Um Pouco da Pós-Graduação em Medicina

Para publicar de forma regular e sustentada no Brasil, em geral é preciso estar vinculado a um serviço de pós-graduação. Esses serviços têm uma avaliação da CAPES que é muito respeitada. A CAPES dividiu a ciência médica em 3 grandes áreas. Medicina I, II e III, conforme as especificações abaixo.

Essa divisão tem por base a forma como é conduzida a pesquisa em cada área. Notemos pois, que as áreas cirúrgicas, para dar um exemplo, ficaram todas reunidas na Medicina III. A CAPES classifica os cursos de pós-graduação na grande área da saúde de acordo com os seguintes critérios e respectivos pesos: corpo docente (30%), corpo discente (30%), produção intelectual (30%) e inserção social (10%). A produção intelectual é a que nos interessa nesse momento. Constitui 30% da nota de uma pós-graduação e é constituída pelo número de publicações qualificadas do Programa por Docente Permanente (50%), pela distribuição de publicações qualificadas em relação ao corpo docente do programa (40%) e por outras produções, exceto à artística (técnica, patentes, produtos, etc) (10%).

Nesses quesitos, para atingir o conceito excelente (7,0) é necessário que o docente publique 6 ou mais artigos em Qualis internacional A ou B, sendo que pelo menos 03 sejam em Qualis A. Mas que é Qualis Internacional? “Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela CAPES para estratificação da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação”. Para isso, a CAPES hierarquizou os meios de divulgação da pesquisa da pós-graduação (ou seja, os jornais científicos). “A classificação de periódicos é realizada pelas áreas de avaliação e passa por processo anual de atualização. Esses veículos são enquadrados em estratos indicativos da qualidade – A1, o mais elevado; A2; B1; B2; B3; B4; B5; C – com peso zero”. Obviamente, o fator de qualidade de cada revista é o seu fator impacto.

O problema é que a divisão das revistas é desigual de acordo com as subáreas, medicina I, II e III. Por exemplo, em levantamento realizado por um professor e apresentado em Porto de Galinhas – PE no III Encontro Nacional de Pós-Graduação na área de Ciências da Saúde em outubro de 2009, a Medicina III tem o seguinte Qualis e respectivos fatores impacto conforme a tabela abaixo.

Já a Medicina I tem a seguinte classificação de periódicos (tabela abaixo):

Como é fácil notar, as revistas de áreas clínicas para serem classificadas no nível A1, necessitam de um fator impacto bem maior. A que se deve essa diferença? Ao tipo de ciência que serve de base a cada especialidade, provavelmente. Algumas áreas sofrem períodos de expansão rápidos, em especial quando se criam novas ferramentas e tecnologias. Nesses períodos, os jornais estão propensos a aceitar determinados assuntos. Pesquisadores experientes detectam essas ondas, aproveitando para “encaixar” papers em revistas de impacto maior. Mas há outras fontes de desigualdades. Um docente tem uma classificação de publicações de acordo com a tabela abaixo.

Mas isso não dependerá apenas da competência do pesquisador médico. Depende, como vimos, da subárea a qual ele pertence (se medicina I, II ou III) e também da facilidade que ele tem para publicar. Podemos imaginar que quanto mais periódicos tivermos com fator impacto A1, mais fácil será a esse pesquisador divulgar seus resultados. Mas quem é que disse que o número de periódicos obedece a essa classificação da CAPES? Vejamos a tabela abaixo.

No caso da medicina III que, como vimos, tem o nível A1 com revistas de fator impacto maior que 2,85, temos uma diferença enorme entre as especialidades. A Urologia tem 26% de suas revistas com a classificação A1, enquanto que a Otorrino tem ZERO! Eu pergunto, como um docente da Otorrino pode ganhar o conceito muito bom e assim melhorar o conceito do próprio programa de pós-graduação ao qual é vinculado? Só se publicar seus dados em outras revistas de fator impacto maior, mas isso não é nada fácil! A linguagem de cada revista é própria pois ela se dirige a um público-alvo que é relativamente específico. Os pesquisadores reclamam da dificuldade em publicar em revistas de outras áreas, como por exemplo, um cirurgião publicar os resultados de um tratamento cirúrgico inovador para o câncer gástrico em uma revista de Oncologia (que têm, em geral, elevado fator impacto). Se pensarmos que as verbas de fomento à pesquisa também são distribuídas de acordo com regras parecidas, ou no mínimo, são levados em consideração todos esses conceitos CAPES, temos um sistema que não é assim, um primor de igualdade.

Homens

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Os gregos tinham pelo menos três palavras para dizer “homem”. Quando queriam dizer “homem” em oposição a mulher, dizia-se andrós. Andrós é o homem viril e herói, de onde vêm os nomes André, Alexandre (Alexandrus), Leandro e outros. “Homem” com o sentido de humanidade e em oposição aos animais era anthropos, de onde vêm as palavras antropologia e misantropo (o “anti-social”). Quando “homem” estava em oposição aos deuses, a palavra mais correta era brotós, ou thnetos, o que morre, cuja raiz gerou a tanatologia – o estudo da morte e do morrer.

Quem é o “homem” que adoece e ao qual o médico deve dispensar seus cuidados é uma pergunta interessante dentro desse contexto. Nas tragédias gregas é explorado justamente o aspecto finito do homem perante aos deuses e o brotós, predomina. Mas há referência a todos, dependendo de cada situação. Em que pese o fato de haver médicos andrologistas, aqueles que cuidam de fertilidade e disfunções sexuais masculinas, acho que o médico em geral cuida mesmo, ou pelo menos deveria, do brotós/thnetos. Qualquer doença desperta a consciência de que não somos eternos e podemos morrer a qualquer momento. Um médico não pode nunca esquecer-se disso, mesmo quando trata de doenças banais.

Cientista Documenta Relação Sexual Dentro de Ressonância Magnética

Esse filme foi feito por um ginecologista para documentar a posição do pênis e da vagina durante o coito. O artigo original pode ser encontrado aqui. As imagens são interessantes. Ah, desculpe, o texto também. O médico ganhou o Ignobel. Quem já fez uma ressonância sabe que não deve ter sido nada fácil!

Esse post faz parte da blogagem coletiva caça-paraquedista atrasada. Sorry for this, boss!

Hermenêutica Médica

http://1.bp.blogspot.com/_T9Ev6D2alXk/Sm7gQKAEjTI/AAAAAAAAAYc/E6jUAO7pzqI/s320/coracao-vazio.jpgAcho que o momento é propício (καιρός). Qual a melhor forma de combater “medicinas alternativas” e “pseudociências” em geral?

Segundo Boaventura de Souza Santos[1]:

1. Todo conhecimento é em si uma prática social, cujo trabalho específico consiste em dar sentido a outras práticas sociais e contribuir para a transformação destas;
2. Uma sociedade complexa é uma configuração de conhecimentos, constituída por várias formas de conhecimento adequadas às várias práticas sociais;
3. A verdade de cada conhecimento reside na sua adequação concreta à prática que visa constituir;
4. Sendo assim, a crítica de uma dada forma de conhecimento implica sempre a crítica da prática social a que ele se pretende adequar;
5. Tal crítica não se pode confundir com a crítica dessa forma de conhecimento, enquanto prática social, pois a prática que se conhece e o conhecimento que se pratica estão sujeitos a determinações parcialmente diferentes.

Tratamos do problema do conhecimento como fator de transformação social, em geral e em particular, das relações entre a ciência e o senso-comum. A racionalidade utilizada pelo senso-comum é objetivista, individualista e naturalista no sentido de conservadora do status-quo. Um conhecimento, científico ou não, que pretende mudar esse panorama será fútil se pretender corroer o sistema por meio de uma elaboração teórica da prática social a que esse conhecimento se refere utilizando sua própria racionalidade. Esse procedimento termina por duplicar o senso-comum ou seja, tendemos a pensar esse conhecimento também de forma objetivista, individualista e naturalista com vistas a manter o status-quo! É ingênuo pensar que a ciência tendo apenas seu método como arma, possa ir além da crítica, se não se unir ao processo de transformação da realidade de tal forma a transformar também, o critério de verdade, do qual fazem parte os mais variados aspectos da humanidade.

Me é irresistível concluir: Dawkins e seus partidários pregam no vazio.

[1]. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Boaventura de Souza Santos. 4a edição. Graal. 1989. Rio de Janeiro.

Pára-Quedas, a Ciência e Eu

Reconheço que ser médico algumas vezes me causa certos problemas que vão bem além de consultas em festas de aniversário. Me explico: já disse que fazer parte de uma comunidade como o Scienceblogs Brasil, me obriga a rever certas posições quase fossilizadas que temos no meio médico; fazem-me sair da “área de conforto”. Pois bem, um exemplo ilustrativo é a visão bastante particular que os médicos têm da ciência. Excetuando-se os cientistas que formaram-se em medicina, pois alguns deles são mesmo cientistas – sendo uns poucos, em exercício ilegal da medicina! -, a grande maioria dos médicos têm uma visão utilitarista da ciência. Não nos apropriamos da ciência como fim, mas como meio de melhor cuidar dos pacientes. Isso ocorre devido a congênita relação da medicina com a prática (iatriké techné de Platão) e culmina com a afirmação seminal de que “a medicina é mais velha do que a ciência“. O Ecce Medicus é pródigo em posts que tratam da diferença entre medicina e ciência médica (ver aqui e aqui, por exemplo).

Tudo isso para dizer que meu apego pela ciência é, digamos, relativo. Isso significa, entre outras coisas, por exemplo, que rejeito veementemente o método científico como único guia e indicador dos procedimentos médicos. A ciência não é um imperativo ético! Posso utilizar minha experiência prévia que não é baseada no método científico. Posso utilizar a experiência prévia de outro médico mais velho que, além de não ser baseada no método científico, é ainda transmitida a mim de forma enviesada, fantasiosa e, às vezes, preconceituosa. Não há estudo metodologicamente bem desenhado (nem mal)  que demonstre o benefício do uso de pára-quedas em prevenir mortes e politraumatismos de saltos de avião. Que fazer? Não “prescrevê-los”? Esse exemplo é semelhante ao uso dos suplementos vitamínicos e outros tantos que nunca, jamais serão testados de acordo com metodologia aplicável de modo a gerar a “certeza” exigida nos pesquisadores. Esse é o dia-a-dia do médico. Trabalhar com uns “sujeitos bem individuais”, não-encaixotáveis em ensaios clínicos e ter que usar o conhecimento científico disponível aplicado com bom-senso (mas, o que é bom-senso mesmo?). Às vezes, é bem fácil. Não infrequentemente, você só tem o seu juízo clínico com que contar: A ciência é um luxo que não se pode ter sempre!

Espero que tais fatos ajudem a explicar a minha total falta de ânimo e entusiasmo em “combater” medicinas alternativas e outras pseudociências em geral, com o vigor do método científico. Pululam exemplos em que pais estúpidos deixam seus filhos morrerem à míngua por utilizarem-se de homeopatia ou “rezas bravas” enquanto os pequenos agonizavam em seus berços. Eu mesmo já postei sobre a imbecilidade de um grupo de fundamentalistas americanos em não vacinar crianças. Entretanto, acredito ser não só impossível, como anti-ético, julgar os atos de outrem tendo como base única e exclusiva o método científico e os fatos por ele gerados. A ciência é uma ferramenta, talvez a melhor que temos, mas está longe de ser um código de ética. Ela é uma geradora de problemas éticos mas não os resolve. Os conflitos éticos são habitualmente resolvidos em outras instâncias da sociedade (ou não!).

Vendo pessoas com crenças não-científicas agir dessa maneira, penso sempre na atitude humana frente ao conhecimento. Pessoas assim, utilizam-se de um conhecimento adquirido de forma diferente, mas que desempenha o mesmo papel e ocupa os mesmo espaços e as mesmas sinápses que o conhecimento científico no cérebro humano. Todos, científicos ou não, são conhecimentos arrogantes e possessivos. Utilizam a racionalidade do sujeito vs objeto, com a petulância da posse, do entender para dominar. Razões instrumentais. Então, eu olho para os leitos ocupados dos hospitais; olho para um lado e para o outro e vejo, pasmo, que estou cientificamente só.

Romances e Pacientes


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Em artigo interessantíssimo na Piauí desse mês, Mário Vargas Llosa sai “Em defesa do romance”. Explica que não apenas nossa linguagem, mas também nossa imaginação e raciocínio são feitos de palavras. Em determinada passagem, afirma: “Os conhecimentos que nos transmitem os manuais científicos e os tratados técnicos são fundamentais; mas eles não nos ensinam a dominar as palavras nem a exprimi-las com propriedade: pelo contrário, amiúde são mal escritos e revelam certa confusão linguística porque os autores, às vezes eminências indiscutíveis em sua profissão, são literariamente incultos e não sabem se servir da linguagem para comunicar os tesouros conceituais de que são detentores.” Isso para dizer que o romance é a única peça cultural que pode, mais que qualquer gramática, mais que a TV ou a internet, ensinar o uso preciso de palavras conhecidas e nos apresentar novas. Eu acrescentaria, não só palavras mas também conceitos. Rorty concordaria. Para ele, a filosofia contemporânea deve explicar os romances. A tessitura do real é caricaturada nos romances. Os romances são como ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, placebo controlados do mundo da vida. Os “pacientes” reais não estão lá, mas como nos ensinam!

Li o longo artigo e me deparei com a seguinte frase: “A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.” O vocabulário específico nos isola numa armadilha solipsista. Quanto mais somos específicos, mais nos tornamos incapazes de avançar em outras arenas. Tive então, a certeza de que Vargas Llosa falava dos médicos. Se a dificuldade em se comunicar com um leigo é aceitável para qualquer profissional que utiliza conhecimentos científicos, no caso dos médicos, esse é o tipo de deficiência catastrófica. Sem essa habilidade, o médico não conseguirá persuadir o paciente de que seu tratamento é importante, não conseguirá aderência ao que for prescrito, nem a confiança do paciente, caso algo não corra bem.

Somente a literatura, conclui Vargas Llosa, conserva esse denominador comum à humanidade de todos nós. Sempre aprendi que os escritores descrevem as doenças melhor que os médicos. Me parece óbvio agora que isso é incorreto. Eles descrevem melhor os pacientes, e só o fazem porque os apoiam nessa base afetivo-sócio-patológico-cultural a que chamamos vulgarmente de vida. Esta última, parece não morar nos livros de medicina, é preciso incomodá-la em outro lugar…

O Sexto Sentido?

Há muitos anos atrás, nos primórdios da civilização humana, o homem só tinha seus cinco sentidos para entender o mundo e tentar fazer previsões sobre ele. Ele tinha certeza de que seus sentidos o guiariam de forma confiável o que quer que ele se propusesse a fazer. Com os anos, vieram alguns refinamentos e o homem viu que existiam coisas que ele não conseguia “sentir” com seus sentidos. Ele aprimorou ferramentas, pôde ver mais longe e mais perto. Pôde entrar em ambientes que jamais imaginou e testar, sentir, ouvir coisas que nunca pensou pudessem ser experimentadas antes. Ampliou seus horizontes e seu controle sobre as coisas.

Mas existiam coisas que o homem não podia sentir ou captar mesmo através de seus sentidos “aprimorados”. Um indício disso, era a ciência de contar e de pensar espaços: a matemática. A matemática era uma ciência que, ao mesmo tempo, incomodava e fascinava o homem. Seus “objetos” eram virtuais. Só existiam na cabeça dos homens. Foi considerada filosofia, seita, quase-religião. Até que se descobriu algumas utilidades interessantes para ela.

Uma das muitas utilidades da matemática que nos importará aqui, é o fato de que ela é a única ferramenta capaz de nos habilitar a lidar com os tais objetos virtuais. Quando quisemos saber se a população de uma tribo era mais alta que a de outra, tivemos que medir alturas. Dada a impossibilidade de parear membro a membro de cada tribo em embates 1:1 e contar os vencedores (experiência já realizada, muitas vezes com resultados catastróficos), era melhor medir todos e depois compará-los. Aí é que está! O homem sabia comparar pesos de cargas, tamanhos de tecido, números de cabeças de gado, mas como comparar a altura de uma tribo com outra. O resultado são fileiras de números. Nenhum dos sentidos do homem servia para validar esse tipo de comparação. Só a matemática forneceria uma ferramenta capaz de viabilizar essa experiência. Surgiu então, a Estatística.

A estatística tem várias definições, mas a que eu achei mais elucidativa é: “é o estudo da distribuição de dados”. O dado, no nosso exemplo, é a altura de um membro da tribo. Por meio de ferramentas estatísticas, posso comparar a distribuição da altura de cada tribo e dizer qual tribo é a mais alta. Fantástico, não! A estatística é uma ciência bem nova. Alguns dirão, “não, já existiam ferramentas matemáticas utilizadas pelos estatísticos no século XVII”. Ferramentas, eu diria. Não, uma filosofia de trabalho. A estatística surgiu na virada do século XIX para o século XX, com os trabalhos Karl Pearson (desenho ao lado) e Ronald Fisher. O primeiro em especial, deu o grande salto. Foi Karl Pearson quem entendeu que o objeto dessas medidas era “virtual”. O segundo, fundou a estatística de fato.

A estatística é hoje, o grande mecanismo gerador de certeza de um médico.Muitos de nossos objetos são totalmente impalpáveis: tamanhos de tumores, sobrevidas, efeitos de medicações em populações e por aí vamos. Entretanto, essa virtualização do objeto a ser apreendido causa um grande mal-estar no médico. Médicos em geral, e cirurgiões em particular, gostam de tocar, ver e sentir, a doença. Dizer que a distribuição da pressão arterial é assim ou assado, é algo difícil de interiorizar. Acreditamos com nosso lado cientista, desconfiamos com nosso lado curandeiro. Por isso, há um embate eterno entre o que um médico viu e o que esse mesmo médico leu ou ouviu. Estatística vs cinco sentidos! Seria ela, um sexto sentido?

Enquanto os médicos estiverem ainda presos à natureza humana, esse embate perdurará. Aos pacientes, resta torcer para que o médico consiga com seus meros cinco sentidos, coletar seus dados, traduzí-los em formato digital virtualizando seu “objeto”, de modo a poder compará-lo com distribuições de outros médicos ou com a sua própria, sem forçar um encaixe em qualquer uma delas, e chegar a uma conclusão estatisticamente válida que deverá ser retraduzida aos pacientes, na forma de diagnóstico e explicações, com atenção, simpatia e, desejavelmente, carinho. O raciocínio para o tratamento segue na mesma linha. Grande torcida. Esperamos não desapontá-los.

A Insustentável Leveza do Exame

http://farm4.static.flickr.com/3235/2734340546_a58cf5649a_o.jpgO Dr. Nelson, um médico sênior de um grande hospital público de São Paulo, foi avisado por sua mãe de que o pai, Seu Nilson, não andava nada bem. Ao fazer uma visita, verificou mesmo que o velho pai, que tinha 80 e alguns anos, de fato não apresentava o vigor de outrora. Tinha um conjunto de queixas vagas e algumas palpitações. Levou-o ao hospital onde resolveu fazer uma “bateria de exames”. Colheu várias amostras de sangue e fazendo os “x” nos quadradinhos do impresso do laboratório, ficou com alguma dúvida se solicitaria os exames de marcadores tumorais, mais especificamente um, chamado antígeno carcinoembrionário (CEA na sigla em inglês). Solicitou também exames cardiológicos e radiografias.

Os exames regulares vieram com poucas alterações, que ele mesmo corrigiu. O ecocardiograma revelou alguma disfunção cardíaca; o eletrocardiograma, arritmias próprias da idade, sem repercussão clínica; as radiografias não mostraram achados dignos de nota. Entretanto, o tal do CEA resultou algo elevado. CEA é uma proteína oncofetal que aumenta no plasma de pacientes com vários tipos de cânceres, inclusive o carcinoma colorretal. A tentação de usá-lo como uma ferramenta diagnóstica é muito grande, mas lhe faltam duas qualidades básicas: sensibilidade e especificidade. Ou seja, o exame tem muitos falsos positivos e muitos falsos negativos, o que o inviabiliza como ferramenta de rastreamento.

Sem saber muito bem o que fazer, realizou algumas “consultinhas de corredor” (procedimento amplamente disseminado entre a classe médica) com gastroenterologistas que conhecia. Corta para uma dessas consultas, mas vamos acompanhar o raciocínio do Gastro e não do Dr. Nelson que começa: “Putz, fiz uns exames no meu pai. Dá uma olhada”. Dr. Gastro “Ah. Tá bom, né? Só o CEA tá um pouquinho elevado”. Dr. Nelson “Então. Faz o quê?”. Dr. Gastro pensa <<pô, o cara é médico, me traz os exames do pai, com CEA elevado. Por que raios ele pediu o CEA? E se for um câncer de cólon? Não posso “comer bola”…>> e diz “Ah, pede uma colonoscopia…” Dr. Nelson “Melhor, né? Tira a dúvida”. Dr. Gastro “É. Tira a dúvida”. Repetiu esse procedimento algumas vezes, sempre obtendo a mesma resposta. Resolveu fazer o exame.

Marcou a colonoscopia num hospital privado e bem aparelhado da cidade. A colonoscopia, como já se disse, é um procedimento que necessita uma limpeza mecânica dos cólons para poder visualizar-se os detalhes do intestino grosso internamente. No preparo, que consiste de fortes laxantes, Seu Nilson ficou completamente confuso, desidratou-se e sua pressão arterial caiu. Foi levado à sala de exame e, como é praxe, foi sedado. Ou tentou-se sedá-lo. Ficou mais agitado, combativo. O exame transcorreu com extrema dificuldade e terminou com Dr. Nelson sobre o Seu Nilson, enquanto o médico realizava a colonoscopia! O paciente ficou sonolento quando tudo acabou e apresentou certo desconforto respiratório. De comum acordo, o médico e o Dr. Nelson resolveram encaminhar o Seu Nilson à UTI para observação. Quem estava de plantão? ==> Karl!

Recebi o paciente e por muito pouco não o coloquei sob ventilação mecânica, por meio de um tubo orotraqueal. A radiografia estava alterada, a oxigenação, ruim. Colocamos uma máscara para ventilação com pressão positiva com melhora. Mais tarde, ele apresentou febre e foram iniciados antibióticos. Ficou uns três ou quatro dias na UTI e mais alguns no hospital, a confusão foi passando devagar e ele teve alta bem.

Ah, esqueci. Logo depois de sua admissão na UTI, recebi um laudo médico: “Colonoscopia normal”.

Foto:Éderson Silva’s photostream

Cerveja e Medicina II

Neste post, continuaremos a visitar a saga de pesquisadores ligados à fabricação de cerveja que contribuiram de forma importante para a prática médica contemporânea.

Doenças graves afetam o organismo como um todo. Quadro sistêmicos podem levar à morte por meio de mudanças no meio interno no qual as células vivem. Um dos mais importantes mecanismos é o aumento (ou diminuição) da concentração hidrogeniônica no espaço extracelular. Os íons hidrogênio têm o poder de interferir em muitas reações biológicas, apesar de ter uma concentração 3,5 milhões de vezes menor que a do Sódio nos fluidos orgânicos. Sua concentração no soro é de 0,000 000 040 M/L ou 40 nM/L, da mesma ordem de grandeza do Molibdênio (20 nM/L) e menor que as concentrações de elementos como Zinco (15 μM/L), Cobre (20 μM/L) e Selênio (1 μM/L). A concentração hidrogeniônica é importante em qualquer reação química na qual enzimas participem. Sua interferência em processos vitais no organismo é, hoje, óbvia. Mas, os médicos demoraram-se um pouco a perceber isso. Os cervejeiros, não.

A Cervejaria Carlsberg foi fundada em 1847 por Jacob Christen Jacobsen. Tendo herdado uma pequena fábrica de seu pai em 1835, quando tinha 24 anos, experimentou certa vez, uma lager bávara e ficou obcecado pela ideia de fabricar uma em terras dinamarquesas. Quando explosões para uma estrada-de-ferro encontraram água num subúrbio de Copenhagen, ele encontrou o local ideal para por em prática seu plano. Quase três décadas mais tarde, já tendo sido vencedor de vários prêmios e com a Carlsberg conquistando o mercado europeu, Jacobsen inovou mais uma vez. Fundou em 1876, junto à cervejaria, um laboratório para pesquisas que pudessem “auxiliar o processo de fermentação, malteamento e produção de cerveja em larga escala”. O laboratório tinha dois departamentos: Fisiologia e Química. O segundo chefe do laboratório de Química foi Sören Peter Lauritz Sörensen (1868-1939).

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Em 1909, Sörensen (figura ao lado) publicou dois artigos, totalizando 170 páginas, intitulados Études Enzymatiques I e II, em alemão e francês  na revista do Laboratório Carlsberg (Comptes-Rendus des Travaux du Laboratoire de Carlsberg). Neste trabalho, Sörensen esclarece um dos pontos mais obscuros da bioquímica (ops, ainda não existia esse termo!) da época: a relação entre a atividade das enzimas e a acidez do meio.  Não se poderia prever a concentração hidrogeniônica imposta à solução pela adição de ácido porque as preparações enzimáticas funcionavam como um tampão e essas substâncias tinham sua concentração variável conforme o modo de preparação. Ele imaginou que, se segundo Arrhenius, sendo a ação de um ácido caracterizada pela emissão do H+, seria possível que o agente modificador da atividade enzimática fosse o íon hidrogênio, em outras palavras, que o fator determinante fosse a concentração hidrogeniônica. Trabalhando com sua hipótese, Sörensen pôde comparar a atividade das enzimas com a concentração hidrogeniônica de várias misturas, demonstrando que a concentração de íons hidrogênio mais favorável à ação de uma determinada enzima era sempre a mesma, não importando o tipo de preparação, nem a quantidade de ácido adicionada e – o que causou enorme espanto – nem do tipo de ácido (sulfúrico, fosfórico ou cítrico)!

Como se não bastasse, no mesmo trabalho, Sörensen inventou a escala do pH. A figura acima, do trabalho original, talvez tenha sido a inspiração última depois de desenhar tantos gráficos e colocar potências negativas de base 10 nas abscissas, optou por utilizar o cologaritmo, que se traduzia em números mais palatáveis. A grandeza foi representada pelo símbolo pH•, o p proveniente de potenz ou puissance significando potência, ou mais precisamente, o expoente negativo. Com o tempo, o ponto representando o íon hidrogênio foi suprimido por razões tipográficas e ficamos com o familiar pH.

Hoje, nenhum médico intensivista, nefrologista ou pneumologista pode cuidar de um paciente grave sem uma dosagem do pH e de seus correlatos no sangue, como o CO2, sódio, cloreto e a quantidade de bicarbonato dissolvido. Em 2009, completou-se 70 anos do falecimento de Sörensen e 100 anos da invenção do pH, mais uma grande ferramenta que devemos a um mestre cervejeiro! Mais um motivo para comemorar. Prost, Sr. Sörensen!

Cerveja e Medicina

ResearchBlogging.org

Hoje, 24 de Setembro, é o aniversário de 250 anos da Cervejaria Guinness. A cerveja é hoje uma bebida apreciada no mundo todo. Há quem afirme desempenhar ela um papel importante até na evolução da espécie humana (valeu, Átila). Seu processo de fabricação depende da fermentação de cereais e lúpulo que, apesar de provavelmente descoberto de forma acidental, necessita um controle rígido em cada um de seus passos. Atualmente, o processo é automatizado e tem-se um moderno e eficaz controle da temperatura e do pH. Mas nem sempre foi assim. As fórmulas das cervejarias famosas eram guardadas sob segredo de estado. O processo, quase alquímico, era dominado por uns poucos “feiticeiros” que não podiam deixar nada escrito e transmitiam seus conhecimentos ao “pé-do-ouvido”.

Na virada do século XIX para o XX, quando a ciência se estabelece como hoje a conhecemos, dois pesquisadores chamam a atenção. Primeiro, por trabalharem em cervejarias e, segundo, por fazerem importantes contribuições à prática médica. Contribuição que não é aquela depois do plantão, quando queremos relaxar. Na verdade, foram mudanças de paradigma do pensamento médico.  Comecemos pois, com a aniversariante.

Em 1899 a Guinness Brewing Company of Dublin contratou um jovem de 23 anos, recém-formado em Oxford em química e matemática. Seu nome era William Sealy Gosset (foto ao lado). Gosset fora contratado por seus dotes químicos. O que um matemático faria em uma cervejaria? Entretanto, ao observar o processo de fermentação, notou que a amostra de levedura necessária a uma mistura era de difícil quantificação. Os técnicos tinham que pegar uma amostra de cultura e examiná-la ao microscópio, contando o número de células que viam! A quantidade de leveduras em qualquer processo de fermentação é fundamental. Gosset verificou que as anotações dos técnicos seguiam uma distribuição estatística particular chamada de Poisson, conhecida há mais de um século. Gosset então, criou regras e métodos de medição que levaram à quantificação das amostras de levedura muito mais exatas. Gosset queria publicar seus resultados, mas a Guinness não permitia esse tipo de divulgação com medo de perder as fórmulas tão secretamente mantidas. Ele entrou em contato com Karl Pearson, então editor da Biometrika, a revista de estatística mais badalada da época, e publicou um artigo com um pseudônimo. A figura abaixo mostra a primeira página do segundo artigo de Gosset, de um total de três, usando o codinome Student, publicado na Biometrika em 1908. O artigo integral “remasterizado” pode ser baixado aqui.

Sendo um teste de uso disseminado para experimentos com amostras pequenas, é útil em uma gama enorme de situações. O próprio Ronald Fisher, o utilizou para estudar o efeito de adubos em Rothamsted. Imaginei que o teste teria sido aplicado em cervejarias, agricultura e outras tantas situações possíveis. Ao procurar saber qual teria sido o primeiro estudo médico a utilizar o teste, me surpreendi. No próprio artigo original, o primeiro exemplo utilizado por Gosset foi o efeito farmacológico de antigas substâncias hipnóticas (utilizadas para indução de sono – hoje sabemos que são derivados da hioscina que, por sua vez, tem como um de seus nomes comerciais o Buscopan®) de dois médicos da Universidade de Michigan, Arthur Cushny (1866-1926) e Alvin Roy Peebles (1884-1917). Esses dados foram publicados no Journal of Physiology em 1905. Portanto, o teste-t de Student foi “rodado” a primeira vez para testar uma amostra de dados de pacientes submetidos a um ensaio clínico! É a medicina dando sua contribuição à ciência ; ). Mas o melhor ainda estava por vir.Fisher fez correções e incluiu o teste-t em seu famoso livro Statistical Methods for Research Workers, cuja primeira edição é de 1925. Quando o livro estava na 5ª edição, em 1934, Fisher recebeu uma carta de um médico americano chamado Isidor Greenwald (1887 ou 1888-1976) dizendo que os dados utilizados nos exemplos do teste-t de Student estavam errados! Gosset os tinha tomado de forma equivocada. Admitiu isso a Fisher em uma carta e solicitou que ele o culpasse de tudo. Fisher corrigiu as tabelas, refez alguns experimentos, mas manteve o exemplo, sem culpar seu grande amigo. Temos então, que um dos mais famosos (se não, o mais) dos testes estatísticos nasceu numa cervejaria (que faz aniversário hoje), tendo um ensaio clínico protagonizando seu primeiro exemplo! É muita felicidade para um médico que adora cerveja e estatística. Saúde, Sr. Gosset!Mas, em 1919 1909, um outro mestre cervejeiro daria sua contribuição de forma a juntar ainda mais cerveja e medicina.

Bibliografia

[1] Uma senhora toma chá.. Como a estatística revolucionou a ciência no século XX David Salsburg.
[2] Senn, S. (2008). A century of t-tests Significance, 5 (1), 37-39 DOI: 10.1111/j.1740-9713.2008.00279.x