez um preparo para colonoscopia sabe do que eu estou falando. Esse tipo de preparo, não infrequentemente, causa uma depleção de eletrólitos e líquidos no organismo, fazendo com que o paciente vá para cirurgia em condições não ideais. Por isso, foi feita a pergunta: será que o preparo de cólon é imprescindível?

Bucher publicou em 2004 no Archives of Surgery uma metanálise com 7 ensaios clínicos randomizados contabilizando um total de 1297 pacientes. Não houve diferença entre os que fizeram preparo mecânico dos cólons e os que não fizeram o procedimento. Em 2007 no Lancet – uma das principais revistas médicas – foi publicado um grande ensaio clínico com 1354 pacientes; 670 com preparo vs. 684 sem preparo. A conclusão dos autores é curta e grossa: “We advise that mechanical bowel preparation before elective colorectal surgery can safely be abandoned“. No Brasil já temos dados. Em 2009, Aguilar-Nascimento publicou uma série de pacientes 53 pacientes na Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgia e também não encontrou diferenças entre o grupo com e sem preparo no que se refere à mortalidade e aparecimento de complicações pós-operatórias. A conclusão de todos esses estudos é que há evidências científicas suficientes para se abandonar o procedimento de limpeza mecânica do cólon como preparo para cirurgia.

A pergunta que se faz então é: Por que o procedimento continua a ser realizado? A resposta que invariavelmente recebo é “bom senso”. “Por que operar uma víscera cheia de fezes se posso operá-la limpinha? O risco de contaminação grosseira é menor”. Não é! É igual. O que é menor é a chance do paciente apresentar distúrbios hidroeletrolíticos e desidratação no pós-operatório. Por que, então, o procedimento não é abandonado? Talvez a resposta esteja em outro tipo de raciocínio, como veremos no próximo post da série.

Referências

1) Mechanical bowel preparation for elective colorectal surgery: a meta-analysis. Bucher P, Mermillod B, Gervaz P, Morel P. Arch Surg. 2004 Dec;139(12):1359-64; discussion 1365. PMID: 15611462 [PubMed – indexed for MEDLINE]. Texto integral livre.
2) Mechanical bowel preparation for elective colorectal surgery: a multicentre randomised trial. Contant CM, Hop WC, van’t Sant HP, Oostvogel HJ, Smeets HJ, Stassen LP, Neijenhuis PA, Idenburg FJ, Dijkhuis CM, Heres P, van Tets WF, Gerritsen JJ, Weidema WF. Lancet. 2007 Dec 22;370(9605):2112-7. Erratum in: Lancet. 2008 May 17;371(9625):1664. PMID: 18156032 [PubMed – indexed for MEDLINE].
3) AGUILAR-NASCIMENTO, José Eduardo de et al. Abordagem multimodal em cirurgia colorretal sem preparo mecânico de cólon. []. , 36, 3 [2009-08-30], pp. 204-209 . : Link. Texto integral livre.
Bucher P, Mermillod B, Gervaz P, & Morel P (2004). Mechanical bowel preparation for elective colorectal surgery: a meta-analysis. Archives of surgery (Chicago, Ill. : 1960), 139 (12) PMID: 15611462
ResearchBlogging.org

Marketing Genérico?

http://todaysseniorsnetwork.com/Prescription%20pills,%20medicines,%20medication.jpgOs medicamentos genéricos foram uma evolução importante na terapêutica moderna. Muito do que se paga por uma medicação é fruto de pesquisa e desenvolvimento – o chamado P&D -, mas muito do custo é devido ao marketing, que são os custos da comercialização, veiculação e inserção do medicamento no mercado supercompetitivo da BigPharma. A ideia é que se você tem um medicamento sem nenhum marketing, pelo menos o custo disso poderia ser abatido do valor final do remédio. No Brasil, e em muitos países do mundo, os genéricos têm que passar por estudos que mostrem equivalência com os chamados medicamentos-índice. Esses estudos custam caro – essa, uma das razões do genérico normalmente ser mais caro (e mais confiável, teoricamente) que o similar, que não passa por esses testes.

Além disso, está havendo uma competição de genéricos. Várias indústrias produzem o mesmo medicamento e têm autorização para comercializá-los. O médico prescreve o sal. Como decidir entre uma marca de genérico e outra? Propaganda leiga?! De alguma forma, será que esse tipo de publicidade não é repassado para o produto? Daí a pergunta:

Você é a favor da propaganda de medicamentos genéricos ?

Sala de Espera III

Conversando com uma amiga ela me fez a seguinte pergunta:

“Eu encontro praticamente tudo o que quero na internet. Por que informações do médico mais adequado para mim são tão difíceis de achar?”

Excluindo as questões éticas do tipo “médico não pode fazer propaganda direta”, gostaria de saber dos leitores se escolheriam um médico pelo Google ou qualquer outro sistema de busca. Tem gente escolhendo médico pelo currículo Lattes!!! Eu, particularmente, acho isso bastante perigoso. O Google Directory nos EUA tem um serviço assim que parece bastante utilizado. O que vocês acham, dá para escolher médico pela internet ou o velho boca-a-boca ainda é o mais eficiente?

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Dom José, excommunicate me!

This is the english version of a post written in portuguese, which can be found here.

The excommunication of the medical team – including the doctor, the nurses, and other staff of the surgical room – that performed the abortion, with legal consent, in the nine-years old child that was pregnant after being raped by her stepfather by Olinda’s archbishop dom José Cardoso Sobrinho, is still generating a huge debate in the media.
The succession of absurd is endless: the lawyer of Olinda Archdiocese, Márcio Miranda, plans to sue the girl’s mother over homicide because she authorized the abortion. The Vatican agreed with the decision of the Archbishop, which includes the non-excommunication of the stepfather.
I write this text to denounce the silence of Pernambuco’s Regional Medicine Council (CREMEPE) and to claim for an urgent position from the Institution. At the moment, only the Physician’s Syndicate has made an official statement. A Medicine Council has the obligation to represent their associates, even if an excommunication is an insignificant matter. Just the international repercussion of the case and the whole debate in the press would be enough for that. The image above is from a play organized by CREMEPE in order to increase public awareness about a public health problem (children abuse), specially in Recife’s area. In solidarity with Sérgio Cabral, the doctor in charge of the medical center and his whole staff that saved this child’s life, I sincerely request to be excommunicated. Excommunication is a public punishment, a mark, a label, almost a damnation, but – in this case – it became a symbol of the misery of our society and the poor state of our institutions. If fighting inequalities and injustices are worth of excommunication, I want to be excommunicated now. For this reason Spinoza is one of my greatest idols: he was excommunicated from two religions!
Dom José, for God´s sake, excommunicate me!

Será?

Tenho sido interpelado sobre meu posicionamento quanto à excomunhão dos médicos de Recife que participaram do abortamento da menina de 9 anos com uma gravidez gemelar de altíssimo risco. O argumento é sempre o de que a Igreja está agindo coerentemente com seus estatutos e direito canônico. A excomunhão é automática.

Entretanto, essa semana o Osservatore Romano publicou um artigo do Monsenhor Rino Fisichella (foto ao lado). Trata-se de um arcebispo bastante ligado a Ratzinger e que criticou Obama por seu posicionamento sobre o aborto (ver aqui). Segundo nota da BBC, Fisichella teria escrito que “são outros que merecem a excomunhão e nosso perdão, não os que lhe permitiram viver e a ajudarão a recuperar a esperança e a confiança, apesar da presença do mal e da maldade de muitos“.

Duas coisas apenas a comentar. Em primeiro lugar, cobrei e cobro ainda, um posicionamento do conselho regional de medicina de Pernambuco (CREMEPE), sobre o assunto. Reitero que a excomunhão, por mais irrelevante que seja atualmente, é uma reprimenda pública. Entidades civis, como o CREMEPE, são humanitárias e têm uma outra visão sobre um mesmo assunto e deveriam se manifestar, quase como um direito de resposta. Por que não?

Em segundo lugar, o artigo de Fisichella mostra que a interpretação de uma lei, mesmo que canônica, não é tarefa fácil. A aplicabilidade prática de uma regra depende de uma racionalidade fronética. É o mesmo tipo de problema que um médico, por exemplo, enfrenta ao ter que decidir se determinado artigo científico se aplica ao paciente que se lhe apresenta ou não. A novidade é essa dissensão tornar-se pública num orgão hierárquico e obscurantista como a Igreja Católica. Palavras de Fisichella “Como agir nesses casos? É uma decisão difícil para os médicos e para a própria lei moral. Não é possível dar parecer negativo sem considerar que a escolha de salvar uma vida, sabendo que se coloca em risco uma outra, nunca é fácil. Ninguém chega a uma decisão dessas facilmente, é injusto e ofensivo somente pensar nisso.” Viva Aristóteles!

Numa fala que poderia muito bem ser de um bispo brasileiro, Fisichella arremata: “Não era, portanto, necessária tanta urgência em dar publicidade e declarar um fato que se atua de forma automática, mas sim um gesto de misericórdia“.

Será?

O Fantasma de Samuel Cartwright

Samuel A. Cartwright era um médico criativo. Trabalhava no estado de Louisiana, sul dos Estados Unidos em meados do século XIX. Deu contribuições importantes ao tratamento da febre amarela e do cólera. Quando chamado pelos senhores a examinar escravos doentes cunhou alguns termos que, como tantos outros em medicina, caíram completamente no esquecimento. Quem saberia dizer o que é drapetomania? Ou dysaethesia aethiopica?
Estudou em importantes faculdades de medicina da época e trabalhou com médicos famosos, e apesar de sua formação humanista, era defensor do escravismo. É bom que se diga, numa época em que ser escravagista não era nenhum crime. Ser escravagista era mais uma defesa de um modo de produção, que um questão de humanismo, por mais incrível que isso possa parecer a nós, hoje em dia.
A drapetomania (do grego drapetes, escravo) foi o termo criado para denominar uma estranha doença psiquiátrica que acometia os escravos da época: um irresistível e inexplicável desejo de fugir de seus senhores! A dysaethesia aethiopica (disestesia = alteração da sensibilidade) “descrita” em 1851 também como uma doença psiquiátrica, foi proposta como a explicação científica para a preguiça e falta de vontade de trabalhar, muito comum nos escravos e com nítidas características contagiosas! Encontrada exclusivamente em negros, era um tipo de insensibilidade da pele que embotava as faculdades mentais. Dada sua “fisiopatologia” era “curada” com unguentos sobre a pele, seguidos de açoite, para estimular a sensibilidade cutânea. Quase o mesmo tratamento era proposto para a drapetomania. Parece que com certo sucesso.
Há pelo menos duas maneiras de ver essa história. A primeira, é assumir que há um certo dolo por parte do médico. Uma certa mistura de maldade com incompreensão, que vemos bastante frequentemente ainda hoje, que justificaria seus atos para si e perante os seus pares. Aqui, nos deparamos com mais uma leviandade humana e a discussão se encerra. Há, entretanto, uma maneira muito mais perversa e cruel de enxergarmos a história. E se abstrairmos nossa visão de mundo atual e nos transportarmos para o sul da América do Norte no século XIX? Ao tentarmos compreender o mundo e os fatos de Samuel Cartwright poderíamos achar que ele, de fato, não fez nada disso por um idiossincrático ódio ou desprezo à raça negra. Poderíamos entender que ele o fez simplesmente seguindo preceitos lógicos e científicos característicos da forma de pensamento de seu tempo e local. Hoje, seus achados pertencem à pseudociência e ao racismo “científico” de péssima memória. Mas, na época, seus diagnósticos eram discutidos em reuniões clínicas!
O fantasma de Samuel Cartwright deveria assombrar os médicos e a medicina de hoje. Ele deveria lembrar aos médicos que a prática médica permanece e permanecerá apesar das mudanças constantes dos fatos científicos. Que podemos estar fazendo papel de ridículos quando alguém no futuro se propuser a entender nossas dúvidas. Que não estamos desvinculados da sociedade na qual exercemos nossa profissão e que isso provoca imensos pontos cegos quando necessitamos refletir sobre nossos próprios atos. Que a ciência é parceira e não senhora de nossas ações. Eu na verdade, gostaria de fazer algumas perguntas a ele. Perguntaria ao fantasma de Samuel Cartwright, transcendente que é ao tempo e espaço, quão burlesco e patético sou nas minhas boas atuais intenções. Quais das minhas atitudes passarão para história como exemplos do grotesco e do irracional. Quanto não daria para que o fantasma de Samuel Cartwright não aparecesse de repente, num fim de tarde, após várias e extenuantes consultas, no espelho do meu consultório?

Sobre a Anti-Ética Médica


Uploaded by Sam Knox at Flickr

Bem. O assunto ganha corpo e extrapola os limites da mídia comum. A blogosfera se agita e nos bastidores do Lablog todos comentam. Meu delírio persecutório (e alguns colegas) pedem minha opinião. Não posso me furtar do que parece ser uma obrigação, então, vamos lá:

Marcia Angell, a célebre ex-editora do New England Journal of Medicine, a revista de uma única faculdade (de Medicina da Harvard) mas que tem um fator impacto maior que a Science e a Nature (seja lá o que isso realmente queira dizer!), publicou, dizia, um livro em 2004 chamado “A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos” já devidamente traduzido e em nosso mercado desde 2007. Nesse livro ela expõe o que seriam as técnicas de marketing da indústria farmacêutica – a BigPharma – que teriam como objetivo confundir o senso crítico dos médicos de modo a facilitar a prescrição de medicações novas, em geral mais caras, que são colocadas todos os anos no comércio milionário da miséria humana. Além disso, discorre também sobre formas como os consumidores podem pressionar seus médicos para obter determinado tratamento, mesmo que tais tratamentos tenhos poucos estudos que suportem sua utilização indiscriminada.

Esse livro e, obviamente, um ambiente favorável, fizeram surgir algumas resoluções, mesmo que tardiamente. Em 17 de dezembro de 2008, a ANVISA publicou uma RDC (resolução de diretoria colegiada – ainda não tem versão na web, mas pode ser baixada aqui. Ver aqui o ponto de vista da BigPharma) que tem no seu Art. 1º: “Este Regulamento se aplica à propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos de produção nacional ou estrangeira, quaisquer que sejam as formas e meios de sua veiculação, incluindo as transmitidas no decorrer da programação normal das emissoras de rádio e televisão”. E também regulamentou a atuação dos representantes de laboratórios junto aos médicos e pacientes. A BigPharma teria 180 dias para se adequar à resolução, o que vai ocorrer em meados de Junho desse ano. E tudo isso eu achei bastante bom. Um forte golpe no carrossel vigente.

Muito bem. Marcia Angell faz a resenha de livros que agora pipocam no mercado americano sobre esse mesmo tema (parece que ele vende bem, como várias coisas em saúde). Acho mesmo que ela tem que bater forte no tema, até porque, o outro lado bate muito forte também e assim, quem sabe discute-se mais e toma-se consciência. Os livros são:

1. Side Effects: A Prosecutor, a Whistleblower, and a Bestselling Antidepressant on Trial by Alison Bass

2. Our Daily Meds: How the Pharmaceutical Companies Transformed Themselves into Slick Marketing Machines and Hooked the Nation on Prescription Drugs by Melody Petersen

3. Shyness: How Normal Behavior Became a Sickness by Christopher Lane

Alison Bass é jornalista especializada em cobrir medicina e tem um blog desde 2008. Nunca tinha ouvido falar. Melody Petersen era reporter do NYTimes especializada em cobertura de laboratórios farmacêuticos (vejam vocês!), tinha lido algumas coisas dela e vai na linha de Marcia Angell. Christopher Lane deu uma entrevista ao Mais! da Folha (que pode ser lida aqui) e que comentei em um post de 20 de julho de 2008. Ele é professor de inglês especializado em ficção britânica moderna e vitoriana além de ter estudado psiquiatria e psicologia (do século XIX).

Ou seja, todo mundo batendo na mesma velha tecla. A questão, disse e repito, é que tenho me debatido com o fato de que, em alguma situações, o médico deve funcionar como um advogado do paciente frente à agressividade da medicina atual. Entretanto, essa agressividade é, muitas vezes solicitada pelos próprios pacientes! Daí, essa hipermedicina pós-humana que foi abordada por ocasião do post sobre Gilberto Dupas, ele mesmo uma vítima dela. O que todos esses autores não comentam é qual o papel de cada um no jogo. A medicina, os médicos e os pacientes, como participantes desta atividade humana, são totalmente dependentes de correntes comportamentais que estruturam um comportamento de rebanho típico de nosso tardo-capitalismo. Um texto recente é brilhante em demonstrar isso (obrigado, maria):

A BigPharma não faz medicina sozinha. Os médicos também não. Muito menos os pacientes.

Ecce Medicus – 1 ano

Quando comecei a escrever este blog, não sabia exatamente onde ia chegar. Eu queria simplesmente organizar uma porção de idéias que povoavam minha cabeça e, quem sabe, um dia colocá-las em um livro. Pela sua própria forma de ser, um weblog permite que você se cite e isso acaba por construir uma matriz de conceitos que, assim postos, são mais fáceis de visualizar e entender. Além disso, e talvez mais importante, um weblog permite que você coloque suas idéias à prova. Os comentários são úteis não para testar a popularidade mas, para saber se o que estamos pensando não contém erros lógicos, preconceitos, inconsistências ou incoerências. Por isso, não me canso de agradecer a cada comentário. Cada pessoa que perde seu tempo comigo manifestando uma opinião sobre algo que escrevi merece no mínimo, um obrigado.

Muitas pessoas que me conhecem perguntam porque ainda uso um pseudônimo. Resolvi responder essa questão somente após um ano de blog. Tenho visto muitos blogs pessoais de médicos e sobre medicina em geral. A enorme maioria é para promover clínicas e consultórios particulares. Sei que muitas idéias presentes aqui vão de encontro ao que pacientes desesperados em sua dor e sofrimento gostariam de ouvir de seus médicos particulares. Nunca neguei que muitas delas aqui expostas são derivadas de minha atividade privada. Na minha maneira de ver, esse contato é onde realmente a relação médico-paciente se dá de forma mais intensa e onde os conceitos provenientes da dúbia (ciência e arte) atividade médica são realmente postos à prova. Por isso, para permanecer público, devo continuar incógnito.

Gostaria, por fim, de agradecer a pessoas/blogs que me ajudaram no início e incentivaram a criação e manutenção do Ecce Medicus. O Amigo de Montaigne de quem recebi incentivo e instruções iniciais sobre a blogosfera; Ciência e Idéias, 100nexos,  o Rainha Vermelha e o Brontossauros em Meu Jardim e a todo o pessoal do Lablogatorios, pelos convites e projetos nos quais o Ecce Medicus se envolveu, pela mão nos widgets e pela qualidade das discussões. Esperava escrever esse post no Scienceblogs o que não foi possível (mas por motivos bons!), mas estaremos lá em breve. Aos blogs amigos, novos e antigos, sempre benvindos. E principalmente, a todos os leitores que comentaram posts, discutiram idéias e me fizeram ver todas as perspectivas de cada detalhe desta maravilhosa forma de conhecer a humanidade e os humanos que é a medicina: Muito Obrigado!

O Ecce Medicus com as Malas Prontas

O Ecce Medicus estará de mudança para uma das maiores redes de blogs sobre ciência no mundo: o Lablogatórios deve se transformar no ScienceBlogs.com.br!
Esperamos que nos próximos dias, possamos estar funcionando regularmente. Por enquanto, ainda não está online, e novos posts e comentários aqui no Lablog estarão bloqueados até o lançamento do Sb.com.br no próximo dia 17, terça-feira. Não deixem de ler o post do Rainha explicando tudo.
Não esqueçam! http://scienceblogs.com.br/

Até  lá!

Delirium e Afeto

73578533.jpgPhoto by Ian Waldie/Getty Images

Ela tinha para lá de oitenta. Estava restrita ao leito por contenções nos punhos e tornozelos. Esforçava-se para soltá-las, em vão. O escuro do quarto transformava o monitor com suas luzes coloridas, números e ondas balançantes em um abajur tristonho que iluminava de soslaio a face e os cabelos brancos desgrenhados. Entrei devagar e a chamei pelo nome que estava escrito na parede. Desorientada no tempo e no espaço, não entendia porque estava restrita, tendo beliscado enfermeiras, além de retirar cateteres e a própria monitorização, colocando sua vida em risco.

Ela não conversou comigo. Tomei sua mão como forma de interromper suas tentativas de retirar as faixas e ralhei com ela sobre suas “travessuras”. Surpreendentemente, ela começou a acariciar minha mão como se fosse a de um bebê. Com cuidado, solicitei à enfermeira que soltasse a outra mão e ela passou a fazer aquele tipo de carinho que se faz nos gatos. Olhei perplexo para a enfermeira. Não sabia o que fazer. Troquei de posição com a enfermeira e ela continuou a fazer carinhos. Pareciam movimentos automáticos das mãos em busca de um contato. Quando a deixamos sem nossas mãos, imediatamente ela começou a tirar os cabos dos eletrodos e o cateter nasal. Não tinha jeito. Prescrevi um comprimido de um neuroléptico e fui ver outro paciente.

Aquilo, entretanto, me deixou bastante perturbado. Uma paciente idosa, com quadro demencial grave contrai uma infecção que a deixa num estado de delirium. O delirium (escrito assim mesmo em latim para não confundir com delírio – desvio mórbido da razão) é um estado confusional acentuado, geralmente causado por uma doença clínica (infecção, distúrbios metabólicos, medicamentos, etc), onde o paciente apresenta enormes dificuldades com o pensamento coerente, além de uma diminuição do sensório. Muitas vezes, os pacientes ficam agressivos e recusam-se a receber cuidados. Sobra, em geral, muito pouco do humano neles. Lampejos; por vezes, um brilho de consciência no olhar; um nome a que chamam insistentemente. E só. Nada mais para fazer lembrar o que foram essas pessoas. Essa paciente entretanto, tinha deixado sobrar ‘afeto’.

Uma paciente que não sabe onde está, quem é, nem qual propósito de
estar ali; que não pode cuidar de si, nem alimentar-se sem auxílio; que
não formula nem profere uma frase sequer com sujeito, verbo e
predicado, poderia tecnicamente demonstrar afeto por outro ser humano?
Teria o afeto adentrado as camadas mais instintivas de seu intelecto?
Aqueles segmentos mais antigos do sistema nervoso dos mamíferos
responsáveis pelo que podemos chamar comportamentos automáticos como
esvaziar a bexiga ou procurar reproduzir-se, por exemplo? Nesse
momento, deixei-me levar por um delírio (para ficar bem clara a
diferença..)

Teria a paciente passado toda sua existência cuidando dos filhos e depois, dos netos, dedicado talvez, uma vida toda ao afeto de grandes e pequenos, de tal forma que esse comportamento tivesse sido incorporado aos seus instintos básicos de vida? Não, deve mesmo haver uma explicação bem mais neurofisiológica que dê conta desse fenômeno. Alguma área desreprimida, responsável por conexões neuronais que possam agir através de receptores do tato, em arcos-reflexo, movimentando músculos, de forma que movimentos automáticos possam de fato ser produzidos, sem que isso na verdade, signifique realmente um afeto. Sim, eu sei.

Deve mesmo haver. Mas minha explicação é muito mais poesia…

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