DEK – E
Esôfago. do grego oisophagos “garganta”; literalmente “o que leva e come”. Vem de oisein, infinitivo futuro de pherein “levar” (como em fóros = o que transporta) + –phagos, de phagein “comer” (como em antropófago = o que come o anthropos [homem]).
Estômago. do grego stomachos “garganta, esôfago” literalmente “boca, abertura”. Vem de stoma “boca”. Utilizamos ainda bastante o termo stoma para descrever aberturas de orgãos internos para o exterior, como em gastrostoma (cujo procedimento cirúrgico chama-se gastrostomia), traqueostoma (cujo procedimento cirúrgico chama-se traqueostomia), etc. Há também uma especialidade em enfermagem chamada estomatologia, que é quem cuida e trata as complicações deste tipo de ferida. O termo gastro é grego também (gaster, como em melanogaster – literalmente, “barriga preta”) e mais específico sobre a região do abdome corresponde ao epigástrio (“boca do estômago”). Olhando assim, dá a impressão que stomachos estava mais relacionado à função da deglutição, satisfação e, por correlação, orgulho. Gaster é mais anatômico e, portanto, mais específico para adjetivar coisas relacionadas ao orgão, como em gastroenterologia.
Interessante também, o fato de que há uma porção no estômago chamada cardia (número 6 na figura). Segundo o dicionário de termos médicos de RS Simões, MCP Baracat e R Lima, disponível para download gratuito, este nome é proveniente da proximidade com o coração. Entretanto, acho que neste caso, há mais uma confusão entre forma e função dos antigos. De qualquer maneira, isso acabou por passar para algumas expressões de uso corrente como “saber uma coisa de cór”, que é saber de memória, como se fizesse parte de nós, como se tivéssemos deglutido tal conhecimento; e também “misericórdia“. Tumores da cárdia são difícieis de tratar por serem transicionais, na fronteira entre os dois orgãos.
Consultei:Dicionário de Etimologia On-line (inglês).
Clique na figura para ver os créditos.

Valsa e Vaidade

S.R. Madalena
Velhos temas. Nossa “adversária“, “inimiga” Morte, transmutou-se; evadiu-se. Saiu da cama de hospital onde, aliás, deitou na França do século XVIII, e ganhou as vitrines dos shoppings, o brilho dos gadgets, o fetiche das tecnologias do corpo, como uma profecia benjaminiana. O início do relacionamento do médico com a morte já começa errado: um de cada lado do ringue? Devíamos caminhar abraçados ou melhor, “de cavalinho”. Seria a morte o que nos resta de humano numa sociedade pós-mortal?
Não é o caso de uma aprovação externa, não. É dentro. Está mais para uma exegese do “Corpus Hippocraticum” – uma mistura de juramento, ciência e consciência na forma de um chip implantado à prestação durante os 6 anos de faculdade e os 3 de residência – à procura de falhas. Treina-se a “pensar/sentir” assim… E tem razão quem diz que não há “diferença entre o cristão culpado e o médico fragilizado pela morte do doente”.
De onde viria a libertação? E não me venham com ciência médica. Ela alivia e ameniza o sofrimento do médico. Diretrizes são sempre mais seguras que assumir o peso de uma decisão. Mas os velhos lobos do mar sabem que isso não é suficiente…
O segredo talvez seja saber largar… Um desprendimento, na verdade, uma dequitação porque descola, mas tira sangue. E aí, Amy Crehore mata a pau: A vaidade, a valsa e a “libértula”.

Ondas
Essa vida de blogueiro vai ensinando algumas coisas pra gente sobre fenômeno que é a internet. Uma delas é que Lulu Santos Vinícius de Moraes estava certo: a vida vem em ondas!
O gráfico acima é a contagem de visitas (page loads) que o Ecce Medicus vem recebendo desde 20 de Setembro de 2009. Pode-se notar um “pico” e uma, digamos, “cordilheira”, acima do que podemos chamar de “ruído de fundo” de leitores habituais do blogue. O pico foi identificado com o Bumbum de Gisele e atribuído a um link benemérito de um amigo num portal de enorme popularidade; houve quase 9000 acessos ao EM em um único dia.
A cordilheira na verdade foi o tsunami sobre a vacina da gripe H1N1. Desta vez, não houve links e a coisa funcionou mesmo via Google. Impressionante o troço! Em um dia, o post recebeu 11.000 acessos! Depois, continuou recebendo muitas visitas, mas em associação a outros sobre o mesmo tema. Uma vez que você adivinha o que os usuários vão googlar, as palavras que vão escrever no retângulo mágico do Google, e o site aparece em primeiro ou segundo da lista, é só correr pro abraço. Funciona como uma bola de neve: quanto mais gente acessa, mais fácil fica o site de ser acessado. É uma questão de ter a leitura do hype do momento (e isso, devo ao Carlos Hotta). Captar o murmúrio disperso no éter é como orientar limalha de ferro com um imã: avalanche! Foi uma loucura responder todos os comentários e tive que fechar a caixa em alguns posts.
Aprendi como é surfar, surpreendi-me com a velocidade e o tamanho da onda. Fiquei preocupado com algumas repercussões. O Ecce Medicus amadurece… Obrigado a todos os leitores.

Religião, Ciência, Bolsa de Valores e Bullying

Redimir os passados e transformar todo “foi” num “assim o quis”: só isto é redenção para mim.
Assim Falou Zaratustra
F. Nietzsche
Esse tipo de verdade é fundamentado em um evento; seja na suposição da realidade da coisa-em-si, seja na fidelidade de um relato, seja, por fim, na esperança de que uma profecia se cumpra. Esse é o tipo de verdade da qual se nutrem ciência e religião. Tanto para uma como para outra, a verdade é algo tangível ou porque corresponde a uma expectativa (emunah) no caso da religião, ou porque se adequa a um modelo proposto que funcione (aletheia com um véu a menos) no caso da ciência. Mas não só a tangibilidade da verdade importa. Importa saber que existe um “gabarito”, um porto-seguro onde encontraremos a Verdade sem que ninguém possa constestá-la, bastando para isso a pureza do método ou infinita luz revelada. E assim, nos redimiremos de todo o mal. A ciência é a minha religião. A religião é minha ciência…
Essa é a incômoda proximidade de Ratzinger aos cientistas como chamei a atenção aqui, aqui e aqui. Sim, eles todos acreditam em essências e na Verdade. Fundamentalistas a combater o relativismo, seja sob a forma de uma ética laica — impossível para o Vaticano; seja de uma verdade consensual, voltada ao bem-estar de uma sociedade, “cadáveres de metáforas que formam redes de conceitos utilizados como valores de verdade.” No final, são todos uns relativistas pós-modernos, dizem.
Na Bolsa de Valores há dois tipos de abordagem do “mercado”: os “fundamentalistas” e os “grafistas”. Os fundamentalistas, grosso modo, baseiam-se nos “fundamentos” da empresa, como lucro, grau de endividamento e participação no mercado. Eles querem conhecer a realidade da empresa para saber quanto ela vale. Nada mais justo! Seu guru Warren Buffett. Mas há os grafistas. “Um analista grafista usa figuras desenhadas com base em critérios subjetivos, do tamanho e na posição que ele acha que deveria ser, como base em suas preferências pessoais, e com isso acredita ser capaz de montar estratégias vitoriosas. Há muitos exemplos de analistas grafistas, porém não saberia citar nenhum comparável a Buffett ou Simons.” Os grafistas estudam o histórico da ação: eles observam a ação no passado e tentam perceber o que irá ocorrer com as cotações nas próximas semanas”. A análise dos grafistas é baseada em… em história?! em comportamento passado e curvinhas sobe-desce?! Alguém poderia dizer que os grafistas construiram “castelos de fumaça” e moram dentro deles. Eu diria diferente. Diria que além de construir esses castelos, eles os vendem por preços bastante interessantes. Eles também ganham (e perdem, eu sei) dinheiro na Bolsa, mas o importante aqui é entender que os dois tipos de análise são exatamente opostos: um se baseando numa “realidade” presumida, construída, com endereço certo, tijolo e ferro. O outro baseado em tendências que geram padrões donde se tiram comportamentos, tudo fincado num terreno bastante pantanoso da nóia geral que é o mercado, totalmente criado pelo homem!
Ratzinger, fundamentalistas da bolsa e cientistas têm boas razões para crer no que creem. As ciências ditas “humanas” ou históricas (que Aristóteles chamava de Política, Dilthey, de Geistwissenschaften – literalmente, ciências do espírito – e Kant, de razão prática) têm, porém, um status epistemológico diferente. Nesse caso, o homem é a medida de todas as coisas. Sim, o diagnóstico parece ser correto: Protágoras sofreu bullying por parte de Sócrates.
[1]Convite a Filosofia. Marilena Chauí.

Visita de Médico
Sensacional post do Marco no “Marco Evolutivo”. Eu sou suspeito pra falar, mas o cara me fez uma compilação fantástica de livros sobre medicina e psiquiatria evolutiva que vale a pena conferir. De brinde, essa foto impagável do Darwin de jaleco e esteto, hehe.
A medicina evolutiva é uma área bastante abrangente, mas gosto de dizer que sua principal tarefa é contar a história do nosso entulho genético. Muitas, se não todas, as doenças são respostas mal-adaptadas que serviram para alguma coisa em nosso passado remoto. Se hoje não são compreendidas, seja porque não as entendemos, seja porque sabemos que de alguma forma um processo fisiopatológico “engana” um processo normal do organismo, não importa. Funcionam mais ou menos como carros com acessórios. Se o carro tem poucos acessórios, suas formas de enguiçar são exíguas. Quanto mais acessórios, mais formas de enguiçar; sempre que ganhamos uma sofisticação adaptativa, ganhamos uma(s) doença(s). Além de interessante, essa abordagem seria extremamente útil. Tentei esboçar isso nessas duas séries: Origem da Pressão Arterial e Design Inconsequente, mas o trabalho é muito grande e tem pouca gente fazendo.
Engraçadíssima a análise do Celso Barros do NPTO sobre o último debate dos presidenciáveis. Para ele, Marina ganhou este.
Fazia tempo que não fazia uma visita de médico ao Pasmo Essencial. Fiquei feliz que está reformado e o Daniel em grande forma. Vá lá e aprenda a esculhambar um médico. Com Petrarca, hehe. Que seus posts sejam menos bissextos, pô! Cabô ou não essa tese?

O Matador de Metáforas
Confesso que não vai ser muito fácil. Também não sei se minha prosa tem a envergadura simplificadora que o empreedimento exige. Mas como tudo é exercício, mãos a obra. Que as musas me alumiem o caminho (que vai ser um pouco mais longo que o habitual – haja luz!)…
Retomemos o livro de Giannetti, (mal) resumido abaixo. Ao adotar um “fisicalismo reducionista” o personagem-narrador se mete numa enrascada existencial pois, acha ele, tal posição filosófica afeta a forma como se vê no mundo, tolhendo-lhe o significado do verdadeiro “eu” e colocando no lugar uma sopa de neuromediadores de concentração variável. O capítulo 55 (último) é pródigo neste tipo de questionamento existencial (que eu achei meio exagerada, como tentarei mostrar a seguir):
“É possível termos acreditado falsamente durante milênios que a vontade consciente rege os nossos músculos quando, na verdade, ela é o subproduto inócuo de uma cadeia de eventos eletroquímicos no cérebro, como a fosforescência no rasto de um fósforo aceso no escuro ou a espuma de uma onda neural? E que, portanto, fazer de um propósito ou de uma intenção consciente a causa de uma ação humana é tão desprovido de fundamento como falar do propósito de uma espermatozoide ao fecundar um óvulo ou da cigarra ao entoar sua cantoria ou do Sol ao irradiar calor? Sim, é possível.”
Vai daí, que entram no rol do “é possível” as reflexões ético-morais, as guerras ideológicas e religiosas, a psicologia, o ateísmo militante e outras coisas até chegarmos ao engodo da consciência. Um tipo de farsa onde acreditamos que somos os personagens que representamos. Isso pode causar um imobilismo, um mal-estar trans-histórico (que vem desde a antiguidade); nos tornar a-morais, como parodiando a tese ivankaramazoviana: se não há um “eu”, nem uma alma, (então) tudo é permitido”. E assim, termina o livro e aqui vamos começar a discutir essa tese que foi criticada de várias formas, por vários autores.
“Uma tal tentativa é associada com a tentativa de identificar a ‘verdade literal’ com a ‘verdade científica’ e a tratar a literatura como oferecendo meramente ‘verdades metafóricas’, algo que não pode realmente ser denominado de verdade acima de tudo. A concepção usual, desde Platão, tem sido a de que um entre os vários vocabulários que nós usamos espelha a realidade, e que os outros são na melhor das hipóteses ‘heurísticos’ ou ‘sugestivos'”.
Aqui entra Davidson, filósofo da linguagem, e o título do post. Uma de suas premissas é que metáforas não têm significados. Isso quer dizer que sua ocorrência é como um efeito colateral da utilização de uma linguagem, não há nada implementado com intuito de produzi-las. Entretanto, apesar de surgirem assim, quase sem querer, elas têm um papel fundamental quando se “literalizam”. Literalizar uma metáfora é matá-la, mas no momento em que isso ocorre, reformulam-se nossas crenças, conceitos e desejos. Sem a morte de metáforas “não haveria nenhuma coisa tal como uma revolução científica ou uma ruptura cultural, mas meramente o processo de alterar os valores de verdade das asserções formuladas em um vocabulário para sempre imutável.” Desse ponto de vista, uma teoria científica é simplesmente uma redescrição metafórica. Por exemplo, quando os cristãos disseram ‘O amor é a única lei’, quando Copérnico disse ‘A Terra gira em torno do Sol’, ou Marx ‘A história é a história da luta de classes’ ou ainda os físicos afirmaram que ‘a matéria pode ser transformada em energia’, tais frases pareciam mais com um modo de falar que com uma verdade. Um filósofo analítico naïve diria que são confusas. O que queremos dizer com “lei”, “sol”, “história” ou “matéria”? Mas quando cristãos, copernicanos, marxistas e físicos começaram a redescrever porções da realidade sob a luz dessas sentenças – e comprovar o valor de tais redescrições – nós começamos a falar delas como afirmações com grande valor de verdade.
Nesse ponto, nos aproximamos do cume. Eu disse que subir não ia ser tão fácil, mas não vamos parar aqui, né?
Vamos para uma citação do texto de Rorty:
“Esse fenômeno da produção e ‘literalização’ de metáforas é o fenômeno que a tradição filosófica ocidental sentiu como sendo necessário para avaliação a partir de uma oposição entre matéria e espírito. Essa tradição pensou a criatividade artística, bem como a ‘inspiração’ moral ou religiosa, como incapazes de serem explicadas nos termos usados para explicar o comportamento da ‘realidade meramente física’. (Nota do Blogueiro: dizem que tudo começa com Platão e aqui, em especial, isso é bem verdade, ver A República e o artigo de Maria Villela-Petit. Além disso, Rorty se coloca em uma linhagem de pragmatistas americanos que começou com Pierce, James e Dewey e que vem combatendo, a seu modo, a tradição filosófica ocidental que é como eles chamam o pensamento que começou com Platão e atingiu o seu ápice em Kant, com vários desdobramentos atuais). Em vista disso, surgiram as oposições entre ‘liberdade’ e ‘mecanismo’ que dominaram o período pós-kantiano na filosofia ocidental. Mas segundo a visão de Davidson, ‘criatividade’ e ‘inspiração’ são meramente casos especiais da capacidade do organismo humano articular sentenças sem significado – isto é, sentenças que não se ajustam a velhos jogos de linguagem e que servem enquanto ocasiões para modificar esses jogos de linguagem e criar novos. Essa capacidade é exercida constantemente, em toda e qualquer área da cultura e da vida cotidiana. Nesta última, ela aparece como chiste. Nas artes e nas ciências ela aparece, retrospectivamente, como gênio.”
“Exatamente como as sinapses neurais estão em contínua interação umas com as outras, constantemente formulando uma diferente configuração de descargas elétricas, também nossas crenças e desejos estão em contínua interação, redistribuindo valores de verdade entre asserções. Exatamente como o cérebro não é algo que “tenha” tais sinapses, mas É simplesmente um aglomerado delas, assim o Si próprio não é algo que “tenha” as crenças e os desejos, mas simplesmente a rede que as reúne e conecta.”
Isso implica que ter uma crença ou desejo significa ter muitas crenças e desejos; significa ter o fio de uma extensa trama que nos constitui.
Por fim, esse trabalho de desmistificação do fisicalismo reducionista também foi feito com muita simplicidade, a exemplo do silogismo de Giannetti na parte IV do post abaixo, por Hempel com o raciocínio que se segue:
“Talvez uma das críticas mais incisivas ao fisicalismo esteja no dilema apontado por
Hempel (1980): se o fisicalismo for definido de acordo com a ciência Física atual, então se
trata de uma tese possivelmente falsa, já que a Física atual não é, de maneira alguma, uma
ciência completa. Por outro lado, se o fisicalismo apoiar-se em uma ciência Física hipotética,
uma ciência completa que ainda está por vir, então o fisicalismo perde sua força, pois não
sabemos como será essa Física e que coisas farão parte desse mundo físico que ainda não
somos capazes de conceber.”
Do excelente artigo de Diego Zilio em Ciências & Cognição 2010; Vol 15 (1): 217-240.
Acho que dá para falar no “Erro de Giannetti” e em tempestade em copo de água, né?
Relativismo e Fé
Em livre tradução, segue o fragmento:
“Por esta razão, os eventos políticos de 1989 (queda do muro) também mudaram o cenário teológico. Até então, o marxismo vinha sendo a última tentativa a fornecer uma fórmula válida para a correta configuração da ação histórica. O marxismo acreditou que conhecia a estrutura da história mundial e a partir dela tentou demonstrar como poderia conduzi-la ao caminho correto. O fato de que essa presunção era baseada estritamente em um método científico que substituiria totalmente a fé pela ciência e fazendo desta última uma praxis, lhe deu um forte apelo. Todas as promessas não cumpridas das religiões pareceram então, possíveis por meio de uma praxis política baseada cientificamente.
A não-cumprimento da promessa trouxe grande desilusão que está ainda longe de ser assimilada. Consequentemente, me parece provável que novas formas de concepcão marxista do mundo aparecerão no futuro. No momento, não há outra alternativa senão a perplexidade. A falha do único sistema com base científica para resolver os problemas humanos poderia apenas justificar o nihilismo ou mesmo, o relativismo total.”
Continua…
“Por sua vez, o relativismo parece ser o fundamento filosófico da democracia. Diz-se que a democracia baseia-se no princípio de que ninguém pode ter a pretensão de saber qual é o caminho certo a tomar e é enriquecida pelo fato de que todos os caminhos são mutuamente reconhecidos como fragmentos de um esforço em direção ao que é melhor por meio do diálogo. Um sistema livre deve ser essencialmente um sistema de posições interconectadas e relacionadas pois são dependentes de situações históricas abertas a novos acontecimentos. Assim, uma sociedade liberal seria uma sociedade relativista: apenas sob esta condição ela poderia continuar livre e aberta ao futuro.”
Perguntinha: alguém sabe de quem seria este texto? Vou desenvolver uma ideia polêmica no próximo post e isso faz alguma diferença. Inté…
Livro “A Ilusão da Alma” de Giannetti
Ganhei de presente o livro, com dedicatória e tudo, com a promessa de que leria e escreveria alguma coisa. Alguma coisa aí vai…
Libido Sciendi. Aqui o livro entra de cara no problema mente-cérebro e Giannetti se mostra um grande didático e autodidata. Coloca alguns problemas que já abordamos aqui, como nesta passagem:
“(…) não é coisa fácil para o ser humano apreender impessoalmente a si próprio e à maneira como vê o mundo; percebi que fazer isso exigia uma postura distinta daquela a que estamos habituados na vida comum. Precisava de algum modo me afastar e recuar de mim mesmo, alcançar um grau de distanciamento que me permitisse olhar-me de fora, o mais friamente possível, com o mesmo espírito com que um botânico coleta e examina variedades de orquídeas ou um musicólogo analisa a partitura de uma sonata.”
Ou seja, Rogozov. De importante, no capítulo 17 a menção do riquíssimo conto machadiano “O Espelho” (ver uma boa análise aqui) e a “teoria das duas almas” que será usada ao longo de todo o livro. No capítulo 19, o confrontamento anunciado na “orelha” do livro e no seu dorso: Demócrito vs Sócrates. A partir do Fédon de Platão e da narrativa da morte de Sócrates, o narrador-personagem coloca a decisão deste em não fugir e submeter-se às leis de Atenas como um conflito arquetípico entre o fisicalismo e o mentalismo. Demócrito de Abdera já foi taxado de materialista (tese de Marx), antinaturalista (tese de Clément Rosset) e fisicalista, este último termo especificamente relacionado à produção da mente pelo cérebro. Ele e seu mestre Leucipo, de quem pouco se sabe, resolveram o problema heráclito-parmenidiano com o atomismo. Tudo flui na aparência, mas os átomos que constituem todo o universo, continuam iguais, unos e indivisíveis. O fisicalismo, por sua vez, sustenta que tudo o que existe está e é sujeito às leis físicas o que implica que o que chamamos de “vontade”, “livre-arbítrio” e outras cositas são vícios de linguagem e, de fato, seriam apenas configurações neuronais que se deixariam perceber pela consciência. O mentalismo é a visão de que a mente é a real causa da vontade e que apenas a partir dela ocorrem os fenômenos in concert que determinam os comportamentos humanos (cobrir-se quando se tem frio, procurar comida quando se tem fome, etc). Tendo a decisão de Sócrates de tomar a cicuta que lhe fora sentenciada sido interpretada através dos milênios como uma decisão moral – tipicamente mentalista – na página 107, escreve-se:
“A perspectiva fisicalista contesta a versão mentalista do comportamento de Sócrates e oferece uma explicação alternativa. Os três componentes da ação do filósofo de não fugir mas aceitar a pena que lhe foi imposta precisam ser melhor analisados e devidamente entendidos. (…) E, por fim, como o juízo de valor e a vontade consciente – dois estados mentais – são capazes de acionar e pôr em movimento (neste caso em repouso) os músculos e tendões do filósofo – estados do corpo?”
E arremata:
“O homem moral socrático, argumenta a filosofia fisicalista, não passa de um subproduto fantasioso – e com forte componente narcísico – do homem natural atomista. Um arco-íris pré-newtoniano.”
Bonito, né? Mas isso joga a discussão para o lado mais profundo e escuro do lago: o elo causal entre o pensar e o agir. Há uma diferença entre pensar/querer e ter consciência de que se está pensando/querendo. O narrador cita então estudos de Benjamin Libet em “que a escalada de atividade neural – o evento físico no cérebro – precede no tempo não apenas a ação muscular, mas também o evento mental, ou seja, a própria consciência da decisão de agir” por uns parcos três décimos de segundo. Mas, precede. O resto é argumentação em cima disso e uma sensação de estarmos folheando uma revista, tantas as citações e cores com que se pintam o quadro.
“Um estado mental (“preciso almoçar”) nunca é realmente produzido por outro estado mental (“estou com fome”); todos são produzidos por estados do cérebro. Quando um pensamento parece suscitar outro por associação, não é na verdade um pensamento que puxa ou atrai outro pensamento – a associação não se dá entre os dois pensamentos, mas sim entre os dois estados do cérebro ou dos nervos subjacentes a esses pensamentos”.
Trocando “nervos subjacentes a esses pensamentos” por “núcleos neuronais” ou coisa parecida, fica um pouco melhor. Segue-se um exercício inapelável de lógica:
“A ideia é tremenda, mas basta um silogismo para resumi-la. As leis e regularidades que regem o mundo são independentes da minha vontade (premissa maior); a minha vontade é fruto das mesmas leis e regularidades que regem o mundo (premissa menor); logo, a minha vontade é independente da minha vontade (conclusão).”
Isso nos torna algo como autômatos, ensopados de serotonina e dopamina, cujas concentrações determinam minha vontade de transar com minha mulher hoje ou comer um pizza de calabresa. O narrador se apavora com isso e também com o fato de que o médico que o operou, não está nem aí para essa vãs filosofias. O livro melhora substancialmente. Algumas tiradas geniais e citações bem colocadas, trazem o leitor de volta à vida do personagem que fica, pasmem, bem mais interessante, no papel de robozão. Talvez uma contradição mesma do livro.
Numa mistura de “O Mundo de Sofia” com “Trem Noturno para Lisboa” e pitadas de insanidade de “Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas“, o livro tem um final interessante e uma provocação: após mostrar que “lutar” contra o fisicalismo é entrar em uma luta imaginária, o narrador instiga o leitor a refutá-lo. Tentarei discutir um pouco mais sobre isso nos próximos posts e talvez se mostre o bom e o ruim, a dor e a delícia, de discutir filosofia da mente.
Para um resumo de uma palestra de Giannetti sobre o livro ver aqui.
Atualização
Veja o excelente post no Amigo de Montaigne, sobre o “Erro de Giannetti”.



Sobre Candidatos e Doenças
A campanha eleitoral me deu um exemplo bem interessante do que vem ocorrendo com o conceito de doença.
Não sou analista político, mas pelo que tenho visto e (para minha surpresa!) em concordância com alguns autores bem famosões, o debate político foi propositalmente evaporado da propaganda eleitoral. Cada vez mais o objetivo dos marqueteiros eleitorais é “construir” seus candidatos fortalecendo os pontos positivos que têm e “trabalhando” os negativos, de modo a “produzir” uma imagem que seja não só forte, mas que, literalmente, engula a do adversário, angariando o que importa: o voto, tal como um produto a ser comprado. Por impulso, de preferência. O debate político mesmo, tipo esquerda vs direita, oposição e governo, política externa, reforma política, reforma fiscal, etc, etc, este foi para o beleléu faz tempo.
Grosso modo, o caso dos candidatos serve para entender o que aconteceu com o que se pode chamar de “conceito de doença contemporâneo”. A exemplo do que ocorre com o marketing político em relação aos candidatos, houve uma virtualização da doença. A influência da tecnologia, em especial das novas tecnologias de imagem (mas também da nova patologia – depois eu falo mais dela), sobre a racionalidade médica é tão grande que elas passaram a constituir a doença. Se por um lado, isso significa que algumas doenças não podem ser concebidas sem essa “visão tecnológica” o que, por si só, não se configura como uma coisa ruim; por outro, essa abordagem pode, ao levar-nos para um substituto virtual de realidade, ela mesma criar algumas doenças/problemas. A tendência em se tratar os exames é muito grande com todos os problemas que isso possa acarretar. O mais interessante é que vários pacientes PEDEM por isso. O diagnóstico de uma doença baseado apenas em critérios clínicos é muito difícil de ser aceito. “Mas doutor, não há nenhum exame que comprove isso que está dizendo?” Não, não há. O diagnóstico é clínico, baseado APENAS na história e no exame físico.
Se o paradigma de racionalidade fosse simplesmente a ciência, não acho que seria de todo ruim. Mas, nosso paradigma de racionalidade atual é o que a ciência tem de mais hollywoodiano: a tecnologia. Em especial, a tecnologia que aparece na mídia. Visto dessa forma, é muito difícil estar “racionalmente correto” sem a utilização de uma “tecnologia avançada” consensualmente aceita. Já foi o ultrassom, a tomografia, a ressonância. Hoje é o PET, as múltiplas biópsias, os robôs.
Com o perdão da comparação de mau gosto entre candidatos e doenças, o paralelo me foi inevitável. A discussão política passou ao largo, assim como passa a discussão real sobre o impacto de determinado achado de exame na possibilidade de um ser humano específico ser feliz.

Sêo Google e Eu
Depois de tanto tempo sem escrever, tinha que voltar com uma medaglia para não perder os poucos (porém, altamente esclarecidos e de extremo bom gosto, diga-se de passagem) leitores desse blog. Que assim seja, então.
Vamos colocar as peças do xadrez no tabuleiro. Qual é a principal biblioteca de artigos médicos que existe? Se você perguntar para qualquer aluno de medicina, residente, pós-graduando, a resposta é unânime: a MEDLINE acessível através da internet pela PubMed da National Library of Medicine. Essa, por sua vez, pertence aos prestigiosos National Institutes of Health americanos, instituição ligada ao ministério da saúde deles, com uma verba gigantesca e que seria o equivalente nosso a uma FAPESP da área da saúde atuando em todo o território nacional. Ou seja, não tem equivalente no Brasil! Qualquer levantamento bibliográfico que se preze tem como ponto de partida as publicações encontradas na PubMed; os principais jornais de medicina e da ciência médica estão catalogados lá e o sonho de todo médico é ter um publicação “indexada”, isso dá pontos no currículo, consegue ganhar concursos e mais bolsas ($).
Há outras fontes de referência médica, entretanto. Inúmeras, eu diria. No Brasil temos a fantástica Scielo com quase 70 títulos da área da saúde, e que tem muitos outros ainda sobre ciência médica. Há o Ovid da Wolters & Kluwer, repositório pago de várias revistas de qualidade com versão de texto integral. Há também o Up-to-Date. Criado inicialmente para nefrologia, se expandiu para todas outras especialidades e virou uma fonte de referência fundamental para quem pode pagar 495 dólares por uma assinatura anual. Os artigos são atualizados com frequência, práticos e trazem referências bibliográficas-chave para compreensão do assunto. Poderiamos citar ainda o Scopus, a Web of Science, o JSTOR e o Google… O Sêo Google é um caso especial. O sucesso foi tão grande que resolveram lançar o Google Acadêmico. Muita gente já procurava coisas científicas antes dele. Médicos também. Existem alguns estudos sobre sua relação com os médicos, em geral positivos. “Peraí, você tá querendo dizer que médico consulta o Google quando quer tirar dúvida sobre paciente?” Sim, estou. Mas isso é ruim?
Os autores do estudo da medaglia, pensaram o seguinte: 1. há questões médicas altamente complexas que têm uma resposta definitiva, baseada em evidências; 2. é impossível para qualquer indivíduo reter toda a informação médica relevante para sua prática; 3. o médico não quer perder mais que alguns minutos procurando informações que respondam questões médicas relevantes; 4. há diferentes ferramentas para navegar no oceano de informação médica.
Baseados nessas premissas, bolaram um experimento com estudantes, residentes e médicos assistentes. Enviaram 4 perguntas de anestesiologia ou terapia intensiva para os caras e mandaram responder em 5 minutos usando as seguintes ferramentas e apenas 1 para cada pergunta: Google, Ovid, PubMed ou Up-To-Date. No final, tinham que ranquear as respostas que acharam (em termos da confiança nela) de 1 a 4. Algumas semanas depois, os médicos foram solicitados a responder 8 perguntas, incluindo novamente as 4 antigas. Dessa vez, foram sorteados sobre qual das 4 ferramentas utilizar para todas as perguntas. Conclusão? Quem usou o Google e o Up-to-date respondeu as questões mais rápido e mais certo. O Up-to-date teve o maior grau de confiabilidade. Ambos venceram a PubMed e o Ovid.
A indissociável vinculação com a prática faz da medicina um campo experimental interessante. Já disse que temos uma visão utilitarista da ciência, mas respostas práticas são respostas práticas e necessitam ser dadas na trincheira do dia-a-dia do médico. Da mesma forma que as discussões de botequim mudaram (“quem foi o campeão paulista de futebol de 1945?”), as profissionais e altamente especializadas, também (“qual enzima metaboliza a succinil-coenzima A em ácido d-amino levulínico?” – que é uma questão do estudo!). Os autores deixam transparecer na discussão duas coisas interessantes. A primeira é que o estudo tem um viés que é o fato de conter mais médicos juniores (residentes e estudantes de medicina), talvez um pouco mais habituados a lidar com as novas tecnologias. O segundo é que os médicos seniores, assistentes do serviço, estavam meio que desclassificando as perguntas respondidas por intermédio do Google. Os meninos teriam protestado: “não há comprovação de que isso possa desclassificar uma resposta!” Comprovação que agora existe. Não só funciona mais rápido, mas também melhor. Sinal dos tempos…
Thiele, R., Poiro, N., Scalzo, D., & Nemergut, E. (2010). Speed, accuracy, and confidence in Google, Ovid, PubMed, and UpToDate: results of a randomised trial Postgraduate Medical Journal, 86 (1018), 459-465 DOI: 10.1136/pgmj.2010.098053
