O Palácio Industrial
(via 100nexos)

“Mechanistic explanations seek to reduce principles to the least possible number, to explain in terms of the least common denominator, of parts rather than wholes, conditions rather than reasons. They seek to place all explanations at one level. A mechanistic explanation must be both logically simple and automatic.” (Marjorie Grene)
Segundo Ernst Cassirer [1] parece ter sido Driesch em 1904 quem primeiro adiantou a ideia de “mecânica do desenvolvimento”. Roux [2] (foto), entretanto, radicalizou o conceito e sugeriu um “novo ramo na ciência biológica cuja missão seria demonstrar a completa analogia entre a biologia e a física”. Para que esse intento tivesse êxito, era necessário que o organismo fosse regido eminentemente por forças mecânicas. O mecanicismo começava a fazer frente às potencialidades aristotélicas, dínamys e enteléquia, que tanta confusão e discussão haviam causado até então. O mecanicismo ainda povoa o pensamento ocidental, seja por suas explicações, seja pelo temor da influência no modo de ser humano.
Um bom exemplo disso é Fritz Kahn. Em 1927, ele concebeu o homem como palácio industrial e várias outras ilustrações que recentemente foram compiladas em um livro. Sua figura do homem-máquina pode ser vista aqui. Henning Lederer é um artista plástico contemporâneo fanático por mecanismos. Além de “animar” o Palácio Industrial de Kahn, animou outras obras de arte sempre tendo como tema mecanismos altamente complexos que acabam por determinar a vida do homem, quase que como uma inversão do “mecanicismo” original. Abaixo vão o “Homem como Palácio Industrial” e o “Showreel” ambos de 2009. Feliz 2010 a todos!
Der Mensch als Industriepalast [Man as Industrial Palace] from Henning Lederer on Vimeo.
Showreel 2009 from Henning Lederer on Vimeo.
[1] Cassirer, E. El problema del conocimiento IV. Fondo de Cultura Económica. Mexico. 5a reimpressão. 1993. pág 229-262.
[2] Roux, W. Der Entwicklungs-Mechanik. 1905. apud [1].
Foto de Wilhelm Roux daqui.
Schopenhauer, Rogozov e Apêndices
Frequentemente me perguntam se eu me trato ou trato meus parentes mais próximos. Digo sempre que não gosto e evito ao máximo, mas que se alguma emergência surgir, estarei lá, de prontidão. Sempre. É preciso, como já comentamos, um certo distanciamento para “objetivar” um indivíduo e considerá-lo um paciente. No caso de parentes próximos, esse distanciamento fica mais difícil.
Que dizer de si mesmo? Quanto de distanciamento é possível conseguir de si mesmo? Schopenhauer considerava o corpo uma encruzilhada. Na impossibilidade de conhecer a “coisa-em-si”, tudo que conhecemos é mediado pelo nosso corpo e se torna uma representação em nossa consciência. Mas como conhecemos nosso próprio organismo? Se por um lado, não podemos conhecer a realidade dele em si, por outro, o sentimos e vivemos nele como nenhum outro ser pensante no universo. Isso nos permite uma “visão” privilegiada do nosso corpo: percebemo-lo de forma imediata. Dessa forma, segundo Schopenhauer, ele se torna o ponto de partida do conhecimento. Mas, e quando esse corpo, ponto de partida, é, ele mesmo, objetivado, numa reviravolta metafísica, e submetido ao escrutínio da razão e da técnica que ele proporciona?
Esse rapaz bonitão da foto é Leonid Ivanovitch Rogozov. Em 5 de Novembro de 1960, ele embarcou em Leningrado na sexta expedição soviética para Antártica. Tinha 27 anos e interrompeu sua carreira acadêmica (uma dissertação sobre câncer de esôfago) para se alistar numa aventura. Depois de 36 dias, chegaram ao local programado. Iniciaram então, a construção de uma base militar chamada Novolazarevskaya que ficou pronta 9 semanas depois. O navio deixou então 12 tripulantes que deveriam passar o inverno na base antártica. Rogozov era o único médico do grupo (não havia enfermeiras, nem mesmo técnicos de qualquer espécie).
No dia 29 de Abril de 1961, Rogozov sentiu-se mal. Náuseas, vômitos, febre baixa e dor abdominal que logo localizou-se no quadrante inferior direito do abdome. Rogozov diagnosticou-se uma apendicite aguda. Tomou antibióticos, analgésicos e antitérmicos sem resultado. Compressas produziam alívio fugaz. Ele sabia: “não há tratamento clínico para doenças cirúrgicas”. Todas as tentativas nesse sentido só conduzem à catástrofes. Na impossibilidade de retornar e/ou de obter qualquer tipo de auxílio (hoje temos robôs que operam à distância), ele treinou 3 de seus colegas (um metereologista, um mecânico e o chefe da base) em procedimentos básicos como aplicar medicamentos e o que fazer em determinadas situações, esterilizou instrumentos e se preparou para operar-se.
Ele realizou uma anestesia local e após 15 min, fez uma incisão (me pareceu, pela descrição, uma incisão clássica no ponto de McBurney) de 10-12 cm e começou a procurar o apêndice. Ele operava sem luvas porque tinha que trabalhar basicamente dependendo de seu tato. Depois de 30-40 min, seus assistentes notaram respirações rápidas, palidez cutânea e sudorese, indicando que Rogozov estaria com vertigens. Como a visão era muito prejudicada, ele frequentemente tinha que levantar a cabeça para tentar ver o que estava fazendo, o que foi ficando cada vez mais difícil. A cirurgia durou 1 h e 45 min. Ele mesmo terminou toda a sutura. O apêndice estava necrótico. Ao final, ensinou seus assistentes a lavar a ferida e a realizar os curativos, tomou pílulas para dormir e descansou. No dia seguinte, teve febre 38,1 C, continuou a tomar antibióticos e foi melhorando lenta mas progressivamente. Ao cabo de 2 semanas, ele estava apto a trabalhar normalmente. Voltou à Rússia e ainda teve tempo de casar e ter um filho médico que escreveu sua história.

Rogozov, V., & Bermel, N. (2009). Auto-appendectomy in the Antarctic: case report BMJ, 339 (dec15 1) DOI: 10.1136/bmj.b4965
Fotos modificadas do artigo original. Sem permissão (por enquanto).

Sobre Fatos

@millorfernandes [no Twitter]
Achei esse texto apropriado às discussões recentes, a saber, o de entender algumas diferenças entre a interpretação dos fatos quando dentro de um contexto que tem o homem como objeto. É um pequeno excerto de um livro bastante interessante chamado “Trem Noturno para Lisboa” de Pascal Mercier [Record, 2009. Tradução de Kristina Michahelles]. Ainda comentarei mais sobre esse livro.
As Sombras da Alma
As histórias que os outros contam sobre nós e as histórias que nós mesmos contamos – quais delas se aproximam mais da verdade? É tão certo que sejam as próprias histórias? Somos autoridades para nós mesmos? Mas não é essa a questão que me preocupa. A verdadeira questão é: existe, nessas histórias, alguma diferença entre certo e errado? Nas histórias sobre coisas exteriores, sim. Mas quando tentamos compreender alguém em seu interior? Esta viagem algum dia chega a um fim? Será a alma um lugar de fatos? Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?
“Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?” é de uma crueza nietzscheana. O pequeno parágrafo junta teorias psicanalíticas, a formação do “eu” e a fundamentação da moral no sujeito. Qualquer consulta médica que se preze começa com o que se convencionou chamar anamnese (literalmente, não não-lembrar). Um paciente produz uma história sobre seu sofrimento, mas o médico deve estimulá-lo a produzir uma narrativa sobre si. Seu sofrimento não faz sentido se não for assim. Mas, seres humanos são bons para falar de coisas, não deles mesmos. A descrição formal das “coisas” permitiu o aparecimento da ciência. As descrições de si, são “loucuras” psicanalíticas, metade pseudociência, metade religião, com linguagem rebuscada e imprecisa, que frequentemente não chegam a lugar algum. É mais fácil falar dos outros.
O escândalo da vida é um fato. O aparecimento da consciência, uma fatalidade. Millôr sabe das coisas.
Foto: L’ombra burlona de ita145117

Tecnologias do Corpo
Há um campo da ciência médica que origina o que se pode chamar de tecnologias do corpo, por falta de uma expressão mais adequada. Não é medicina porque não diz respeito à saúde ou a doença especificamente. Alguém sempre pode argumentar que questões menos palpáveis como inadequações sociais e/ou sofrimento psíquico possam ser causados por, digamos, “problemas” orgânicos ou funcionais. Entretanto, exemplos como próteses de silicone, cirurgias para aumentar o tamanho do pênis, implantes clitorianos de colágeno, plástica de vulvas, despigmentação anal, anabolizantes de uma forma geral, uso recreacional dos inibidores da fosfodiesterase 5 (PDE5) (ex.: sildenafil) – em geral associados a antidepressivos que têm como efeito colateral a anorgasmia, de modo a retardar maximamente o orgasmo e manter pelo maior tempo possível a ereção possibilitando um desempenho sexual mais parecido com o de um atleta do que de um amante – não se constituem, convenhamos, algo que possa ser chamado de medicina.
Sempre que falo sobre esse assunto, alguém tenta correlacionar as tecnologias do corpo com a contemporaneidade, com nossa época atual e sua vertiginosa maneira lidar com o tempo: como que através de uma janela de um trem de alta velocidade. Mas as tecnologias do corpo são muito antigas. Desde métodos de tortura até a circuncisão, o homem vasculha seu corpo (e também o corpo de seus semelhantes) em busca de respostas, de performance, ou de simples satisfação de sua infinita curiosidade. Uma das mais comoventes e belas histórias sobre as tecnologias do corpo é a dos castratti. O filme acima, um fragmento de Farinelli, Il castrato, é uma ária da ópera Rinaldo de Haendel. Os castratti eram meninos que tinham o dom de cantar e que, para manter a voz num timbre muito especial, eram castrados antes que ela adquirisse o tom mais baixo, característico dos homens adultos. Esse timbre era cultuado nos meios musicais e o filme conta a história de um último desses meninos, Carlo Broschi. A voz que canta a ária no filme é uma mixagem de uma voz feminina e outra masculina (Derek Lee Ragin, um contra-tenor inglês e Ewa Mallas Godleska, uma mezzo-soprano polonesa) o que, segundo alguns especialistas, fez com que o timbre se aproximasse do original de um castrato. O filme mostra também o momento da castração com o menino imerso em uma banheira de leite. É emocionante e triste.
Vejo ainda o corpo como Nietzsche, que o chamava de a grande razão. Não concordo com a forma como tem-se disposto dele, o corpo, quase que escravizando-o, a serviço de pequenas razões banais. Lamento que muitos médicos se mostrem como veículos dessa vontade. Se o mundo ganhou Farinelli, perdeu Carlo Broschi, um menino normal. E pelo menos para a medicina, isso não tem preço.
O Caramujo e a Estrela
Hans-Georg Gadamer
Roberto Takata

Sim. O acaso permeia a teoria da evolução e Jacques Monod o intuiu. O Nobel de Medicina não o aliviou das críticas de seus pares. Poucos entenderam que ele falava do outro lado da fronteira que lhe concedera o prêmio: “O puro acaso, só o acaso, liberdade absoluta mas cega, está na raiz do prodigioso edifício da evolução”.

Caos e Ruína
Num mês em que comemorou-se 150 anos do lançamento da primeira edição d’ “A Origem das Espécies” (o leitor(a) pode ver excelentes revisões no SBB como pex, DE, CB, Psicológico, Marco Evolutivo e Gene Reporter, supercompletas), resolvi falar da razão (uma das!) da minha admiração pelo pensamento darwiniano.
Darwin é um poeta do acaso. Ele produziu a maior e mais demolidora ideia contra o conceito clássico de Natureza, que pode ser entendido como uma instância primitiva de interações entre os seres. Darwin criou uma história que, se contada da forma correta, dá conta de toda a brutal variedade biológica do planeta. Mas isso não é o que mais impressiona, nem o que incomodou o pensamento tradicionalista. O desconforto causado pela teoria da evolução vem do fato, no meu modo de ver, de ela ser uma apologia do acaso. Esse mesmo acaso que é a mais humilhante e incômoda ideia imposta ao homem desde o aparecimento de sua consciência e que tem na teoria da evolução, sua mais bem acabada e venal sinfonia. A história da filosofia poderia então, ser dividida entre filósofos naturalistas e anti-naturalistas, que podem ser chamados também de artificialistas ou partidários do artifício. Segundo Clement Rosset [1], fazem parte deste último grupo, nomes como os sofistas, Empédocles, os atomistas, Lucrécio, Maquiavel, Montaigne, Hume, Hobbes, Nietzsche e eu incluiria, Richard Rorty. “Somente a ideia de acaso permite a passagem do inerte ao vivo, sem que se recorra a um referencial metafísico”.
O mundo de Darwin se opõe ao de Platão. Platão desvaloriza o mundo sensível em detrimento a um onde moram as ideias primordiais e perfeitas. Ora, se somos criados no esplendor da perfeição, esse excesso de êxito só nos trará a possibilidade de degradação. Não é possível melhorar o que é perfeito. É preciso cuidar apenas, para que não se degrade. Segundo Rosset, toda a filosofia de Platão gira em torno desse esforço para evitar a corrupção de algo que era resplandescentemente perfeito. Por aqui, ainda vemos vestígios da perfeição por exemplo, nos corpos dotados de beleza, nos raciocínios claros e nas virtudes. Então, o mundo sensível de Platão, esse mundo que vemos, vivemos e interagimos, é um mundo em ruínas. Um mundo que olha o passado, lamenta o presente e aspira a outro mundo futuro.
O mundo de Darwin não é assim. É um só. Não há outro mundo. Apenas esse, e ele é caótico. Caos que não pressupõe uma ordem prévia que se corrompeu. Não vê uma ordem oculta ou providência. A total falta de propósito desse raciocínio é uma vertigem. Não há ordem, nem necessidade. Não é uma explicação, é uma constatação trágica. E pulsa, arrastando-nos para o presente, juntamente com tudo que realmente é. De rerum Natura.
[1] C. Rosset. A Anti-Natureza – Elementos para uma Filosofia Trágica. Rio de Janeiro. Espaço e Tempo. 1989.

O Bumbum de Gisele
Normalmente, as doenças são associadas ao feio ou mesmo à repugnância. Essa semana, me fizeram uma pergunta muito interessante. Haveria alguma doença ou anomalia que pudesse causar um efeito esteticamente mais agradável? Que desafio! Pensei várias coisas. A doença de Addison e a hemocromatose dão uma coloração bronzeada à pele – a la Índia – que me pareceu interessante, mas insuficiente para um efeito estético de impacto. A anorexia nervosa perdeu muito de seu apelo estético na era pós-AIDS. Mesmo as modelos, mudaram o protótipo de seus corpos depois dela. A própria Gisele Bündchen… ops, sim, Gisele! Acho que tenho uma resposta!
Gisele Bündchen é a top model mais badalada do mundo. Quando surgiu, me lembro de avaliações dizendo que seu sucesso era devido ao fato de não ser tão magrela quanto as outras e ter, digamos, seios e glúteos mais fartos que suas concorrentes. Quanto aos belíssimos seios, nada a dizer (só a suspirar…). Quanto aos glúteos, bem, acho que podemos revelar alguns segredos da top.

Gisele tem uma pequena deformidade da coluna lombar chamada lordose. A lordose e a cifose são acentuações de curvaturas normais da coluna vertebral, como mostra a figura ao lado. (Ver interessante post sobre as vantagens evolutivas da lordose nas mulheres no RNAm). Além disso, para desfilar e posar, ela exagera essa curvatura, dando ao seu quadril e bumbum um aspecto, digamos, bastante agradável ; ), como mostra a figura. Repare (se conseguirem), que a coluna lombar desenha um sulco bastante profundo nas costas da modelo. Os ombros jogados para trás facilitam essa postura e, sua viradinha na passarela, uma de suas marcas registradas, é clássica nessa posição.
Entretanto, a lordose é uma deformidade que se for muito acentuada é passível até de correção cirúrgica pois pode dificultar a marcha. Essa foto ao lado (), mostra uma menina anormalmente magra com uma acentuada lordose. Note como, mesmo sendo muito magra, o bumbum fica empinado. O inconveniente dessa postura é que, mesmo a menor gordurinha abdominal, faz aparecer uma barriguinha indesejável. Mas, convenhamos. No caso de Gisele, é difícil prestar atenção nesses detalhes.
Com essa estória, acabei por refletir sobre a relação entre deformidades anatômicas e beleza. As formas curvas e sinuosas sempre foram associadas à feminilidade e a beleza. Ao avaliar a primeira foto de Gisele acima lembrei de uma outra, também um modelo feminino. Numa época em que as mulheres bonitas eram bem mais rechonchudas do que os padrões de beleza exigem hoje, Sandro Botticelli pintou o quadro “O nascimento de Vênus” (mais ou menos em 1485). Quem vê o quadro todo, a leveza dos tecidos, a harmonia das figuras e a extrema beleza da Vênus, não se dá conta de seu pescoço extremamente alongado e do descaimento absurdo de seus ombros. Esse tipo de deformidade é visto em pacientes que se submeteram a um antigo procedimento para tratamento de tuberculose – a toracoplastia – e, garanto-lhes, não é nada bonito. De onde Botticelli tirou esse tipo de postura? Baseado no que, pôde ele combinar a anatomia levemente deformada de várias partes do corpo para criar um padrão de beleza único? E por que achamos que uma mulher de pescoço comprido e ombro caído, e outra, com uma deformidade na coluna, são tão belas?

O Nascimento da Vênus – Sandro Botticelli (cerca 1485)
Conclusão: se nem todas as doenças e/ou deformidades são associadas a feiúra; o imperfeito, o anormal, o incomum também podem gerar o belo. Se é possível ver o belo na imperfeição é porque “beleza” é diferente de “perfeição anatômica”. Então, é isso que Gisele me ensina como deusa estética que é! Peço então, que os deuses e deusas da medicina me ensinem sempre a ver o ser humano para além da doença. Me ensinem também já, se não for pedir muito, a desfocar meus olhos das repetições supernormais da vida de modo que eu possa compreender a fúria luxuriante de uma redenção estética da humanidade e não me deter na sua anêmica e total falta de sentido.
Atualização
Tive que trocar a foto da menina porque o site original saiu do ar (2x)
Battisti, Lula e a Prática Médica
O Ecce Medicus não é um blog sobre política. Entretanto, o caso Battisti se desenrolou de tal forma que gostaria de usá-lo como exemplo para discutir o caráter das decisões médicas. O leitor deverá estar pensando “mas o que isso tem a ver?” Eu digo que bastante, como tentarei mostrar nas próximas linhas. Um resumo da história pode ser encontrado aqui e cada um pode tirar suas próprias conclusões sobre a legitimidade da extradição.
Cesare Battisti participou de um grupo armado há 30 anos ao qual são atribuídas 4 mortes. Tem um histórico de fugas para França e Brasil onde foi detido em 2007. O estado italiano o considera um assassino. Foi julgado em condenado à prisão perpétua sem exposição à luz solar. A Itália solicitou sua extradição e o governo brasileiro vem resistindo a essa decisão, que foi parar no Supremo Tribunal Federal. O Supremo, depois de meses de avaliação, optou pela extradição em decisão bastante apertada (5×4) e deixou a decisão final ao presidente Lula. A Lula, portanto, caberá decidir agora, praticamente, sozinho, sobre o futuro de Cesare Battisti. Alguns devem estar pensando que é uma decisão bastante difícil, essa de definir o destino e mesmo a própria vida de um ser humano. E é mesmo. Como Lula deve proceder? Que tipo de arcabouço teórico Lula deveria utilizar-se para tomar essa decisão específica? Grosso modo, se levar em conta sua ideologia, por exemplo, não o libera. A Itália de Berlusconi está mais à direita que nunca. E se estiverem caçando as bruxas de um “comunismo” que já não existe? A própria França, tradicionalmente abrigou Battisti por um período. Por outro lado, se tomar por base o fato de a Itália ser um país com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas importantes, ser um estado soberano, ter elegido um primeiro-minstro democraticamente e ter um sistema judiciário confiável, deve-se respeitar a dor das famílias que perderam seus membros e a decisão do tribunal italiano, extraditando Battisti. Não importam os argumentos aqui. Importa a decisão de um homem sobre a vida de outro homem.
De que adiantaria demonstrar cartesianamente o envolvimento de Battisti nos assassinatos? Que tipo de ideologia poderia justificar um crime? A discussão é interminável. Nos interessa o caminho que será necessário para chegar a uma decisão baseada em algum tipo de racionalidade, e não simplesmente, a opinião e as idiossincrasias da arbitrariedade. Qual guideline, diretriz, recomendação poderia ajudar Lula a tomar uma conduta como essa? O direito tem uma figura de racionalidade chamada jurisprudência que pode basear uma decisão em decisões tomadas anteriormente. Mas Lula, não é um juiz! Estes por sua vez, já deram seu veredito. Cabe a Lula decidir e decidir baseado no coração ou no medo, não me parecem formas racionais de decisão.
Quando digo que me sinto só e que a ciência é um luxo com o qual não se pode contar sempre é sobre isso que estou falando. Deve ser o mesmo sentimento do presidente Lula agora.
Um Pouco da Pós-Graduação em Medicina
Para publicar de forma regular e sustentada no Brasil, em geral é preciso estar vinculado a um serviço de pós-graduação. Esses serviços têm uma avaliação da CAPES que é muito respeitada. A CAPES dividiu a ciência médica em 3 grandes áreas. Medicina I, II e III, conforme as especificações abaixo.
Essa divisão tem por base a forma como é conduzida a pesquisa em cada área. Notemos pois, que as áreas cirúrgicas, para dar um exemplo, ficaram todas reunidas na Medicina III. A CAPES classifica os cursos de pós-graduação na grande área da saúde de acordo com os seguintes critérios e respectivos pesos: corpo docente (30%), corpo discente (30%), produção intelectual (30%) e inserção social (10%). A produção intelectual é a que nos interessa nesse momento. Constitui 30% da nota de uma pós-graduação e é constituída pelo número de publicações qualificadas do Programa por Docente Permanente (50%), pela distribuição de publicações qualificadas em relação ao corpo docente do programa (40%) e por outras produções, exceto à artística (técnica, patentes, produtos, etc) (10%).
Nesses quesitos, para atingir o conceito excelente (7,0) é necessário que o docente publique 6 ou mais artigos em Qualis internacional A ou B, sendo que pelo menos 03 sejam em Qualis A. Mas que é Qualis Internacional? “Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela CAPES para estratificação da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação”. Para isso, a CAPES hierarquizou os meios de divulgação da pesquisa da pós-graduação (ou seja, os jornais científicos). “A classificação de periódicos é realizada pelas áreas de avaliação e passa por processo anual de atualização. Esses veículos são enquadrados em estratos indicativos da qualidade – A1, o mais elevado; A2; B1; B2; B3; B4; B5; C – com peso zero”. Obviamente, o fator de qualidade de cada revista é o seu fator impacto.
O problema é que a divisão das revistas é desigual de acordo com as subáreas, medicina I, II e III. Por exemplo, em levantamento realizado por um professor e apresentado em Porto de Galinhas – PE no III Encontro Nacional de Pós-Graduação na área de Ciências da Saúde em outubro de 2009, a Medicina III tem o seguinte Qualis e respectivos fatores impacto conforme a tabela abaixo.
Já a Medicina I tem a seguinte classificação de periódicos (tabela abaixo):
Como é fácil notar, as revistas de áreas clínicas para serem classificadas no nível A1, necessitam de um fator impacto bem maior. A que se deve essa diferença? Ao tipo de ciência que serve de base a cada especialidade, provavelmente. Algumas áreas sofrem períodos de expansão rápidos, em especial quando se criam novas ferramentas e tecnologias. Nesses períodos, os jornais estão propensos a aceitar determinados assuntos. Pesquisadores experientes detectam essas ondas, aproveitando para “encaixar” papers em revistas de impacto maior. Mas há outras fontes de desigualdades. Um docente tem uma classificação de publicações de acordo com a tabela abaixo.
Mas isso não dependerá apenas da competência do pesquisador médico. Depende, como vimos, da subárea a qual ele pertence (se medicina I, II ou III) e também da facilidade que ele tem para publicar. Podemos imaginar que quanto mais periódicos tivermos com fator impacto A1, mais fácil será a esse pesquisador divulgar seus resultados. Mas quem é que disse que o número de periódicos obedece a essa classificação da CAPES? Vejamos a tabela abaixo.
No caso da medicina III que, como vimos, tem o nível A1 com revistas de fator impacto maior que 2,85, temos uma diferença enorme entre as especialidades. A Urologia tem 26% de suas revistas com a classificação A1, enquanto que a Otorrino tem ZERO! Eu pergunto, como um docente da Otorrino pode ganhar o conceito muito bom e assim melhorar o conceito do próprio programa de pós-graduação ao qual é vinculado? Só se publicar seus dados em outras revistas de fator impacto maior, mas isso não é nada fácil! A linguagem de cada revista é própria pois ela se dirige a um público-alvo que é relativamente específico. Os pesquisadores reclamam da dificuldade em publicar em revistas de outras áreas, como por exemplo, um cirurgião publicar os resultados de um tratamento cirúrgico inovador para o câncer gástrico em uma revista de Oncologia (que têm, em geral, elevado fator impacto). Se pensarmos que as verbas de fomento à pesquisa também são distribuídas de acordo com regras parecidas, ou no mínimo, são levados em consideração todos esses conceitos CAPES, temos um sistema que não é assim, um primor de igualdade.

Futebol, Shopping e Medicina
“Quando eu era criança pequena”, morava no Butantã, bem ali, na entrada do campus da USP. O trânsito da região era bem outro e costumávamos jogar bola no asfalto da Rua Catequese. Mas esse “estádio” era para embates de pequeno porte. Os grandes clássicos eram disputados no “Areião”, pois era a única cancha que comportava um “11×11” ou mesmo “12×12”. Mas, isso era um evento raro. Eram necessários muitos moleques e o que acontecia apenas de vez em quando. Além do que, para irmos ao “Areião”, era preciso atravessarmos a ponte Eusébio Matoso que cruza a Marginal do Rio Pinheiros e depois a própria Eusébio, o que mesmo para essa época, já não era muito simples.
Aos fins-de-semana, o “Areião” era impossível para nós. Os campos, num total de nove, eram tomados por legiões de times amadores, marmanjos, que jogavam até acabar a iluminação natural. Ficávamos olhando e, como eles punham redes nos gols, aproveitávamos os intervalos para chutar bolas e bater alguns pênaltis, com intuito único de “estufar o barbante”, até sermos enxotados pelos grandalhões, e voltar a nossa posição de espectadores.
Eis que, um belo dia, depois da aula, resolvemos bater uma bolinha no “Areião”, não tínhamos um time completo mas, mesmo assim, optamos pelo “estádio” para nos acostumarmos ao gol oficial. Bicicletas, bola, o Rogério foi em casa pegar as luvas, tudo pronto. Alguns iam na garupa da Caloi, em pé; outros “tabelando” pela calçada. Atravessamos a ponte, depois a Eusébio Matoso, que não tinha passarela e começamos a notar uma movimentação anormal. Ao nos aproximarmos, a surpresa. O “Areião” estava tomado por tratores, máquinas escavadeiras e caminhões. Os gols haviam sido arrancados e jaziam, empilhados num canto. O Edvaldo cogitou levar um. Perguntamos na casa de quem ia ficar e ele desistiu. A mãe dele era muito brava. Saímos cabisbaixos, com o Edvaldo praguejando contra as poderosas máquinas e contra quem as mandara destruir nossa querida praça esportiva.
Logo um enorme shopping center foi construído e inaugurado no ano seguinte (1981). Ficamos sem os campos de futebol mas, ganhamos cinema, sorveteria. Restou, porém, uma enorme nostalgia dos campos do “Areião”.
A secretária colocou o seu Manuel, 88 anos com sua cuidadora no consultório. Muito bem vestido, de terno e gravata, apesar das sequelas motora à direita e de fala, contou, com um identificável sotaque português, toda sua história com detalhes impressionantes. Fora dono de uma grande rede de supermercados, bastante famosos em São Paulo. No final da década de 70, entrou num empreendimento revolucionário e bastante ambicioso. Devagar, foi me contando de sua vida, o estresse enorme que passou na época, até que, finalmente, disse que teve um derrame 15 dias após a inauguração de seu maior projeto: um shopping na zona sul, às margens da Marginal Pinheiros! Eu não aguentei e disse: – Seu Manuel, desculpe, mas o Edvaldo não teve a intenção!
Foto de Gilson Camargo.
