Dawkins, uma desilusão.
Por isso, quando a programação da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) desse ano trouxe o nome de Richard Dawkins, sabia que não podia perder a chance de ver de perto um dos meus ídolos vivos.
Dawkins é o autor de “O gene egoísta” que foi um um livro determinante para mim quando o li pela primeira vez em 1990, então estudante dos primeiros anos de Biologia na UFRJ. Com riqueza de exemplos e grande criatividade, Dawkins sugere uma razão, na verdade uma justificativa, para a evolução das espécies (o egoísmo dos nossos genes, que nos usam como máquinas de procriação) usando nada mais que a seleção natural proposta por Darwin 150 anos atrás.
Nessa mesma época, eu tinha meus primeiros sérios embates com a religião. Eu fui criado em um ambiente politeísta, estudava em um colégio católico mas frequentava também a Umbanda com minha mãe, que sempre gostou de ‘bater tambor’. Eu já não acreditava mais em um ‘Deus tradicional’, mas ainda tinha dificuldade de abandonar a idéia do “sentido da vida”. O livro de Dawkins me ajudou a ver a beleza de uma ‘vida sem sentido’.
O livro ainda foi importante para me ajudar em outro embate (o primeiro de muitos que se seguiriam), dessa vez com um rapaz evangélico que estagiava comigo na carcinocultura (cultivo de camarões) da Fazenda Santa Helena. O rapaz (que o nome eu sinceramente não me lembro) era um abastado estudante de uma escola agropecuária e, como não tinha formação científica, nós debatíamos questões técnicas e pessoais, armados com nossos livros de cabeceira: eu com o ‘Gene egoísta’ e ele com a ‘Bíblia sagrada’. A fé do garoto era de uma irracionalidade tão forte, que ajudou a fortalecer a minha razão.
Talvez por isso, quando Dawkins lançou o livro “Deus, um delírio”, não me interessou. Sabia que o livro não era para mim, que já havia me convertido ao ateísmo com o “gene egoísta”. Sabia que o livro era para os não cientistas que, como eu, precisavam de uma boa argumentação para encontrar a beleza na vida sem razão de ser.
Mas ainda assim, como ateu, cientista, leitor e fã (não necessariamente nessa ordem), eu não poderia perder a palestra de Dawkins na FLIP. E, provavelmente, pelas mesmas razões, fiquei tão desiludido com ela.
Mesmo com o Edu avisando dos perígos da FLIP, eu tinha convicção que seria um evento imperdível. A mediação do respeitado jornalista Silio Boccanera, correspondente internacional da Globo por mais de 30 anos, parecia perfeita para introduzir a personalidade internacional ao público e a FLIP o evento mais aproximar um cientista ao público leigo.
Mas não foi.
Dawkins parecia ter pressa. Começaram a entrevista avisando que ele apenas ‘assinaria o nome’ nos livros durante a sessão de autógrafos que se seguiria (nenhuma outra fila da FLIP andou tão rápido). Assim como parecia temeroso da reação da plateia, provavelmente tão católica quanto o resto do nosso país, que é reconhecidamente um dos países mais católicos do mundo (tanto que estava circulando por Paraty com guarda-costas!). Mal sabia ele que o público de ‘descolados’ da FLIP aplaude, entusiasticamente, qualquer coisa que seus autores falem.
Silio foi conivente com esse Dawkins apressado e apreensivo. Colaborou para que ele pudesse se expressar superficialmente, no que mais parecia um FAQ (aquela lista de ‘perguntas mais frequentes’) das críticas mais comuns a ciência, ao ateísmo e as suas idéias. Só que era uma FAQ para um público de radicais de Oklahoma e ele mostrou um total desconhecimento do público brasileiro. Um daqueles ‘bonecos do posto’ faria uma mediação tão boa quanto Silio, que pra completar, resumiu e distorceu minha pergunta que, como vocês podem ver abaixo, era sobre o fim da seleção natural e não da evolução.
Abre parenteses: A pergunta, que por escrito era “A medicina cura deficiências genéticas ou causadas pelo ambiente, humanos em posições hierárquicas mais altas na sociedade estão reproduzindo menos que aqueles em posições mais baixas, porque têm menos tempo. Será o fim da seleção natural do mais adaptado como Darwin concebeu?” foi resumida como “Será que ainda estamos evoluindo?”. Essa resposta eu mesmo já sabia. Fecha parenteses.
Os aplausos entusiasmados da platéia ao final não me comoveram, nem me consolaram (eu cheguei a comentar a ba-ta-lha que foi para conseguir o ingresso?).
Para mim, Dawkins continua sendo um gênio, mas a serviço da divulgação científica, não chega aos pés de Carl Sagan. E a serviço do mercado editorial internacional, não é mais digno da cátedra de “Compreensão Pública da Ciência”, criada para ele em Oxford em 1995 e que ele deixou em 2008.
Da próxima vez que ver o nome dele em uma palestra, seguirei o conselho do próprio Dawkins na dedicatório do livro “A grande história da evolução” (que eu comprei para depois ele acabar autografando com um rabisco) ao grande biólogo John Maynard-Smith (veja abaixo), e se o velho Maynard-Smith não estiver na platéia (o que é infelizmente impossível desde 2004) nem me disporei a assisti-la.
Se você não acredita em mim, ouça você mesmo como foi.
Dawkins na FLIP 2009. Início (25 min)
Dawkins na FLIP 2009. Meio (25 min)
Dawkins na FLIP 2009. Fim (21 min)
PS; Dawkins escreve na dedicatória: “Não ligue para as conferências e seminários, deixe para lá as excursões guiadas aos pontos turísticos, esqueça os recursos audiovisuais sofisticados, os radiomicrofones. A única coisa quer realmente importa em uma conferência é que John Maynard Smith esteja presente e que haja um bar espaçoso e acolhedor. Se ele não puder comparecer nas datas que você tem em mente, trate de remarcar a conferência […]. Ele vai cativar e divertir os jovens pesquisadores, ouvir as histórias deles, inspirá-los, reacender entusiasmos que talvez estejam arrefecendo e os mandará animados e revigorados de volta a seus laboratórios ou lamacentos campos de pesquisa, ansiosos para experimentar as novas idéias que ele generosamente compartilhou”.
Razão e sensibilidade

“Nos gostaríamos de acreditar que se conseguíssemos adequar com segurança dados em relação a qualquer problema científico, então qualquer pessoa com uma inteligência normal, que se da ao trabalho de tomar conhecimento desses dados, deveria necessariamente chegar a mesma conclusão sobre o problema em questão. Nos gostamos de falar de conclusões demonstradas, estabelecidas, provadas e aprovadas. Parece, no entanto, que nenhuma evidencia cientifica é forte o suficiente para forçar a aceitação de uma conclusão que é emocionalmente não aprazível”
Se não aprendermos a tocar o emocional das pessoas com a ciência, nos servirá de muito pouco a razão.
Quando é legítimo uma descoberta científica ser divulgada publicamente?
Isso me lembrou de parte do texto que escrevi na proposta para solicitar fundos para o II EWCLiPo (o encontro de blogueiros de ciência em português). É sobre a diferença no enfoque da ciência pelo cientista e pelo jornalista.
Um artigo publicado na revista Nature (vol 458, Março de 2009) mostra que muitos jornais estão fechando suas seções de ciência enquanto jornalistas científicos ficam sobrecarregados e cada vez mais dependentes dos press releases de RPs. Isso tem acontecido nos estados unidos, Europa e também no Brasil.
Apesar das queixas dos jornalistas de ciência, as redações dos jornais mostram duas coisas: primeiro que as seções de ciência não dão lucro (e por isso estão fechando). O público tem uma grande afinidade com a ciência, mas não busca ciência todos os dias (uma tendência medida nos sites dos grande jornais do mundo). A segunda, e bem mais triste, é que os jornais perceberam que podem capturar audiência com ciência de má qualidade e sensacionalismo. Na maior parte dos casos, seria melhor não ter ciência alguma.
Hoje grande parte do jornalismo científico é feito com base em press releases e existem algumas agências de notícias que se especializaram até mesmo em publicar citações de cientistas famosos, para que os jornalistas possam ‘referenciar’ os press releases. Para que se dar ao trabalho de perguntar ao cientista se uma agencia já coloca na sua mão o que ele disse?
O artigo da nature continua dizendo que a ciência, como toda empreitada humana, está sujeita a (e cheia de) falhas, preconceitos e egos inflados; e precisamos muito de jornalistas para filtrar esse tipo de coisas. Mas o diálogo entre pesquisador e jornalista é muito difícil. Enquanto o jornalista quer a contundência, o cientista não abre mão da incerteza; enquanto o jornalista tem pressa, o cientista tem cautela. Os jornalistas querem que os cientistas reconheçam suas necessidades, mas não querem reconhecer as necessidades dos cientistas.
O resultado é que quem escreve os press release tem grande influência sobre o que o público vai ler sobre ciência, e por isso as instituições de pesquisa estão contratando os jornalistas científicos e montando assessorias de imprensa e escritórios de relações públicas científicas. Para escapar desse tiroteio, os cientistas estão mirando no grande público através da internet. Não só para publicar/divulgar seus trabalhos, mas também para ‘traduzirem’ os temas científicos para o público leigo, principalmente através de blogs (como esse!).
Os (nós) blogueiros se consideram uma fonte de informação científica confiável para o grande público. E são! Atualmente, mais que os jornalistas.
Mas vejam, os blogueiros não querem substituir (e nem poderiam) os jornalistas. Principalmente porque querem ter compromisso apenas com eles mesmos e publicarem o que quiserem. E por mais essa razão, sempre será necessário ter jornalistas profissionais sendo pagos para escreverem sobre o que está sendo publicado em um determinado momento.
De qualquer forma, em um país de tantos excluídos, a “exclusão científica” da população é uma das mais graves, porque as pessoas estão ouvindo falar de genoma, vacina gênica, transgênicos, mutantes, clones, células tronco… sem ter noção de como avaliar o quanto as informações que chegam até elas são verdadeiras.
Acredito que a descoberta científica é um processo e que esse processo possui marcos e que é legítimo que o cientista divulgue o processo e os marcos, mesmo antes da descoberta. Para aumentar ainda mais a credibilidade, seria importante que esses marcos fossem determinados a priori, no momento em que se estabelece o desenho de um experimento ou de um projeto, evitando rompantes de exibicionismo. Mas não deve haver a menor dúvida da importância de se divulgar essas descobertas, tanto para prestar contas a sociedade (que é a grande financiadora da atividade científica) quanto para mostrar a sociedade a importância do pesquisador.
Espero que esses assuntos sejam discutidos amanhã, e estarei lá pra ver.
Museu a céu aberto

Passear por Florença é passear por um museu a céu aberto.
Jardins, igrejas, palácios, Michelangelo, Da Vinci, Botticelli, Caravaggio, todo mundo passou por lá. E nem precisa entrar nos museus… você dobra uma esquina e pode dar de cara com ‘O rapto das Sabinas’, escultura lindíssima de Gianbologna, contemporâneo de Michelangelo, exposta na ‘loja’ na ‘Piazza Signorina’. Com sua forma espiralada, foi uma quebra de paradigma na época, já que todas as esculturas, inclusive o David, tinham ‘frente e verso’. Um lado ‘certo’ para ver. Sendo em espiral, cada lado é sempre certo e ao mesmo tempo, um novo angulo e uma nova mesma escultura. A submissão do velho etrusco pelo jovem romano também pode ter muitas interpretações.
Mas além de uma viagem pela história e história da arte, uma passeio por Florença também é um passeio pela história da ciência. A começar pelo próprio ‘Museo di Storia della Scienza’.


Os planos inclinados que Galileu usou para estudar o movimento, os primeiros astrolábios, lentes, telescópios e microscópios, dínamos… O museu é pequeno mas muito, muito charmoso.
E por sorte, no Palazzo Strozzi estava acontecendo a exposicao O ceu de Galileo: da antiguidade ao telescopio. Essa uma exposicao riquissima, com muitos instrumentos mas tambem obras de arte como o ‘Atlas’ (que carrega o mundo nas costas) de Barbieri e o ‘Saturno’ (que devora um de seus filhos) de Goya.


O tema não poderia ser mais bem escolhido, porque nada representa melhor a história da ciência que a evolução do conhecimento do firmamento acima de nós. Mostra como observações mais cuidadosas, instrumentos mais avançados e cálculos mais precisos levaram o homem de um céu estático com as estrelas do starfix que eu colava no teto do meu quarto quando era criança, até as sondas espaciais que temos hoje.
Mais que a história, é a vitória da ciência.
Nada poderá tirar meu prazer de caminhar por Florença.
Minha tatuagem científica

Mas não foi uma decisão impulsiva. Foram anos tomando coragem pra fazer “algo que é pro resto da vida”. Me decidi finalmente quando li a resposta da então eleita “Musa do verão” do Rio pela revista de Domingo (suplemento do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro) a um reporter que perguntava se ela não se preocupava com ter apenas 18 anos e tantas tatuagens. “Você não tem que se preocupar que é para o resto da vida. Alias é bom que seja. A tatuagem é uma marca de um momento que você viveu e ajuda você a carregar esse momento pra sempre”.
Como uma patricinha pode ser tão esperta? Felizmente pode. Pra gente se lembrar constantemente de vencer nossos preconceitos.
Mas voltemos a tatuagem. Ainda levei anos pensando em qual seria o motivo, o desenho e em onde colocá-lo. Eu mesmo que desenhei o DNA tribal e decidi colocar nas costas porque achei que seria bom não olhar pra ele todo dia (mas é verdade que acabo não olhando nunca). Minha irmã, a loira linda e supertatuada, reclama que é pequena demais e que não dá pra ver direito porque se confunde com o cabelo, mas eu gosto. O motivo foi a minha opção pela razão e pela ciência como doutrina de vida, com tudo que eu precisava estar disposto a fazer e arriscar por essa opção. Naquela época, isso significava mudar de cidade, de país, de lingua e de vida. Largar o coração partido, o Rio querido, a família, meu primeiro carro, meu primeiro apartamento e partir pra aventura do descobrimento. Descobrir se eu realmente dava pra cientista (Opa, peraê!).
Deu tudo certo e eu voltei cientista. Com muitas das certezas que eu tinha antes (“there is no place like home”), algumas novas mas um monte de bagagem na mochila (a mesma que viaja comigo a 17 anos). A tattoo está lá. Começa a perder um pouco de definição, mas a cor continua firme.
Outro dia me mandaram o site do pesquisador Carl Zimmer, que organizou o Science Tattoo Emporium. Eu não resisti e mandei a minha pra ele. Está lá.
Já tive motivo pra fazer outra tatuagem. Não era científica, mas o motivo desapareceu antes da marca ficar estampada na pele. E quando é assim, quem sabe… é melhor que seja. Agora finalmente decidi qual será a proxima. Não será científica, mas vai marcar o meu verdadeiro grande amor, o Rio de Janeiro. Assim que ficar pronta, mostro pra vocês.
Que bichinho é esse? Que plantinha é essa? E como dizer isso pros outros?
Em outro momento, já depois de formado, ouvia com enorme freqüência a seguinte pergunta: “Mauro, você que é biólogo, me explica…” e o que se seguia eram as dúvidas mais estapafúrdias, nem sempre pertinentes, de pessoas leigas e sinceramente intrigadas com a natureza que as cercava. As vezes, devo confessar, fui mau, e criava uma resposta fantasiosa tão estapafúrdia quanto a pergunta. Era divertido. Como quando num dos muitos finais de semana que passei em São Paulo na casa do meu tio, indo do Rio de Janeiro para Rio Grande onde cursei o mestrado, sentados na varanda, ele me perguntou: “Mauro, você que é biólogo, tem um passarinho que sempre vinha aqui na minha varanda. Ele chegava a tarde e depois ia embora. Porque agora ele não vem mais?”
Respondi que a culpa era da poluição e que ele devia fumar menos por isso também. Ou algo desse tipo. Como eu poderia falar que a pergunta estava mal formulada, pedir o número de observações que ele fez da frequência de visitas do pássaro, se ele usou algum método de foto-identificação para saber se era sempre o mesmo pássaro, se havia mudado as plantas do jardim, e outras tantas variáveis que seriam pertinentes se aquele fosse um experimento ou trabalho de campo. Todos somos cientistas, mas trabalhar com o método científico é para poucos. Dá trabalho e exige muita dedicação e atenção. Além de uma fé quase religiosa nos seus procedimentos. Mas como explicar isso para os outros? O que escrever? Para quem? Como?
Essas são perguntas que chegam a atormentar um cientista todos os dias, e foi sobre elas que eu escolhi falar para os alunos da UNICAMP que gentilmente me convidaram para uma palestra sobre divulgação científica no seu IX CAEB – Congresso Aberto aos Estudantes de Biologia em Julho/2009. Tenham certeza que estarei lá.
O tudo e o nada

Gente… hoje eu fiz ciência!
Muito do que eu aprendi de como ser cientista foi durante o mestrado, no departamento de ciências fisiológicas da Universidade do Rio Grande. Aprendi estatística e a deixar crescer o cavanhaque para poder enrolar os dedos nos fios parcos enquanto resolvia um problema como o José Monserrat. Aprendi a ler um artigo deixado em cima da mesa de outra pessoa (e depois saber o artigo melhor do que a pessoa) enquanto tomava um café na caneca trazida de um congresso como o meu orientador Euclydes. Com o Elton entrevistando um aluno de iniciação científica, aprendi que ser cientista é estudar, ler, aprender a perguntar e a responder.
Assim, quando hoje transformamos dois anos de mudanças de protocolos, contagens de células, espectros de emissão de energia e muitas, muitas imagens de microscópio em um esboço de artigo, fiquei muito satisfeito.
O que torna a ciência mais difícil é que nem tudo pode ser relativizado. Seus dados estão ali, olhando para você e mostrando o que quer que seja que mostrem. Seu trabalho é saber interpretar isso sem ver nem mais, nem menos do que eles estão mostrando. Mas o resultado é o senhor soberano da conclusão, não a interpretação.
Não é assim em todo o canto. Políticos (e também advogados) adoram relativizar. Enio Candotti falou maravilhosamente sobre isso na sua palestra “Ciência, política e verdade” no Instituto de Biofísica da UFRJ alguns anos atrás. Para ele, o diálogo entre cientistas e políticos era impossível, porque a noção de verdade de um é muito diferente daquela do outro. Para os cientistas a verdade é baseada em evidências. Se uma mesa pode ser pesada, medida, ocupa lugar no espaço, então a mesa existe, e essa é a verdade. Para os políticos a verdade é consensual. Se for, como diria D. Pedro I, ‘para o bem de todos e vontade geral da nação’ que a mesa não exista, então não interessa se todos estão reunidos à mesa tomando essa decisão: a mesa não existe, e essa é a verdade.
Pouco pode se construir com verdades consensuais, porque sem a base da evidência, a verdade muda o tempo inteiro, de acordo com a tendência do momento. Resta um nada. Um nada jurídico. E tudo desmorona.
A verdade baseada na evidência tem ainda mais uma vantagem: não se perde tempo tentando alcançar o consenso. A mesa existe: aprendam a lidar com isso! Seja mudando a mesa de posição, destruindo a mesa com um machado, sentando nela para comer um delicioso risoto de Parmiggiano Reggiano com Aspargos, ou para escrever um artigo como fizemos hoje. É tudo de bom.
O laboratório do Nobel
Para um biólogo, viajar para o exterior é uma necessidade por muitos motivos. Primeiro os gringos tem mais grana que a gente e uma infra-estrutura muito melhor que a nossa. Lá (ou aqui, onde estou agora) você consegue alcançar em 6 meses resultados que não conseguiria no Brasil em 2 anos. Outra razão é ir atrás do conhecimento ONDE ele está sendo produzido ao invés de esperar que ele chegue até você.
O Instituto Oceanográfico de Woods Hole (WHOI) é uma das maiores instituições de pesquisa do mundo. Sabem aquele mini-submarino que vocês vêem explorando as profundezas do oceano no Discovery Channel, o Alvin? É daqui.
Na mesma cidade, que não é maior que um campus universitário, está o ainda maior e ainda mais antigo Marine Biological Laboratory (MBL). Juntos esses dois institutos já hospedaram mais de 50 premios Nobel. Inclusive um dos três ganhadores do prêmio Nobel de química desse ano, o japonês Osamu Shimomura que atualmente é cientista Emérito do MBL, pela descoberta da proteína verde fluorescente GFP (do inglês Green Fluorescent Protein). Vocês já devem ter lido muito na imprensa sobre ela, então eu vou passar a fofoca dos bastidores.
O MBL ganhou o Nobel, mas a patente da GFP está enchendo os cofres do WHOI, do outro lado da ponte (sobre o canal que atravessa Woods Hole). Foi aqui, no mesmo departamento onde estou trabalhando, com o mesmo chefe, que Douglas Prashero, o ‘cientista injustiçado‘ trabalhou e isolou o gene da GFP.
Lendo o artigo do G1 reconheço ali todas angustias de um pesquisador. Não basta a habilidade técnica na bancada. Ele tem de saber escrever um bom projeto para conseguir fundos para pesquisa, tem de saber convencer seu chefe e seus pares da importância do seu trabalho para que a instituição lhe dê infra-estrutura e tem que suportar a pressão de viver com a instabilidade da bolsa pelo tempo que for necessário. Aqui nos EUA existem já vários cursos de ‘gerenciamento de carreira científica’, mas ai no Brasil, só conheço a iniciativa da qual participei, em 2001 e 2006, quando junto com Stevens Rehen realizamos o ‘Dicas de sobrevivência na academia‘: um mini-curso no congresso da FeSBE que alertava os alunos para os ‘não-tão-óbvios’ problemas que eles podem encontrar ao longo da sua carreira.
Prashero não foi o primeiro pesquisador com potencial a se transformar em motorista de Van, e até que esses cursos se tornem uma rotina na pós-graduação, não será o último.
Criatividade ou Anarquia?

O físico Richard Feynman diz que toda boa idéia deve primeiro passar por um exame intelectual criterioso antes de ser colocada a prova experimentalmente. Testar hipóteses é trabalhoso e caro, e justamente por isso nem todas as idéias devem chegar a esse estágio. Não importa se é uma idéia para um experimento, para um novo avião ou para uma obra de arte.Uma boa idéia, e portanto original e criativa, não deve refutar princípios básicos das coisas.
Por exemplo, a 2a lei da termodinâmica é uma das leis fundamentais do universo. Ela diz que não podemos reciclar energia. Energia gasta é energia perdida (isso pode parece banal, mas tem conseqüências graves, como a passagem do tempo, a expansão do universo, a vida e a morte). E também diz que as coisas precisam de energia para se manterem organizadas e se não gastarmos energia as coisas se desorganizam.

Pois bem, se um engenheiro aparece com uma idéia excelente sobre um novo motor a jato onde a energia de uma turbina em movimento é utilizada como combustível para movimentar uma outra turbina; por melhor que seja a idéia, ela é impraticável, porque contraria uma lei fundamental. Ou o engenheiro propõe uma nova abordagem para a lei da transferência de energia ou o projeto vai ficar engavetado (o que provavelmente acontecerá).
Quando uma idéia nova não respeita leis fundamentais e preceitos básicos ela não é criativa, ela é anarquica. E a anarquia, como a falta de energia, levam a desordem. Não é uma colocação política, é física.

Essa constatação parece ser universal. Andando pelo MoMA no final de semana passado, vi obras de arte que eram criativas e outras que eram, simplesmente, anárquicas. Não tem a ver com formas, com cores, com padrões, emoções ou abstração. Van Gogh usou cores e pinceladas que ninguém usava e foi muito criativo. Picasso usou formas que ninguém nunca usava e foi criativo. Pollock jogava tintas na tela e foi criativo. Andy Warhol usou latas de sopa e foi criativo. Porque então ou cara que jogou panos de estopa no chão e colocou alguns espelhos foi anárquico? Vejam que eu disse ‘o cara’ porque eu nem lembro o nome da figura.
Está faltando precisão para explicar o anárquico? Então deixem eu tentar novamente. No último andar do museu havia uma mostra de Miró. E era uma mostra anárquica. Das horas que passei no museu, apenas 5 min (tempo necessário para atravessar todos os corredores sem parar em quase nenhuma obra) foram nessa recém inaugurada gigantesca mostra de Miró.
Mas se eu adoro Miró e acho Miró super criativo. Vejam que eu disse que a ‘mostra’ era anarquica.
Nesse caso, a culpa é do curador e não do pintor. A mostra se chamava ‘Pintura e anti-pintura’ com desenhos e colagens feitos por Miró depois da sua frase célebre “Eu quero assassinar a pintura”. O curador tenta vender a idéia de que vários estudos e desenhos de Miró eram uma fase revoltada da sua arte, uma tentativa de criar a anti-pintura, trabalhando em segredo em seu estúdio blá, blá, blá. Pura anarquia. A verdade é que o fascismo estava comendo solto na Espanha e a segunda guerra mundial batendo à porta. Miró trabalhava trancado em seu estúdio por medo de sair na rua. E não havia muita gente circulando por lá pra ir visitá-lo. Miró foi criativo, mas isso não quer dizer que TUDO o que ele fez enquanto estudava e experimentava era criativo.
Uma idéia para ser criativa precisa respeitar a lei da entropia, em qualquer um dos seus muitos enunciados: “o calor sempre passará de um corpo mais quente para um corpo mais frio e nunca ao contrário”; “uma energia de baixa qualidade realiza menos trabalho que uma energia de alta qualidade”. Uma idéia para ser criativa, precisa otimizar o uso da energia. Em um motor, um texto, um experimento ou uma pintura.
Preguiça e ignorância nunca resultam em idéias criativas.
Por que e para que
Mas por que eu nunca havia me interessado antes? Hoje eu descobri que eu sabia por que eu deveria estudar, mas não sabia para que. E pelo visto, meus professores também não.
Explico, mas não serei breve. Vou começar com uma historinha do livro “Deve ser brincadeira, Sr. Feynman”, do físico americano Richard Feynman. Por favor, me acompanhem.
Quando esteve no Brasil em 1951, o físico Richard Feynman deu uma palestra na Aademia Brasileira de Ciências (ABC), onde disse que “não se está ensinando ciência alguma no Brasil”.
Ele perguntou para o auditório cheio: “Qual um bom motivo para lecionar ciência?” E ele mesmo respondeu “Porque é importante para que um país possa se considera civilizado, blá, blá, blá.”
Mas para ele, esse não é um bom motivo. E nós temos que ensinar ciência por um bom motivo. Sem um bom motivo, você acaba não ensinando nada.
Ele conta: “Tentei ensinar como resolver os problemas na física por tentativa e erro. É algo que as pessoas geralmente não aprendem. Comecei com alguns exemplos simples (…) e fiquei surpreso quando apenas 1 em 10 estudantes fez a tarefa. (…) Uma pequena delegação veio até mim , dizendo (…) que eles podiam estudar sem resolver os problemas, que eles já haviam aprendido aritmética. (…) É claro que eu já havia notado o que acontecia: Eles não sabiam fazer!”
“Depois participei de uma palestra na faculdade de engenharia (…) assim: Dois corpos são considerados equivalentes se… Os estudantes estavam todos sentados lá fazendo anotações (…). Eu era o único que sabia que o professor estava falando de corpos com o mesmo momento de inércia e era difícil descobrir isso”
“Depois da palestra falei com um estudante:
– Vocês estavam fazendo um monte de anotações. O que vão fazer com elas?
– Vamos estudar, teremos uma prova.
– E como será essa prova?
– Com perguntas como ‘Quando dois corpos são equivalentes?’
Então, você vê, eles podiam passar nas provas, ‘aprender’ essa coisa toda e não ‘saber’ nada, exceto o que eles tinham decorado”.
Parênteses: Vocês podem imaginar o rebuliço na ABC quando ele disse isso? Gostaria de ter estado lá. Fecha parênteses.
Quando li esse texto do Feynman, percebia o problema intuitivamente, mas ainda não tinha conseguido entender o que tinha acontecido. Como haviam chegado naquele ponto (que aliás, é o ponto aonde estamos até hoje)?!
Até que hoje, na aula da Rosita, lí o seguinte texto:
“Sem compreender o que se faz, a prática pedagógica é mera reprodução de hábitos existentes ou respostas que os docentes devem oferecer a demandas e ordens externas” (Sacristán e Gómez, 1998)
Nem olhei para os outros ítens. Esse era importante demais! Acho que tinha me lembrado do Feynman, só que ainda não sabia que tinha me lembrado. Esse é o problema que está antes de todos os outros! Qualquer um que assistiu aulas em uma faculdade sabe que ESSE é o maior problema do ensino no Brasil. Seja ele presencial ou a distância: O professor que não compreende o que faz acaba apenas ‘propagando hábitos existentes’! E consegue somente que seus alunos reproduzam hábitos existente.
A Rosita então chegou no grupo e disse que isso acontecia porque o professor sabe por que ensina. Ele tem, e segue, seus objetivos. Mas ele não sabe para que ensina, qual a finalidade daquilo. Ele ensina para formar cidadãos? Ou para que as pessoas saibam somar? O Feynman tentou dizer isso para os nossos cientistas há 50 anos.
O por que é a resposta que encerra, a ‘mera reprodução de hábitos existentes’. O para que é a pergunta que ‘abre caminho‘. O por que mantém o professor nos seus objetivos. O para que muda a atitude do professor.
Eu estudava por que. Estudava porque tinha de passar de ano, porque tinha que passar no vestibular. Não era um ‘bom motivo’ e por isso nunca me interessei pelos estudos. Na faculdade eu passei a estudar para que. Passei a estudar para poder mais. Sim, quem sabe mais, pode mais.
E é por isso que temos que ensinar. Para que todos possam poder mais.