Livro “A Ilusão da Alma” de Giannetti

Ganhei de presente o livro, com dedicatória e tudo, com a promessa de que leria e escreveria alguma coisa. Alguma coisa aí vai…

I

É uma novela autobiográfica. Ou um ensaio ficcional. Ou como disse Fernando Meirelles, um thriller ensaístico (voltarei a isso mais tarde). Conta a história de um professor de literatura especializado em Machado de Assis que se vê às voltas com um tumor cerebral bastante peculiar. Dividido em três partes específicas, 1. O tumor físico; 2. Libido Sciendi e 3. O tumor metafísico, narra como o aparecimento de um tumor no lobo temporal do protagonista transmuda sua visão de mundo. Mais, como esta visão fica refém de um tipo específico de filosofia chamado fisicalismo (mais, logo abaixo). Sim, é um livro sobre filosofia da mente e isso é bom e ruim.

II

O tumor físico. Achei o começo do livro interessante. Uma mistura de neurofisiologia com Machado me pareceu promissora. Apesar do narrador-protagonista dar bastante velocidade à prosa, a narrativa fica um pouco aborrecida. Metáforas um pouco forçadas (“riso de hienas num funeral”, alternância de explicações complexas (funcionamento do corpo caloso) com outras bastante batidas e clichês (dissecção da palavra melancolia, uma menção de que Aristóteles achava que o cérebro serviria para “esfriar” o sangue proveniente do coração – não seriam os pulmões?) e o excesso de citações, algumas um pouco fora de contexto (não nos deixando jamais esquecer que Giannetti lançou um livro só delas há 2 anos), fizeram a leitura um pouco laboriosa.

III


Libido Sciendi. Aqui o livro entra de cara no problema mente-cérebro e Giannetti se mostra um grande didático e autodidata. Coloca alguns problemas que já abordamos aqui, como nesta passagem:

“(…) não é coisa fácil para o ser humano apreender impessoalmente a si próprio e à maneira como vê o mundo; percebi que fazer isso exigia uma postura distinta daquela a que estamos habituados na vida comum. Precisava de algum modo me afastar e recuar de mim mesmo, alcançar um grau de distanciamento que me permitisse olhar-me de fora, o mais friamente possível, com o mesmo espírito com que um botânico coleta e examina variedades de orquídeas ou um musicólogo analisa a partitura de uma sonata.”

Ou seja, Rogozov. De importante, no capítulo 17 a menção do riquíssimo conto machadiano “O Espelho” (ver uma boa análise aqui) e a “teoria das duas almas” que será usada ao longo de todo o livro. No capítulo 19, o confrontamento anunciado na “orelha” do livro e no seu dorso: Demócrito vs Sócrates. A partir do Fédon de Platão e da narrativa da morte de Sócrates, o narrador-personagem coloca a decisão deste em não fugir e submeter-se às leis de Atenas como um conflito arquetípico entre o fisicalismo e o mentalismo. Demócrito de Abdera já foi taxado de materialista (tese de Marx), antinaturalista (tese de Clément Rosset) e fisicalista, este último termo especificamente relacionado à produção da mente pelo cérebro. Ele e seu mestre Leucipo, de quem pouco se sabe, resolveram o problema heráclito-parmenidiano com o atomismo. Tudo flui na aparência, mas os átomos que constituem todo o universo, continuam iguais, unos e indivisíveis. O fisicalismo, por sua vez, sustenta que tudo o que existe está e é sujeito às leis físicas o que implica que o que chamamos de “vontade”, “livre-arbítrio” e outras cositas são vícios de linguagem e, de fato, seriam apenas configurações neuronais que se deixariam perceber pela consciência. O mentalismo é a visão de que a mente é a real causa da vontade e que apenas a partir dela ocorrem os fenômenos in concert que determinam os comportamentos humanos (cobrir-se quando se tem frio, procurar comida quando se tem fome, etc). Tendo a decisão de Sócrates de tomar a cicuta que lhe fora sentenciada sido interpretada através dos milênios como uma decisão moral – tipicamente mentalista – na página 107, escreve-se:

“A perspectiva fisicalista contesta a versão mentalista do comportamento de Sócrates e oferece uma explicação alternativa. Os três componentes da ação do filósofo de não fugir mas aceitar a pena que lhe foi imposta precisam ser melhor analisados e devidamente entendidos. (…) E, por fim, como o juízo de valor e a vontade consciente – dois estados mentais – são capazes de acionar e pôr em movimento (neste caso em repouso) os músculos e tendões do filósofo – estados do corpo?”

E arremata:

“O homem moral socrático, argumenta a filosofia fisicalista, não passa de um subproduto fantasioso – e com forte componente narcísico – do homem natural atomista. Um arco-íris pré-newtoniano.”

Bonito, né? Mas isso joga a discussão para o lado mais profundo e escuro do lago: o elo causal entre o pensar e o agir. Há uma diferença entre pensar/querer e ter consciência de que se está pensando/querendo. O narrador cita então estudos de Benjamin Libet em “que a escalada de atividade neural – o evento físico no cérebro – precede no tempo não apenas a ação muscular, mas também o evento mental, ou seja, a própria consciência da decisão de agir” por uns parcos três décimos de segundo. Mas, precede. O resto é argumentação em cima disso e uma sensação de estarmos folheando uma revista, tantas as citações e cores com que se pintam o quadro.

IV

O tumor metafísico. Não é à toa que a terceira parte do livro começa com uma citação de Sören Kierkegaard. No capítulo 33, o narrador aventa a possibilidade de que o livro poderia ser um thriller e esse exato momento, seria o do crime. O capítulo 34 é o dramalhão do narrador por acreditar em algo extremamente terrível e, pior, nas suas consequências. Nesse meio tempo, tome William James: “meu primeiro ato de livre-arbítrio será acreditar no livre-arbítrio”; pau no Dawkins (adorei essa, hehe): “para quem crenças humanas são dóceis e podem ser ligadas e desligadas como interruptores de abajur”; além de Bentinho e Sócrates. Como consequências da ideia e mais terríveis do que ela própria temos que: “É ilusão tomar como causa aquilo que sobe à consciência como um ato de vontade, fruto da intenção de agir” e principalmente esta:

“Um estado mental (“preciso almoçar”) nunca é realmente produzido por outro estado mental (“estou com fome”); todos são produzidos por estados do cérebro. Quando um pensamento parece suscitar outro por associação, não é na verdade um pensamento que puxa ou atrai outro pensamento – a associação não se dá entre os dois pensamentos, mas sim entre os dois estados do cérebro ou dos nervos subjacentes a esses pensamentos”.

Trocando “nervos subjacentes a esses pensamentos” por “núcleos neuronais” ou coisa parecida, fica um pouco melhor. Segue-se um exercício inapelável de lógica:

“A ideia é tremenda, mas basta um silogismo para resumi-la. As leis e regularidades que regem o mundo são independentes da minha vontade (premissa maior); a minha vontade é fruto das mesmas leis e regularidades que regem o mundo (premissa menor); logo, a minha vontade é independente da minha vontade (conclusão).”

Isso nos torna algo como autômatos, ensopados de serotonina e dopamina, cujas concentrações determinam minha vontade de transar com minha mulher hoje ou comer um pizza de calabresa. O narrador se apavora com isso e também com o fato de que o médico que o operou, não está nem aí para essa vãs filosofias. O livro melhora substancialmente. Algumas tiradas geniais e citações bem colocadas, trazem o leitor de volta à vida do personagem que fica, pasmem, bem mais interessante, no papel de robozão. Talvez uma contradição mesma do livro.

V

Numa mistura de “O Mundo de Sofia” com “Trem Noturno para Lisboa” e pitadas de insanidade de “Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas“, o livro tem um final interessante e uma provocação: após mostrar que “lutar” contra o fisicalismo é entrar em uma luta imaginária, o narrador instiga o leitor a refutá-lo. Tentarei discutir um pouco mais sobre isso nos próximos posts e talvez se mostre o bom e o ruim, a dor e a delícia, de discutir filosofia da mente.

Para um resumo de uma palestra de Giannetti sobre o livro ver aqui.

Atualização

Veja o excelente post no Amigo de Montaigne, sobre o “Erro de Giannetti”.

A Ilusão da Alma

Fumar e o Vício da Morte

“A fumaça contém toda uma estética do efêmero, como as bolhas de sabão, embora aquela, ao contrário destas, excite também o paladar. Temo que, ao fim e ao cabo, tudo vá acabar em câncer; mas é um medo longínquo ainda, mera possibilidade. Não importa. Sem querer ser perverso, a própria idéia de que embrulhado neste prazer há um impulso de morte, de finitude, apenas o acentua mais, dá-lhe profundidade e textura. Se morri um pouco agora à noite, foi uma boa morte. Bela.”

Outro dia, escrevi um post onde deixei umas coisas a discutir e aqui as retomo, ao menos em parte. A pergunta é: “seria o médico um aconselhador crônico do paciente do tipo ‘não fume’, ‘não beba’, ‘faça sexo seguro’; ou o médico seria alguém para nos tirar de enrascadas ético-morais com repercussões orgânicas nas quais nos metemos irremediavelmente pelo puro fato de vivermos?”

Sou contra a ideia do médico como um tirano comportamental, cheio de conselhos e ordens, impositor de normas de conduta. Também não acho correta a postura do médico permissivo, que acaba por estimular o paciente a cometer certos “delitos” contra sua própria saúde. São sintomáticas as recomendações de sociedades médicas que têm aconselhado os médicos a não estimular o consumo de vinho com objetivo de diminuição do risco cardiovascular. Entretanto, a prática nos obriga a tomar decisões, nem sempre as que os livros e consensos recomendam.

Antônio é um engenheiro de uma grande multinacional do setor tecnológico. Tem 60 anos e esclerose lateral amiotrófica. Tem enormes dificuldades para andar e realizar tarefas simples do dia-a-dia. A doença o obriga a usar quase que constantemente um dispositivo de ventilação mecânica que insufla seus pulmões por meio de uma máscara nasal. Antônio está de tal forma adaptado ao dispositivo que consegue trabalhar em casa, tendo todo o apoio da empresa. Aprendeu a falar usando o aparelho, a comer e até, a fazer amor! Com tanta comodidade, ele não se entusiasmou a parar de fumar. No ano passado, teve um infarto agudo do miocárdio. Sua família tem uma predisposição enorme à doença da artéria coronária e com ele não foi diferente. Após a internação na qual colocou um stent em uma das artérias do coração, eu dei um “chega-prá-lá”. Aleguei que não bastasse o diagnóstico neurológico que o obrigava a usar um aparelho de ventilação a maior parte do dia, acabara de ter um infarto. Nenhum ser humano racional continuaria fumando depois disso. A esposa concordou comigo e, após muita pressão, ele resolveu parar com o vício. Mais ou menos…

As consultas seguintes foram muito ruins. Ele chegou a dizer que sua vida acabara. Eu perguntei como alguém poderia basear a vida inteira em um bastão de nicotina. Ele disse que eu não entenderia. Eu apelei para a estatística e para a esposa… Passado um par de meses, sua mulher me liga. “Está muito deprimido. Nunca o vi assim. E se deixássemos que fumasse uns dois ou três…”

É a hora de reler o excerto acima e, como lição de casa, meditar sobre os termos “boa morte”, “bela (morte)”. Meditar sobre o que é o trágico na existência humana e porque essas coisas dão textura e profundidade a certos tipos de sensação que a cognição de nosso sistema nervoso – nossa melhor ferramenta de sobreviver, testada em milênios e milênios de luta feroz – insiste em chamar de prazer

Rosset, Acaso e a Tragédia do Ser

De vez em quando ouvimos alguém dizer: “No meu tempo, isso não era assim! O mundo está perdido…” e coisas semelhantes. Esse saudosismo, uma sensação de que as coisas vêm piorando progressivamente, é um sentimento que nos acomete volta-e-meia. Alguns dizem que é a “idade” que nos deixa assim. Outros, que somos pessimistas (o que não é totalmente correto, como vou mostrar). Mas, o que estaria por trás disso? Assumindo como “moderno” aquilo que está presente em nosso cotidiano, o que subjaz a essa nossa crítica à modernidade? A pergunta poderia também ser: “Por que o presente nos causa, muitas vezes, essa sensação de que é uma degeneração de algo que tínhamos em tão alta conta?” Seja a poluição do planeta (a natureza), seja as relações humanas (a sociedade), seja jogar futebol por amor à camisa (a moral), exemplos cotidianos desse sentimento.

A facticidade do presente é poderosa. Chega a ser aterrorizante. Não é uma memória construída de sentimentos do passado, filtrada para que eu consiga sobreviver. Não é uma esperança do futuro projetada para que eu não pereça. (E aqui sim, se essa projeção for negativa, serei pessimista; no caso contrário, tendo uma visão positiva do futuro, serei otimista.) A facticidade do presente é palpável e nossa maior fonte de certezas. Por que insistimos, ao analisar determinadas situações, em denegá-la? Em descaracterizá-la e desvalorizá-la julgando uma hipotética situação passada mais adequada ou melhor do que a atual?

A resposta é que assumir o presente é problemático e perigoso. O presente e sua produção interminável de fatos, a que chamamos inocentemente de realidade, nos levam para bem longe de nosso mundinho ideologizado no qual queremos e precisamos acreditar, seja esse mundo objeto de uma razão instrumental que utilizo para prever fenômenos e criar tecnologia; seja um “outro” mundo que conhecerei depois de morrer; seja qualquer tipo de mundo construído de forma a dar abrigo e aconchego para um tal ser-para-a-morte. E aqui preciso exercitar meu desprezo pela palavra fato, tão cara a cientistas e seres humanos em geral, utilizada para “bombar” argumentos e “vencer” discussões. Da palavra latina factum resultam dois sentidos: o que existe (o facto real, em oposição à ilusão e ao sonho) e o que é fabricado (de onde vem fábrica e factory, o artificial, em oposição à natureza).

O paradoxo do presente está então, em nos afogar com fatos que se por um lado, nos dão uma dimensão do real, por outro, são instantâneos e artificiais. Instantâneos, porque o que se apresenta é a profusão de sucessões. Artificiais, porque são anti-naturais, desligados de uma essência passada e futura. Isso é o que alguns chamam de devir. Seria preciso, para sobreviver a esses tsunamis um tipo de boia? Algo em que se possa agarrar, de preferência, algum tipo de terra firme, mesmo que seja uma miragem?

Reconhecer o presente é aceitar a instantaneidade e a artificialidade do fato. Em outras palavras, é afirmar o acaso. O acaso nos é por isso, impensável; e humilhante. É dessa postura frente ao acaso que deveria surgir nossa felicidade. Mas que fique claro que essa fórmula é diferente da moral/religiosa: “sede primeiro humildes, e vereis em seguida a felicidade”. A fórmula jubilatória é: “sede primeiro feliz, e sereis necessariamente humildes”. Segundo Clement Rosset, “a segunda fórmula é mais segura que a primeira, pois a alegria garante a humildade, enquanto a humildade não garante a alegria.” A mais profunda sabedoria não recomenda ser primeiro humilde, mas feliz: Amor Fati.


Referência

Clément Rosset. A Anti-Natureza. Elementos para uma Filosofia Trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. Tradução Getúlio Puell.Páginas 298-301.

Perguntinha Brega

Se a medicina é um tipo de arte – e eu acho que essa afirmação tem lugar mesmo em nossos dias -, me fiz a seguinte pergunta. Se toda arte tem um correspondente vulgar, e que muitas vezes é difícil de diferenciar, o que é o vulgar da medicina? Ou também, é possível uma medicina chique? E o que seria isso?

Diagnóstico e Intuição

Muita gente pergunta como é fazer um diagnóstico clínico. Como elevar o “particular” de um paciente no consultório ou hospital ao “universal” da doença descrita no livro. O diagnóstico clínico é o momento em que o médico tenta identificar a doença através da história clínica (ativa ou passiva), procurando sinais e/ou interpretando exames subsidiários, com o desafio de não perder de vista, o próprio paciente, devido ao caráter psicológico e social que as enfermidades apresentam segundo a definição do prof. Milton Martins [1]. Não é difícil entender que o ato do diagnóstico clínico é indissociável da atividade racional ou razão. Podemos considerar, grosso modo, que a atividade racional possui duas modalidades básicas: a intuição (ou razão intuitiva) e o raciocínio (ou razão discursiva). O post anterior, tentava esboçar por meio de problemas simples, a diferença cognitiva entre os dois. Segundo Chauí [2], razão discursiva, como o próprio nome indica, discorre por uma realidade para chegar a conhecê-la, isto é, realiza vários atos de conhecimento até conseguir captá-la. Em uma sucessão de esforços de aproximação (por vários métodos) chega-se ao conceito da realidade que se quer conhecer, no nosso caso, a doença do paciente. A razão intuitiva, ao contrário, consiste num único ato do espírito, que, de uma só vez, capta por inteiro e completamente o objeto. O ato do diagnóstico clínico apesar de sua importância óbvia, por razões inexplicadas, não faz parte da grande maioria dos livros-texto de medicina. Quando abordado, é dada sempre maior importância à razão discursiva – o raciocínio clínico. O objetivo primordial desse post é chamar a atenção para o fato de que a intuição ou razão intuitiva é, no mínimo, tão importante quanto o raciocínio clínico para se chegar a um diagnóstico. Além disso, só após o reconhecimento da importância da intuição no ato do diagnóstico clínico poderemos estudá-la, disciplinando-a e colocando-a a favor do trabalho do médico, como já foi, exaustivamente realizado com sua contrapartida cognitiva, o raciocínio clínico. Talvez a principal causa destas distorções sejam interpretações do modelo de estratégias diagnósticas proposto por David Sackett [3]. Com a publicação do excelente livro Clinical Epidemiology em 1985, o modelo foi ganhando contexto e corpo e vem se popularizando principalmente entre os clínicos, sendo incorporado gradativamente ao ensino da prática médica. Em linhas gerais, segundo Sackett, seriam quatro as estratégicas básicas para chegarmos a um diagnóstico:

1) Reconhecimento de padrão (ou método do gestalt). É a percepção instantânea de que o quadro clínico do paciente é indistinguível de um padrão previamente aprendido de síndrome ou doença. O exemplo utilizado pode ser uma criança com síndrome de Down ou o “fácies” característico da doença de Graves (um forma de hipertireoidismo em que os olhos ficam saltados).

2) Método do Algoritmo. No qual o processo diagnóstico progride de acordo com uma seqüência lógica de vias pré-formatadas dicotomizadas por perguntas e respostas do tipo sim/não ou presente/ausente. São os fluxogramas de diagnóstico. O exemplo mais característico, para usar algo hoje muito em moda, são os algoritmos de trabalho do Advanced Cardiac Life Support (ACLS). Por intermédio desses algoritmos, o médico sob a pressão de uma situação crítica, pode chegar a um diagnóstico de embolia pulmonar ou pneumotórax hipertensivo.

3) Método da Exaustão. Esse método ficou conhecido por esse nome pelo fato do médico não se preocupar em raciocinar sobre o dado que está por receber de seu paciente, ocupando-se apenas de acumular exaustivamente, o maior número possível de informações. A estratégia da exaustão implica no fato de que o diagnóstico deva ser feito em duas etapas. Primeiro coleta-se tudo que poderia ser pertinente ao caso depois, e apenas depois disso, procede-se à segunda etapa que consiste em pinçar as informações potencialmente úteis para se fechar um diagnóstico. Foi assim que aprendi a “tirar história” dos pacientes.

4) Método Hipotético-Dedutivo. Consiste na formulação de uma pequena lista de hipóteses seguida de manobras clínicas (história e exame físico) e paraclínicas (radiografias e exames laboratoriais) visando à redução dramática dessa pequena lista e finalmente ao diagnóstico mais provável. Ao mesmo tempo em que as hipóteses são geradas, o médico vai simultaneamente realizando pequenos “bits” de procura por dados e sinais físicos que suportem sua hipótese. Essa estratégia é utilizada pela grande maioria de clínicos experimentados inconscientemente e parece ser algo inerente ao raciocínio investigacional humano, pois, mesmo alunos do primeiro ano da faculdade de medicina, submetidos ao mesmo estudo, demonstraram o mesmo tipo de comportamento.

Podemos analisar as estratégias diagnósticas sob a ótica de quem procura por indícios de intuição nelas. De imediato, o reconhecimento de padrão parece ser a categoria que melhor preenche a definição de razão intuitiva: captação de uma só vez da essência do objeto a ser conhecido, como um ato único do espírito. Entretanto, em análise mais cuidadosa percebemos que o reconhecimento de padrão é um re-conhecimento. O indivíduo deve ter “conhecido” a doença pelo menos uma vez antes. Normalmente, isto se dá através de outro médico, o que o torna refém do ponto-de-vista de um terceiro. Que dizer então, de doenças que nunca vimos antes? Em se tratando de razão intuitiva, nos permitimos intuir um conceito que não temos, mas não costumamos usar a intuição, até por uma questão de treinamento profissional, para conhecer uma doença que nunca vimos! Esse procedimento seria um “gerador” de doenças na dependência da variedade de seus quadros clínicos, e de fato, era assim que ocorria antes. Portanto, o reconhecimento de padrão é uma estratégia que parece mais se utilizar de padrões pré-formatados de entidades patológicas. O diagnóstico é então, efetuado por simples comparação não se constituindo assim, num meio para utilização da razão intuitiva.

Se por um lado, as estratégias do algoritmo e da exaustão são quase que abordagens mecanicistas do ato diagnóstico, por outro, a estratégia hipotético-dedutiva envolve uma etapa de geração de hipóteses que parece ter algo de intuitivo. O próprio Sackett faz a pergunta crucial: de onde vêm as hipóteses? Em apenas um parágrafo, a resposta de E. J. Moran Campbell, o grande fisiologista respiratório: “muitas, se não a maioria (das hipóteses), provém de nossa visão de rótulos diagnósticos como idéias explicativas que amarram nossa compreensão da biologia humana às enfermidades de nossos pacientes. Também, e especialmente com a experiência, muitas hipóteses saltam aos olhos por reconhecimento de padrão de um tipo que gera possibilidades múltiplas em lugar de uma única, de muito alta probabilidade”. Não há maiores comentários sobre o assunto no livro apesar da beleza e profundidade da frase. A primeira oração refere-se à tensão que é quebrada quando fazemos um diagnóstico (ou pensamos que fazemos). Cuidar de um paciente sem diagnóstico é um dos fatores de maior estresse psicológico para um médico. Daí a tensão que faz gerar hipóteses. Quando uma delas se encaixa (ou parece se encaixar), o médico se sente em território conhecido e fica seguro de si e de seus atos. A segunda oração merece um pouco mais de reflexão. Diz ela que com a experiência, algumas hipóteses são criadas por reconhecimento de padrão, mas de um tipo especial, pois ao invés de uma hipótese de alta probabilidade como já discutido acima, gera várias que necessitam ser
demonstradas através de uma atividade intelectual. Seriam a geração de hipóteses e sua posterior dedução apenas uma seqüência de tentativas frustradas de reconhecimento de padrão na qual se necessitam mais dados para sua comprovação? Para responder a essa pergunta, precisamos conhecer um pouco mais sobre o mecanismo gerador das hipóteses. Há evidências [4] de que uma hipótese diagnóstica é formulada antes do primeiro minuto de uma consulta. E, aproximadamente 6 minutos após ouvir a queixa principal do paciente, um médico bem treinado é capaz de formular uma hipótese diagnóstica que em 75% das vezes é o diagnóstico correto. Ora, todos esses achados lembram muito um processo intuitivo. A intuição, por sua vez, pode ser o ponto de chegada, a conclusão de um processo de conhecimento, e pode também ser o ponto de partida de um processo cognitivo. O processo de conhecimento, seja o que produz uma intuição, seja o que parte dela, constitui a razão discursiva ou o raciocínio. Pode-se então, imaginar que a estratégia hipotético-dedutiva parte de uma intuição e através do raciocínio chega a confirmação desta intuição ou a uma nova, com outputs de hipóteses diagnósticas como mostra a figura. Da maneira como vemos a estratégia hipotético-dedutiva, a intuição é, no mínimo, tão utilizada quanto raciocínio clínico para se atingir um diagnóstico.

[1] Nunes, MPT & Martins, MA. História Clínica. Semiologia Clínica. 2001. páginas 11-19.
[2] Chauí, M. Convite à Filosofia. 2000.
[3] Sackett D, Haynes B, Guyatt G, Tugwell P. Clinical Epidemiology. A basic science for clinical medicine. páginas 3-18.
[4] Barrows HS, Norman GR, Neufeld VR, Feightner JW. The clinical reasoning of randomly selected physicians in general medical practice. Clin Invest Med. (5) 1:49-55. 1982.

Saúde, Doença, Êxito Técnico e Sucesso Prático

ResearchBlogging.orgUma série de posts do Cretinas (aqui e aqui) servirão como mote para uma delimitação que há tempos eu gostaria de ter feito. Nos posts é feita uma crítica sobre os gastos do SUS com métodos “alternativos” de tratamento como homeopatia, acupuntura, tai-chi-chuan, etc. Longe, mas muito longe mesmo, de defender o governo quanto a algumas políticas de saúde adotadas, e de defender tais práticas “alternativas” sobre as quais já confessei minha ignorância (aqui e aqui), acho que chamar esse tipo de atitude de desonestidade intelectual é “pegar um pouco pesado”. Em particular, pelo fato de que, na minha opinião, há uma confusão conceitual entre saúde e doença na base desse raciocínio e que será o motivo desse post.

(Antes de mais nada, ninguém perguntou aos pacientes submetidos a esses programas se eles sentiram melhor ou não. Era a primeira coisa a ser feita antes de qualquer tipo de crítica. O acolhimento que determinadas práticas dentro de um contexto do “cuidado em saúde”, proporcionam é, por si mesmo, terapêutico. Pelo que pude apurar (informalmente), houve aumento dos gastos em decorrência do aumento enorme das solicitações desse tipo de programa. Ver o outro lado é fundamental.)

Mas façamos um exercício – como Zé Ricardo Ayres fez – para tentarmos aumentar nossa compreensão sobre o binômio saúde-doença. Se perguntarmos a um grupo de pessoas “você se sente saudável?” quantos responderiam “sim”, quantos “não” e quantos não saberiam dizer, é difícil de estimar. Se, por outro lado, perguntássemos “você está doente?” as respostas seriam presumivelmente mais uniformes. A ideia aqui será demonstrar que saúde e doença fazem parte de universos bastante diferentes, falam de coisas diferentes e de maneiras inteiramente diferentes. Alguém com diabetes controlado ou soropositivo para o HIV pode responder que se sente saudável apesar de ter de fato, uma doença. Por outro lado, um indivíduo em quem não se diagnostica nenhuma doença, pode não ter a vivência da saúde. A alguém que respondesse “sim” à pergunta se estava doente, poderíamos continuar perguntando “mas que tipo de doença você tem?”. Entretanto, ao que respondeu “sim” à pergunta se estava saudável, não faz sentido perguntar “mas que tipo de saúde você tem?”. Talvez, fosse mais racional perguntar “o que você quer dizer com isso?”. Já, perguntar ao “doente” “o que você quer dizer com estar doente, ou estar diabético ou estar com HIV?” é que não faz sentido! O significado de “diabetes” e “HIV” está validado em qualquer discussão sobre o assunto. Isso quer dizer que tem validade  intersubjetiva (entre sujeitos). Dito de outro modo, no caso do diabetes, uma “racionalidade de caráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogo que o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicose circulante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alterações morfofuncionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraqueza até a morte.” O lado da saúde, não tem a mesma validação. Existe, portanto, uma assimetria enorme de legitimidade de discursos, favorecendo o que se chamou de discurso casual-controlista da abordagem biomédica que predomina amplamente. Essa predominância é que permite a algumas correntes tachar as atuais práticas de saúde como “desumanizadas” por um lado e, por outro, abre a perspectiva a críticas sobre a cientificidade de determinadas políticas, em especial, às relacionadas à medicinas alternativas, como fez o Cretinas.

É preciso separar os conceitos de êxito técnico e sucesso prático. Êxito técnico refere-se à razão instrumental da ação – por exemplo, se uso um vasodilatador para redução da pressão arterial, consigo diminuir o risco de acidentes cardiovasculares, ponto final. Sucesso prático diz respeito à atribuição de valores e implicações simbólicas, relacionais e materiais do fato de um paciente ser hipertenso. O que significa para esse paciente assumir a identidade de hipertenso? Nas palavras de Ayres, “êxito técnico diz respeito a relações entre meios e fins para o controle do risco ou dos agravos à saúde, delimitados e conhecidos pela biomedicina. O sucesso prático diz respeito ao sentido assumido por meios e fins relativos às ações de saúde frente aos valores e interesses atribuídos ao adoecimento e à atenção à saúde por indivíduos e populações”. As relações são objeto da razão instrumental e da ciência médica, já sabemos. Já, as ações de saúde causam efeitos nos indivíduos e os significados desses efeitos – o sentido – são objeto de uma razão prática. É aqui que a coisa se complica. A razão prática é eminentemente ética: se preocupa com os meios para atingir os fins. Digo a um paciente “o Sr. é hipertenso, precisa tomar esse remédio!” Ele poderia responder “Dr., não tenho dinheiro para tomar esse remédio; ou, não quero tomar esse remédio; ou ainda, não sou hipertenso!” Como proceder? Deveria mostrar a esse paciente um artigo dizendo que é melhor ele tomar a medicação? Um êxito técnico não garante o sucesso prático. Cabe discutir se o contrário, o sucesso prático sem sua contrapartida instrumental do êxito técnico, é lícito ou não. Entretanto, só essa discussão já valeria todo o trabalho do post, pois sua simples instauração reconhece que a medicina não é redutível à ciência médica.


Fonte: Ayres, J. (2007). Uma concepção hermenêutica de saúde Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17 (1) DOI: 10.1590/S0103-73312007000100004

Schopenhauer, Rogozov e Apêndices

ResearchBlogging.orgFrequentemente me perguntam se eu me trato ou trato meus parentes mais próximos. Digo sempre que não gosto e evito ao máximo, mas que se alguma emergência surgir, estarei lá, de prontidão. Sempre. É preciso, como já comentamos, um certo distanciamento para “objetivar” um indivíduo e considerá-lo um paciente. No caso de parentes próximos, esse distanciamento fica mais difícil.

Que dizer de si mesmo? Quanto de distanciamento é possível conseguir de si mesmo? Schopenhauer considerava o corpo uma encruzilhada. Na impossibilidade de conhecer a “coisa-em-si”, tudo que conhecemos é mediado pelo nosso corpo e se torna uma representação em nossa consciência. Mas como conhecemos nosso próprio organismo? Se por um lado, não podemos conhecer a realidade dele em si, por outro, o sentimos e vivemos nele como nenhum outro ser pensante no universo. Isso nos permite uma “visão” privilegiada do nosso corpo: percebemo-lo de forma imediata. Dessa forma, segundo Schopenhauer, ele se torna o ponto de partida do conhecimento. Mas, e quando esse corpo, ponto de partida, é, ele mesmo, objetivado, numa reviravolta metafísica, e submetido ao escrutínio da razão e da técnica que ele proporciona?

* * *

Esse rapaz bonitão da foto é Leonid Ivanovitch Rogozov. Em 5 de Novembro de 1960, ele embarcou em Leningrado na sexta expedição soviética para Antártica. Tinha 27 anos e interrompeu sua carreira acadêmica (uma dissertação sobre câncer de esôfago) para se alistar numa aventura. Depois de 36 dias, chegaram ao local programado. Iniciaram então, a construção de uma base militar chamada Novolazarevskaya que ficou pronta 9 semanas depois. O navio deixou então 12 tripulantes que deveriam passar o inverno na base antártica. Rogozov era o único médico do grupo (não havia enfermeiras, nem mesmo técnicos de qualquer espécie).

No dia 29 de Abril de 1961, Rogozov sentiu-se mal. Náuseas, vômitos, febre baixa e dor abdominal que logo localizou-se no quadrante inferior direito do abdome. Rogozov diagnosticou-se uma apendicite aguda. Tomou antibióticos, analgésicos e antitérmicos sem resultado. Compressas produziam alívio fugaz. Ele sabia: “não há tratamento clínico para doenças cirúrgicas”. Todas as tentativas nesse sentido só conduzem à catástrofes. Na impossibilidade de retornar e/ou de obter qualquer tipo de auxílio (hoje temos robôs que operam à distância), ele treinou 3 de seus colegas (um metereologista, um mecânico e o chefe da base) em procedimentos básicos como aplicar medicamentos e o que fazer em determinadas situações, esterilizou instrumentos e se preparou para operar-se.

Ele realizou uma anestesia local e após 15 min, fez uma incisão (me pareceu, pela descrição, uma incisão clássica no ponto de McBurney) de 10-12 cm e começou a procurar o apêndice. Ele operava sem luvas porque tinha que trabalhar basicamente dependendo de seu tato. Depois de 30-40 min, seus assistentes notaram respirações rápidas, palidez cutânea e sudorese, indicando que Rogozov estaria com vertigens. Como a visão era muito prejudicada, ele frequentemente tinha que levantar a cabeça para tentar ver o que estava fazendo, o que foi ficando cada vez mais difícil. A cirurgia durou 1 h e 45 min. Ele mesmo terminou toda a sutura. O apêndice estava necrótico. Ao final, ensinou seus assistentes a lavar a ferida e a realizar os curativos, tomou pílulas para dormir e descansou. No dia seguinte, teve febre 38,1 C, continuou a tomar antibióticos e foi melhorando lenta mas progressivamente. Ao cabo de 2 semanas, ele estava apto a trabalhar normalmente. Voltou à Rússia e ainda teve tempo de casar e ter um filho médico que escreveu sua história.

* * *

O que nos ensina a experiência radical de Leonid Rogozov? Quão poderosa é a capacidade de abstrairmos nossa realidade? Mais que a realidade, o próprio instrumento sensitivo que a proporciona, o corpo que somos? Abstrair nosso corpo é como abstrair a própria essência do humano. Ou nossa essência é nossa própria capacidade de abstração?

Rogozov, V., & Bermel, N. (2009). Auto-appendectomy in the Antarctic: case report BMJ, 339 (dec15 1) DOI: 10.1136/bmj.b4965
Fotos modificadas do artigo original. Sem permissão (por enquanto).

Sobre Fatos

Joker shadow by ita145117.“Me ensinaram que eu tenho um destino. Não sabiam que eu era uma fatalidade.”

@millorfernandes [no Twitter]

Achei esse texto apropriado às discussões recentes, a saber, o de entender algumas diferenças entre a interpretação dos fatos quando dentro de um contexto que tem o homem como objeto. É um pequeno excerto de um livro bastante interessante chamado “Trem Noturno para Lisboa” de Pascal Mercier [Record, 2009. Tradução de Kristina Michahelles]. Ainda comentarei mais sobre esse livro.

As Sombras da Alma

As histórias que os outros contam sobre nós e as histórias que nós mesmos contamos – quais delas se aproximam mais da verdade? É tão certo que sejam as próprias histórias? Somos autoridades para nós mesmos? Mas não é essa a questão que me preocupa. A verdadeira questão é: existe, nessas histórias, alguma diferença entre certo e errado? Nas histórias sobre coisas exteriores, sim. Mas quando tentamos compreender alguém em seu interior? Esta viagem algum dia chega a um fim? Será a alma um lugar de fatos? Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?

“Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?” é de uma crueza nietzscheana. O pequeno parágrafo junta teorias psicanalíticas, a formação do “eu” e a fundamentação da moral no sujeito. Qualquer consulta médica que se preze começa com o que se convencionou chamar anamnese (literalmente, não não-lembrar). Um paciente produz uma história sobre seu sofrimento, mas o médico deve estimulá-lo a produzir uma narrativa sobre si. Seu sofrimento não faz sentido se não for assim. Mas, seres humanos são bons para falar de coisas, não deles mesmos. A descrição formal das “coisas” permitiu o aparecimento da ciência. As descrições de si, são “loucuras” psicanalíticas, metade pseudociência, metade religião, com linguagem rebuscada e imprecisa, que frequentemente não chegam a lugar algum. É mais fácil falar dos outros.

O escândalo da vida é um fato. O aparecimento da consciência, uma fatalidade. Millôr sabe das coisas.

Foto: L’ombra burlona de ita145117

O Caramujo e a Estrela

“Compreensão, nas Humanidades, é compreender-se”
Hans-Georg Gadamer
“A seleção natural pode ser pensada como um processo puramente *mecanicista*.”
Roberto Takata
Nas ciências naturais o objeto de estudo do homem é bastante bem delimitado e usa um arcabouço teórico e lógico ancestral. Podemos dizer que essa abordagem produz resultados que se traduzem em conhecimento instrumental e tecnologia. Se estudamos um caramujo ou uma galáxia sabemos exatamente que o objeto de nosso estudo é bastante outro que nós mesmos e nos apropriamos de suas características de acordo a matriz conceitual que aplicamos. Mesmo na medicina, ao estudar as moléstias e o modo de funcionamento do organismo humano na doença, “objetivamos” nossos orgãos, nossa fisiologia, nossas queixas de modo a aplicar os conhecimentos adquiridos de outros animais e de outros seres humanos de maneira sistemática e conseguir os resultados esperados. A objetivação que permite às ciências naturais fazer com que um estudante de anatomia olhe para um cadáver humano e o esfole com “fins científicos” depende de que o estudante não se veja nele (o que no início, não é lá muito fácil) ou seja, depende de um distanciamento. Para objetivar algo é preciso inicialmente que se materialize um sujeito. Da relação sujeito-objeto surgirá o conhecimento. O sujeito se apropria da forma como o objeto se lhe expõe.As ciências ditas “humanas” ou históricas (que Aristóteles chamava de Política, Dilthey, de Geistwissenschaften – literalmente, ciências do espírito – e Kant, de razão prática) têm um status epistemológico diferente. Foi o próprio Wilhelm Dilthey quem talvez primeiro tenha tido a percepção primordial. As ciências do espírito implicam uma relação histórica. Eu “sou” mas antes de mim, há uma história que me precede. Nas ciências naturais o homem se distancia pois estuda fenômenos distintos dele. Bastante influenciado pelo neokantismo, pelo positivismo e pelos grandes historiadores alemães do século XIX, Dilthey ficou fascinado por essa oposição entre as explicações empíricas das ciências naturais e a compreensão movediça da história. Explicar e compreender são coisas bem diferentes. Eu explico o sistema respiratório do caramujo; explico o movimento das estrelas, explico até sintomas psicológicos humanos, mas posso não compreendê-los. O que faz esse caramujo aí? Por que essa estrela? Como posso amar essa mulher e não Gisele? Não obstante, posso compreender o choro e o gozo de outros homens! (Aliás, nisso se baseia toda a literatura).http://marciliomedeiros.zip.net/images/Estrela5pontas.jpgAs coisas têm trilhado caminhos diferentes desde então. Exceto por algumas áreas de fronteira que, como toda boa área de fronteira, fazem-se presentes pela tensão existente entre os dois lados. Uma área nítida de tensão é a medicina. Dizem que a medicina é a “mais científica das humanidades e a mais humana das ciências”. Sua vinculação à prática configura-lhe um status epistemológico incerto: intuição e algoritmo, acaso e necessidade, desordem e coerência, população e indivíduo. É esse o caminho dos médicos: um trapézio por sobre as fronteiras. Quanto mais facilmente o trapezista passa de uma barra a outra, melhor o médico. Alguns até fazem piruetas.Uma outra área fronteiriça é a grande clareira aberta pela teoria da evolução. A publicação d’ “A Origem das Espécies” há 150 anos causou uma revolução nas ciências naturais. Provocou também, tal qual a teoria psicanalítica de Freud, uma nova forma de nos vermos. Uma nova história. A apropriação da teoria da evolução pelos cientistas foi feita de acordo com o distanciamento peculiar do modo de ser científico e produziu (e produz ainda) muitos frutos. Do lado humanístico do problema, a nova forma de ser-no-mundo foi uma paulada no pensamento metafísico. A Inglaterra vitoriana era também a capital da teologia natural. Estudava-se “história natural” para mostrar como Deus era sábio em seus desígnios e exaltar a beleza da Natureza por Ele criada. Não é exagero dizer que uma boa parte do “longo argumento” darwiniano foi dedicada desmontar o reconhecidamente admirado raciocínio de William Paley. Sua eficiência em fazê-lo foi um dos pilares da polêmica que se seguiu. Se considerarmos que a teoria da evolução é apoiada no gradualismo, na variação das espécies e na seleção natural, temos um “mecanismo” de produção de novas espécies e seres – nós, inclusos – que funciona independentemente de qualquer desígnio, projeto ou mesmo, vontade metafísica. A explicação empírica e natural é o mecanismo. A compreensão histórica da mudança do ser-no-mundo é a contingência da ausência de projeto.

Sim. O acaso permeia a teoria da evolução e Jacques Monod o intuiu. O Nobel de Medicina não o aliviou das críticas de seus pares. Poucos entenderam que ele falava do outro lado da fronteira que lhe concedera o prêmio: “O puro acaso, só o acaso, liberdade absoluta mas cega, está na raiz do prodigioso edifício da evolução”.

Caos e Ruína

Num mês em que comemorou-se 150 anos do lançamento da primeira edição d’ “A Origem das Espécies” (o leitor(a) pode ver excelentes revisões no SBB como pex, DE, CB, Psicológico, Marco Evolutivo e Gene Reporter, supercompletas), resolvi falar da razão (uma das!) da minha admiração pelo pensamento darwiniano.

Darwin é um poeta do acaso. Ele produziu a maior e mais demolidora ideia contra o conceito clássico de Natureza, que pode ser entendido como uma instância primitiva de interações entre os seres. Darwin criou uma história que, se contada da forma correta, dá conta de toda a brutal variedade biológica do planeta. Mas isso não é o que mais impressiona, nem o que incomodou o pensamento tradicionalista. O desconforto causado pela teoria da evolução vem do fato, no meu modo de ver, de ela ser uma apologia do acaso. Esse mesmo acaso que é a mais humilhante e incômoda ideia imposta ao homem desde o aparecimento de sua consciência e que tem na teoria da evolução, sua mais bem acabada e venal sinfonia. A história da filosofia poderia então, ser dividida entre filósofos naturalistas e anti-naturalistas, que podem ser chamados também de artificialistas ou partidários do artifício. Segundo Clement Rosset [1], fazem parte deste último grupo, nomes como os sofistas, Empédocles, os atomistas, Lucrécio, Maquiavel, Montaigne, Hume, Hobbes, Nietzsche e eu incluiria, Richard Rorty. “Somente a ideia de acaso permite a passagem do inerte ao vivo, sem que se recorra a um referencial metafísico”.

O mundo de Darwin se opõe ao de Platão. Platão desvaloriza o mundo sensível em detrimento a um onde moram as ideias primordiais e perfeitas. Ora, se somos criados no esplendor da perfeição, esse excesso de êxito só nos trará a possibilidade de degradação. Não é possível melhorar o que é perfeito. É preciso cuidar apenas, para que não se degrade. Segundo Rosset, toda a filosofia de Platão gira em torno desse esforço para evitar a corrupção de algo que era resplandescentemente perfeito. Por aqui, ainda vemos vestígios da perfeição por exemplo, nos corpos dotados de beleza, nos raciocínios claros e nas virtudes. Então, o mundo sensível de Platão, esse mundo que vemos, vivemos e interagimos, é um mundo em ruínas. Um mundo que olha o passado, lamenta o presente e aspira a outro mundo futuro.

O mundo de Darwin não é assim. É um só. Não há outro mundo. Apenas esse, e ele é caótico. Caos que não pressupõe uma ordem prévia que se corrompeu. Não vê uma ordem oculta ou providência. A total falta de propósito desse raciocínio é uma vertigem. Não há ordem, nem necessidade. Não é uma explicação, é uma constatação trágica. E pulsa, arrastando-nos para o presente, juntamente com tudo que realmente é. De rerum Natura.

[1] C. Rosset. A Anti-Natureza – Elementos para uma Filosofia Trágica. Rio de Janeiro. Espaço e Tempo. 1989.