A Aposentaria do Estetoscópio?

Desde que entrei na faculdade de medicina, o estetoscópio me fascinou. Estudei técnicas auscultatórias e as apliquei. Diagnosticar doenças cardíacas e pulmonares com um aparelho é muito interessante. O estetoscópio tem uma história bonita (um resumo razoável em inglês aqui, qualquer dia conto essa história em bom português).

A evolução tecnológica do estetoscópio (esteto, para os íntimos) é uma marca da evolução da própria medicina. De um tubo rígido interposto entre o ouvido do médico e o seio de belas senhoras evitando assim o constrangimento de colocar diretamente a orelha em locais castos, a um instrumento acústico e, recentemente, eletrônico, foram quase 2 séculos.

Recentemente, a ultrassonografia (USG) vem ganhando um espaço jamais imaginado na prática médica. Antes, um campo dominado exclusivamente pelos radiologistas, o “ultrassom” vem sendo incorporado a várias outras especialidades como traumatologia, emergências, terapia intensiva, cirurgia geral e vascular, entre outras tantas. Os aparelhos vem melhorando dia a dia e as imagens, que antes pareciam as de uma TV com “chuvisco” foram ficando impressionantemente nítidas. Qualquer pessoa que já viu um ultrassom morfológico de uma mulher grávida sabe do que estou falando. Além disso, a tecnologia foi ficando mais barata, simples e menor! Esse último adjetivo é o motivo do post. Recentemente, a GE Healthcare lançou um aparelho de ultrassonografia que é mais que portátil. É de mão! Chama-se VScan (ver o filme promocional abaixo).

Bom, o fato é que um aparelho assim, do mesmo tamanho que um Iphone, permite fazer alguns exames interessantes em qualquer consultório. Um deles é o próprio ecocardiograma, que se baseia nos mesmos princípios ultrassonográficos de um aparelho comum de ultrassom obstétrico ou abdominal. Isso permite que o médico ao invés de auscultar um sopro cardíaco, o visualize, quantifique, diagnostique, com uma precisão jamais imaginada à beira do leito. Um dos cardiologistas mais famosos do mundo, o prof. Eric Topol (blogueiro dos bons!) não esconde sua admiração. Abaixo, um filme promocional.

Seria a aposentadoria anunciada de um instrumento tão caro aos médicos? O espelho frontal, aquele espelho que fica na cabeça dos médicos em qualquer desenho animado foi praticamente aposentado. Quem ainda os usa, raramente é verdade, são os otorrinos. Hoje, entretanto, eles têm uma coisa chamada “nasofibroscopia” que além de permitir-lhes uma visão melhor, incomoda menos o paciente e ainda deixa você, paciente, pegar uma carona no exame, por meio de um monitor.

Acho que o esteto vai se aposentar como o espelho frontal, as navalhas, o categut, as mezinhas e outras tantas tecnologias obsoletas com as quais os médicos tentaram minimizar as mazelas da espécie humana. Contudo, em todas as “aposentadorias” anteriores, ele, médico, acabou por se distanciar um pouquinho mais de seus pacientes. A sensação de um estetoscópio geladinho no peito com um sujeito de olhos fechados e aspecto calmo, em silêncio, ouvindo o que seu corpo tem a lhe dizer é, por si, terapêutica. A ver…

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Declaração de conflitos de interesse. Não tenho nenhum tipo de relação financeira, científica ou amorosa com a GE Healthcare, mas se eles quiserem dar um VScan para mim, eu vou ficar bem feliz!

 

A foto é do filme Zelig de Woody Allen. Atrás, Mia Farrow. (via Kentaro).

O Tempo Siamês

http://olhardomiguel.files.wordpress.com/2009/09/tempo.jpgNunca tive anos tão curtos formados por dias tão longos…”
@uoleo no Twitter

O Tempo sempre me intrigou muito. Desde muito cedo tive a consciência de que o tempo poderia passar rápido ou devagar de acordo com o meu modo de estar no mundo. Infelizmente, eu não tinha controle sobre isso. Pelo menos me contentava em percebê-lo.

Os gregos tinham dois termos para designar o tempo: áeon e khronos (não confundir com Cronos, pai de Zeus, uma divindade primeva da mitologia grega). O primeiro significa “época da vida”, existência ou vida mesmo, destino. Se considerarmos a origem da palavra, ayu ou yu (de onde vem também iuvenis), podemos também atribuir a áeon o significado de vitalidade. De forma geral, segundo Ferrater Mora, áeon significa o tempo de duração de uma vida.

Khronos, por sua vez, significava “duração do tempo” e o tempo como um todo, como uma esteira infinita. Significa ainda em grego moderno, o ano. Então, em seus sentidos primários, áeon e khronos designam uma época ou parte do tempo e o tempo em geral, respectivamente. Por isso, palavras como “cronômetro” e “era”; “cronologia” e “jovem” significam o tempo sob diversos aspectos de acordo com as duas interpretações.

Para mim, entretanto, Khronos e Áeon são deuses que gostam de brincar conosco. São eles que permitem a percepção do tempo de forma diferente e por isso possibilitam a solução do paradoxo do início do post. Essa frase, que deve fazer sentido para muita gente, sintetiza os domínios de cada deus: os anos curtos “aeônicos” e os dias longos “khrônicos” confundem nossa consciência do tempo. Alguém poderia dizer, “por isso, os meses devem ter a duração normal e o tempo passa sem sobressaltos”. Sim, seria uma possibilidade dialética de solução. Mas não seria a mais bela.

A mais bela solução é que a frase do meu existencial amigo é um bisturi que separa os deuses siameses do tempo e me faz ver seus artifícios. Na minha cabeça mortal, minha dimensão do tempo é demasiado importante e me subjuga frequentemente. Me leva a crer que o tempo é meu senhor e me faz esquecer que tanto Khronos quanto Áeon são, na verdade, prisioneiros da eternidade do milésimo de segundo no qual se vive intensamente.

Consultei. Mora, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. 2001. pág 671-685.

O Ato Médico

O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º O exercício da medicina é regido pelas disposições desta Lei.
Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades
humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua
capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.
Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção
à saúde para:
I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.”

Está havendo uma discussão, na minha opinião necessária, porém mal conduzida, sobre quais as responsabilidades do médico na sociedade brasileira. Tentarei, atendendo a pedidos, esclarecer meu ponto de vista sobre o assunto devagar, visto que o problema requer uma reflexão que o calor da discussão pode confundir. A discussão é sobre o que um médico pode ou não fazer, cujo projeto de lei, ora em trâmite no Congresso Nacional, se convencionou chamar de lei do “Ato Médico”.

Como está explícito nas primeiras linhas do projeto acima, sua pretensão é reger o exercício da medicina. O que tem sido alegado por muitas sociedades médicas, em especial a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), é que a profissão médica, apesar de muito antiga, foi a última a ter seu exercício regulamentado por lei. Esse fenômeno ocorreu também em outros países. Outras profissões da área da saúde, bem mais recentes, como nutricionistas e fisioterapeutas, tiveram sua regulamentação estabelecida há vários anos. Essa indefinição de papéis permitiu o aparecimento de uma zona cinzenta onde vários profissionais poderiam atuar sobre um mesmo problema, sobrepondo-se. Nutricionistas e nutrólogos, psiquiatras e psicólogos, fisiatras e fisioterapeutas, e mesmo enfermeiras e médicos, teriam de discutir o que pertence à esfera profissional de cada um de modo que também as responsabilidades ficassem claras. A tentativa de definir o papel do médico foi de encontro com o espaço ocupado por outras profissões e a chiadeira foi muito grande.

De um lado, os médicos que buscam definir legalmente sua área de atuação; de outro, os vários profissionais da área da saúde se sentiram invadidos e tolhidos profissionalmente, já que vinham exercendo seu papel com autonomia e excelência, mas que agora terão que, de certa forma, subordinar-se a um profissional médico. Achei o tom das declarações de ambos os lados inadequado. Posso criticar especificamente as declarações das sociedades médicas: o que deveria ser uma carta de compromissos está se tornando uma disputa por territórios.

Essa é uma daquelas leis que, no meu caso específico, não afetará em nada o meu trabalho. Se pensarmos bem, a questão específica é sobre responsabilidades. Responsabilidades geram consequências. O número de processos civis contra médicos cresce ano a ano. Eu já participei como perito e membro de comissões técnicas ou éticas de processos contra médicos. Em uma unidade de terapia intensiva de um hospital de grande porte nas quais internam-se políticos, intelectuais e celebridades em geral, nunca vi ninguém – médico ou não – clamando por ser responsável por algum procedimento ou conduta relacionado a um paciente complexo ou com uma família complexa (podemos definir isso depois). O que vejo é exatamente o contrário. Ninguém quer assumir responsabilidade alguma – repito, médico ou não. Grande parte dos profissionais da equipe multidisciplinar que atendem nas UTIs nas quais trabalho, são A FAVOR do tal Ato Médico! Eu particularmente, trabalho muito com fisioterapeutas. Nunca precisei prescrever alguma conduta. Sempre pude discutir abertamente com profissionais que, muitas vezes, eram bem mais experientes que eu. Fiz-lhes a seguinte pergunta: “No caso de um médico prescrever uma extubação (retirada da cânula orotraqueal que conecta o paciente a um ventilador mecânico) com a qual você não concordasse, qual seria sua conduta?” A grande maioria tentaria argumentar com o médico, no que muitos, dizem, teriam sucesso. “E caso o médico se mostrasse irredutível?” A esmagadora maioria realizaria o procedimento com a alegação de que “a responsabilidade final cabe ao médico!” Ela tem que caber a alguém, afinal.

Como médico, também tenho o mesmo problema com outros médicos. Sou plantonista de UTI e estou vendo um paciente complexo. Avalio, penso, pesquiso e tomo algumas condutas que julgo serem pertinentes. Chega o médico do paciente e toma condutas, digamos, totalmente díspares. O que fazer? É uma questão de responsabilidades. Posso tentar discutir, apresentar evidências de que aquilo não é o correto, mas a palavra final cabe a ele. E, agora chegamos ao ponto: se a conduta se mostrar equivocada, a responsabilidade (civil e até criminal) é dele, assim como as penas da lei! Qualquer discordância de minha parte tem que levar isso em consideração. O médicos intensivistas discutem muito (o que também acho que é uma discussão mal posta) sobre a questão das UTIs “abertas” e “fechadas”. É exatamente a mesma situação!

Há uma necessidade de regulamentação da profissão médica. Há uma necessidade premente de estabelecer o responsável técnico por procedimentos relacionados à saúde e sua manutenção. Suspeito que essa delimitação tenha como objetivo consequência um número maior de processos civis (que aumentam ano a ano). Se por um lado, acusações de arrogância e falta de bom senso por parte dos médicos são pertinentes (algumas situações já presenciadas por mim mesmo!), por outro, não há como negar uma certa hipocrisia por parte das sociedades não-médicas: a quem deverá ser imputado um eventual erro? Qual o grau de responsabilidade que se pode atribuir à cada procedimento específico? E quanto ao diagnóstico? São questões difíceis de responder sem ideologizar o debate que, para o meu gosto, já está ideologizado demais.

No dia em que uma lei substituir o entendimento e o relacionamento cordial entre profissionais de alto nível, sejam eles médicos de várias especialidades ou uma equipe multiprofissional da qual faz parte um médico, eu espero estar aposentado. Não delegarei jamais meu relacionamento com qualquer profissional da saúde, seja médico de outra especialidade, seja não-médico, a um conjunto de regras e definições. Prefiro uma fórmula mais buberiana: “Eu” reconheço “tu” como o “outro” ao meu lado e em “tu” vejo o profissional que sou e também o que queria ser: sob TODOS os aspectos, cuidar de pessoas, para mim, é um encontro.

Ecce Medicus – 2 anos

O Ecce Medicus faz 2 anos. Considerando que são criados aproximadamente 175.000 blogs por dia e que a grande maioria dos blogs têm uma vida média de 3 meses, o Ecce Medicus é um sobrevivente. Isso só foi possível graças aos leitores que constroem o blog comigo. Muitas pessoas já me disseram que os comentários aqui são tão interessantes, ou mais, que os posts. Isso me deixa feliz. Feliz por ter proporcionado um fórum para discussão da medicina e de como ela deve ser pensada. Fosse só isso e eu já teria dado como pronto esse projeto que iniciou-se 2 anos atrás. Mas, há outros planos…

Segue uma antologia dos 10 posts mais visitados no último ano, já no Scienceblogs Brasil, e dos últimos 10 posts preferidos meus. Podem dar palpite. O Ecce Medicus é uma “casa de tolerância” nesse sentido. Obrigado.

Os Dez Posts Mais Visitados – em ordem de popularidade (fonte Google Analytics – valeu Paulinha!)

1. O Bumbum de Gisele
2. Gripe Suína
3. Sobre a Letalidade da Gripe Suína
4. Mortes por Gripe Suína
5. Resistência Bacteriana
6. Cisto Sinovial
7. Mais Sobre o Rubor Facial
8. Cientista Documenta Relação Sexual dentro de Ressonância Magnética
9. A Teoria da Vitamina D e a Despigmentação da Pele Humana
10. Design Pulmonar – Projeto Tabajara?

Meus Dez Posts Preferidos – sem ordem de preferência (fonte Sistema Límbico do Karl)

1. Deus, Um Desejo
2. Pára-quedas, a Ciência e Eu
3. Romances e Pacientes
4. O Caramujo e a Estrela
5. Acromegalia II
6. Sobre Elefantes, Cegos, Paralelas e Pacientes
7. Diagnóstico e Intuição
8. O Desdiagnóstico
9. Seria a Informação Científica uma Commodity?
10. El Inglés, Idioma Internacional de la Medicina

Piada de Médico

As piadas sempre trazem alguma coisa de verdade. Quando são contadas pelos pelos próprios protagonistas então, nem se fala. Parece que o politicamente incorreto se dissolve na figura do contador e a situação fica mais engraçada. Especificamente, em relação às “piadas de médico”, são revelados estereótipos da personalidade dos profissionais de diferentes especialidades. Vou contar duas das piadas que mais circulam no meio médico.

http://www.calculateme.com/MySpace/background-images/hundred-dollar-bill.jpgNota de Cem Dólares

Sabe como esconder uma nota de cem dólares de um médico? Você vai depender da especialidade dele para ter sucesso. Vejamos:
Como se escondem 100 dólares de um anestesista? No paciente. E de um ortopedista? Num livro de medicina. De um clínico, não precisa esconder porque ele nunca viu e não sabe o que é. E de um cirurgião-plástico? Impossível, ele vai achar de qualquer jeito!

Talvez uma das mais interessantes seja a estória d’…

Os caçadores

http://www.monfortur.pt/IMAGENS_SETEMBRO_2006/LARGADA_PATOS_2.jpgUm grupo de médicos de especialidades diferentes resolveu sair num fim-de-semana para caçar patos. O grupo era constituído por um radiologista, um patologista, um anestesista, um sanitarista, um pediatra, um clínico, um cirurgião, um ortopedista e um psiquiatra. Depois de discutirem amplamente a verba necessária para o projeto com o sanitarista, embarcaram todos, no carro super-hiper-equipado, cheio de tecnologias inovadoras do radiologista… Este, ao chegar ao local, decide não sair do carro: “É mais confortável aqui… Espero vocês e depois vejo esses ‘patos’. Depois de descerem do carro, o anestesista olha um nuvenzinha no final do horizonte e diz: “Vamos cancelar essa caçada!” No que o cirurgião imediatamente responde: “Ah, não, aqui também esse cara quer ser estraga-prazeres? Vamos caçar de qualquer jeito!”. Preparam-se então para caçada… O pediatra aponta a espingarda, mas olhando para o alvo, diz: “Coitado do patinho, ah, tão pequenininho…” E não atirou. O clínico então aproxima-se, também prepara-se para atirar, mas raciocina: “Parece um pato, tem forma de pato, bico de pato, mas… talvez… a cor das penas… por outro lado… o estilo de vôo… talvez…” E o pato voa! O cirurgião, ansioso com o resultado da caçada até o momento, chega, toma a espingarda e sai atirando em tudo o que se mexe. Vira para o patologista e diz: “Vai lá e vê o que é pato e o que não é!” O ortopedista, voluntarioso, entra no mato, volta, entra de novo, e cansado ao sair, pergunta: “Gente, mas o que é pato mesmo?” Nesse momento, o psiquiatra intervém: “Mas, pessoal, por que O PATO?”.

É isso.

Animação Francesa para Campanha da AIDS

Gerou uma certa polêmica – o leitor logo verá porque – esse filme para a campanha de combate à AIDS na França. A partir de uma “estética de grafitagem de banheiro público”, o autor dá vida a um recém-chegado “membro” do grupo e passa seu recado com extrema criatividade e bom humor. Uma mistura de “dirty Toy Story” com “Roger Rabbit pornô” bem ao gosto de uma adolescência cada vez mais acostumada a lidar com esses problemas mas a qual, nunca é demais lembrar os perigos de relações sexuais desprotegidas, e não só por conta da AIDS.

Será que uma campanha como essa seria veiculada na TV brasileira? Que tipo de reação provocaria? Bom, que cada um tire sua própria conclusão. A caixa de comentários está à disposição.

O Esteto e o Esteta

Amanti.jpg

Conversa de médico é sempre muito chata. Onde há uma “rodinha” de médicos conversando é muito difícil um não-médico ficar muito tempo ouvindo ou participando, seja porque não entende absolutamente nada do que está sendo discutido, seja porque alguns dos juízos emitidos são, para dizer o menos, fora do padrão ao qual estão habituados. Falar sobre a morte e o morrer, sobre secreções e vísceras, não é lá muito agradável. Mas, uma das coisas que mais choca os não-médicos é nosso conceito de “beleza”.

Dizer que uma lesão é “linda” ou que uma cirurgia foi “maravilhosa” é quase um pecado! Certa vez, levei uma bronca de uma professora: “Meu conceito de beleza é outro” – disse ela. “Não diga que a morte ou a doença são belos. Diga que são, no máximo, interessantes.” Fiquei pensando muito tempo naquilo. Esse raciocínio me pareceu bastante coerente e em concordância com o sofrimento dos pacientes, mas “desceu torto”. Não há um prazer mórbido, um gosto pelo sofrimento. Mas há, sim, uma admiração por uma entidade, um conceito que se autoexplica, um padrão que se confirma.

“Aquele paciente tem um sopro aórtico muito bonito”. O que isso quer dizer? Que é um sopro prototípico. O reconhecimento de uma entidade real com todas as nuances que lhe foram atribuídas por autores e/ou professores em textos e aulas teóricas é um prazer sensorial que, se não é exatamente o que se chama de prazer estético, em muito se aproxima dele. Uma cirurgia de reconstrução por mais cruenta e exposta pode – por que não? – ser considerada uma obra de arte.

Na última Piauí, há uma matéria muito interessante sobre um matemático brasileiro cujo título é: “Artur tem um problema” de João Moreira Salles. Ao falar do modo como os matemáticos “descobrem” seus objetos virtualíssimos, o autor escreve:

“A beleza seria essa intuição de uma totalidade. Esse sentimento estético é a peneira que separa o joio do trigo. Por ela só passam os objetos que, por belos, anunciam: Existo. “Passamos a vida pensando em objetos lindos“, diz Yoccoz, com um sorriso de felicidade. “O prazer estético é comparável ao da música.” Grandes matemáticos são estetas, e a beleza será, para todos eles, uma das mais poderosas ferramentas da descoberta. Pelo entusiasmo com que falam do que lhes passa pela cabeça, é como se existisse música e nós, os não-matemáticos, fôssemos todos surdos.”

Fico pensando se grandes médicos não seriam também estetas. A beleza como ferramenta de conhecimento. Aliás, a mim me parece que todo profissional que faz o que gosta poderia ser um esteta. Quem faz o que gosta busca a excelência por um prazer estético: tornar o que faz mais bonito, é sentir-se melhor.

Gravura: Franco Murer

Diagnóstico e Intuição

Muita gente pergunta como é fazer um diagnóstico clínico. Como elevar o “particular” de um paciente no consultório ou hospital ao “universal” da doença descrita no livro. O diagnóstico clínico é o momento em que o médico tenta identificar a doença através da história clínica (ativa ou passiva), procurando sinais e/ou interpretando exames subsidiários, com o desafio de não perder de vista, o próprio paciente, devido ao caráter psicológico e social que as enfermidades apresentam segundo a definição do prof. Milton Martins [1]. Não é difícil entender que o ato do diagnóstico clínico é indissociável da atividade racional ou razão. Podemos considerar, grosso modo, que a atividade racional possui duas modalidades básicas: a intuição (ou razão intuitiva) e o raciocínio (ou razão discursiva). O post anterior, tentava esboçar por meio de problemas simples, a diferença cognitiva entre os dois. Segundo Chauí [2], razão discursiva, como o próprio nome indica, discorre por uma realidade para chegar a conhecê-la, isto é, realiza vários atos de conhecimento até conseguir captá-la. Em uma sucessão de esforços de aproximação (por vários métodos) chega-se ao conceito da realidade que se quer conhecer, no nosso caso, a doença do paciente. A razão intuitiva, ao contrário, consiste num único ato do espírito, que, de uma só vez, capta por inteiro e completamente o objeto. O ato do diagnóstico clínico apesar de sua importância óbvia, por razões inexplicadas, não faz parte da grande maioria dos livros-texto de medicina. Quando abordado, é dada sempre maior importância à razão discursiva – o raciocínio clínico. O objetivo primordial desse post é chamar a atenção para o fato de que a intuição ou razão intuitiva é, no mínimo, tão importante quanto o raciocínio clínico para se chegar a um diagnóstico. Além disso, só após o reconhecimento da importância da intuição no ato do diagnóstico clínico poderemos estudá-la, disciplinando-a e colocando-a a favor do trabalho do médico, como já foi, exaustivamente realizado com sua contrapartida cognitiva, o raciocínio clínico. Talvez a principal causa destas distorções sejam interpretações do modelo de estratégias diagnósticas proposto por David Sackett [3]. Com a publicação do excelente livro Clinical Epidemiology em 1985, o modelo foi ganhando contexto e corpo e vem se popularizando principalmente entre os clínicos, sendo incorporado gradativamente ao ensino da prática médica. Em linhas gerais, segundo Sackett, seriam quatro as estratégicas básicas para chegarmos a um diagnóstico:

1) Reconhecimento de padrão (ou método do gestalt). É a percepção instantânea de que o quadro clínico do paciente é indistinguível de um padrão previamente aprendido de síndrome ou doença. O exemplo utilizado pode ser uma criança com síndrome de Down ou o “fácies” característico da doença de Graves (um forma de hipertireoidismo em que os olhos ficam saltados).

2) Método do Algoritmo. No qual o processo diagnóstico progride de acordo com uma seqüência lógica de vias pré-formatadas dicotomizadas por perguntas e respostas do tipo sim/não ou presente/ausente. São os fluxogramas de diagnóstico. O exemplo mais característico, para usar algo hoje muito em moda, são os algoritmos de trabalho do Advanced Cardiac Life Support (ACLS). Por intermédio desses algoritmos, o médico sob a pressão de uma situação crítica, pode chegar a um diagnóstico de embolia pulmonar ou pneumotórax hipertensivo.

3) Método da Exaustão. Esse método ficou conhecido por esse nome pelo fato do médico não se preocupar em raciocinar sobre o dado que está por receber de seu paciente, ocupando-se apenas de acumular exaustivamente, o maior número possível de informações. A estratégia da exaustão implica no fato de que o diagnóstico deva ser feito em duas etapas. Primeiro coleta-se tudo que poderia ser pertinente ao caso depois, e apenas depois disso, procede-se à segunda etapa que consiste em pinçar as informações potencialmente úteis para se fechar um diagnóstico. Foi assim que aprendi a “tirar história” dos pacientes.

4) Método Hipotético-Dedutivo. Consiste na formulação de uma pequena lista de hipóteses seguida de manobras clínicas (história e exame físico) e paraclínicas (radiografias e exames laboratoriais) visando à redução dramática dessa pequena lista e finalmente ao diagnóstico mais provável. Ao mesmo tempo em que as hipóteses são geradas, o médico vai simultaneamente realizando pequenos “bits” de procura por dados e sinais físicos que suportem sua hipótese. Essa estratégia é utilizada pela grande maioria de clínicos experimentados inconscientemente e parece ser algo inerente ao raciocínio investigacional humano, pois, mesmo alunos do primeiro ano da faculdade de medicina, submetidos ao mesmo estudo, demonstraram o mesmo tipo de comportamento.

Podemos analisar as estratégias diagnósticas sob a ótica de quem procura por indícios de intuição nelas. De imediato, o reconhecimento de padrão parece ser a categoria que melhor preenche a definição de razão intuitiva: captação de uma só vez da essência do objeto a ser conhecido, como um ato único do espírito. Entretanto, em análise mais cuidadosa percebemos que o reconhecimento de padrão é um re-conhecimento. O indivíduo deve ter “conhecido” a doença pelo menos uma vez antes. Normalmente, isto se dá através de outro médico, o que o torna refém do ponto-de-vista de um terceiro. Que dizer então, de doenças que nunca vimos antes? Em se tratando de razão intuitiva, nos permitimos intuir um conceito que não temos, mas não costumamos usar a intuição, até por uma questão de treinamento profissional, para conhecer uma doença que nunca vimos! Esse procedimento seria um “gerador” de doenças na dependência da variedade de seus quadros clínicos, e de fato, era assim que ocorria antes. Portanto, o reconhecimento de padrão é uma estratégia que parece mais se utilizar de padrões pré-formatados de entidades patológicas. O diagnóstico é então, efetuado por simples comparação não se constituindo assim, num meio para utilização da razão intuitiva.

Se por um lado, as estratégias do algoritmo e da exaustão são quase que abordagens mecanicistas do ato diagnóstico, por outro, a estratégia hipotético-dedutiva envolve uma etapa de geração de hipóteses que parece ter algo de intuitivo. O próprio Sackett faz a pergunta crucial: de onde vêm as hipóteses? Em apenas um parágrafo, a resposta de E. J. Moran Campbell, o grande fisiologista respiratório: “muitas, se não a maioria (das hipóteses), provém de nossa visão de rótulos diagnósticos como idéias explicativas que amarram nossa compreensão da biologia humana às enfermidades de nossos pacientes. Também, e especialmente com a experiência, muitas hipóteses saltam aos olhos por reconhecimento de padrão de um tipo que gera possibilidades múltiplas em lugar de uma única, de muito alta probabilidade”. Não há maiores comentários sobre o assunto no livro apesar da beleza e profundidade da frase. A primeira oração refere-se à tensão que é quebrada quando fazemos um diagnóstico (ou pensamos que fazemos). Cuidar de um paciente sem diagnóstico é um dos fatores de maior estresse psicológico para um médico. Daí a tensão que faz gerar hipóteses. Quando uma delas se encaixa (ou parece se encaixar), o médico se sente em território conhecido e fica seguro de si e de seus atos. A segunda oração merece um pouco mais de reflexão. Diz ela que com a experiência, algumas hipóteses são criadas por reconhecimento de padrão, mas de um tipo especial, pois ao invés de uma hipótese de alta probabilidade como já discutido acima, gera várias que necessitam ser
demonstradas através de uma atividade intelectual. Seriam a geração de hipóteses e sua posterior dedução apenas uma seqüência de tentativas frustradas de reconhecimento de padrão na qual se necessitam mais dados para sua comprovação? Para responder a essa pergunta, precisamos conhecer um pouco mais sobre o mecanismo gerador das hipóteses. Há evidências [4] de que uma hipótese diagnóstica é formulada antes do primeiro minuto de uma consulta. E, aproximadamente 6 minutos após ouvir a queixa principal do paciente, um médico bem treinado é capaz de formular uma hipótese diagnóstica que em 75% das vezes é o diagnóstico correto. Ora, todos esses achados lembram muito um processo intuitivo. A intuição, por sua vez, pode ser o ponto de chegada, a conclusão de um processo de conhecimento, e pode também ser o ponto de partida de um processo cognitivo. O processo de conhecimento, seja o que produz uma intuição, seja o que parte dela, constitui a razão discursiva ou o raciocínio. Pode-se então, imaginar que a estratégia hipotético-dedutiva parte de uma intuição e através do raciocínio chega a confirmação desta intuição ou a uma nova, com outputs de hipóteses diagnósticas como mostra a figura. Da maneira como vemos a estratégia hipotético-dedutiva, a intuição é, no mínimo, tão utilizada quanto raciocínio clínico para se atingir um diagnóstico.

[1] Nunes, MPT & Martins, MA. História Clínica. Semiologia Clínica. 2001. páginas 11-19.
[2] Chauí, M. Convite à Filosofia. 2000.
[3] Sackett D, Haynes B, Guyatt G, Tugwell P. Clinical Epidemiology. A basic science for clinical medicine. páginas 3-18.
[4] Barrows HS, Norman GR, Neufeld VR, Feightner JW. The clinical reasoning of randomly selected physicians in general medical practice. Clin Invest Med. (5) 1:49-55. 1982.

Saúde, Doença, Êxito Técnico e Sucesso Prático

ResearchBlogging.orgUma série de posts do Cretinas (aqui e aqui) servirão como mote para uma delimitação que há tempos eu gostaria de ter feito. Nos posts é feita uma crítica sobre os gastos do SUS com métodos “alternativos” de tratamento como homeopatia, acupuntura, tai-chi-chuan, etc. Longe, mas muito longe mesmo, de defender o governo quanto a algumas políticas de saúde adotadas, e de defender tais práticas “alternativas” sobre as quais já confessei minha ignorância (aqui e aqui), acho que chamar esse tipo de atitude de desonestidade intelectual é “pegar um pouco pesado”. Em particular, pelo fato de que, na minha opinião, há uma confusão conceitual entre saúde e doença na base desse raciocínio e que será o motivo desse post.

(Antes de mais nada, ninguém perguntou aos pacientes submetidos a esses programas se eles sentiram melhor ou não. Era a primeira coisa a ser feita antes de qualquer tipo de crítica. O acolhimento que determinadas práticas dentro de um contexto do “cuidado em saúde”, proporcionam é, por si mesmo, terapêutico. Pelo que pude apurar (informalmente), houve aumento dos gastos em decorrência do aumento enorme das solicitações desse tipo de programa. Ver o outro lado é fundamental.)

Mas façamos um exercício – como Zé Ricardo Ayres fez – para tentarmos aumentar nossa compreensão sobre o binômio saúde-doença. Se perguntarmos a um grupo de pessoas “você se sente saudável?” quantos responderiam “sim”, quantos “não” e quantos não saberiam dizer, é difícil de estimar. Se, por outro lado, perguntássemos “você está doente?” as respostas seriam presumivelmente mais uniformes. A ideia aqui será demonstrar que saúde e doença fazem parte de universos bastante diferentes, falam de coisas diferentes e de maneiras inteiramente diferentes. Alguém com diabetes controlado ou soropositivo para o HIV pode responder que se sente saudável apesar de ter de fato, uma doença. Por outro lado, um indivíduo em quem não se diagnostica nenhuma doença, pode não ter a vivência da saúde. A alguém que respondesse “sim” à pergunta se estava doente, poderíamos continuar perguntando “mas que tipo de doença você tem?”. Entretanto, ao que respondeu “sim” à pergunta se estava saudável, não faz sentido perguntar “mas que tipo de saúde você tem?”. Talvez, fosse mais racional perguntar “o que você quer dizer com isso?”. Já, perguntar ao “doente” “o que você quer dizer com estar doente, ou estar diabético ou estar com HIV?” é que não faz sentido! O significado de “diabetes” e “HIV” está validado em qualquer discussão sobre o assunto. Isso quer dizer que tem validade  intersubjetiva (entre sujeitos). Dito de outro modo, no caso do diabetes, uma “racionalidade de caráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogo que o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicose circulante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alterações morfofuncionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraqueza até a morte.” O lado da saúde, não tem a mesma validação. Existe, portanto, uma assimetria enorme de legitimidade de discursos, favorecendo o que se chamou de discurso casual-controlista da abordagem biomédica que predomina amplamente. Essa predominância é que permite a algumas correntes tachar as atuais práticas de saúde como “desumanizadas” por um lado e, por outro, abre a perspectiva a críticas sobre a cientificidade de determinadas políticas, em especial, às relacionadas à medicinas alternativas, como fez o Cretinas.

É preciso separar os conceitos de êxito técnico e sucesso prático. Êxito técnico refere-se à razão instrumental da ação – por exemplo, se uso um vasodilatador para redução da pressão arterial, consigo diminuir o risco de acidentes cardiovasculares, ponto final. Sucesso prático diz respeito à atribuição de valores e implicações simbólicas, relacionais e materiais do fato de um paciente ser hipertenso. O que significa para esse paciente assumir a identidade de hipertenso? Nas palavras de Ayres, “êxito técnico diz respeito a relações entre meios e fins para o controle do risco ou dos agravos à saúde, delimitados e conhecidos pela biomedicina. O sucesso prático diz respeito ao sentido assumido por meios e fins relativos às ações de saúde frente aos valores e interesses atribuídos ao adoecimento e à atenção à saúde por indivíduos e populações”. As relações são objeto da razão instrumental e da ciência médica, já sabemos. Já, as ações de saúde causam efeitos nos indivíduos e os significados desses efeitos – o sentido – são objeto de uma razão prática. É aqui que a coisa se complica. A razão prática é eminentemente ética: se preocupa com os meios para atingir os fins. Digo a um paciente “o Sr. é hipertenso, precisa tomar esse remédio!” Ele poderia responder “Dr., não tenho dinheiro para tomar esse remédio; ou, não quero tomar esse remédio; ou ainda, não sou hipertenso!” Como proceder? Deveria mostrar a esse paciente um artigo dizendo que é melhor ele tomar a medicação? Um êxito técnico não garante o sucesso prático. Cabe discutir se o contrário, o sucesso prático sem sua contrapartida instrumental do êxito técnico, é lícito ou não. Entretanto, só essa discussão já valeria todo o trabalho do post, pois sua simples instauração reconhece que a medicina não é redutível à ciência médica.


Fonte: Ayres, J. (2007). Uma concepção hermenêutica de saúde Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17 (1) DOI: 10.1590/S0103-73312007000100004

Diagnóstico

Diagnóstico vem do grego, pra variar: διάγνωση, onde δια dia- “por meio de”, and γνώση gnosis “conhecer”. Para os gregos era a identificação da natureza de alguma coisa. Já falamos sobre diagnóstico e desdiagnóstico. O momento do diagnóstico é um aliviador de tensão dos dois lados da mesa do consultório, apesar de ser mais um começo do que um fim. Muita gente já se interessou sobre esse momento e tentou entender como um médico chega a ele. Eu vou tentar dar minha contribuição. Para isso, vou utilizar alguns exemplos tirados de um interessante livro chamado “A Banheira de Arquimedes” de David Perkins, matemático e estudioso de inteligência artificial do Massachusetts Institute of Technology. Os exemplos são próximos de dois modos-padrão de como um médico diagnostica certas doenças. Depois discutiremos a resolução de cada um.

Exemplo 1 – A soma abaixo está expressa em letras. No lugar de um dos dígitos de 0 a 9, temos as letras A, B e C. Dada a soma, qual o valor de A, B e C?

    A A
+ B B
C B C

Exemplo 2 – Faça quatro linhas retas que passem por todos os nove pontos no diagrama a seguir, sem levantar o lápis do papel (Moçada, não vale passar pela mesma reta 2 vezes, ok?).

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E aí? Conseguiu resolver, digo diagnosticar? O leitor perceberá que os problemas são bastante diferentes em relação às aptidões cognitivas requeridas para sua resolução. No exemplo 1 podemos chegar a resposta correta apenas nos utilizando de um raciocínio lógico – passo a passo, por eliminação e tentativa-e-erro. O exemplo 2 é diferente. Ficamos muito tempo girando em círculos, quase que sem sair do lugar. Rabiscamos várias retas, mas parece haver uma “pegadinha” (que não há!) na solução. Estudos indicam que esse tipo de problema, ou é resolvido em alguns minutos ou a tendência é abandoná-lo. Qual será sua alternativa?