Cego, surdo e mudo

“Nossos impulsos reprimidos são tão humanos quanto as forças que os reprimem”
Essa frase de um famoso psicólogo (Symons, 1987) descreve bem o equivoco que muitas pessoas comentem ao acreditar que a nossa consciência é nossa, mas nossos instintos não são.
O mesmo raciocínio permite o equívoco na direção contrária, ao defender ações com base na emoção, em contrapartida ao uso da racionalidade.
Na foto acima, tirada ontem em copacabana, o relógio de rua serve de outdoor para a nova campanha publicitária da Diesel, uma marca fashion de produtos diversos que vão de óculos à calças jeans, de perfumes à bolsas. Uma tradução livre dos dizeres no letreiro é:
“Os espertos escutam a razão. Os idiotas escutam o coração. Seja idiota!”
Eu responderia: Idiotas, fiquem espertos, quem escuta o coração, está escutando é a razão!
O coração não ouve e não fala. Quem vê, fala e ouve é sempre, e somente, o cérebro.
Esses equívocos são estimulados pela crença infantil que nossa razão e emoção estão em locais diferentes. Como eu já escrevi aqui, o coração era tido pelos antigos egípcios como a residência da alma, o responsável pelas emoções. Mas isso porque eles não tinham como dissecar uma pessoa para saber que na verdade o coração é apenas uma massa muscular que não faz outro a não ser bombear sangue, para o pulmão e para os outros órgãos e tecidos.
Meu coração partido não está no meu coração, está no meu cérebro.
Assim como todo o resto. Amor, lógica, raiva, álgebra, empatia, aritmética, filosofia, dúvida, decisão e geometria.
O ser humano precisa tanto de estabilidade quanto de variedade. Quem escolher usar sempre a razão, da mesma forma que um aluno que resolve responder a opção A para todas as questões de uma prova, sempre acertará, ainda que ao acaso, um monte de vezes. Da mesma forma, quem optar por usar sempre a emoção, marcando B em todas as respostas da prova, também vai acertar muitas vezes. Mas ninguém faz isso. Nem que queria.
Somos máquinas de reconhecer padrões, cujas decisões são baseadas em uma série de parâmetros que são captados conscientemente pelos nossos 5 sentidos, mas também uma série de outros parâmentros, coletados pelos mesmos 5 sentidos, mas processados inconscientemente (expressões faciais e corporais, timbre da voz, odores, por exemplo). O processamento dessas informações, tanto o consciente quanto inconsciente, depende das experiências e expectativas, imediatas e distantes, que cada organismo, cada pessoa, está submetido em um determinado momento.
O que eu quero dizer é que a grande dica é: idiotas, escutem sua razão quanto a qual o melhor balanço entre razão e emoção para resolver uma determinada situação em um determinado momento. E fique esperto!
Mas todo mundo é esperto, porque em um grau ou em outro, já faz isso.
Idiota mesmo é só quem paga R$1.000,00 por um jeans da Diesel.
Peso na consciência
Acredito que essa é uma das grandes verdades do mundo. E hoje que fui vitima de uma trairagem inesperada, ela me parece mais verdadeira ainda.
Conforme vamos crescendo e algumas desilusões se acumulam, criamos a ilusão que podemos controlar se seremos enganados mais uma vez. “Errar uma vez é humano, duas vezes é burrice”. Na verdade errar mais de uma vez é mais humano do que podemos imaginar.
É um fato evolutivo. Isso porque quanto mais eficiente você se torna em prevenir que seja enganado, mais eficientes se tornam os seus enganadores. É uma corrida para permanecer no mesmo lugar. A sinceridade não é, definitivamente, a maior qualidade dos primatas. De nenhuma animal. A desconfiança é muito mais difundida.
O grande biólogo Robert Trivers e o grande linguista Noam Chomsky também concordam. Na verdade, a teoria é deles. Veja essa interessante e inédita conversa entre os dois aqui.
Para eles, a necessidade dos homens, dos humanos, de iludirem outros humanos, seja por alimento, abrigo ou parceiros sexuais, fez com que nós desenvolvêssemos a nossa consciência. E ampliássemos a nossa inteligência.
Mas como assim, a consciência, aquilo que nos torna mais humanos, não deveria nos ajudar a controlar esses instintos animais? A resposta é não.
Em tempos de fartura e abundância, a consciência pode se permitir devaneios filosóficos. Mas em tempos de vacas magras, é cada um por si e… e só.
A consciência se desenvolveu, provavelmente, para nos ajudar a abstrair o que faríamos se nos encontrássemos em determinadas situações. “O que eu faria se não estivesse no lugar dele?”
O objetivo é a prevenção. Se eu souber o que ‘EU’ faria, posso muito bem imaginar o que ‘ELE’ faria, e me prevenir. Tanto com uma ação defensiva quanto ofensiva.
Mas se você não acredita que é esse jogo de trapaças que te faz mais humano, eu não vou discordar. Na verdade os gorilas são tão inteligentes quanto um animal pode ser, mas levam uma vida simples, sem desenvolver nenhuma ferramenta e comendo o que aparece no seu entorno. Onde o gorila aplica o seu ‘grande’ intelecto? Em problemas sociais. Trapaças, alianças, ameaças, blefes. “Um gorila passa grande parte do seu tempo subjulgando, se submetendo, desvendando e influenciando a vida de outros gorilas.
É possível que seja a nossa tecnologia, que segundo muitos autores foi a idéia mais criativa da nossa inovadora mente criativa, que nos diferencie dos outros animais.
Mas um de onde veio a mente criativa que criou a tecnologia? Das necessidade de se dar bem nas contendas sociais. Mas então, se a mente criativa é anterior a tecnologia e nós a compartilhamos com chimpanzés, gorilas e bonobos, porque só a nossa espécie desenvolveu a tecnologia?
A resposta pode estar na nossa aparência. Um humano adulto se parece muito mais com um chimpanzé jovem do que com um chimpanzé adulto. Essa característica de manter a aparência jovem mesmo na idade adulta é chamada néotenia e é uma das características mais marcantes dos humanos.
(O)s (gene)s da neotenia foram uma grande aquisição, e certamente tiveram papel fundamental no desenvolvimento da inteligência humana. Para ter o cérebro do tamanho que têm e continuarem passando pela abertura da bacia, os bebês humanos nascem mais cedo, prematuros mesmo, sendo completamente dependentes dos pais nos primeiros anos de vida. Os genes da neotenia fazem com que o amadurecimento seja mais lento e a conseqüência é que quando somos adultos, acumulamos muita experiência em um cérebro excepcionalmente grande. As contendas sociais não eram mais suficientes para nós. Queríamos mais, e começamos a produzir coisas.
Uma aliança aqui, uma trapaça ali, uma traição acolá. Subjulgar ou se submeter? Instintos tão naturais que até nos espantamos como o quão humanos eles são. Mas ao mesmo tempo que não podemos viver sem eles, eles são nosso maior concorrente a eficiência e a produção. Mas como produzir sem alianças, apostas e blefes? Não dá.
O problema é que nossos ‘gorilas’, humanos especializados em não produzir nada e viver em contendas sociais, estão mais difíceis de identificar. Estão ficando mais espertos e alcançando a simulação da produção. Pense bem, porque produzir se eu posso apenas fazer alianças para levar o crédito pela produção? Passar horas em reuniões sem fim onde nem tudo é dito, em grupos de trabalho onde nada é decidido?
Essa é a verdadeira esperteza. Esse será o novo choque de gerações. E a idade, tem muito pouco a ver com isso.
Os bons companheiros
O texto chamou atenção também do pessoal da revista Fapesp, que de vez em quando bisbilhota por aqui, e na edição impressa 173 de Julho 2010 ele publicaram o artigo ‘Os bons companheiros: Densidade populacional influencia longevidade de cupins’. com base no trabalho de Og de Souza.
A reportagem ficou ótima e eu tenho certeza que vocês vão gostar.
'Chi se ne frega'?

Não vou mais a congressos na Europa. Quer dizer, pelo menos não na área ambiental. Bom, ao menos que não me convidem e me paguem tudo.
O 27th ESCPB foi uma grande reunião de amigos. E o prazer das pessoas em se encontrarem no país com a melhor comida e bebido do mundo, foi inversamente proporcional a qualidade científica da reunião. Se vocês viram as fotos do jantar social no “Alii Due Buoi Rossi”, então podem imaginar que foi realmente ruim (o congresso, vamos deixar claro. O jantar foi maravilhoso).
O que acontece, na área ambiental, é que ninguém realmente desenvolve trabalhos de base sobre os mecanismos fundamentais de ação de poluentes, ou sobre as vias metabólicas e de biotransformação. Tudo isso vem dos trabalhos biomédicos. Assim, ninguém é realmente ‘autor’ dos mecanismos que está investigando. Todo mundo, pega ‘emprestado’ esses mecanismos e tenta explicar ‘efeitos’ que encontram ao expor os organismos, quaisquer que eles sejam, aos poluentes (quaisquer que eles sejam também).
Mas fazer ciência nesse mundo ‘high tech’ e ‘politicamente correto’ está cada vez mais caro. E por isso, também, obter amostras está cada vez mais difícil. E com isso, o número de amostra dos trabalhos, o ‘n’, é muito baixo. E quando o ‘n’ é baixo, a margem de erro das conclusões é muito grande. Tão grande, que as vezes não deveriam nem mesmo concluir nada.
A construção dos mecanismos de ação de uma substância poluente, que poderia fornecer informações gerais do interesse de todos, ao invés de ser o ‘alvo’ das pesquisas, são, ao contrário, tomadas emprestadas de outros autores como pressupostos para apresentar dados que tem um poder de explicação fraco sobre os efeitos de substâncias. Na verdade, dados que podem se adaptar ao modelo ‘pressuposto’ mas provavelmente a outros modelos também, porque o alvo da pesquisa é o efeito e não o modelo.
É como no teste de Rorschach, onde como base na figura que mostram cada um pode ver o que quiser. As conclusões desses trabalhos com ‘n’ baixo e desenho experimental/amostral precário podem ser lindas, mas são pouco, muito pouco úteis. E, também como no teste de Rorschach, informam muito mais sobre o pesquisador, do que sobre a própria pesquisa.
Isso sem contar as qualidade das perguntas, cientificamente conhecidas como ‘hipóteses’. Quando não são simplesmente ruins ou mal feitas, são pouco interessantes (chatas mesmo) ou de interesse muito, muito restrito.
Mas, ‘chi se ne frega’? Mas “quem se importa?”
Passamos duas taças de vinho ensinando essa frase para um dos pesquisadores americanos fodões presentes ao congresso, durante o ‘aperitivo’ que é como chamam os italianos chamam o ‘happy hour’. E a verdade é que ninguém no congresso se importava com a qualidade dos trabalhos apresentados. Tanto visual como científica.O corporativismo está matando a ciência!
Ao final das apresentações, cada perguntava começava sempre com “Fulano, muito obrigado por essa bela/interessante/importante apresentação”, enquanto a pergunta que não queria calar era: “como você tem coragem de apresentar isso em um congresso internacional?”
Porque ninguém procura questionar os modelos utilizados? Questionar os pressupostos? Ou, pelo menos, como fazer ciência está caro demais, não usamos os poucos dados que podemos obter para tentar ‘negar’ os modelos pressupostos? Esse é o princípio da ‘hipótese nula’ de Poper, através do qual a ciência tanto avançou no século XX. A tentativa de demostrar que um modelo não funciona é capaz de fornecer dados mais contundentes sobre a sua veracidade do que as pífias tentativas de confirmá-lo. Isso porque 1 (uma), apenas 1 (uma) observação é suficiente para questionar um modelo, enquanto nem mesmo milhares, milhões de observações, são suficientes para comprová-lo.
Mas então porque ninguém faz?
A reposta é complexa. Um misto de preguiça, dureza, irresponsabilidade e politicagem. O mecanismo de tomada de decisão na agências científicas, pelas ‘cabeças pensantes da ciência’ (ou a ‘inteligenza’ como diz meu tio) é tão complicado quanto a via de sinalização do cálcio dentro da célula.
“O fim da ciência”, como escreveu John Horgan, não está próximo por falta de coisas para descobrir, está próximo por falta de carinho dos cientistas para descobrí-las.
Fazendo mais pelo português que os portugueses
Mas um estrangeiro em Maputo, a trabalho, pode muito bem não ver África alguma. Um bom hotel, bons restaurantes… e a África mesmo nem apareceria. Mas ela está nos detalhes. Alguns, como o aeroporto são detalhes chocantes, principalmente depois da troca de aviões em Johanesburgo, cujo aeroporto, reformado para a copa ou não, parece uma estação espacial. O preço da conexão a internet (USD 5,00 por hora) também é um detalhe que carrega muita informação.
Mas com um olhar atento, você vê a África quando conversa com o motorista de táxi, com a garçonete do Zambea e com os professores para os quais demos aulas. Ai vemos a África de verdade. E, como o Brasil, ela é cheia de contrastes.
Sorrisos lindos e tecidos coloridos (Capulanas) contrastam com ruas mal iluminadas e construções depreciadas. “Não se constrói nada em Moçambique desde que os portugueses foram embora” nos contou Orlando, o dono da reprografia da universidade, enquanto nos dava uma carona no seu carro verde, depois de um dia de aula, quando não conseguíamos, de jeito algum, um táxi para nos buscar. O ‘Zouk’, ou ‘Passada’ como é chamado lá, toca em cada esquina, em rodas de adultos, jovens, crianças ou idosos que estão jogando cartas, batendo papo ou bebendo xidibandota (um destilado caseiro feito com ‘o que quer que seja’ e que, segundo os relatos, já causou muitas mortes – provavelmente porque não removem direito o metanol que deveria sair na primeira destilação) contrasta com uma incidência de HIV superior a 15% na população adulta (dados do INE/MZ).
Acredito também que o maior desafio para implementar o ensino a distância em Moçambique também está nos detalhes. É claro que a falta de infra-estrutura é um problema (enquanto estávamos lá, um aeroporto no norte do país estava parado sem pousos ou decolagens há 3 dias, porque, simplesmente, não conseguiam fazer chegar combustível até lá), assim como as diferenças culturais (o tempo em Moçambique parece fluir mais devagar… um jeito baiano de viver a vida). Mas apesar desses desafios serem grandes, eles são óbvios, certamente do conhecimento dos responsáveis pela implementação desse projeto, e a solução para esses problemas é simples. Pode ser cara, porque construir estradas, importar equipamentos de laboratórios, instalar cobertura 3G para internet pode ser muito caro, mas é simples. Uma vez que se decide e se obtém os recursos em pouco tempo tudo pode estar resolvido.
Mas alguns detalhes que inicialmente passam desapercebidos, se revelam problemas bem mais graves e de solução muito mais complexa, do que construir estradas, hospitais e escolas.
A nova Constituição de 2004 diz que “Na República de Moçambique, a língua portuguesa é a língua oficial” e o ministro da educação de lá se orgulha de ter feito pelo língua portuguesa na África, mais que os próprios portugueses. Afinal, na época da colonização apenas 6% da população falava português e agora chegam a 40% (dados do INE/MZ).
Mas será que falam mesmo?
Na primeira missão de treinamento, os professores perceberam que para serem bem compreendidos, tinham que falar mais devagar. A solução para encontrar o ritmo certo era, muitas vezes, deixar que os próprios alunos lessem os trechos de textos que seriam discutidos na aula. Mas mesmo com o jeito baiano de ser, o ritmo as vezes era lento demais. A ficha quando o motorista de um dos táxis que tomamos nos levou ao ‘mercado’ (que são camelôs espalhados por todas as calçadas das ruas do centro da cidade) para procurarmos um adaptador para as estranhíssimas tomadas de 3 pinos originais da África do Sul e utilizadas no nosso hotel. Ele gritava ‘tomadas, tens tomadas?’ mas fora isso, entendíamos pouco, muito pouco do que ele falava. Isso porque, de verdade, ele falava pouco, muito pouco português. Sua primeira língua, como fomos descobrir depois é a primeira língua de muitos maputenses, é o Xichangana.
No dia seguinte, durante a aula, notei que os professores usavam muitos pronomes demonstrativos, como ‘esse’, ‘isso’ ou ‘aquilo’, numa clara demonstração de vocabulário restrito. Perguntei então qual era a primeira língua de cada um deles e apenas 1 em 10 respondeu português. Echuwabo, Chope, Xichangana… entre 10 alunos, tínhamos 8 línguas diferentes! Em Moçambique todo, são mais de 40 idiomas (dados do INE/MZ).
O Brasil é um país de dimensões continentais, mas mesmo quando fui para o Lago do Puruzinho, escondido num recanto do Rio Madeira, na divisa entre os estados de Rondônia e do Amazonas, podia falar exatamente a mesma língua, e exatamente da mesma forma, que em casa, no Rio de Janeiro. A língua é um instrumento fundamental de integração nacional e acredito que apesar de não representar nenhuma das línguas nativas, Moçambique só tem a lucrar como nação com o uso do português nas escolas e na universidade.
E esse é um objetivo que justifica a nossa busca por estratégias para capacitar esses docentes a produzir aulas a distancia que sejam instigantes, claras, objetivas, atraentes e corretas, num idioma que não é o deles.

PS: Enquanto escrevo esse texto, com um pouco mais de uma semana de atraso, uma revolta popular explode em Maputo, pelas ruas por onde passei há tão pouco tempo, deixando centenas de feridos e um aperto no meu coração. O desafio não para de aumentar.
Ao mestre, com carinho

No mês passado, depois de 15 anos, voltei à Rio Grande, à FURG, à universidade onde fiz o mestrado em Oceanografia Biológica. Meu orientador, Euclydes Santos, estava para se aposentar (por motivos alheios a sua vontade) e seus ex-alunos prepararam uma pequena cerimônia de despedida, onde seria entregue uma placa e proferidas algumas palavras (e como tudo no RS, terminaria em churrasco). Uma pequena homenagem para um grande professor.
Então, quando um dos seus ex-alunos, o hoje prof. Luis Eduardo (ou o Carioca como é conhecido em Rio Grande), me perguntou se eu gostaria de ter meu nome na placa de homenagem, eu não hesitei. Mas quando ele perguntou se eu gostaria de mandar algumas palavras para serem lidas na homenagem, eu disse:
“Não, eu mesmo vou até ai para lê-las”.
Na prática a decisão foi facilitada por eu participar de um programa da CAPES chamado PROCAD que permite o intercâmbio de alunos e docentes entre as duas universidades. Eu teria que ir mesmo até lá em algum momento, e nenhum outro me pareceu mais oportuno do que esse. Mas ir até Rio Grande nunca é simples. Meus sentimentos com relação aquele lugar são muito ambíguos e por vezes, contraditórios.
Quem já me ouviu falar de Rio Grande, principalmente depois de duas cervejas, sabe que sobra veneno para destilar. Afinal, como diz meu amigo, dono de bar e filósofo Fernando Goldenberg: “a história verdadeira é sempre aquela que for a mais engraçada”. E como disse Nick Hornsby no livro ’31 canções’: “a crítica e a ironia sempre são mais divertidas que o temperança e a tolerância.” (bem, na verdade ele falou isso do preconceito, mas a idéia se aplica).
Mas quando penso de novo, vejo que foi um período de grande e intenso crescimento, pessoal e profissional. Talvez o maior que já experimentei. E quando penso mais ainda, me vêm tantas lembranças, e tão boas, das pessoas que lá conheci.
Mas outro motivo me motivou (Ugh! Essa até doeu) a despencar daqui pra lá. Eu tenho pensado muito na tarefa de orientar. Para mim, orientar é o maior desafio da vida acadêmica e provavelmente aquele para o qual somos menos preparados ao longo da nossa formação de cientistas. Nenhum curso de RH. Nenhum curso de psicologia. Nenhuma dica de sociologia e antropologia. Nenhuma aula de Judô ou Caratê.
E ao pensar nisso, cada vez mais pensava no meu antigo orientador, porque cada vez mais me vejo como ele. Euclydes se tornou meu principal modelo. E como disse uma vez minha querida amiga Celina, que trocou o Rio pelo Planalto Central mas esteve nos visitando no final de semana anterior a minha viagem: “Nós escolhemos uma coisa para fazer diferente dos nossos pais. O resto, todo o resto, fazemos igualzinho.”
Eu hoje sou orientador, já participei de muitas defesas de tese, várias de alunos meus, e hoje tenho 4 alunos de doutorado, 2 de mestrado e 1 de iniciação científica. E tenho me visto um orientador cada vez mais parecido com o Euclydes: serio, durão, inteligente e brilhante. Nós também compartilhávamos a modéstia 😉
Então, as coincidências não são realmente coincidências: Minha disciplina na pós, hoje, ‘Relações entre genes ambiente’ é parecida com a que fiz com ele no mestrado “Adaptações fisiológicas de animais estuarinos’. Uso até alguns dos mesmos artigos, como Gould e Lewontin (1979). Eu comecei a beber café em caneca de congresso que nem ele, porque, para mim, nada, nem mesmo os cabelos despenteados e a língua para fora de Einstein, era mais representativo da imagem do cientista, do que beber café no laboratório na caneca que você trouxe de um congresso internacional que participou, enquanto reflete sobre alguma questão fundamental da ciência. Também apliquei, com algum sucesso, uma estratégia de ação no ambiente profissional que aprendi com ele, que era “aumente o seu grupo além da sua capacidade de suporte, para que você se torne sempre uma prioridade nas disputas por recursos.”
Coincidência talvez seja que hoje tenho até a idade que Euclydes tinha quando eu fui seu aluno.

Foi, mais uma vez, tão bom conversar com ele, com sua mente ágil e desperta, com sua inteligência privilegiada. Descobri que meu orientador não divide comigo o gosto pela biologia molecular, mas gosta de cozinhar e tem um blog de cozinha; que fez direito e publicou um livro sobre a ética no uso de animais em pesquisa. E que mesmo sendo durão, foi o coração, que ele tanto desvendou em sala de aula, e não o cansaço, que o obrigou a se afastar prematuramente da universidade. Descobri um amigo e fiquei tão feliz com isso.
Acabei descobrindo que os desafios que com os quais me debato hoje são os mesmos com os quais ele se debatia antes: “Nenhum aluno é igual ao outro. O que funciona pra um, simplesmente não funciona pra outro. E não tem uma fórmula. As vezes você está, ao mesmo tempo, acertando com um e errando com outro. Não tem como acertar com todos.”
E finalmente, descobri que como professor e orientador não poderei ser querido por todos os meus alunos. E tenho que me preparar psicologicamente para isso.
Eu já disse aqui que a ciência é democrática mas não é uma democracia. Acredito que o que me aproxima do meu antigo orientador, é que assim como ele, acredito que a ciência não pode flexibilizar seus requisitos. E nem nós podemos. E assim como ele, eu posso lidar com as conseqüências disso para mim. E espero que assim como eu, meus alunos possam lidar com as conseqüências disso para eles.
Espreguiçado
Mas tive um problema com o professor que, até hoje (na minha cabeça) não resolvi direito. O problema é que ele meu deu B em um curso que eu (achava que) merecia A (bom, houve outros problemas também, mas isso fica pra outra vez – ou não). Como eu disse, eu gostava e entendia do tema. Também lia os artigos e participava das aulas. Mas isso não era suficiente para ele. Ele queria superação! E ao invés disso eu optei por ir passar o final de semana em Santa Maria na véspera do prova dele. Fui lendo os artigos pra prova na viagem de ônibus, mas era de noite e eu acabei optando por dormir. Acabei deixando os artigos na poltrona do ônibus e não estudei nada o final de semana todo. Peguei o ônibus de volta no domingo a noite e cheguei de volta em Rio Grande na hora da prova. Fiz uma boa prova mesmo sem ter estudado (afinal, eu assistia atentamente todas as aulas) e quando recebi o B no final do curso, fui falar com ele pra tentar entender o porquê. A resposta foi frustrante:
“Mauro, você é muito bom e você sabe que é bom. E por isso você é preguiçoso. E é por isso que eu te dei B.”
Talvez seja importante acrescentar que o mané da oceanografia física que fez uma bosta de prova tirou A, porque ele se ‘superou’.
Hoje eu reconheço que eu era (e em parte ainda sou) meio preguiçoso mesmo. Mas também hoje, que dou meus próprios cursos e tenho meus próprios alunos de pós-graduação, discordo, veementemente, da estratégia de avaliação dele.
Ele quis me dar uma lição, que eu provavelmente precisava, enquanto me avaliava com relação a disciplina que ele ministrou. Mas nem sempre dois coelhos podem ser mortos com uma cajadada só. É que a preguiça é um critério difícil de avaliar de forma acadêmica. Acredito que um professor pode usar o critério que lhe convier para avaliar os alunos. A justiça não está no critério em si, mas no conhecimento dos critérios a priori. Se eu soubesse que o critério era superação, talvez tivesse me comportado de maneira diferente. Ou, mais provavelmente, não teria feito a disciplina.
O resultado é que ele perdeu meu respeito como professor (como eu disse, houve outros motivos) e pra me dar meia lição, eu nunca mais aprendi nada com ele.
Porque lembrei disso hoje? Porque eu tenho um aluno que também é brilhante e preguiçoso. E ainda teimoso (como eu também era/sou). E como meu professor 15 anos atrás, me debato em como lidar com a preguiça dos alunos brilhantes.
A preguiça não é um problema quando você tem critério. Eu acho que já tinha critério, por isso acho que minha preguiça nunca me impediu de progredir. Mas o problema da preguiça é que ela pode corroer os seus critérios, e ai você afunda.

Envolvi meus alunos de doutorado em um projeto interessantíssimo chamado TRIVIA, coordenado pela Sonia Rodrigues, que envolve preparação para o vestibular (ou ENEM), inclusão digital e inclusão científica. O trabalho parecia simples: formular questões de biologia que preparassem os alunos para as provas que tem de enfrentar ao final do ensino médio. Mas como as questões seriam oferecidas na internet, o formato e a linguagem tinham especificidades. E para um aluno de doutorado que almeja um futuro na academia, uma oportunidade dessas é, mais do que a chance de conseguir uns trocados, é a chance de aprender algo novo que poderá ser útil no futuro. E nesse caso, não é a ‘biologia’ das questões que eles vão aprender, mas a linguagem e o formato da WEB, que estarão cada vez mais presentes no presente de professores e alunos.
As questões deveriam ser curtas, objetivas e o mais importante, deveriam, no enunciado e no gabarito, SEMPRE, ensinar alguma coisa. É simples e deveria ser fácil. E é, mas fazer direito, dá trabalho.
Os alunos foram aprendendo e incorporando o formato a medida que preparavam as questões. Mas ainda assim, um deles continuou cometendo os mesmos erros de forma desde o início. E hoje, quando estou para entregar a última fornada, vejo que é por uma dificuldade de incorporar o modelo. Como eu disse, o cara é brilhante. O problema é preguiça.
Existe alguma outra explicação para um cara brilhante fazer a seguinte pergunta:
Pergunta: As espécies que se alimentam de plâncton são chamadas de:
a) Planctívoras
b) Herbívoras
c) Carnívoras
Gabarito:
a) Correto. Espécies planctívoras se alimentam de plâncton.
b) Incorreto. Herbívoras se alimentam de vegetais e o plâncton também é composto por animais.
c) Incorreto. Carnívoros se alimentam de carne e o plâncton também é composto por vegetais.
Isso me frustra, como orientador, de diferentes maneiras (que eu ainda vou discutir no próximo post), porque mostra que eu não estou sendo orientador o suficiente (e não é por preguiça). Mas me estimula também a buscar novas maneiras de dizer as principais coisas que alunos de pós-graduação precisam aprender:
- Que a seleção natural não dorme nunca! Que enquanto eles deixam de aprender uma coisa, outro aprende, essa e mais algumas outras.
- Que no mundo de hoje, mais importante que acumular conhecimento, é ter critério para selecionar conhecimento que realmente importa.
- Que se não dá pra fazer tudo, e se é importante namorar, dormir, fazer festa e ir a praia, use a sua preguiça para não aceitar todos os desafios. É mais honesto e menos arriscado do que tentar fazer mais do que você consegue de forma preguiçosa.
É isso. Todos precisamos nos superar.
As metáforas científicas no discurso jornalístico

Hoje dei uma palestra sobre Escrita Criativa em Ciência na III Escola Temática de Química da UFRJ cujo tema era Divulgação Científica. Na palestra anterior a minha, um aluno perguntou que ferramentas poderiam ser utilizadas para sensibilizar o público da presença da ciência no nosso dia-a-dia.
Uma possível resposta para essa pergunta foi dada pelo nosso colega blogueiro e físico da USP-Ribeirão Osame Kinouche, com a psicóloga Angélica Mandrá, no ótimo artigo “Metáforas científicas no discurso jornalístico”. Meus amigos jornalistas deveriam adorar. Quando conversei com eles pela primeira vez sobre esse assunto, no I EWCLiPo, fiquei pasmo: era óbvio e eu nunca tinha pensado a respeito.
O que só torna a percepção deles mais genial: existem dezenas de termos utilizados na linguagem formal e informal cuja etimologia é científica.
As mais fáceis de reconhecer são termos da geometria Euclidiana como Ponto de vista; Linha de raciocínio; Traçar um paralelo; Analisar por outro ângulo; Volume de conhecimentos; Plano pessoal; Círculo de amizades e Triângulo amoroso.
É verdade que o oposto também é verdadeiro, e os cientistas se aproveitam de termos coloquiais com forte apelo imagético/sensorial para criar expressões científicas que possuem forte carga metafórica: barreira entrópica, relevo de energia, poço de potencial, ruído branco, paisagem rugosa, rede cristalina, buraco negro, supercordas. Termos mais simples como “carga”, “corrente”, “fio”, “pressão”, “resistência”, “campo” etc. também são etimologicamente anteriores ao seu uso científico.
Algumas vezes a comunicação tem ruído e as metáforas não funcionam bem. E com conseqüências relativamente sérias para o aprendizado de alguns conceitos em física: as palavras “aceleração”, “força”, “peso”, “trabalho”, “energia”, “calor”, tem sentidos coloquiais diferentes do técnico. Ou você não sabia que o que chamamos de ‘peso’ na verdade é a ‘massa’ de um corpo, e que o peso mesmo é a resultante da ação da gravidade nessa massa?! E dai?! Você pode dizer. Bom, você pode achar que isso não tem importância, mas dá um nó na cabeça dos alunos tanto no ensino médio quanto depois na faculdade de física. E nós já temos problemas suficientes para formar todos os físicos que o Brasil precisa.
A saída acha pelos cientistas para minimizar essa confusão não ajuda em nada a aproximar a ciência do cidadão leigo. Eles criam neologismos radicais, com um mínimo de sentido metafórico: quark, próton, entropia, entalpia, fractal, quasar etc. Mas mesmo assim, esses termos acabam chegando metaforicamente a linguagem comum, como já acontece com entropia (como metáfora para desordem) e fractal (como metáfora para organização em vários níveis). Não é um barato?!
Para vocês terem uma idéia, numa análise do número de vezes que os termos ‘pêndulo’ (física clássica) e ‘buraco negro’ (física moderna) são utilizados metaforicamente em aproximadamente 50% dos textos jornalísticos dos portais da Folha de São Paulo, do Estado de São Paulo e do G1 (confira o artigo para ver os números exatos).
O uso desses termos também demonstra que o uso metafórico de termos técnicos científicos serve para aumentar o potencial de expressão criativa do cidadão comum, ou mesmo um reconhecimento mais correto do mundo que o cerca, porque amplia ou expande a sua compreensão: termos como “forças políticas”, “equilíbrio de poder”, “fonte de atrito”, “tensão social”, sugerem a visão mecanicista da sociedade como uma máquina, que remete a física clássica determinística de Newton. No entanto, muitos desses fenômenos não tem nada de determinísticos. E a medida que aumenta a compreensão dos cientistas de fenômenos não lineares, como aqueles governados pela teoria do Caos, novos termos que expressam mais corretamente a incerteza relacionada aos fenômenos, como “efeito borboleta”, se incorporam a linguagem e permitem a representação mais correta dessas idéias.
Isso é muito importante porque, como dizem os autores, “Nosso repertório metafórico não apenas limita nossa capacidade de falar sobre tais sistemas, mas afeta nossa maneira de concebê-los e interagir com eles.”
Osame e Angélica terminam concluindo que o pensamento, o ato da cognição, é metafórico e usamos metáforas para compreender um conteúdo-alvo abstratos a partir de um conteúdo-origem concreto. Ao enriquecer o repertório conceitual da população, a educação e a divulgação científicas produzem novas metáforas no discurso comum, que permitem a melhor descrição de sistemas complexos como os sistemas sociais e econômicos.
Se você se interessa por ciência e por divulgação científica não pode deixar de ler.
PS: E olhem só, apesar de eu ter conversado apenas um pouco com um e outro tempos atrás pelo grande interesse que o assunto me despertou, ainda ganhei uma menção nos agradecimentos. Obrigado!
Terminei de ler… O Manuscrito de Mediavilla

Eu tenho que confessar que tenho um pouco de preconceito contra cientistas sociais. Fui quase fulminado quando disse isso em uma palestra na Fiocruz semanas atrás. Não tenho nada contra eles como pessoas, mas sim contra suas hipóteses serem científicas.
O “Manuscrito de mediavilla” é o segundo romance escrito pelo professor da USP Isaias Pessotti, que é psiquiatra e estuda a história da loucura. E é um dos livros que eu gostaria de escrever. Mais ainda do que o seu primeiro romance, “Aqueles malditos cães do arquelau“, que eu dei de presente para o Edu depois de ler. Atualmente é tão, tão difícil encontrá-los a venda. Ambos são passados na itália, contam aventuras dignas de Dan Brown em ‘O código da Vinci‘, mas com a diferença que os investigadores são todos amigos que, entre uma visita a um sebo de livros do ‘medievole’ no Piemonte e um antigo claustro no Lombardia, eles param para almoçar nos lugares mais interessantes, com o autor descrevendo os menus, pedidos, receitas e vinhos que todos provam. Vejam um exemplo:
“- Posso levar as folhas para casa? Perguntei.
– Basta que você não as aproveite para embrulhar peixes ou mariscos. Tenho que passá-las a outros e Patrízia, por exemplo, não gosta de peixes.
O olhar verde-musgo de Clara se iluminou.
– Por falar em mariscos, porque não vamos almoçar? Penso num lindo risotto al frutti di mare, na periferia. Em Affori, por exemplo.
Alberto deu-lhe um olhar severo.
– Como você ousa propor tal coisa? Só voltaremos depois de três da tarde! Aliás, um excelente horário, para quem costuma sair daqui depois das sete da noite. Mas não
e parece correto que uma pesquisadora descumpra seu horário de trabalho, por um risotto. Seria diferente se o fizesse por um belo filé peixe-espada, com molho muito suave de atum, nata batida e alcaparras, ao lado de um Tocay geladinho. Sugiro o jardim do Sette Lune em frente ao parque Litta.”
Ela ainda adiciona, ao final da página 139, que tomaram um delicioso Grumello durante o almoço. Uma delícia!
Mas não foi o mistério, a aventura ou o festival gastronômico que me fizeram escrever esse artigo. Isaias descreve, no personagem de Vittório, o que para mim são as grandes virtudes de um chefe de departamento de uma instituição acadêmica.
Ainda que possa parecer longo, vale a pena ler o texto que transcrevo:
“Outra razão era uma qualidade rara em gente da nossa laia: com toda a sua alta reputação e o sucesso de suas publicações, ela não se envaidecia: era uma discípula de Pietro Vittori, que a tinha orientado desde os anos da graduação até o pós-doutorado. Cada discípulo de Vittori tinha algumas marcas, inconfundíveis: a consciência
de que sempre é preciso saber mais, de que a virtude não está no que se sabe, mas na busca devotada do saber, além de um inflexível senso de justiça.
(…)
Mas éramos muito respeitados pela “qualidade acadêmica” do que fazíamos. Parte
desse respeito era devida a outro motivo. Toda a Universidade sabia que o nosso Departamento jamais apoiaria qualquer iniciativa que não fosse a melhor para “os fins, impessoais, da instituição”, como dizia Vittori. Isso nos alijava das posições de decisão. Por isso, nosso Departamento era o mais respeitado, mas era também o mais pobre.
Isso não doía: tínhamos até uma certa compaixão pelos que lutavam por posições de chefia ou de direção. Quando a busca do poder importa mais que a busca do saber, as universidades morrem. Assim ensinava Vittori.
(…)
Talvez, de todos nós, o mais visado fosse Pietro Vittori, o diretor. Ele proclamava aos quatro ventos que a transmissão do saber, a formação dos estudantes, era a razão maior da Universidade. Dizia que isso era algo extremamente sério e, por isso mesmo, não era assunto para novatos que, após a formatura, não responderiam pelas conseqüências das “revoluções” que propunham. Achava que os alunos precisam distinguir entre o poder que contestam e a autoridade intelectual de seus mestres. Que o direito de contestar a universidade, se adquire cumprindo seu papel nela, o dever social de estudar com seriedade, no caso dos alunos. Mais ainda, dizia que a Universidade não tem poderes a serem disputados: ela tem, isso sim, compromissos e o maior deles, supremo, é com a razão, a racionalidade. Que os cargos universitários são deveres sociais ou institucionais, e não posições de poder. Para ele, a ambição por tais cargos como posições de mando era marca dos que estariam mais felizes fora da universidade. Tanto mais hábeis no jogo do poder, quanto medíocres no saber. Por esse caminho, pode-se concluir que os medíocres não são raros.
(…)
Uma vez, ele explicou a Alberto como entendia a função de diretor do Departamento.
– Um diretor deve ser um chefe. Alguém que assume decisões e que responde pessoalmente por elas. Ele quase soletrou o pessoalmente.
– E os docentes?
– Cada um deles pode tomar as decisões que quiser, desde que responda, pessoalmente, por cada uma delas. Somos todos adultos, responsáveis, não?
– Mas o Conselho é um órgão deliberativo…
– …que pode destituir-me da direção em qualquer momento. Mas sou eu que assino pessoalmente as decisões, assumo pessoalmente o ônus de responder por elas em primeira pessoa. Portanto, é justo que eu tenha o poder de decidir. É cômodo decidir anonimamente em grupo e depois delegar a responsabilidade da execução, agora pessoal, ao diretor.
A conversa era serena e polida. Vittori e Alberto eram amigos, acima de tudo. Por isso Alberto podia ser franco:
– Mas uma decisão democrática deve ser majoritária…
– Nisso você se engana, meu caro: a maioria pode representar a intolerância, até a prepotência. Ou você acha que a má-fé, quando é de muitos, se torna pureza?
– Penso numa decisão discutida…
– Eu jamais impedi que vocês discutam meus projetos. Não decido nada sem discutir com vocês todos. Convençam-me de que eles são errados ou inconvenientes e eu os modifico ou abandono. A discussão deve buscar racionalmente a verdade, como diria Abelardus, e não servir apenas de álibi para a prepotência das maiorias. Ser democrático não é curvar-se ao número de votos. É submeter honestamente as próprias idéias à apreciação dos outros e saber render-se a uma argumentação convincente… Que pode ser a da minoria, ou a de um só, por que não?
Alberto coçou o queixo:
– O que acontece quando a opinião da maioria é a mais acertada? A mais… convincente?
– Então, nem precisa ser majoritária, Alberto. Entre uma minoria que pensa certo e uma maioria que erra, prefiro seguir a minoria.
– Mas como saber o que é pensar certo?
– Seguramente o certo não é, necessariamente, o que uma dada maioria pensa. Poder se decide pelo voto; acerto, não.
– E então?
– O que é certo, no caso do nosso Departamento, ou do Instituto, por exemplo, é o que, num dado momento, é moralmente lícito, traz benefício ao grupo, contribui para os fins, impessoais, da instituição. A quem responde, cabe a decisão. A discussão serve para corrigir as distorções dos critérios pessoais de quem deve decidir. No caso, eu.
– Isso não é meio autoritário?
– Seria, se o poder de decidir não fosse delegado. O Conselho pode retirar essa delegação quando quiser. O poder, sim, pertence ao Conselho, que o delega ou retira, conforme a vontade da maioria.
– Agora vale a maioria? Por quê?
– É óbvio, Alberto. Agora, a questão não é a do acerto ou erro de uma decisão. Agora se trata de atribuir o poder. É uma questão de força. É o exercício da força. A decisão pode até ser errada: acerto não se decide por voto. Maioria é uma expressão de força, Alberto. E a força, raramente acompanha a racionalidade.
– Numa democracia o direito de opinar deve ser irrestrito, disse Alberto, cruzando os braços. Era o jeito dele quando decidia levar uma discussão até o fim.
– Então deixemos que os pacientes do Policlínico ou os presos de San Vittore decidam como deve ser conduzido o hospital ou o presídio. Ou, que os alunos, beneficiários transitórios da Universidade, resolvam como deve ser o ensino, a pesquisa, o estatuto. Eles não responderão pelos efeitos de tais decisões, após a formatura. Alunos,
pacientes e presos são sempre maioria, nessas diferentes instituições, como você sabe, meu caro.
– Eu disse: direito de opinar, professor.
– Pelo gosto de opinar? Ou para decidir?
Não sei como a conversa terminou. Conto isso para mostrar como funcionava o Departamento. E é bom que se diga: Pietro Vittori tinha sido eleito pela quarta vez consecutiva para a Diretoria. Por unanimidade!
Estilos à parte, confiávamos nele. Na sua dedicação “aos fins, impessoais, da instituição”. E no seu rigoroso senso de justiça.”
Lindo, de novo, não é?