Paris, Século XIX

Hotel_Dieux

Hotel Dieux, Paris, França (1860). Por trás, sim, ela mesma, a Catedral de Notre Dame.

Honoré de Balzac – naquele que viria a ser o terceiro livro da primeira parte dos Estudos do Costume e o décimo-primeiro volume de sua monumental Comédia Humana, o romance de nome “A Casa Nucingen” – inicia sua narrativa com uma conversa de quatro jornalistas em um restaurante parisiense. Em determinado momento da discussão, que, a propósito, girava em torno da felicidade humana, Balzac coloca na boca de Émile Blondet a seguinte frase (em livre tradução): “A medicina moderna, cuja maior glória é ter, de 1799 a 1837, passado do estado conjectural ao estado de ciência positiva, muito pela grande influência da escola analista de Paris, demonstrou, sem dúvida, que o homem periodicamente renova-se por completo”[1]. O livro foi escrito em 1837 e publicado, inicialmente, na forma de folhetim nos jornais da época.

Deixemos – com Georges Canguilhem [2] – a questão da tal “renovação humana” de lado até porque, no livro de Balzac, tal observação não deixa muito claro seus objetivos. Canguilhem, ele mesmo médico e filósofo, tomou dois aspectos dessa frase de Balzac para analisar o que ele chama de “estatuto epistemológico da medicina”[2]: as datas e o sintagma “estado de ciência positiva”. Balzac era um grande cronista de sua época e não escolheria tais datas gratuitamente. Canguilhem identifica então alguns acontecimentos marcantes: em 1799, aconteceu o Golpe de Estado do 18 Brumário e a publicação da “Nosographie philosophique ou la methode de l’analyse applique à la médicine” de Pinel. [lembrar que a obra máxima de Xavier Bichat foi publicada em 1799/1800: Traité des membranes général et de diverses membranes en particulier]. Se, por um lado, 1837 não tem nenhum fato político relevante, do ponto de vista médico “é o ano da publicação do terceiro volume das ‘Leçons sur les phenomenes physiques de Ia vie’ de Magendie e também da quarta edição do ‘Traité d’ auscultation médiate’  de Laennec, revisado por Andral”. Entre as duas datas, ainda segundo Canguilhem, Xavier Bichat inventou a anatomia patológica, Pierre Louis instituiu as estimativas numéricas concernentes à tuberculose (1825), febre tifóide (1829) e aos efeitos do tratamento das pneumonias com sangria (1835), tudo isso sem esquecer que foi em 1830 que o primeiro dos seis volumes do “Curso de Filosofia Positiva” de Auguste Comte foi publicado. Eu ainda apontaria, na frase de Balzac, um terceiro elemento que mereceria atenção especial, apesar de Canguilhem não o destacar em seu texto: “escola analista de Paris”. Por que Paris? As transformações radicais que a prática médica sofreria nos anos seguintes à Revolução Francesa não foram ocasionadas por uma repentina descoberta científica ou por um avanço tecnológico súbito, nem tampouco tiradas da cartola de ninguém.

A mudança radical ocorrida na medicina foi uma revolução conceitual. A Revolução Francesa (1789-1799) fechou todos os serviços públicos de saúde para reabrí-los posteriormente. O Hotel Dieu (acima) tinha dependências insalubres e abrigava até 5 pacientes para CADA LEITO! [3]. Pessoas convalescentes, misturavam-se com as doentes, pessoas vivas misturavam-se aos cadáveres. Os quartos superlotados não tinham ventilação adequada. O pós-operatório (ainda não existia a anestesia) era ao lado da ala psiquiátrica onde “gritos eram ouvidos à noite toda”, são descrições comuns da época. Após a reabertura dos hospitais não foi permitido mais que um paciente por leito, mas a situação não melhorou muito. As clínicas médicas particulares foram praticamente extintas e os médicos passaram a exercer suas funções nesses hospitais. Alguns recebiam salários dos próprios hospitais (muito baixos, diga-se de passagem), mas o movimento aumentou muito. Os médicos tinham a oportunidade de ver centenas de pacientes nos ao invés de alguns poucos em suas clínicas privadas. Com isso, houve uma mudança na relação médico-paciente, com o primeiro ganhando poderes quase ilimitados sobre o segundo. Além disso, o órgão responsável pela saúde criado no período revolucionário e atuante também depois dele – Conseil Générale d’Administration – centraliza e expande a Saúde Pública determinando o acesso de todos. Por meio desse órgão, foi promulgada a “Lei das Autópsias” (art. 25 do decreto de Marly) que cobrava uma quantia para enterrar pessoas falecidas nos hospitais que a grande maioria da população não tinha condições de pagar. Os corpos então iam para sala de autópsias, permitindo “material” praticamente inesgotável de estudo para os médicos ávidos de conhecimento. Tal situação levou muitos médicos de outros países a estagiarem em Paris com objetivo de aprender as técnicas de autópsia e também a nova Anatomia Patológica [3].

A reviravolta epistêmica ocorrida nos mal-falados e escuros hospitais de Paris no século XIX repercute até hoje em todo o edíficio fulgurante da prática médica contemporânea. No novelo complexo dessa reviravolta é possível destacar quatro fios-de-meada, quatro “vertentes fundacionais” de conceitos formadores (e também deformadores, como veremos) do pensamento médico atual. Vertentes que, de certa forma, já estavam presentes em dispersos antecessores dos franceses e que, transformadas por estes, vieram tornar-se caudalosos rios nos quais os médicos navegam hoje. Se conhecer a nascente de um rio talvez não seja importante para navegá-lo, é ao menos prudente estudar a geografia de seu leito para que saibamos onde (e como vamos chegar a sua foz). Tentarei mostrar nos próximos posts de onde vêm e para onde vão quatro das principais ideias surgidas na Paris de Balzac e Canguilhem.

 

[1] de Balzac H, de Carvalho A. A casa Nucingen. Companhia Nacional Editora; 1891. Fac-símile em francês no site da Biblioteca Nacional da França. A referida passagem se encontra na página 13 da obra.

[2] ResearchBlogging.orgCanguilhem, Georges (1988). Le statut epistémologique de Ia médecine. Hist. Phil. Life Sci., 10 (Suppl), 15-29.

[3] ResearchBlogging.org Waddington, I. (1973). The Role of the Hospital in the Development of Modern Medicine: A Sociological Analysis Sociology, 7 (2), 211-224 DOI: 10.1177/003803857300700204

Figuras retiradas do bonito blog Dittrick Museum.

 

Medicina Não-Humanista

medicine_ephesus

O humanismo tem significados diferentes dependendo da língua que você fala [1]. Basicamente, se você é um anglófono identificará o humanismo com um tipo de “ateísmo esclarecido”, popular entre cientistas e “leigos de mente aberta” [2]. O “resto do mundo”, em especial a França, tem uma visão algo negativa do que seria o humanismo. Por isso, não é de se surpreender que as reações a ele difiram entre os dois grupos. Um anti-humanismo teria, assim, ao menos duas acepções fundamentais de acordo com as correspondentes leituras propostas. Nesse sentido, cito a professora Kate Soper [1] em livre tradução

Se ‘falamos Inglês’, então, o ‘anti-humanismo’ equivale à rejeição dogmática de uma ética mediadora e conciliatória que os auto-intitulados humanistas sempre consideraram um componente essencial de seu esclarecimento. Se ‘falamos francês’, por outro lado, [o anti-humanismo] constitui-se em um novo tipo de esclarecimento a partir do qual toda forma de pensamento humanista é revelada como tão ofuscante e mitológica quanto a teologia e a superstição que o movimento humanista tradicionalmente rejeita.

Essa dicotomia, pasmem, foi importada para o Brasil. Grosso modo, cientistas naturais tendem a adotar o “humanismo do tipo anglo-americano”, fundando, inclusive, associações ativistas aos moldes de seus colegas ultramarinos e norte-continentais. Já os “cientistas” das Humanidades, larga e longamente influenciados pelo pensamento francês, rejeitam o humanismo como o diabo à cruz (não resisti, perdoem).

A essa altura, alguém já está perguntando “Mas e a medicina?”. De fato, a eterna ambivalência da medicina a coloca em relação sempre difícil com dicotomias simplificadoras. Sua relação com o humanismo será subsidiária da forma como a consideramos dentro do espectro acadêmico. Se a tomarmos, a exemplo de alguns cientistas com quem tive aula na faculdade, como “nada mais do que uma discretíssima subseção da Biologia que se ocupa das mazelas de uma única espécie” e/ou como um ramo “patológico” da Antropologia, tenderemos esposar à medicina um humanismo necessário. Se, por outra via, a entendermos como a relação do paciente com seu médico acrescida de tudo que envolve tal interação entre sujeitos assim postos, a visão continental, anti-humanista da medicina, nos será mais coerente.

Isso porque as críticas continentais ao humanismo passam a fazer sentido também como críticas a uma medicina que tem, ultimamente, se esforçado em ser humana. A lista é grande mas a nós basta entender que o humanismo ao colocar o Homem como o centro a partir do qual parte todo o seu entendimento do mundo, faz dele o natural sujeito de todas as coisas e tudo, portanto, o que não é Homem passa, naturalmente, a ser seu objeto. Inclusive o próprio Homem que, entretanto, veja só, não pode ser tomado na forma una e indivisível que caracteriza as abordagens “humanísticas” dado que ele não pode ser,  a um só tempo, sujeito e objeto. Só é possível por esse método tomar o Homem em suas partes não-humanas ou, melhor seria dizer, desumanizadas. E vejam se não chegamos assim à principal queixa que se faz à medicina contemporânea! Se, por outra via, tentarmos reduzir a medicina a seu núcleo duro – a interação médico-paciente – e quisermos trabalhar com um outro modelo que não a relação sujeito-objeto – por exemplo, uma relação sujeito-sujeito – vamos precisar de uma outra matriz conceitual que dê conta de explicar quais as condições de possibilidade de tal relação, mas para isso será preciso deslocar o “eixo humanista” de modo a abrigar um cerne compartilhado de, ao menos, dois indivíduos em igualdade de condições de fala. Seria preciso desarticular a medicina de sua face humanista. Seria preciso então, e vejam que irônico falar desse modo nos dias de hoje, desumanizar a medicina.

O fato de o conceito de humano dividir o mundo em entes humanos e não-humanos não se constitui exatamente em um problema. “Só é preciso saber do que estamos dispostos a abrir mão em busca de nossa humanidade”, como escreve Vladimir Safatle [3], glosando o próprio Freud. Para Safatle, o que temos descartado como “inumano” se constitui em parte fundamental de nossa própria humanidade e é fonte de sofrimento social e também clínico – daí sua importância para a medicina. O desafio dos humanistas é construir um conceito inclusivo de humanismo que possa abrigar outras formas de ser do humano que não se encaixem, ainda, no que é considerado “humano” hoje. Uma medicina não-humanista poderia surgir, então, a partir da velha medicina que sempre se quis humana, mas que vem necessitando, recentemente, de estranhos e cada vez mais prevalentes “processos e protocolos de humanização”.

 

[1] Soper, K. Humanism and Anti-humanism (Problems of modern European thought). Ed. Hutchinson. 1986.

[2] Apesar de haver quem pregue no Reino Unido o ateísmo não (ou anti)-humanista. Ver artigo no Guardian.

[3] Safatle, V. Grande Hotel Abismo – Por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. Ed. WMF Martins Fontes – São Paulo, 2012.

Arte com Papel

Via Street Anatomy.

Experiências de Incorporação

Dusty bonesHier tanzt der Leib!
Wie sich Körper – und Leiberleben im Tanz unterscheiden

(Aqui, o corpo que dança!
Quão distinta de corpo – a experiência corpórea na dança)

Lars Oberhaus (aqui, em pdf)

Ao Digo, que anestesiou o dedo e se divertiu com o fato de que o dedo não era mais (d)ele.

Se, ao tomar o título acima, um leitor ou leitora incautos imaginaram tratar-se o que segue de espíritos invadindo corpos, metempsicose ou coisas afins, lamento desapontá-los. A mera pressuposição de que uma entidade anímica, qualquer que seja o nome que se dê a ela, possa habitar um corpo humano, animal ou vegetal, criando assim também a possibilidade de abandoná-lo, é uma extrapolação distorcida e rasa do pensamento dualista revolucionário de René Descartes (1596-1650). Entretanto, a maneira como a filosofia cartesiana tratou a corporeidade do “ser que pensa” (res cogitans) viria a se constituir num dos principais pontos de crítica de toda sua filosofia. Na medida em que discursos mais recentes foram sendo construídos a respeito das relações mente-corpo e passaram a dar conta das aporias geradas pelo antecessor, o corpo ele mesmo passou a ser visto sob novos e promissores horizontes, com potenciais repercussões na medicina. Apesar de tais discursos terem surgido precocemente na crítica a Descartes (ver por exemplo, Spinoza 1632-1677 e David Hume 1711-1776), ao que parece, somente em 1945, com a publicação de Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty, o corpo parece ter sido entendido para além de uma simples ferramenta da mente, da vontade, ou do sujeito, como queiram.

Um desses discursos é, portanto, a fenomenologia. Ela talvez ainda tenha bons frutos a dar sobre essa questão tendo em vista suas surpreendentemente pouco exploradas possibilidades de análise, ao menos no âmbito da medicina. Pretendo mostrar nas próximas linhas, como uma abordagem fenomenológica inviabiliza o discurso cartesiano da corporeidade. Para isso, nos será útil rever o esboço do Cogito que Jenny Slatman [1] fez a propósito de uma discussão sobre “interioridade” das imagens médicas. A tese de Slatman é muito interessante. Ela diz que apesar de obtermos imagens corporais cada vez mais nítidas de nossos corpos em vida, elas não representariam nossa interioridade, nosso corpo vivo. Tal discussão se insere no contexto da virtualização do corpo pela medicina, assunto caro a esse espaço, mas do qual não nos ocuparemos agora. Passemos então, a Descartes.

O Método Cartesiano

Descartes inicia uma dúvida metodológica que o leva a uma busca do fundamento do conhecimento. “Qual seria a única coisa da qual não posso duvidar?” – é a sua pergunta. A resposta que obtém é “mesmo que possa duvidar da existência de tudo, ainda resta aquilo que duvida”. Essa “coisa duvidante” é um ego incorpóreo – já que as propriedades físicas estão também submetidas à dúvida -, e que nem sequer pode ser imaginado – outra situação altamente duvidosa. Sua única propriedade é a dúvida, ou melhor, o pensamento da dúvida: “Eu duvido, logo penso, logo existo” (ou no original em francês, “Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j’existe“). Tal raciocínio exclui tudo o que é exterior a mim, ou seja, implica em uma renúncia do mundo e, com ele, também do próprio corpo. A res cogitans cartesiana é uma interioridade incorpórea. O corpo é res extensa, uma outra coisa entre as coisas. Fonte de dados duvidosos.

O Fenômeno do Toque

No livro Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty cita uma experiência descrita por Husserl em seu Ideias II[2] que utiliza-se da distinção feita em alemão de corpo como objeto vivo (Körper) ou como experiência vivida (Leib). Tal distinção não existe em português (em inglês e francês, tampouco) e é provavelmente vinculada ao problema teológico cristão reformista da insuficiência do conceito de corpo biológico na articulação de um discurso que combine a pessoa individual com a alma imaterial, em especial no rito da Comunhão. Haveria, assim, duas formas de experimentar nossa natureza: no modo de experiência exterior objetificada (Körper), com respeito à natureza que nós temos e nossa relação com outros entes; ou no modo de auto-consciência (ou auto-afeto) (Leib), em relação ao que nós somos (lembrar que Leben é vida). Notar, como tentei mostrar na (mal traduzida) frase que epigrafa o post (aceito sugestões!), como tais conceitos se confundem ao serem transpostos para o português.

A experiência consiste em tocar com a mão direita (D) a mão esquerda (E). A mão D é ativa nesse processo em contraste com a E, tocada passivamente e poderíamos considerá-la o sujeito, sendo a E, o objeto. Até aqui, nada de mais. A inovação de Husserl é lembrar-nos que tocar a própria mão não é o mesmo que tocar um outro objeto qualquer. Há uma enorme diferença entre tocar minha mão e tocar o teclado do computador, por exemplo. Nas palavras de Slatman “A mão tocada sente que é tocada, sente sua tocabilidade“. E completa “a sensação da própria tocabilidade marca a transição do corpo de Körper para Leib”. Tocar minha mão e reconhecê-la como minha é bem diferente que tocar um objeto qualquer. Alguém poderia dizer aqui que o Leib nada mais é que nossa mente e nesse sentido não se diferencia absolutamente da res cogitans cartesiana. Seria, se fosse um “Leib puro”. Entretanto, é essencial ao Leib ter a experiência do próprio corpo, que é indissociável do Körper. Se o Leib assegura a sensação de auto-afeto como própria, ele não pode existir sem a possibilidade da tocabilidade que é oferecida pelo “material” do Körper, que, apesar de ser questionado, não pode ser eliminado. O Leib tem de ter uma espacialidade. Em termos cartesianos, o Leib poderia então ser comparado a uma experiência mental de sensações, mas que não consegue se desvencilhar de sua res extensa física. Posso duvidar de tudo, mas não posso questionar o fato de que o corpo que é tocado é o meu corpo e para tal experiência de “propriedade”* necessito de um corpo físico. Não dá. Não há espaço para esse tipo de ente na filosofia cartesiana.

O fato de o Cogito, ou o sujeito, nunca “purificar-se” completamente de sua fisicalidade implica, por um lado, na coexistência, mas não na coincidência, do Körper e do Leib, já que, caso coincidissem, a própria experiência seria impossível. Por outro, justifica a afirmação de que a consciência não é apartada do corpo. É embutida, incorporada, ou para usar uma terminologia automotiva, é uma “tecnologia embarcada” nele. É na dialética entre Körper e Leib que surge o espaço de sua manifestação. Slatman usa isso para demonstrar sua tese de que nossas imagens médicas estão mais para o pólo Körper que é o corpo visto. Leib é o corpo que está vendo.”Meu corpo não é apenas uma coisa que pode ser vista, mas que também pode ver”. “É Leib porque esse “poder ver” está entrelaçado com o movimento e o espaço e não é um modo mental (cartesiano) de ver, mas um modo incorporado de ver”. Mas deixemos Slatman e suas imagens agora.

A nós interessa o fato de que, com isso, o corpo abre a possibilidade de obter um tipo de conhecimento mundano impossível de se conseguir por outros meios. Como diz Nietzsche: “A coisa maior, porém, em que não queres crer – é o teu corpo tua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu” [3]. “Fazer Eu” é um conceito grávido de implicações, inclusive para o consigo mesmo.

*Slatman usa o termo “me-ness” que traduzi como “propriedade”, mas que poderia ser “eu-dade”, por exemplo.

ResearchBlogging.org[1] Slatman, Jenny (2009). Transparent Bodies: Revealing The Myth Of Interiority The Body Within, pp 107-122. DOI: 10.1163/ej.9789004176218.i-228.40

[2] Husserl, Edmund (1989). Ideas pertaining to a pure phenomenology and to a phenomenological philosophy. Second book: Studies in the phenomenology of constitution. Trans. Richard Rojcewicz and André Schuwer. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers. (Livro bem difícil de ler!!)

[3] Nietzsche, F (2011) Assim Falou Zaratustra. Dos Desprezadores de Corpos. p.34-35. Tradução Paulo César de Souza. Companhia das Letras.

Imagem de Sophia Ahmed no Street Anatomy. Clique na figura para ver o original.

Medicina, a Última Flor

O Ministério da Educação anunciou nesta terça-feira (3/12/13) a relação dos 42 municípios pré-selecionados para a implantação de novos cursos de graduação em medicina por instituições particulares de ensino superior. São eles:

Bahia: Alagoinhas, Eunápolis, Guanambi, Itabuna, Jacobina e Juazeiro
Ceará: Crato
Espírito Santo: Cachoeiro de Itapemirim
Goiás: Aparecida de Goiânia
Maranhão: Bacabal
Minas Gerais: Muriaé, Passos, Poços de Caldas e Sete Lagoas
Pará: Ananindeua e Tucuruí
Pernambuco: Jaboatão dos Guararapes
Piauí: Picos
Paraná: Campo Mourão, Guarapuava e Umuarama
Rio de Janeiro: Três Rios
Rio Grande do Sul: Erechim, Ijuí, Novo Hamburgo e São Leopoldo
São Paulo: Araçatuba, Araras, Assis, Bauru, Cubatão, Guarujá, Indaiatuba, Jaú, Limeira, Mauá, Osasco, Pindamonhangaba, Piracicaba, Rio Claro, São Bernardo do Campo e São José dos Campos.

O estado de São Paulo tem, como mostra a lista, 16 municípios entre os pré-selecionados o que, somados às 37 escolas médicas já existentes, totalizam exatamente 53 unidades de ensino de graduação em medicina em território paulista. Destas, apenas 4 são públicas e, consideradas as melhores, são também as mais concorridas.

A primeira pergunta que me ocorre é: O Brasil precisa de mais médicos? A resposta me parece claramente afirmativa. Segunda: O que o país está fazendo para que isso seja resolvido? Abrir novas faculdades de medicina poderia parecer realmente uma alternativa viável e lógica. Entretanto, como mostrei há algumas semanas atrás, isso já foi feito à exaustão!! Nos 8 anos de governo FHC e nos seguintes 8 anos de governo Lula, foram abertos 86 cursos de medicina, a grande maioria privados, ao longo de todo o território nacional. Os chamados “vazios assistenciais” foram preenchidos? Não. O SUS ficou mais abastecido de médicos dispostos a trabalhar nas condições a eles impostas? Também não. (Não vou nem enveredar por outras profissões da Saúde, como por exemplo, a enfermagem, que tem inúmeros cursos e continua sendo pouquíssimo valorizada e tampouco remunerada de forma condizente a sua enorme importância. Meu foco aqui é a profissão de médico e seu papel no sistema de Saúde brasileiro.)

Tudo leva crer que a solução de nosso problema não está, portanto, no número de médicos formados, mas sim, no tipo de médico que formamos. Desde o início do século, optamos por um modelo de ensino que faz do médico um intelectual, no sentido de elite pensante, da medicina. Nossa formação é muito dispendiosa, não só em recursos, como em tempo, além de intimamente relacionada à tecnologia e à ciência. Desta última emprestamos a ideologia, normas de conduta e, mediante um velado imperativo moral, somos compelidos à contribuir com ela, sob o risco de perdermos reconhecimento e status. Tudo isso nos transforma em profissionais exigentes, consumidores de recursos e eternos insatisfeitos. Nossa longa formação só vale a pena se, ao fim e ao cabo, pudermos ser remunerados de forma “justa” pelo vasto tempo que passamos estudando e em treinamento. Sem falar nos congressos e cursos de atualização que nos são exigidos. Dizem alguns amigos da área que a vida útil de um cirurgião vai, em média, até os 70 anos. “Se não fizermos o pé-de-meia até lá…” – e fecham a frase com uma careta de preocupação. Esse raciocínio caricaturado aqui é disseminado em seus mais variados graus no pensamento de cada médico.

A abertura dessas novas faculdades de medicina, a meu ver, deve ser precedida pela discussão de qual modelo de formação médica será o adotado nelas. Há alternativas. Os médicos cubanos vêm de outra matriz teórica da medicina. As faculdades de Nurse Practitioner no Canadá, Austrália e EUA preenchem vários requisitos daquele tipo de profissional que buscamos. Se os problemas da Saúde Pública brasileira não foram resolvidos com a abertura de 86 escolas médicas no início dos anos 2000, como concordar com a insistência nesse tipo de solução (que chamei de “lógica de RH“)?

O que fazer se nem entidades médicas, nem tampouco líderes nacionais, reconhecem que há um modelo? Que houve uma opção e que talvez hoje ela não seja a mais adequada, necessitando de uma correção em sua rota? Que fazer se líderes nacionais, entidades médicas, professores, médicos, donos de hospitais, planos de saúde, e todos que vivem e/ou trabalham com a Saúde neste país e que têm uma caneta na mão, dão cabeçadas e parecem tatear às escuras, ajudando a demonizar uma classe profissional de forma rasa e inconsequente, sem que a verdadeira questão subjacente à toda superfície caótica na qual se dá o embate seja sequer ao menos arranhada?

A medicina, da forma como a conhecemos hoje, não vai durar muitos anos. Há quem veja nisso uma coisa boa. Há quem lamente. Eu acredito que não é necessário destruir um modelo para construir outro. Há que se preservar o que há de bom e corrigir o que há de errado. Ao parafrasear Bilac e utilizar o bordão de que a medicina é a última flor, me refiro, diferentemente do poeta, a várias “planícies” das quais a medicina poderia ser um derradeiro legado. Gostaria de chamar a atenção com isso para o topos de uma profissão encravada na fronteira de um embate ideológico; emboscada, de um lado, pela economia e o monetarismo, de outro, pela tecnociência; submersa, portanto, nos tecidos profundos de um corpo social da qual ela mesma é um subproduto. Entranhada na sociedade, a medicina, ao mesmo tempo em que cuida de males, também adoece como parte desse todo. Também ela, medicina, reproduz a tensão do corpo que habita e examiná-la com cuidado talvez seja a melhor forma de diagnosticar o mal maior. Nesse sentido, ela funciona como nosso próprio mecanismo de cicatrização: os genes controladores da divisão celular que nos regenera guardam consigo o terrível poder de nos matar. Naquele caso, e também aqui no nosso, não pelas faltas, mas pelos excessos.

Flor no deserto

Atualização (28/12/2013)

Na PORTARIA No 731, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013 do D.O.U. (pdf) foi publicada nova lista de municípios pré-selecionados para implantação de curso de graduação em medicina por instituição de educação superior privada (grifos meus), acrescida de 7 outras cidades. São elas:

1. MG: Contagem

2. PR: Pato Branco

3. RJ: Angra dos Reis, Itaboraí

4. RO: Vilhena

5. SC: Jaraguá do Sul

6. SP: Guarulhos

Com isso a Grande SP poderá receber mais uma escola médica, totalizando então, numa área de aproximadamente 20 milhões de habitantes, 14 faculdades de medicina, se não considerarmos Jundiaí e Mogi das Cruzes como parte da conurbação paulistana.

Glicose Média Estimada

O Sr. Apolônio olhou seus exames pela página do laboratório na internet e, estarrecido, viu sua glicose no valor de 123. Pensou, “estou diabético!!” Desesperou-se e correu para consulta com seu médico. Na consulta, verificou com auxílio do doutor, que havia duas dosagens de glicose em seus exames: a primeira, chamada glicemia de jejum que era de 87. A segunda, chamada de glicose média estimada (GME), tinha o valor de 123. Em qual acreditar? “Sêo” Apolônio está ou não diabético?

Esta tem sido uma dúvida comum no consultório desde que um exame chamado de glicose média estimada (GME) passou a integrar recentemente o rol de exames bioquímicos de alguns laboratórios. Ele é derivado da dosagem da hemoglobina glicada (HbA1c) e envolve, para sua correta interpretação, uma combinação de conceitos bioquímicos, fisiológicos e estatísticos aliados ao julgamento clínico e estimativas bayesianas sumárias. Tais conjecturas dão bem a ideia da complexidade envolvida na interpretação e aplicação clínica de um dado laboratorial de forma responsável. Outros textos relacionados a esse tema são O Check-up, “Procuradores” e “Achadores” e Os Efeitos Colaterais do Rastreamento. Neles, procuro abordar o tema do check-up e a interpretação dos exames que, claro, não se resume a avaliar se os resultados estão ou não dentro dos valores de referência.

Mas, voltemos ao Seu Apolônio e seu possível diabetes.

O principal achado do diabetes, qualquer que seja seu tipo, é a elevação crônica e persistente da concentração de glicose no plasma e outros fluidos corporais (como o liquor, interstício, urina, etc). Esse aumento estimula a ligação não-enzimática da glicose com proteínas orgânicas, sendo as mais estudadas a albumina, o colágeno, a LDL (fração que carrega a molécula de colesterol) e a hemoglobina. A hemoglobina tem a função de levar o oxigênio dos pulmões para os tecidos periféricos e, para isso, tem uma “relação de amor e ódio” com o gás. Se por um lado, precisa estar “muito afim” do oxigênio durante sua passagem pela circulação pulmonar, por outro, na periferia, tem que abrir mão dele de modo a liberá-lo para que seja utilizado pelos tecidos. Essa “mudança de comportamento” da hemoglobina é mediada por interações complexas entre os prótons, o ânion cloreto, uma molécula muito particular chamada de 2,3-difosfoglicerato, o gás carbônico e a temperatura e que ocorrem tanto no interior como na membrana da célula vermelha, a hemácia.

Por meio de uma ligação a moléculas de valina, a glicose altera o equilíbrio de cargas e deixa a hemoglobina com uma conformação quaternária (figura 1) de menor afinidade pelo O2.

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 Fig 1. Níveis de Estruturas Proteicas Genéricas.

A hemoglobina, como sabemos, está empacotada dentro das hemácias, uma das poucas células do organismo que não necessita de insulina para que a glicose adentre o meio intracelular. Essa adaptação é importante para que se possa garantir a entrega do O2: o metabolismo das hemácias só utiliza a via glicolítica, não convém ao entregador de pizza experimentar um pedaço da encomenda. Uma vez glicada, a molécula de hemoglobina só se livrará de seus açúcares quando for destruída e isso ocorre quando a hemácia fica velha, perdendo a flexibilidade de sua membrana. Nesse momento, no baço ou no fígado, ela ficará aprisionada em pequenos canais chamados sinusóides e será lisada (explodirá) liberando seu conteúdo para que seja reciclado. É possível por meio de técnicas de laboratório dosar essa hemoglobina glicada e o que veremos é um gráfico semelhante ao da figura 2 abaixo.

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Fig 2. Cromatografia mostrando o pico de HbA1c (glicada) comparado com a HbAo (normal).

Ora, qual é a vida média de uma hemácia? Em torno de 120 dias. Então, alguém, há muitos anos atrás, pensou: se dosarmos a quantidade de hemoglobina glicada (HbA1c) presente no sangue de uma pessoa poderemos ter ideia da concentração de glicose que “bombardeou” suas hemácias nos últimos… 120 dias! Genial, não? Todos temos entre 3 e 4% de nossa hemoglobina ligada à glicose normalmente, sendo desprezível a participação de outros açúcares. A glicemia após um jejum de 12 horas pode vir baixa, mas a HbA1c não nos deixará enganar. Se a pessoa descuidou do diabetes nos últimos meses, o médico saberá. (Risada maligna).

Mas e a tal da glicose média estimada? Partindo-se do princípio de que existe uma relação direta entre a concentração de glicose plasmática e a taxa de glicação da hemoglobina, a HbA1c é um reflexo das variações da glicemia nos últimos meses e pode ser traduzida como se fosse um valor de glicose médio durante todo o período; como se a glicose fosse constante durante toda a vida das hemácias. Esta é a glicose média estimada. Sua relação com a HbA1c pode ser expressa pela função

GME (mg/dl) = 28,7 × HbA1c − 46,7

Que dá origem a tabela da figura 3.

hba1c

 Fig 3. Tabela fornecida pela Associação Americana de Diabetes com a correlação entre HbA1c e a glicose média estimada (em duas unidades mg/dL e mmol/L, sendo a primeira mais utilizada no Brasil).

Isto posto, os valores de HbA1c e da GME são úteis para avaliarmos o controle do diabetes. Estudos têm mostrado que os níveis de HbA1c e sua correlata GME são preditivos de complicações do diabetes a longo prazo, como mostra a figura 4 abaixo.

image8Fig 4. Risco Relativo de complicações a longo prazo de acordo com o nível de HbA1c (clique na figura para o original).

Além disso, a HbA1c vem também sendo utilizada para o diagnóstico de diabetes. Pessoas com níveis acima de 6,5% são considerados diabéticos pela Organização Mundial da Saúde com a ressalva de que um nova dosagem deva ser realizada em curto espaço de tempo para confirmação. Níveis entre 6,0 e 6,5% têm risco aumentado para a doença e devem ser acompanhados de perto além de incentivados à realizar mudanças nos hábitos e tentar perder peso.

Mas e o Sêo Apolônio? Como fica? Podemos aplicar o que sabemos agora e descobrir se ele tem ou não diabetes. Se desenvolvermos a fórmula acima, com uma GME de 123, obteremos o valor de 5,92% para a HbA1c (que eu propositalmente ocultei desde o início do texto – outra risada maligna). Conclusão, Sêo Apolônio ainda não está diabético, mas o susto vai ser muito, muito bem aproveitado, podem ter certeza…

Medicina: A Última Flor?

A última flor

A medicina, da forma como a conhecemos no Brasil, parece mesmo estar extinguindo-se num longo processo que tem acelerado nos últimos anos. Ao menos essa parece ser a intenção do governo federal a se julgar o conjunto de ações que não só este como seus antecessores vêm tomando já há algumas décadas. O último ato dessa peça foi o manifesto irado do CFM sobre a quebra de um possível pacto realizado com a base governista quanto ao entendimento relativo à aprovação da Medida Provisória 621/2013 da Lei 12.871/13 (Lei do Mais Médicos). O CFM envereda por uma argumentação política que não é bem sua praia e demonstra até um certo desespero pueril ao tecer críticas ao governo que fogem do âmbito da medicina: como quando denuncia “nomeações para altos cargos do Poder Judiciário sem observar conflitos de natureza ética” ou quando conclui que as obras de transposição das águas do rio São Francisco são caras e ineficazes. Não que o CFM não possa criticar o que quiser no governo, mas o contexto me leva a interpretar que tais críticas são uma reação a esse possível “movimento de extinção” da medicina como ele, CFM, entende que ela deva ser. Se a possível desfiguração da medicina vai ser motivo para comemorações ou luto dependerá do ponto de vista pelo qual se aborda o problema. Não tenho dúvida de que muitos comemorariam o fim da medicina da forma como é hoje. Outros lamentariam mudanças em algo que consideram muito bom. A visão ideológica de um aparelho biopolítico como é a medicina provoca uma polarização contraproducente ao debate. Abaixo, seguem algumas considerações fruto de longas discussões com colegas e pacientes.

O governo federal parece ter entendido o problema da saúde no país sob uma lógica “RH”, em detrimento, por exemplo, a um choque de gestão, ao foco em produtividade, otimização de recursos, isso para circundar o problema do financiamento dos serviços, talvez o principal deles. Ou seja, é preferível dizer que os principais agentes de um sistema de saúde, no caso (e aqui não há como fugir dessa responsabilidade e ônus) os médicos, sua qualidade (ou falta de) ou seu número insuficiente, são o grande entrave a uma boa assistência à população e não a falta de recursos, gestão, profissionais etc, ao menos de acordo com o que nos é dado a perceber pelas atitudes tomadas pelos técnicos do governo. Ações orquestradas nesse sentido vêm ocorrendo desde o governo FHC, por ocasião da aprovacão da chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), quando o então ministro da educação Paulo Renato de Souza, autorizou a abertura de várias escolas de medicina à revelia de pareceres de entidades médicas e de ferozes críticas do principal partido de oposição da época – o PT – com a argumentação, sob meu ponto de vista correta, de que estava havendo um “sucateamento” do ensino público em detrimento do ensino privado. Com o governo Lula, como é sabido, o processo de abertura de novos cursos médicos se intensificou. Segundo nota da Associação Médica Brasileira publicada n’ O Globo Online de fevereiro de 2007, “o ministro Paulo Renato, em oito anos, permitiu a abertura de 45 faculdades de medicina (0,4 faculdade/mês), 27 particulares. Em apenas um ano, Cristovam Buarque autorizou o funcionamento de sete faculdades (0,5 faculdade/mês), sendo seis privadas. Tarso Genro permitiu a abertura de 16 em 18 meses (0,8 faculdade/mês), 15 privadas. E não ficando atrás, o atual ministro Fernando Haddad, em 18 meses, autorizou 18 novas escolas (uma faculdade/mês), 16 privadas”. São números impressionantes.

Assim, no período relativamente curto de 16 anos, o Brasil teve 86 novas faculdades de medicina iniciando suas atividades. Com isso, os técnicos do governo imaginaram que resolveriam o problema do número de profissionais que, de fato, deixavam grandes vazios assistenciais pelo vasto território nacional. Mas a coisa parece não ter caminhado a contento. A ausência de médicos nos ermos do país, mesmo com a oferta de salários razoáveis, se mantinha e a abertura de novos cursos médicos só fez aumentar a concentração desses profissionais nos grandes centros, agravando o problema. Mas, qual seria a razão disso? O “remédio” aplicado aos cursos de Direito – ampliar largamente a base de alunos e jogar o gargalo da liberação de profissionais para frente, por intermédio de uma prova de título, deixando com que a “mão invisível” do mercado assuma o controle – parecia não funcionar com os cursos de Medicina. Por que?

A resposta a essa questão está longe de ser simples, mas arrisquei uma aqui no EM: as novas faculdades de medicina que foram abertas mantiveram-se dentro de um modelo de ensino orientado para abarcar as conquistas da revolução na ciência biomédica. “Ao atingir seus objetivos, [tal modelo] acabou por definir a especialização altamente tecnológica como a principal meta para medicina clínica”. A conclusão brilhante é que não adianta formar mais médicos, precisamos de médicos diferentes. Assome-se o fato de que alguns serviços públicos muito bons – o exemplo clássico utilizado aqui é o programa brasileiro de tuberculose -, estavam tendo problemas para administração das drogas em função da ausência de médicos e da proibição de outros agentes da saúde em “prescrever” tais medicamentos visto que a Lei do Ato Médico estava em trâmite no Congresso. Então, corolário disso, temos os vetos à Lei do Ato Médico e o programa “Mais Médicos” como resposta governamental a uma necessidade legítima da população por assistência à saúde mas, junto com eles, uma sensação de medidas algo populistas e/ou eleitoreiras tomadas às pressas, por um lado, e a ideia passada à população, não sem o auxílio valiosíssimo de catastróficas declarações de profissionais e de entidades médicas de todo país, de que os médicos, de forma geral, são todos um bando de corporativistas querendo cuidar de seu quinhão na sociedade, não se importando com a saúde do povo em geral, por outro. Ambas conclusões tomadas sob o calor da batalha.

Mas há outras questões. Essa filosofia de “departamento de recursos humanos” no trato da Saúde, temo, pode não funcionar a longo prazo. Pior, há uma chance de desmantelarmos no país uma medicina que tem lá suas glórias e é reconhecida por sua conquistas ao redor do planeta. Se nosso modelo hopkinsniano rockefelleriano atual não dá conta de atender a população, que se possa criar um alternativo que dê, mas não seria preciso destruir um para construir o outro. Talvez, a saída esteja na criação de um curso como o Nurse Practitioner dos EUA, Canadá e Austrália: um profissional que pode prescrever e atuar como agente da saúde em várias situações, muito mais útil, barato e acessível. Talvez passe também pelo fechamento de cursos médicos sem condições de funcionamento pleno dentro do modelo descrito acima (e há vários nessa situação), ou pela sua re-estruturação dentro desse novo contexto social, com sua substituição por algo equivalente ao nurse practitioner, ou como queira se chamar esse “técnico em medicina”.

O que não mais se admite são decisões unilaterais. O que não se pode admitir é que se excluam os vários segmentos da sociedade da discussão que não diz respeito apenas ao governo e seus programas de um lado, e aos médicos e o CFM, de outro. “Que tipo de medicina queremos?” – é uma pergunta importante. “Que tipo de medicina precisamos?” – é outra completamente diferente mas que também demanda uma resposta pronta e sincera. De todos.

Síndrome Pós-Pólio

Joaquin_Sorolla_Triste_Herencia

Por Meire G. (do Salada Médica) e Karl

Poliós (πολιός) em grego quer dizer “cinza”; myelós (µυελός), medula. Em 1874, o médico alemão Adolph Kussmaul (1822-1902) cunhou o nome da doença a partir de achados patológicos da medula espinhal de pacientes com a paralisia. A pólio já era conhecida dos egípcios constando em inscrições de 1400 AC, mas entrou para o hall da fama das moléstias humanas apenas na década de 50. A pandemia de poliomielite tomou de assalto a Europa e os EUA tendo como características peculiares, o alto número de casos do que foi chamado de pólio bulbar, no qual o paciente, a grande maioria crianças, perde a força da musculatura respiratória necessitando ventilação mecânica para não morrer sufocado.

O vírus da pólio é muito semelhante aos rhinovirus (RV), um dos causadores do resfriado comum, chegando a ter 45-62% de semelhança em seus genomas diferindo, entretanto, na construção da capa viral. Isso impede que o RV penetre na mucosa do intestino, mantendo-o nas vias aéreas superiores. Partilham entre si, no entanto, a alta infectividade de humano para humano, e daí as consequências desastrosas para o caso da pólio.

O último caso de poliomielite no Brasil data de 1990, tendo sido considerada erradicada das Américas em 1994. Em 2000 foi declarada oficialmente eliminada de 37 países do Pacífico Ocidental incluindo China e Austrália. A Europa foi declarada livre da pólio apenas em 2002. Em 2012, a pólio permanecia endêmica somente em três países: Nigéria, Paquistão e Afeganistão, muito devido a problemas religiosos associados à distribuição das vacinas à população. Infelizmente, o vírus da Polio acometeu muitas pessoas no Brasil deixando um número considerável delas com a conhecida deficiência física. Por outro lado, boa parte das pessoas com sequelas adaptou-se à limitação, cresceu, teve filhos, trabalha. Assim como outras pessoas com necessidades especiais, elas brigaram por seus direitos e hoje há reserva de vagas para elas em concursos públicos e em empresas privadas.

Muitos desses adultos estão enfrentando uma segunda grande batalha da doença: a síndrome pós-poliomielite (SPP). Boa parte dos médicos brasileiros em atividade hoje – nos quais nos incluímos – nunca viu um caso de pólio aguda, mas todos conhecemos suas sequelas. Agora é necessário uma atualização para o diagnóstico dessa complicação tardia de modo a dar o encaminhamento correto aos nossos pacientes. Há um interessante manual sobre isso disponível em pdf para download aqui.

A SPP vai se instalando devagar, depois de muitos anos: a perda de funções que as pessoas  tão bravamente conseguiram manter ocorre por volta dos 35 anos anos de idade, justamente na fase em que estão se estabilizando na vida e cuidando dos seus filhos.

O que ocorre?

A pessoa começa a apresentar um declínio das funções do membro acometido pela Polio no passado. Pode haver, em maior ou menor grau, cansaço, dor, alteração na mecânica do corpo, sintomas psicológicos, déficit de memória e piora da atrofia muscular, inclusive com osteoporose associada. Nos casos mais sérios pode haver inclusive alteração na deglutição e na respiração.

O enfoque principal do tratamento é a fisioterapia motora, além dos cuidados de se evitar exposição a agentes tóxicos para o tecido nervoso, como as bebidas alcoólicas. Evitar o excesso de peso e uso de órteses de compensação, com bengalas, por exemplo, são estratégias que não podem ser esquecidas. Outra coisa importante: a exposição a baixas temperaturas é um agravante para a dor.

Os trabalhadores sintomáticos devem passar por consultas com médicos do trabalho a fim de, preferencialmente, serem reabilitados para uma função compatível com o novo quadro. Os trabalhadores em situação de invalidez devem ser encaminhados para exame médico-pericial, de acordo com o regime de previdência ao qual estejam vinculados.O trabalhador em alto risco social e que não esteja vinculado a nenhum seguro sendo, portanto, excluído do direito à percepção de benefícios por incapacidade, deve entrar com um requerimento de Amparo Social junto ao INSS, através do telefone 135.

A atual geração de médicos, esperamos, seja a última a ver tais casos. Tomara a SPP seja o último suspiro da nêmesis humana que foi a poliomielite e que ela sobreviva apenas em interessantes obras ficcionais como a de mesmo nome de Philip Roth. A SPP e as obras de arte servem para lembrarmos do medo e da tristeza que ela espalhou e ora espalha, para comemorarmos nossas conquistas e jamais esquecermos daqueles que trabalharam para que nos víssemos livres. Ao menos desse mal.

wyeth_christina

~ o ~ o ~

Figura acima. Triste Herência. de Joaquín Sorolla (1863-1923). 212 cm × 288 cm, 1899. Coleção privada. A obra representa uma cena real da praia de Cabañal na cidade de Valência na Espanha. Nela são representadas crianças com problemas locomotores em um banho de mar em busca de suas propriedades curativas. A figura central é muito sugestiva de uma criança com as características sequelas da poliomielite, bastante comum na época, sendo amparada por um religioso da Ordem de San Juan de Dios.

Figura abaixo. Christina’s World de Andrew Wyeth (EUA, 1917-2009) de 1948. Têmpera em painel gessado. 81,9 x 121,3 cm. Museum of Modern Art, New York. Anna Christina Olson (1893-1968) foi acometida por uma doença degenerativa que a impediu de andar por volta de 1920. Apesar de não ter o diagnóstico correto, a paralisia foi atribuída à poliomielite. Wyeth a conheceu quando ela tinha aproximadamente 50 anos, apresentada por sua futura esposa, Betsy. A figura feminina que rasteja em direção à sua casa da fazenda, de fato a propriedade dos Olson, tem as pernas de Christina e o jovem torso de Betsy, à época, com pouco mais que vinte anos.

O Esquema Brasileiro de Citações e a Vira-Latice

Citation Stacking

Figura do artigo da Nature citado abaixo.

A Clinics, revista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP teve, juntamente com outras 4 revistas brasileiras, conforme noticiado aqui há 2 meses, a divulgação de seu fator impacto suspensa por 1 ano por práticas de citação anômalas. O professor Maurício Rocha e Silva, editor-chefe da revista, enviou uma carta-resposta a este blog, publicada em 27 de Junho do corrente ano, dando suas explicações. Desde então, nenhuma outra manifestação foi ouvida ou publicada; ao menos ao que nos foi dado saber. Até que, em 29 de Agosto, o jovem e ativo editor-assistente de notícias da fleumática NatureRichard Van Noorden, publicou um artigo em tom não muito elogioso, sobre o que foi chamado de “esquema brasileiro de citações”. O artigo mostra o processo de stacking citation (citação cruzada) utilizado pelas revistas brasileiras para inflar suas avaliações (ver figura acima). Deixa também claro que a forma com a qual a CAPES julga as publicações de seus bolsistas – o sistema QUALIS – do qual já falamos aqui e aqui, e no qual o fator impacto (FI) tem grande importância, gerou uma “adição” dos pesquisadores brasileiros ao alucinógeno FI. Segundo Van Noorden deixa transparecer por intermédio de declarações escolhidas de Rocha e Silva, tais distorções seriam fruto dessa política de avaliação da CAPES.

Não acho, particularmente, que uma coisa justifique a outra, nem, tampouco, a explique e esse é o verdadeiro problema. Além disso, nessa discussão ninguém citou o fato de que há um preconceito velado contra publicações latino-americanas. É muito difícil para um pesquisador brasileiro publicar seus estudos em jornais internacionais de grande impacto, mesmo quando o estudo é bom. Pior, mesmo que tal façanha ocorra, seu índice de citações é mais baixo do que o de seus pares do hemisfério norte, como mostra o interessante estudo dos professores Rogério Meneghini e Abel Packer citado abaixo (e que também já comentei). Por outro lado, fiquei sabendo, oficialmente, que o prof. Rocha e Silva não era mais o editor-chefe da Clinics pela Nature. Isso é um absurdo! Em todos os três posts nos quais divulguei e discutimos a notícia sobre a suspensão das revistas brasileiras venho cobrando uma manifestação oficial dos editores. Essa manifestação ainda não havia ocorrido até onde sei.

Hoje, 30 de setembro, recebi o email que publico integralmente abaixo (no original, em inglês):

POSITION STATEMENT

Wagner Farid Gattaz, Edmund Chada Baracat

In the light of the recent facts, we are working together with the Governing Council of Hospital das Clínicas and the Dean of Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, on implementing a new structure for the Editorial Board, which will consist of a joint Editorial leadership shared by a Scientific Editor, an Administrative Editor, and Associate Editors. Area Editors and the Editorial Office structure will not be altered.

All efforts are being made to ensure that Clinics continues to be one of the most important Brazilian scientific journals, and to reaffirm our commitment to high level scientific research, ethics, and transparency. CLINICS citation data will be permanently monitored and made available to all.

We look forward to returning to the Journal Citation Report (JCR) in June 2014, and to receiving a promising Impact Factor for 2013.

Esta carta está estampada na homepage da Clinics. Nenhuma menção à saída do prof. Rocha e Silva foi feita. Apenas um evasivo “à luz dos recentes fatos…” e uma declaração de compromissos com o batido “todos os esforços estão sendo feitos…” Eu insisto em uma explicação mais declarada do ocorrido, um pedido de desculpas, uma revolta contra a miséria intelectual do fator impacto, um libelo contra a Thomson Reuters, a exemplo aliás do boicote contra sua rival a Elsevier, um manifesto contra a CAPES e o QUALIS, um ode ao Open Access, ao modelo PLoS, sei lá…  Muita gente utilizou o artigo do Van Noorden como a pá de cal no FI. Eu vi nesse lastimável episódio de “falcatruas citacionais” a possibilidade de uma reação, de uma exposição de nossa situação terceiro-mundista frente as grandes potências científicas e suas “reservas de mercado”. O Brasil poderia liderar um grupo de vozes contra o monopólio das editoras e índices que nos dizem o quanto um pesquisador é bom ou mau, que estabelecem o preço absurdo das assinaturas de revistas e que, por fim, são quem determinam o maior viés de publicação.

Uma carta desenxabida e colonizada como esta só faz crer mesmo no pior.

Referências

Van Noorden R (2013). Brazilian citation scheme outed. Nature, 500 (7464), 510-1 PMID: 23985850

Meneghini R, Packer AL, Nassi-Calò L (2008) Articles by Latin American Authors in Prestigious Journals Have Fewer Citations. PLoS ONE 3(11): e3804. DOI:10.1371/journal.pone.0003804

 

A Fundação Rockefeller e o Modelo Filantrópico de Medicina

FMUSP contrução

Construção da sede da Faculdade de Medicina – Foto de 31 de Julho de 1929. Cortesia do Acervo da FMUSP

Parece ter havido um momento bastante peculiar e relativamente curto, logo no início do século XX, no qual as práticas de saúde, medicina incluso, sofreram uma modificação estrutural de proporções gigantescas. A formação médica, que era baseada na transmissão de conhecimentos do prático a seus aprendizes, muda repentinamente seu eixo em direção às grandes instituições de ensino médico; o estudo anedótico de casos clínicos dá lugar, sucessivamente, à estatística vital, à epidemiologia clínica e, claro, posteriormente à medicina baseada em evidências; Galeno sai, finalmente, de cena e entra Claude Bernard; o francês e o alemão, como línguas científicas, cedem espaço ao inglês. A maleta do médico é progressivamente substituída pelo hospital; tudo isso em não mais que um par de décadas.

Muito tem sido escrito sobre qual o papel desempenhado pelas fundações filantrópicas e, especificamente, a Fundação Rockefeller (FR), nessa revolução. Ele não foi pequeno. Há centenas de livros, documentários, artigos e uma simples busca na internet revela uma enorme quantidade de informações confiáveis em meio a outras cuja veracidade é difícil comprovar. A atuação da FR, bem como de outras entidades filantrópicas, na área educacional em geral e no ensino médico em particular, além de sua influência na saúde pública, agricultura, e outras tantas áreas nas quais a ciência estava em pleno desenvolvimento na época, tem sido tanto objeto de críticas violentas, como defendida com fervor e devoção até hoje. Mas, uma questão permeia incomodamente todo esse corpus monumental de ideias: Por que os maiores de todos os filantropistas, os Rockefellers, Senior e Júnior, orientados pelo reverendo batista Frederick Taylor Gates, escolheram a medicina? Tal decisão não parece ter sido tomada de modo súbito e consciente desde o início. A questão do saneamento básico era premente naquela época: esgotos a céu aberto, pobreza, água não tratada, epidemias de cólera, febre tifóide, ancilostomíase, febre amarela e malária dizimavam a população e diminuíam drasticamente a produtividade dos trabalhadores, em especial no Sul dos Estados Unidos. Com esse quadro caótico, nada mais natural que os incentivos às campanhas de erradicação de pragas, à pesquisa de novas técnicas agrícolas e ao fomento da ciência biomédica, bem como a construção de escolas e outros tantos projetos desenvolvidos por Gates e financiados pelos Rockefellers. Inicialmente com a fundação do Rockefeller Institute for Medical Research (hoje a Rockefeller University) em 1901, e depois, por meio do General Education Board a partir de 1903, a predileção quase obsessiva pelo ensino médico só viria manifestar-se com todas as suas características após o estabelecimento da Fundação Rockefeller em 1913 (perfazendo seu centenário em 2013, portanto).

Duas linhas de pensamento orientavam as práticas médicas na segunda metade do século XIX. A medicina social era, como vimos, um campo em pleno desenvolvimento e nomes como Villermé, Buchez e Guérin na França; Neumann, Virchow, e Leubuscher na Alemanha, estudavam as causas sociais e ocupacionais das doenças. Rudolf Virchow (1821-1902), um dos pais da patologia celular moderna e um dos médicos mais importantes do século XX, defendia que a medicina “deveria intervir na vida política e social”.  Por outro lado, desde Pasteur e Koch, proponentes da teoria infecciosa das doenças, uma visão algo mais “conservadora” começou a dominar a pesquisa médica já que a identificação de agentes responsáveis por toda a constelação clínica de sinais e sintomas que uma doença específica causa, encorajou a ideia de que terapias específicas tratariam doenças específicas. A descoberta de tais terapias deveria ter precedência sobre fatores econômicos e sociais. Não por acaso, Virchow se envolveu em embates sobre o assunto com Koch e Semmelweis, este último, o descobridor de que a causa da febre puerperal era a falta de higiene das mãos dos médicos. Quando da apresentação de Koch na Sociedade de Fisiologia de Berlim em 1882 sobre a descoberta de que um bacilo causava a tuberculose, Virchow, cuja visão podia ser classificada como “anticontagionista”, se opôs veementemente. Para Virchow, o fato de carregarmos bactérias em nosso organismo era sinal de que tais “micróbios” só causariam doenças se, por algum motivo, o hospedeiro se enfraquecesse. O anticontagionismo teimoso de Virchow foi uma reação à passagem para segundo plano de sua “teoria social das doenças”. Ambos médicos receberam verbas de seu país, montaram laboratórios influentes, receberam fellows e foram pesquisadores reconhecidos mundialmente, mas a visão “científica” de Koch e Pasteur era a mais adequada a quem tinha a “caneta na mão”. Para Gates, a miséria era uma questão técnica, não social. Como escreveu Brown [1]

Quando Gates, [Rockefeller] Júnior e outros homens da Fundação Rockefeller decidiram estabelecer a primeira escola de saúde pública dos EUA, eles selecionaram o Dr. Welch e a Johns Hopkins como seus veículos sabendo que a nova escola deveria ter forte ênfase nas ciências básicas e não divagar em questões sociais.

A resposta à pergunta “por que a medicina?” pode servir de base para entendermos a medicina que é praticada em grande parte dos países ocidentais e também no Brasil atualmente. Quando John D. Rockefeller o chamou para coordenar as ações filantrópicas do que viria a se tornar a Fundação Rockefeller em 1890, Gates comprou um exemplar do livro do canadense William Osler da Johns Hopkins (que, aliás, estagiou com Virchow em 1873), um dos médicos mais influentes da época [2]. Gates ficou fissurado pelo livro. Em uma série de memoranda enviadas ao seu “chefe”, ele defende que o desejo por saúde é uma força unificadora “cujos valores permeiam tanto o palácio do rico quanto a cabana do pobre. A medicina é um serviço que penetra todos os lugares”. Portanto, “os valores da pesquisa médica são os valores mais universais da Terra e eles são os mais importantes e individuais de cada ser vivente”[3]. Com a medicina, o reverendo Gates queria converter pagãos e angariar mercados de matérias-primas e viu nela um quebra-nozes cultural, capaz de transpor as barreiras que exércitos não poderiam transpor. A medicina tecno-científica seria o substituto secular do proselitismo cristão com as vantagens de poder exibir resultados incontestáveis na melhoria da vida das pessoas. A FR injetou 45 milhões de dólares na China para modificar a Peking Union Medical College e quantidade similar nas Filipinas, Tailândia, México, entre outros tantos países. Para o nosso país, valem as palavras da professora Maria Gabriela Marinho [4], maior estudiosa do assunto:

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, mais particularmente em São Paulo, o ensino e a pesquisa na área biomédica foram dimensões privilegiadas desse apoio institucional cujas origens podem ser identificadas em 1916, quando estabeleceram-se os primeiros contatos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Desses contatos iniciais resultaram dois grandes acordos, envolvendo recursos específicos e de grande monta: o primeiro, com vigência entre 1918 e 1925, destinado à criação do Instituto de Hygiene e para o qual foram enviados dois pesquisadores norte-americanos, Samuel Taylor Darling e Wilson Smillie. Como desdobramento deste mesmo acordo, foi criado ainda o Instituto de Pathologia, onde atuaram, entre 1922 e 1925, dois outros pesquisadores estrangeiros: o canadense Oskar Klotz e o norte-americano Richard Archibald Lambert. Especificamente no campo da Higiene, o processo traduziu-se pela criação, sucessivamente, da Cadeira de Hygiene (1916), depois Departamento de Hygiene (1917), posteriormente Instituto de Hygiene (1918), que resultou, finalmente, em 1946, na implantação da Faculdade de Higiene e Saúde Pública. O segundo grande acordo visou especificamente à reformulação da estrutura acadêmica da Faculdade de Medicina com o objetivo de transformá-la em instituição modelo para a América Latina, com base no projeto de excelência das Rockefeller’s Schools, disseminado em escala planetária e assentado no modelo uniforme de tempo integral para pesquisa e docência nas disciplinas pré-clínicas, numerus clausus (limitação do número de vagas) e criação do Hospital de Clínicas, recomendações preconizadas em 1910 pelo Relatório Flexner, encomendado pela Fundação Carnegie e substrato das reformas do ensino médico norte-americano no período. A abrangência da intervenção na Faculdade de Medicina de São Paulo pode ser aferida, entre outros indicadores, pelo volume de recursos a ela destinados pela FR: foram transferidos cerca de um milhão de dólares entre 1916 e 1931 para a remodelação do ensino médico. Aproximadamente no mesmo período – 1916-1940 – a mesma agência destinou cerca de quatro milhões de dólares para o combate à febre amarela em todo o território brasileiro.

A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo estabeleceu-se como uma “Rockefeller School”. Muitas outras escolas médicas a seguiriam em seu modelo hopkinsniano de ensino e pesquisa, algo avesso às “divagações sociais” e que floresceria na Ásia, Europa e América na primeira metade do século XX. Podemos afirmar que a formação médica no Brasil jamais seria a mesma após sua fundação. A pergunta que se impõe agora é saber quais os possíveis efeitos colaterais desse modelo vencedor de fazer medicina dado que os efeitos desejados, já são conhecidos: a FMUSP vem cumprindo seu papel de liderança no cenário médico brasileiro e latino-americano com projeção internacional. Quando perguntei se “ao trazermos, com força, ao debate acalorado de hoje, a ciência que nos embasa e nossa própria sabedoria prática médica como argumentos inelutáveis ao criticismo “laico”, não estaríamos também invocando os fantasmas de um certo “conservadorismo sofisticado”, autoritário e paternalista, aos moldes dos grandes filantropistas à frente de suas poderosas fundações?” era sobre isso que eu gostaria de saber. Sempre que somos chamados a nos posicionar sobre assuntos que nos dizem respeito – da vinda de médicos estrangeiros e sua forma de fazer medicina, às políticas de saúde, formas de remuneração e relação com outros profissionais -, não devemos nos esquecer das bases históricas, políticas e sociais nas quais nossa formação se insere, sob o risco de, ou associarmo-nos a mudanças sociais indesejáveis, ou retardarmos as que legitimamente representam um anseio da população, dado o papel singular que a medicina desempenha na sociedade, como já notava Gates. É preciso olhar um pouco para baixo e ver do lugar a partir do qual falamos. O “modelo filantrópico de medicina” foi uma alternativa norte-americana ao modelo “social” de medicina proposto por Virchow, pela Columbia e por outros tantos autores de orientação marxista. Sem juízo de valor, para que nos utilizemos melhor dele, será preciso nos emancipar de seus eloquentes resultados e considerar também o que foi deixado para trás, em especial, aquilo que ainda não nos é dado ver.

 

[1] Brown, ERRockefeller Medicine Men: Medicine e Capitalism in America. Berkeley, University of California Press, 1979. Disponível para download em Rockefeller medicine men : medicine and … – Revalvaatio.org

[2] Osler constituiu um dos quatro cavaleiros fundadores da Escola de Medicina da Johns Hopkins, chamados de The “Big Four” junto com William Stewart Halsted, Professor de Cirurgia, Howard A. Kelly, Professor de Ginecologia e  William H. Welch, Professor de Patologia. Um dos grandes méritos de Osler foi insistir na Residência como parte integrante e insubstituível da formação do médico.

[3] Gates, FT. “Address on the Tenth Anniversary of the Rockefeller Institute,” 1911, Gates collection, Rockefeller Foundation Archives, in Brown, ER.

[4] Marinho, MGSMCHorizontes, Bragança Paulista, v. 22, n. 2, p. 151-158, jul./dez. 2004 (pdf)