Vampiros e Bruxas

É possível distinguir, dentre muitos, dois arquétipos oriundos do medo humano de relacionar-se com outros seres humanos: um masculino e um feminino.

O arquétipo feminino é a bruxa ou feiticeira. Mulher de grande sabedoria e variadas formas, ora jovens e sedutoras, ora velhas e asquerosas, que ao induzir os homens ao erro e utilizando de múltiplos ardis, em geral, de forte apelo sexual, consegue o que deseja e, invariavelmente, leva suas vítimas à morte. A bruxa representa o medo masculino da sabedoria feminina. Uma mulher sábia era um ser bastante complicado de lidar se considerarmos o ambiente onde surgiram tais lendas, em geral, o período medieval. Subversiva frente ao poder fálico emanado pelos homens, portadora de outra visão da sociedade, a bruxa por não contar com a força física masculina, utiliza-se de um tipo diverso de poder, desconhecido dos homens e por essa razão, temido, dado que não se enfrenta com espadas (clássico símbolo fálico). Os homens que a elas resistem devem travar uma luta interna contra a concupiscência de seus sentimentos, pois é por meio dessa “fraqueza” que a bruxa se tornará forte e o vencerá. Nada mais proto-cristão. A perseguição e as fogueiras nas quais foram queimadas centenas de mulheres, entretanto, testemunham a forma como a ascese monástica – uma amputação traumática que transcendia a virilidade dado que mutilava também a capacidade de amar o sexo oposto – dizia, como a ascese monástica lidava com um poder que jamais conseguiria vencer.

O arquétipo correspondente para as mulheres não é o feiticeiro ou bruxo. Este, povoa o imaginário feminino no mesmo local onde as moças estão habituadas a duelar e, por isso, não provoca espasmos. Sem dúvida, quem ocupa esse lugar é o vampiro. Antiquíssima lenda de várias culturas, foi com Bram Stoker que ganhou corpo e fama. O livro de Stoker é de 1897, final da época vitoriana, período de rigidez de costumes e aparências, que apesar de tudo, falhou em coibir a libido humana, a feminina incluso. O vampiro assim, representaria o homem sedutor, quase irresistível, ao qual a mulher reluta em entregar-se, dada as seríssimas consequências de seus atos, mas que, ao mesmo tempo, proporciona-lhe um prazer sexual indescritível, um arrebatamento quente e úmido que a eleva acima das coisas mundanas a ponto de implorar pelo contato com o monstro. Da mesma forma, a vampira para os homens, ocupa o mesmo espaço que uma bela bruxa e não se constitui em nova ameaça (para quem já vive, no caso, naturalmente ameaçado).

Se concordamos até agora, poderemos também concordar que tentativas recentes de transformar vampiros, lobisomens e sacis-pererê em doenças, são cada vez mais frequentes. Assisti, sem deixar de sentir um pouco de pena do elenco, o filme Daybreakers (2009) cujo título no Brasil é o bizarro 2019 – O Ano da Extinção. (Vou mandar um spoiler agora, se você pretende assistir essa porcaria, não leia o parágrafo até o fim). No filme, uma epidemia de vampiros acomete a espécie humana e vai transformando todos. Consequência óbvia, conforme os humanos vão escasseando, os vampiros vão passando fome, de tal forma que um sujeito do mal (Sam Neill) inventa um banco de sangue gigantesco para extrair sangue humano sem que se transforme os coitados em vampiros acabando com os já “parcos recursos ainda existentes”. No final, descobre-se uma cura para a “doença” de ser vampiro e salva-se a humanidade.

O que quero chamar a atenção aqui é que os vampiros do filme não têm nada de sedutor. As mordidas são muito mais parecidas com “estupros mandibulares” que com sensuais mordiscadas no pescoço de virgens ofegantes. Sangue pra todo o lado, no melhor estilo trash. Não que eu quisesse manter a lenda dos vampiros exatamente a mesma, desde há dois séculos. Mas, quando tentamos transformar um mito em doença, na verdade o que estamos fazendo é racionalizá-lo. Algumas doenças desempenharam esse papel, estigmatizadas que foram, a ponto de incorporar temores primordiais. (Ver a Sífilis e, recentemente, a AIDS). Nada de novo aqui. A racionalização é um procedimento iluminista (século XVII). Tudo o que tememos, tendemos a racionalizar, seja por meio de procedimentos científicos, seja por meio de crenças religiosas (e nesse ponto está o mérito da igreja católica no período medieval já que o povo vivia morrendo de medo de tudo quanto era demônio, espírito, etc) e aqui o termo “racionalizar” ganha um significado mais amplo.

Contudo, racionalizar um mito não significa matá-lo. Significa jogá-lo para baixo do tapete e isso quer dizer que ele retornará transmudado em outra coisa, voltando a assombrar os incautos. Veja se essa não é uma história de vampiro real!

A persistência dos mitos é o principal obstáculo ao pensamento livre. Matar mitos é uma luta individual, solipsista até, que dura toda a vida consciente. Enfrentar quimeras, muitas das quais nem sabemos quem são: é esse o método que nos livra das garras, presas, quebrantos e feitiços dos vampiros e bruxas que somos e habitamos em nós.

Um Bisturi de Argônio – Carta ao Professor de Clínica Médica

Allgemeine Krankenhaus - Viena, 1784. Fonte: Wikipedia

O saber não é para compreender. O saber é para cortar.

Michel Foucault

Professor,

Não sem muita hesitação resolvi sentar à frente desta tela e datilografar (sim, tenho diploma de datilografia, o que dá uma ideia da minha geração) estas reflexivas linhas. A idade e uma distância mantida cuidadosamente estável para que não se perca de vista os ares e paisagens acadêmicos, me fizeram crítico e, porque não dizer, algo ranzinza das coisas da medicina. A distância, na verdade, se articula com o tempo que a idade fez passar, e dota meu olhar com um bisturi de argônio existencial: ao mesmo tempo que espicaça fatos, coagula emoções. Sendo assim, espero que me perdoe alguma indelicadeza e/ou imprecisão no que segue. Mas é que eu tinha que falar…

Outro dia, um professor de cirurgia da faculdade me perguntou incisivamente: “Quem é o CLÍNICO deste hospital? Quem é o CLÍNICO desta cidade?” Fiquei pensando na resposta e, como sói acontecer com as perguntas em que não encontramos a anestesia de uma certeza, estou nela pensando inda agora. E dói esse pensamento. Lembremos da nobre origem da clínica médica no século XIX, na França, mais especificamente, em Paris, tendo como exemplo uma nova forma de atuar de alguns médicos do Allgemeine Krankenhaus em Viena (figura), da Escola de Medicina de Edimburgo entre outras, que, somada à mudanças epistemológicas na ciência médica, com a recém-constituída Anatomia Patológica incluída no raciocínio clínico, “colou” o nome à coisa e abriu caminho para uma medicina positiva.

À partir daí, os clínicos gerais ganharam prestígio como médicos, e calaram Moliére. Sua atividade, dividida entre o hospital e o consultório, permitia que acompanhassem uma variedade muito grande de pacientes com doenças em suas múltiplas manifestações e diversos graus de gravidade, fazendo com que ganhassem grande erudição médica dentro, obviamente, da ciência possível em cada época. O clínico geral era um sábio.

Eis que se muda novamente a episteme, como diria Foucault. Mudam os “códigos fundamentais de uma cultura” e a ordem do discurso, por conseguinte. O clínico geral – e os especialistas da Clínica Médica –  passa então, cada vez mais, a ser um tipo de porta-voz de uma ciência avassaladora na qual a “medicina baseada em evidências“, para além de ferramenta cotidiana, transforma-se em imperativo ético, em um subproduto ideológico. Os cirurgiões não sofreram na carne o golpe com a mesma intensidade. Para eles há ainda o ato cirúrgico que depende de uma habilidade, uma arte, um dom e que, de uma certa forma, os blinda da “invasão de privacidade” – na relação entre ele e seu paciente e que funda a medicina -, da ciência enxerida e abelhuda, vista como um fim e não como meio de praticar medicina. A Clínica Médica sofreu ainda um outro golpe. A especialização crescente que o conhecimento técnico exige não nos dá muitas opções: doenças sistêmicas? doenças comuns? diagnósticos difíceis? O que é e em qual área da medicina atua um clínico geral moderno? Responder que nossa especialidade é o “doente” e não as doenças, não parece ser suficiente. Os hospitais mudaram. Ninguém quer ficar internado muito tempo e as fontes pagadoras pressionam para manter os pacientes fora dos hospitais. Alguns buscaram aprender algum “procedimento”. As especialidades médicas que assim o permitiam ganharam novo fôlego. Cardiologistas passaram a dominar técnicas percutâneas de diagnóstico e tratamento, ecocardiografia e outras atividades mediadas por máquinas. Gastroenterologistas e pneumologistas, aprenderam a endoscopar e biopsiar. Reumatologistas, hematologistas e oncologistas começaram a prescrever “drogas perigosas” que somente eles podem prescrever. E assim, toda a Clínica Médica foi se “ajeitando” dentro da nova episteme; se recriando à luz das necessidades; adquirindo novas habilidades e novos discursos. Ao buscar uma arte, uma habilidade, um procedimento, ao mesmo tempo em que se defendem de intrusões indesejadas e resguardam sua aura de técnico à moda dos cirurgiões, também procuram obedecer a lógica de mercado e

Vendo em Código - a metáfora para a visão do médico?

atender às solicitações da sociedade em busca da inovação e das novas tecnologias. Talvez o protótipo do clínico geral moderno, que vê o paciente como um todo, tendo como pano de fundo uma Matrix de dados virtuais e ainda realizando procedimentos característicos da especialidade, seja o médico que trabalha em unidades de terapia intensiva: o intensivista. Hoje, parece que o intensivista permanece ainda com algum resquício da fleuma do clínico geral de outrora. Mas, também ele, passa o plantão.

Foi assim então, que o clínico, perdeu sua Palavra. E as alunos começaram a perguntar: “que adianta ser um médico mudo?”

Alguém poderia pensar entretanto, que o clínico não é necessário. Que sua sabedoria totalizante não teria lugar no mundo da velocidade, do procedimento, da hiperespecialização, da virtualização dos corpos. Que ele logo ficaria desatualizado, ultrapassado pelo vagalhão feroz de ciência médica produzido diariamente por milhares de jornais científicos ao redor do mundo. “Não dá” – dizem os próprios médicos a si e aos colegas. Mas, para estupefação testemunhada diariamente de alguns, os próprios pacientes, entre eles alguns médicos que, pasme, também ficam doentes, requisitam os serviços do clínico. Por quê?

Eu tive bastante contato com um professor de patologia cuja vida foi dedicada a estudar o fígado e o pâncreas. Ironia do destino, teve o diagnóstico de câncer de pâncreas agressivo. Já bem magro e cansado de terapias de pouco efeito, embora pleno de seu raciocínio claro e agudo, me confessou que os médicos ficavam um pouco intimidados por ele ser uma autoridade mundial na doença que o consumia. A gota d’água foi o fato dele mesmo ter que comunicar à família (esposa e filhos) seu diagnóstico, além de discutir o prognóstico. “Nunca”- me disse, sem carregar nas emoções – “me faltaram bons médicos. Sempre me trataram com muito carinho e respeito onde quer que eu fosse. Mas me faltou UM médico.”

Foi imerso nas profundezas dessas memórias – e é incrível como com o chegar da idade, as memórias formam cada vez mais nossos pensamentos – que li que um professor de Clínica Médica ministrava um curso sobre os Fundamentos da Homeopatia.

“Homeopatizar” a Clínica Geral me parece um caminho que, se por um lado, valoriza a avaliação do ser humano como um todo (não usarei “abordagem holística” aqui dada a contaminação desta expressão com outros tipos de charlatanismo) que é o que fazemos, por outro, fere a própria origem da clínica, calcada profundamente em conhecimentos científicos válidos. Se essa abordagem – a científica – nos trouxe para o imperialismo cientificista da prática médica contemporânea, outras formas de “ver” o paciente devem ser procuradas. Não somos cientistas e não somos curandeiros. Somos médicos e isso já é ser duplo, tal como os “humanos” de Aristófanes no Banquete. Mutilados que fomos, nossa metade científica nos transforma em autômatos repetidores de “evidências”. O vazio existencial que fica nos impele a procurar a metade oposta – humana – e ela NÃO está nas alternativas à medicina! Pelo contrário, está nela própria, professor. E para encontrá-la talvez seja necessário reduzir fenomenologicamente a medicina ao seu  núcleo duro, dissecá-la até que surja o encontro que a define: a relação médico-paciente. E “histologicamente” do que é tal relação constituída? Alguma pista? Sim. Ela é feita de linguagem! Nada mais humano e a um só tempo, científico. Para chegar a isso, talvez seja mesmo necessário um metafísico bisturi de argônio. Posso emprestar o meu, existencial, que consegui na distância e no tempo. Porque, creia, o senhor vai precisar.

USP em Tudo, USP então?

Têm sido divulgados na mídia, dados interessantes sobre a Universidade de São Paulo. Primeiro, a questão do número de doutores: a USP é a que mais forma doutores no mundo. Carlos Orsi no Twitter observou que Oxford estava apenas em 28o lugar nesse quesito e a pergunta que ficou no ar é: o que isso quer exatamente dizer? A USP é seguida pela Universidade da Jordânia e pela Universidade de Tóquio na formação de acadêmicos.

Recentemente, no dia 14 de março de 2012, foram publicados os novos dados da Times Higher Education parabenizando os new entrants no top 100, a saber “Hebrew University of Jerusalem, University of São Paulo, in Brazil, and the Middle East Technical University, in Turkey”, que ultrapassaram universidades do velho mundo. (Veja aqui, reportagem d’O Estado)

Em que pesem as críticas metodológicas sobre os tais “rankeamentos” em geral e de universidades, em especial (veja, por exemplo, a eterna briga dos rankings de clubes de futebol), há mais de 40 rankings de universidades publicados no mundo, inclusive alguns no Brasil e que sempre fazem muito barulho. A discussão é válida enquanto for um instrumento para mudanças. (Veja excelente post do Quipronat sobre o assunto, no ano passado).

Lado Ruim

Eu, particularmente, acho que esse tipo de propaganda acaba não agregando muito à universidade. A USP não cobra mensalidade. Tal exposição, positiva de fato, acaba por servir à acirrada política paulista – lembrar que estamos em ano de eleição -, servindo também à inércia, tão cara a alguns administradores públicos, de manter as coisas como estão. Pior, no caso do número de doutores, há em curso um projeto que talvez acelere sua formação, coisa que já vem acontecendo há alguns anos, como se o número de acadêmicos formados fosse um fim em si.

Lado Bom

Mas há um aspecto positivo. A Lei de Diretrizes Orçamentárias prevê uma destinação fixa de verbas para as universidades estaduais paulistas: os tais 9,57% da Quota Parte do Estado do ICMS (QPE). O Brasil tem várias universidades estaduais mas acho que só as paulistas gozam desse tipo de estatuto (quem tiver dados contrários, por favor me avise, eu procurei mas não achei isso). Justamente, USP, UNICAMP e UNESP que têm aparecido em posições bastante destacadas nos rankings de universidades latinas. Os governos de outros estados poderiam se “animar” com esse tipo de propaganda (que não é ponte, nem estrada!) e destinar mais verbas as suas próprias universidades e para a educação em geral.

Lado Pior

Mas, no melhor estilo “tirar doce da boca de criança”, segundo a ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior ),  “os dados mostram que as universidades não receberam o percentual sobre cerca de R$ 1.422,2 milhão, valor correspondente a impostos recebidos em atrasos e suas respectivas multas e juros de mora, e sobre aproximadamente R$ 741,1 milhões, referentes ao repasse para Habitação, sistematicamente subtraído antes do cálculo dos 9,57%. Ou seja, as universidades públicas paulistas deixaram de receber, no ano passado, um total de R$ 207 milhões (R$ 108,8 mi da USP, R$ 50,7 mi da Unesp e R$ 47,5 mi da Unicamp), montante que deveria ser repassado à educação superior pública paulista, por força de lei, e que o governo Alckmin destinou outro fim.” (itálicos meus).

A ADUSP afirma que a sangria orçamentária foi feita com a anuência dos reitores (CRUESP). Aqui vale aquele ditado que diz que “nego só vê as pinga que a gente bebe, não vê os tombo que a gente leva”…. Por tudo isso, vejo esses números com uma alegria contida e uma atenção redobrada para avaliar como eles serão, ou estão sendo, utilizados. E por quem.

PS. Lamentável a morte do professor César Ades, sob todos os aspectos. Veja homenagens de quem o conheceu de perto aqui, aqui e aqui.

Slow Doctoring

 

É mais um manifesto. Depois do Slow Food, do Slow Blogging, Slow Thinking, entre tantos, chegou a vez do Slow Doctoring. O Slow doctoring é uma proposta de relacionar tempo e prática médica. Expus minhas vivências sobre tempo e de como acredito que ele seja intrínseco a cada pessoa. Se assim de fato é, uma consulta, visita ou qualquer interação onde se dê a relação entre um médico(a) e um(a) paciente é, também, uma relação entre vivências de tempo diferentes. Há uma percepção geral de que os médicos não têm muito “tempo” para seus pacientes. Um slowdoctor é um sincronizador dos tempos: aeônicos médicos e khrônicos dos pacientes.

1

Slow Doctoring é ouvir. P a c i e n t e m e n t e. É confiar, estimular e aprender a construir uma narrativa do paciente. Você, além de se divertir, certamente se surpreenderá com isso.

2

Slow Doctoring é a rejeição da filosofia do “Quebrou-Conserta” vigente na medicina contemporânea. Nada contra os ortopedistas, por favor. O problema é esse tipo de filosofia que passou a ser regra e vem sendo aplicada onde não seria necessária. Exemplo, dor no peito = cateterismo = stent-em-tudo-quanto-for-obstrução. “Quebrou-conserta”.

3

Slow doctoring é entender que alguns diagnósticos só vem com o tempo e que para isso, é preciso ter o tempo como amigo e que ele, não é muito fácil.

4

Slow doctoring é desobjetivar a medicina. Ela, menina dos olhos de Platão e Aristóteles, ficou moça com Descartes e Bacon e parece ter casado com Adam Smith. Para entender o humano não basta quantificá-lo, é preciso ser humano também, a maior das empatias.

5

Slow doctoring é entender que atrás de sua caneta existe um arsenal gigantesco e extremamente agressivo de exames, tratamentos clínicos ou cirúrgicos capazes, hoje, de virar seu paciente literalmente do avesso e encontrar, não só doenças potencialmente tratáveis, mas também pseudodoenças cujo “tratamento” é, em si, a maior de todas as doenças: iatrogenia. Um carimbo em cima disso não endossa o ato.

6

Como corolário do item 5, slow doctoring é domar a tecnologia médica e não deixar que ela dome você. Muito da “velocidade necessária” da prática é o médico a serviço da tecnologia e não do paciente. Evitar confundir medicina com tecnociência para não correr o risco de ser cientista em exercício ilegal da medicina.

7

Slow doctoring é entender o lead-time bias e suspeitar dele. Sempre. Truque dos deuses siameses.

8

Questionários são para quem não quer conversar. Assim como algoritmos e diretrizes são para quem não quer (ou não pode) pensar.

9

Reconhecer que algumas vidas chegam ao fim e que a morte não é, de longe, a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa.

10

“Se eu quiser diagnosticar um paciente, tenho que conhecer toda sua fisiologia ou fisiopatologia de sua doença. Se eu quiser tratá-lo terei de conhecer a farmacologia e a farmacodinâmica de suas medicações, riscos e benefícios de seus procedimentos. Se eu quiser cuidar dele, o que inclui convencê-lo de utilizar as medicações e submeter-se aos procedimentos, tenho que compreendê-lo como uma totalidade. Se eu quiser curá-lo ou aliviá-lo de seu sofrimento, serei seu médico, e para isso, tenho que respeitá-lo antes de qualquer coisa”. Por isso, ser médico de alguém dá muito trabalho e isso consome tempo.

PS. Deve haver mais algum. Mas 10 é um número bonito.

O Livrinho do Convênio

 

O livrinho do convênio vem com os médicos que você pode escolher de acordo com seu plano. É uma escolha “livre” teoricamente porque você tem várias opções de especialistas médicos e profissionais da área da saúde.

Nada representa tão bem a promessa do capitalismo tardio na relação que constitui a medicina:

O poder verdadeiro das falsas escolhas.

Laringe e Ressentimento

O tumor laríngeo do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva foi notícia durante todo o fim-de-semana e manchete em jornais de todo o mundo. O tumor é do tipo comum e de agressividade médiadiz o laudo da biópsia de hoje ontem e Lula deverá instalar um cateter para realização de quimioterapia. Não é caso cirúrgico. Dois comentários sobre tudo isso.

1. O problema começou com uma rouquidão. Das causas conhecidas, os tumores malignos não são a maioria. A lista abaixo mostra as causas possíveis. De longe, as laringites e as lesões benignas são as mais comuns.

– Laringite aguda, auto-limitada e relacionada às doenças respiratórias e uso errado da voz.
– Laringite crônica. Muito associada à doença do refluxo ou a mecanismos de fala viciosos.
– Lesões benignas das cordas vocais (os famosos pólipos).
– Tumores malignos
– Quadros neurológicos (Parkinson, derrames ou lesões dos nervos laríngeo recorrente).
– Quadros psiquiátricos
– Doenças sistêmicas (amiloidose) e outros quadros muito raros

Toda vez que alguém famoso tem um diagnóstico bombástico, eu fico apreensivo. Alguns médicos ganham destaque e procedimentos que nem sempre são os mais recomendados, ganham os meios de comunicação. Como vivemos na sociedade do espetáculo, o resultado é que as pessoas acabam achando que é melhor fazer uma tomografia ou ressonância de corpo inteiro e procurar por bolinhas ou bolotas espalhadas pelo organismo e solicitar, então, que um bom cirurgião as retire. Gente, a medicina não funciona assim. Hoje, um paciente muito sagaz e fazedor contumaz de check-ups me perguntou por que neles não se realizam exames neurológicos, eletroencefalogramas ou mesmo uma tomografia nesse tipo de “medicina”. É mesmo, né? – pensei. Talvez porque saibamos menos a respeito do sistema nervoso? Ou porque o coração tem mais marketing? O que dizer da laringe, então? Ninguém lembrou de fazer uma fibronasolaringoscopia num paciente com história de tabagismo, ingesta alcoólica moderada, meia idade, meio rouco e com antecedentes familiares de tumores, inclusive de laringe? Não?! Poxa, o que pensam os grandes cérebros defensores do check-up sobre isso?
2. A enxurrada de protestos raivosos que o tratamento do presidente em um grande hospital particular de São Paulo gerou é o grande destaque negativo. O melhor, mais sincero e mais contundente texto que vi sobre o assunto foi este. Bom feriado a todos.

A Autópsia de Gaddafi

A morte do ditador líbio vem causando furor nos meios de comunicação e não era para menos. Longe de querer revisar todo o papel político de Gaddafi e o que representa seu assassinato por forças militares ocidentais nessa eterna cruzada que teima em não terminar – pelo amor de Deus! – gostaria de chamar a atenção para a posição que uma possível autópsia em seu cadáver está adquirindo na opinião pública mundial.

Muamar Gaddafi. Lider líbio morto essa semana.

Em primeiro lugar, é preferível o termo autópsia a necrópsia, mas ambos são aceitáveis. Segundo, que, na sociedade ocidental atual, o número de autópsias clínicas vem caindo vertiginosamente enquanto que o número de autópsias médico-legais aumenta (ver aqui e aqui). Podemos chamar de autópsias clínicas aquelas em que a equipe médica tem interesse em descobrir a doença ou evento que causou a morte do paciente. Isso era bastante comum em hospitais-escola e as salas de autópsias eram um local de grande aprendizado. Era possível observar o grau de acometimento hepático em um quadro de insuficiência cardíaca, por exemplo, “ao vivo” e à cores, o que nem sempre era agradável. A integração dos orgãos e a forma como se comportam frente a uma doença é, talvez, uma das melhores formas de “raciocínio integrativo”, tão em falta na medicina hoje. As autópsias médico-legais são aquelas que visam descobrir como alguém foi assassinado e sob quais condições. Essas têm aumentado e até se transformado em séries de TV (CSI, por exemplo).

Chamo a atenção para dois fatos. Dado que Gaddafi aparece em um vídeo, capturado e vivo, e, depois em um outro vídeo, já morto, faz levantar fortes suspeitas de que tenha sido assassinado em cativeiro. Péssimo se for verdade. Segundo, uma pergunta: a quem interessa ou não interessa a autópsia de Gaddafi? É uma autópsia médico-legal, sem dúvida. Dessas que o mundo está fazendo cada vez mais. Há quem não queira a autópsia dos dois lados da guerra, perdedores e vencedores. Os perdedores têm medo de macular o corpo de um líder quase divino da Líbia. Os vencedores têm medo de quê?

A ideia de que a autópsia possa macular o corpo (e talvez o espírito) de alguém é muito forte. Há religiões que proibem a violação do cadáver, como a judaica. No Brasil, a demora na realização do procedimento e a desfiguração do corpo são os principais argumentos. Esta última, não se justifica absolutamente porque os procedimentos são realizados de forma a não causar nenhum tipo de mutilação visível. Quanto à demora e o atraso nos funerais, sou obrigado a concordar.

Gaddafi foi assassinado, provavelmente não em consequência de uma resistência à prisão e seu corpo está exposto em um frigorífico onde as pessoas (inclusive crianças) podem entrar e fotografar. Imagens detalhadas com orifícios de armas de fogo foram divulgadas na rede. Gaddafi já foi autopsiado. É mais um caso de autópsia moral que tem o corpo foucaultiano como palco dos poderes que se nos perpassam. Isso faz muito mal à autópsia como procedimento médico. E, por isso, faz mal à medicina; e sendo a medicina uma forma de humanidade, para a humanidade, em geral, faz muito mal também.

Baixo

A década de 70 teve a fase áurea da Motown nos EUA e alguns desdobramentos no Brasil. Dizem que Hyldon “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”, no começo dos anos 70, tinha uma banda com o Cassiano “Estou Ficando Velho e Acabado” chamada Os Diagonais. Depois que Os Diagonais acabaram, Hyldon foi aos EUA e de lá voltou com um disco do Earth, Wind & Fire e pôs para Caetano Veloso ouvir. Ele ouviu e gostou. Pegou a banda Black Rio, que já fazia um baita som misturando soul e samba, e gravou “Odara”, uma música MPB com a levada impressionante do baixo funk de Jamil Joanes. Check it out

Aqui mais um som da Black Rio – Maria Fumaça – ao vivo. Com repinique, guitarra com som de cuíca e Jamil slapeando aos 1:28, atrás. O baixo é groove total e o som, de uma atualidade impressionante.

O baixo elétrico e o contra-baixo são instrumentos grandes, de cordas pesadas. Fazer um solo com um trambolho desses não é uma coisa muito simples: o baixo não foi feito para solar. Por isso, um solo de baixo é inusitado e chique. Diria até, sensual.

Um dos baixistas mais “interessantes” do momento é uma moça. Seu nome Tal Wilkenfeld. Rapaz, esse solo com Jeff Beck no Crossroads é de arrepiar. A música chama-se Cause We’ve Ended as Lovers.

Aproveitei pra pegar dois papeis de parede do vídeo, evidenciando a performance maravilhosa que fez até o mito JB curvar-se – presentes do grande amigo DRH – e disponibilizo aos amantes do baixo.

Repare na mãozinha em contraste com o baixo!

Manifesto Ateológico

Casa nova. Cara nova. Gente nova no espaço. Talvez seja um momento interessante para reforçar algumas ideias. Com Onfray.

Meu ateísmo é tripartide. É, antes de mais nada, um anti-platonismo. Uma economia brutal de imaginação. Um artificialismo rossetiano. Por que não “propor-se o prazer, a felicidade, a utilidade comum, o contrato jubiloso”? Por que não “compor com o corpo em vez de propor detestá-lo”?; compreender paixões e pulsões, desejos e emoções, em vez de extirpá-los num dilaceramento de si. Para quê uma outra vida, uma outra história, um outro sentido? O sentido é esse mesmo que você sente; não há outro. Por que não, apenas e tão sómente, um puro prazer de existir?

Meu ateísmo é, também, uma anti-ciência. Anti-ciência dos fariseus, anti-ciência como mito da sociedade moderna com a resposta para todas as dúvidas e anseios da besta humana. Contra a figura ascética e monástica do cientista-sacerdote, único caminho para a Verdade. Contra o proselitismo pagão. A vontade de saber é apenas um outro afeto humano, apesar de ser o mais potente deles. Não compreender isso, é não saber. É ser um “ateu cristão”. É acreditar nas formas divinizadas da natureza, do homem, da história e do mundo.

Meu ateísmo, por fim, é uma Não-Crença e não uma “crença no não”. É uma vigilância metafísica. É a reafirmação da vida, estética, elegante, ética, atômica. É a encarnação do viver aqui e agora. É o morrer heróico, como a morte de um leão.

O Paradoxo da Homofilia

Não errei, não. Não quis me referir à doença hematológica que faz com que seu portador necessite transfusões de hemoderivados hemocomponentes frequentes. Vou, na verdade, falar sobre outra doença, essa talvez mais grave, mais prevalente, mais vil…

Por detrás da manchete, “apenas” mais um caso de agressão a  uma “bichinha”. Chamou minha atenção, o fato de o agredido trabalhar na área da Saúde. Talvez por essa razão, minha máquina de esquecer não tenha funcionado direito e remoí esse fato alguns meses até que uma outra estória me fez lembrar do que não tinha esquecido…

Como é de conhecimento dos poucos, porém altamente seletos leitores e leitoras deste blog, gasto ainda grande parte do meu tempo em unidades de terapia intensiva pelos hospitais da grande São Paulo. Tenho notado que a área da Saúde trata seus não-heterossexuais da mesma forma que outras áreas do mercado de trabalho “teoricamente” menos esclarecidas sobre as nuanças da sexualidade humana, a saber, com preconceito e violência. Tenho convivido com médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiros, fisioterapeutas entre tantos outros profissionais da área da Saúde, aberta ou veladamente homossexuais, e tenho uma estória para o caso específico do homossexual masculino, levemente efeminado, denominado vulgarmente de “bichinha”, por vezes com o escárnio da pronúncia dos “S” entredentes.

Um homem de 54 anos, empresário bastante bem-sucedido, em um passeio motociclístico de sábado de manhã, bastante comum atualmente na cidade de São Paulo, sofreu um acidente relativamente grave. Fraturas de costelas, traumatismo raquimedular (lesão da coluna vertebral), múltiplas escoriações. Foi para UTI. Com o famigerado colar cervical, intubado e necessitando de ventilação mecânica, logo se recuperou. Jovem, não tinha nenhuma doença crônica associada. Na célula que ficou internado na UTI, o técnico de enfermagem da manhã foi sempre o mesmo. Um pouco mais de 20 anos, bem menos que 30. Gay desses que não deixam dúvida, porém sem ser afetado ou escrachado demais. Pelo menos durante o trabalho. Pelo contrário, a forma e o carinho como cuidava do corpo inerte, por vezes malcheiroso e grande do paciente acidentado transmitia extrema competência. Transparecia a todo o momento o treinamento recebido. Costumo dizer que um profissional começa-se a avaliar pela forma como veste-se com o uniforme. Quem trabalha direito tem um relação com o traje de trabalho, acaba encontrando um jeito de arrumar a touca ou vestir o avental, de deixar os óculos de proteção (chamamos tudo de EPI – equipamento de proteção individual) de um jeito próprio. As mesmas atividades são feitas com elegância particular e tudo isso junto, faz com que admiremos o profissional no exercício de suas funções. Assim era o rapaz. Medicações, banhos, eletrocardiogramas, mudanças de decúbito, instalação das dietas, tudo feito corretamente, com zelo e segurança. O paciente melhorou, acordou, saiu do ventilador, sentou na cama, tirou a sonda nasoenteral para alimentação e começou a receber dieta oral, nos 2 ou 3 dias subsequentes. Cheguei um dia à UTI e o rapaz estava dando uma sopinha, às colheradas, ao paciente. Me postei diante da cama e fiquei observando, satisfeito. Tinha que examiná-lo e questioná-lo sobre dores, falta de ar, etc, mas como estava quase no final, resolvi esperar e apreciar aquele momento de pequena felicidade (dizem até que a vida é feita destas pequenas felicidades!). Ao perceber, o técnico de enfermagem começou a falar, com seus trejeitos característicos, de como ele estava melhor, levantando o ânimo do paciente. Ao terminar a refeição, ele saiu do quarto e eu fiquei a sós com o paciente. Tirei o estetoscópio da parede e antes de posicioná-lo nos ouvidos o paciente disparou: “Pô, Dr! Que é que essa bichona tá fazendo aqui?”

Me senti mal, mas não consegui responder nada. Limitei a dizer que ele tinha sido cuidado, durante quase toda a internação, por aquele rapaz e que ele era muito competente. Agora, com toda essa violência estampada nas páginas de sítios e jornais, me ocorre novamente essa estória de intolerância.

É esse o paradoxo da homofilia. Homossexuais masculinos costumam ter um olhar diferenciado para o cuidar. Amam a espécie humana – sem preconceito de gênero –  e aprendi a ver isso no meu trabalho, que, convenhamos, não é um parque de diversões. Peço a licença deste hibridismo, mas usei o homo- do latim que significa homem, anthropos (no grego), ser humano, junto com o sufixo grego –filia, afinidade por, gostar de, amar; e não o homo- grego (igual, o mesmo) pela exata força do trocadilho e pela estranheza que a expressão gera. Estranheza que me causa o fato de não entender como pode ser possível um homossexual que sofre um preconceito diuturno, eternas gozações e piadas de mau gosto, bullyings, agressões verbais ou físicas da sociedade em que está inserido, possa demonstrar um amor tão verdadeiro e engajado pela mesma espécie (Homo) que o maltrata. Paradoxo afetivo-linguístico, sem dúvida. Sem dúvida, um caso de homoafetividade.