O Poder dos Prótons

Há um poder, silencioso e gigantesco que, entre outras coisas, é o responsável pela água na forma como a conhecemos no nosso planeta. Se a água é, por sua vez, a matriz de todas as formas vivas daqui, então tal poder também estará presente em cada ser vivo. A explosão de vida da Terra teve que lidar com ele para que pudesse florescer e, de fato, quando nos escapa esse controle, uma fera enjaulada foge e a vida diminui ou mesmo acaba. Podemos chamar isso de “doença”. Nos próximos posts vou tentar contar a história do Poder dos Prótons e seus desdobramentos na fisiologia e fisiopatologia dos seres vivos, em especial, dos humanos.

O Hidrogênio poderia, para todos os efeitos, ser considerado um elemento-traço. Para se ter uma ideia, sua concentração é 3,5 milhões de vezes menor que a do Sódio nos fluidos orgânicos. No soro, ela é da mesma ordem de grandeza do Molibdênio (20 nM/L) e bem menor que concentrações de elementos como Zinco (15 mM/L), Cobre (20 mM/L) e Selênio (1 mM/L) [1]. Como pode o Hidrogênio com uma concentração de 0,000 000 040 M/L ou 40 nM/L influenciar tão decisivamente os processos biológicos? Quais as razões que levam o íon hidrogênio a desempenhar um papel tão importante?

A primeira delas é, sem dúvida, a água. Todos os fenômenos biológicos ocorreram e ocorrerão sempre em soluções aquosas desde que a estrutura celular que caracteriza os seres vivos neste planeta seja mantida. A água tem, como se sabe, estranhas propriedades quando comparada a outros hidretos da família do Oxigênio (a família 6A na tabela periódica – Enxofre, Selênio, Telúrio e Polônio): altos pontos de fusão e ebulição, alta constante dielétrica (conduz correntes bem), alta tensão superficial (forma gotas muito resistentes), entre outras (Tabela 1).

Grupo

3A

4A

5A

6A

7A

B2H6 : -92.5

CH4 : -164

NH3 : -33.4

   H2O : +100

HF : -87.7

   H2S : -60.7
   H2Se : -41.5
   H2Te : -2

Tabela 1. A água tem um ponto de ebulição anormalmente elevado quando comparado por extrapolação em relação aos hidretos do grupo 6A (Oxigênio, Enxofre, Selênio e Telúrio). Os hidretos dos outros grupos são mostrados para comparação (3A Boro, 4A Carbono, 5A Nitrogênio e 7A Flúor). (Retirado daqui)

A grande maioria das estranhas propriedades da água provém da habilidade que ela tem de formar pontes de hidrogênio. Como se sabe, a ligação do Oxigênio aos dois átomos de Hidrogênio dá à molécula de água o formato de um “V” com um ângulo de 104,5o. Essa ligação é formada por um par de elétrons compartilhado (a chamada ligação covalente). O Oxigênio, no entanto, atrai o par de elétrons para bem perto de si (maior eletronegatividade) e transforma a molécula de água em um minúsculo imã com seus 2 pólos: o positivo (Hs) e o negativo (O). Quando um átomo de H, carregado positivamente, fica preso entre dois átomos de O, que têm cargas negativas, ele passa a funcionar como uma ponte entre os dois. Essa atração é 90% eletrostática e 10% covalente (há evidências de que eles podem realmente dividir orbitais, fazendo com que não consigamos saber qual ligação é a covalente), e cada molécula de água tem o potencial de fazer 4 pontes. Além disso, pode-se dizer que a ponte de hidrogênio é cooperativa isto é, uma vez formada a primeira ponte, a molécula torna-se mais apta a formar outras pontes e o fenômeno se dissemina. O contrário também é verdadeiro, ou seja, é mais difícil romper a primeira ponte, sendo que a energia necessária para romper as subsequentes vai, progressivamente, ficando menor. Isso transforma a água em um “sincício”, tipo um tecido tridimensional; daí a poderosa força de atração intermolecular que dota a água de seus elevados pontos de ebulição, fusão e tensão superficial. A formação das pontes de hidrogênio faz com que a entalpia (energia) do sistema fique mais negativa e a entropia (grau de desorganização) menos positiva ou, trocando em miúdos: a água se organiza!. Organiza-se com baixo custo, o que significa que é difícil tirá-la desse estado de organização e, na dependência da temperatura e pressão, temos a explicação de muitas das suas “estranhas” propriedades. Ou seja, se a água fosse apenas H2O seria um gás na faixa de temperatura que permite que seres vivos sobrevivam. No estado líquido, ela está na forma de (H2O)n, com n→∞, constituindo mais pontes de H que qualquer outro solvente e com quase tantas pontes quanto ligações covalentes. Esse sistema é interessante pois pode rearranjar-se rapidamente frente a estímulos como solutos ou alterações de temperatura, como uma rede tridimensional capaz de mudar o tamanho de seus “buracos” de acordo com o tamanho dos “peixes” que nela caem.

Além disso, a água demonstra uma extremamente baixa mas mensurável capacidade de formar íons. Ioniza-se devido a flutuações do campo magnético de seu dipolo causadas por vibrações complexas de sua estrutura molecular e também por posicionamentos espaciais favoráveis de suas pontes de H. Após a ionização, o H+ não permanece livre muito tempo (menos que 1% do tempo total) e é hidratado para formar o hidroxônio, oxônio ou hidrônio (H3O+). Os três átomos de H da molécula são equivalentes na ligação com o O e organizam as pontes com as moléculas de água adjacentes. O H3O+ exibe uma mobilidade frente aos campos elétricos de testes que é absurdamente maior que a prevista para um cátion monovalente (como o Lítio, por exemplo, que apresenta inclusive uma forma de hidratação semelhante). Qual seria a explicação para esse fenômeno?

Um próton pode viajar em uma solução aquosa de duas maneiras: uma, chamada hidrodinâmica, em que o H3O+ difunde-se como uma molécula comum abrindo caminho pelo meio aquoso; outra, chamada prototrópica e essa merece uma explicação. Em 1905 [2], foi sugerido que a transferência do próton poderia ocorrer por uma “rede” de pontes de hidrogênio, um processo que envolveria uma série periódica de polimerizações da água entre H9O4+ (cátion de Eigen) e o H5O2+(cátion de Zundel), conhecido como efeito Grotthuss [3], proton-wire ou proton-jumping, ou ainda water-wire. Isso só é possível, devido à efêmera duração da ponte (cada ponte tem uma duração média de 10 psec, sendo que 1 picosegundo = 10-12s) e à facilidade com que a água as forma e “re-forma”, como vimos. Dizemos então, que a alta condutividade do próton em meio aquoso ocorre devido a “mudança de identidade das moléculas de água que participam das pontes” pois os núcleos de H vão passando de uma para outra conforme esboça a figura 2, sendo que o que entra, é diferente daquele que sai.

Figura 2. Esquema simplificado do efeito Grotthuss

 Isso funciona parecido com o hipnotizante Pêndulo de Newton, na figura abaixo.

Pêndulo de Newton (fonte Wikipédia)

Mas…

O íon hidrogênio tem uma densidade de carga altíssima e isso ocorre porque ele é um cátion-anão (monovalente no qual não existem elétrons circulantes) sendo seu raio 105 vezes menor que qualquer outro. Por essa razão, tem um grande campo magnético ao seu redor. Assim, mesmo estando presente em concentrações baixíssimas nas soluções e devido sua alta mobilidade, o H3O+ é um “pentelho iônico” e pode afetar a conformação de proteínas, ácidos nucléicos e membranas biológicas, bastando para tal, que haja uma “brecha” eletrostática (cargas) na solução. Esse é o “poder dos prótons”, capazes de alterar todos os processos biológicos, portanto. Fenômenos semelhantes ocorrem com a hidroxila OH entretanto, sua mobilidade nas soluções tem sido bem menos estudada. Pesquisas recentes [4] demonstram que sua mobilidade também é anormalmente alta para um ânion de seu porte e, portanto, mecanismos semelhantes ao do H3O+ podem também ocorrer. Tanto o H+ como o OH são gerados pela destruição e destruídos pela formação de uma molécula de água. Se considerarmos que a água é, em ordem de grandeza, a mais concentrada substância dos sistemas vivos (55,3M – o que é 400 vezes mais concentrado que o sódio), e que ela provê uma fonte simplesmente inesgotável para esses íons, entenderemos porque eles se comportam de maneira tão diferente de outros íons de carga e massa semelhantes.

Com toda essa mobilidade e onipresença, é natural esperar que prótons penetrem as células com facilidade, podendo fazê-lo através da membrana ou por meio de canais, específicos ou não, para seu transporte. Tal fluxo é tão fundamental quanto o de água para a célula, pois está ligado à produção da energia que sustenta o metabolismo celular. Mas como evitar então, que o transporte de água em abundância através da membrana não cause uma catástrofe iônica na célula? Como evitar que os “pentelhos iônicos” dos H3O+ saturem as cargas das proteínas e as deformem fazendo com que percam sua função e, assim, parem o funcionamento da maquinaria celular?

É o que mostraremos no próximo post.

Referências Bibliográficas

[1]  Tietz N: Clinical Guide to Laboratory Tests, 3rd ed. Philadelphia, W. B. Saunders, 1995

[2]  Decoursey TE: Voltage-gated proton channels and other proton transfer pathways. Physiol Rev 83:475-579, 2003.

[3]  Agmon N: The Grotthuss mechanism. Chem Phys Lett 244:456-462, 1995

[4]  Tuckerman ME, Marx D, Parrinello M: The nature and transport mechanism of hydrated hydroxide ions in aqueous solution. Nature 417:925-929, 2002

Um Sistema Nacional de Controle de Receituários

Hoje, o Ecce Medicus tem a honra de receber Roberto Takata. Sujeito universal e “omnipresente” na e da internet brasileira – em que pese o fato de sua real existência ter sido seriamente contestada, o que eu, particularmente, duvido muito, apesar de não conhecê-lo pessoalmente -, seja por meio de redes sociais (em especial, o Twitter @rmtakata), seja como comentarista ácido de posts sobre os mais variados assuntos, seja, por fim, como autor dos imperdíveis blogs Gene RepórterNAQ (Never Asked Questions). Aqui, Takata sugere como o controle de receituários poderia auxiliar no acompanhamento dos pacientes e aproveita para elaborar uma crítica da situação atual, ao meu ver quase pré-histórica, do controle de receitas no Brasil. 

~ o ~

Por Roberto Takata

A lei federal 11.903/2009 criou o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos, cuja implementação está parada desde 2011. O sistema é importantíssimo para evitar não apenas a comercialização de medicamentos falsificados e fora do prazo, permitindo maior controle sobre medicamentos de venda restrita, além de também poder gerar dados fundamentais para orientação de políticas públicas e ações sobre a saúde da população, questões como automedicação, dependência química de medicamentos (analgésicos “fortes” e psicotrópicos, por exemplo) e mesmo acompanhar as regiões com maior demanda para certos tipos de produtos.

Um outro sistema, julgo, seria também de grande valor: o de rastreamento de receituários médicos, veterinários, odontológicos e agronômicos. Há algumas receitas que são retidas, outras que não. Para os medicamentos controlados, o controle é feito por guias numeradas de notificação de receituário: retidas na apresentação na farmácia. De todo modo, para a maioria dos medicamentos e produtos, essa informação não é compilada em um banco de dados que permita avaliar o quadro geral: onde, como, quando são geradas tais receitas? Nem há associação com dados do paciente como idade, peso, histórico médico…

Muitos consultórios já possuem sistemas informatizados de produção de receitas – entre outras coisas evitam a prescrição de medicamentos fora de uso, além da famigerada letra de médico. Esses sistemas poderiam enviar dados a um repositório central para cada receita emitida, associando-os aos dados do paciente (exceto, claro, dados pessoais como nome, número de identidade, endereço ou telefone – o paciente seria identificado apenas com um número hash único no sistema gerado no terminal do médico); o sistema central geraria, então, um número identificador e o associaria ao receituário, esse número seria impresso como código de barras junto com a receita. O retorno do paciente também seria registrado. Ao ser apresentado na farmácia, o código seria lido e a operação de compra registrada no sistema central.

Mas tal sistema não seria redundante em relação ao SNCM? Em parte sim. E isso não é ruim. A redundância permitiria uma avaliação independente de certos parâmetros; diferenças ajudariam a monitorar casos de erro ou de fraude. O cruzamento entre ambos os sistemas permitiria também acompanhar outros dados, p.e., seria possível inferir uma taxa de eficiência de medicamentos e grupo de medicamentos, a partir da comparação entre a receita inicial e os dados do retorno, em uma escala nacional. Se alguma reação adversa desconhecida ocorre em um grupo pequeno, uma interação medicamentosa não prevista, rapidamente isso tudo poderia ser descoberto.

Haveria ganho de eficiência também em relação ao sistema atual de notificação de receituário: em que o médico solicita uma sequência numérica para identificação das receitas, os dados são registrados a mão, depois é retido pela farmácia e enviada a uma central, que digitaliza os dados, compila-os e notifica a cada mês, trimestre ou ano. O registro seria quase em tempo real, eliminando etapas intermediárias como digitação dos dados.

Claro, um sistema desses não seria criado do dia para a noite. Afinal, nem o SNCM está efetivamente implantado. Mas frente a problemas de confiabilidade de registros de medicamento – a BigPharma, obviamente, tem seus interesses econômicos e a tentação é suficientemente grande para haver uma tendenciosidade (consciente ou não) nos dados publicados sobre a eficiência de seus produtos -, e mesmo de vendas de medicamentos, e sua receita (o caso é na Europa, mas poderia ocorrer aqui), creio que valeria a pena. (Sim, difícil é enfrentar um lobby bem organizado e abastecido.)

Sonda Vesical

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“Sonda” talvez não seja uma palavra médica, da gema, como se diz. A literatura médica de origem inglesa não utiliza o termo que parece ter etimologia francesa. Uma sonda é um instrumento utilizado para explorar, perscrutar, procurar coisas. Há sondas espaciais, sondas geológicas, petrolíferas, e uma infinidade de outras mais. Um endoscópio é uma sonda. Com uma luzinha na ponta, procura por lesões e alterações anatômicas. O termo técnico “da gema” que deve ser utilizado para nomear instrumentos que adentram as profundezas, por vezes insondáveis (não resisti), do corpo humano é “catéter”. Não vou entrar na discussão bizantina de “catéter” ou “catetér” visto que nada do que eu escreva acrescentará algo ao que o professor Joffre Rezende já escreveu anos atrás. A nós, basta saber que o grego kathetér está no Corpus Hippocraticum e que o fato de ser paroxítona ou oxítona depende da prosódia que herdamos, latina ou grega. Entretanto, por costume (e talvez por resquícios de nossa mui recente colonização médica pelos gauleses) utilizamos o termo “sonda”, em especial, para duas situações bastante comuns em medicina: a sonda nasogástrica e a sonda vesical. A segunda será objeto deste post, sabendo que, a rigor, seria um cateter vesical.

Tipos de sondas de Foley utilizadas em Medicina

A sonda vesical consiste em um tubo de borracha com um balão em sua ponta e é utilizada para escoar a urina da bexiga. É útil em obstruções uretrais e também quando é necessário a quantificação do volume urinário do paciente. A sonda vesical mais conhecida é a de Foley, nome dado em homenagem ao seu criador (ver figura ao lado).A sondagem vesical é um procedimento técnico e deve ser realizado por médico ou enfermagem treinados. O balão na ponta da sonda é utilizado para ancorá-la na parede da bexiga de modo que, após sua passagem, ela não seja retirada facilmente. Ele é introduzido, obviamente, desinsuflado e, após a constatação de que a ponta da sonda está no interior da bexiga (o que é notado pela saída da urina pela outra extremidade) é que injetamos solução salina, água ou mesmo ar na via acessória com objetivo de insuflar o balão e fixar a sonda. Feito isso, o paciente está sondado e temos nos esforçado para que fique assim o menor tempo possível pelo risco de infecções e outras complicações.

Uma das raras complicações que uma sonda desse tipo pode apresentar é quando a válvula que permite a injeção de líquido ou ar no balão deixa de funcionar. Nessa situação, não é mais possível desinsuflar o balão e puxá-lo insuflado causaria lesões uretrais importantes, além de dor intensa. O que fazer?Isso de fato ocorreu recentemente e a solução (os urologistas têm na ponta da língua) não é tão complicada como uma cirurgia. Prometo dar a resposta a esse enigma em breve.

Atualização e Resposta (09/11/12)

Pessoal, tentei bravamente conseguir o filme que justifica a resposta, mas não consegui. A saída escolhida pelos urologistas, em geral, é realmente explodir o balão! A capacidade da bexiga é bem maior que o balão e com 50 ou 100 ml, ele costuma explodir. Curiosamente, o relato dos pacientes que sentem a explosão, é um frêmito na região púbica e que é totalmente inócuo. Parabéns ao Ruan que acertou a resposta de prima. Desculpem pela demora da conclusão.

DEK – Estetoscópio, Broncograma e Pectorilóquia

A palavra estetoscópio parece ter sido forjada (dado que tais instrumentos médicos não eram utilizados pelo conterrâneos de Hipócrates) pelo francês René-Théophile-Hyacinthe Laënnec (1781-1826), ele mesmo o inventor da palavra e da coisa, a partir dos radicais gregos, stethos-, caixa torácica, peito (e até mamas); associada à -skopein, explorar, perscrutar. Stethos é, portanto, correlacionada à caixa torácica e ao peito. Provavelmente, esterno, como “osso que nos fecha o peito”, ou “que vem à frente dele”, também venha daí. Nada a ver com Estética que é de outro radical. Se bem que aisthanesthai, é “perceber, pelos sentidos ou pela mente”, ou seja, “sentir” e originou “estese” e seu oposto “anestese”, ou comumente “anestesia”, e se pode perfeitamente, com o estetoscópio, sentir ou ouvir ruídos do funcionamento normal do corpo humano. Em especial dos pulmões.

Árvore Brônquica (Fonte: Wikipédia)

Árvore Brônquica (Fonte: Wikipédia)

O ar, ao penetrar nas vias aéreas, produz uma sensação auscultatória (auscultar = escutar com técnica) semelhante àquela que temos quando encostamos o ouvido numa concha só que de forma intermitente, acompanhando o ciclo respiratório do paciente. É um som abafado e que é bem melhor percebido durante a inspiração e chamado poeticamente de murmúrio vesicular. Quando esse som fica nítido, o médico deve prestar atenção se ele pode ser ouvido durante a expiração também. Se isso ocorrer, chamamos esse tipo de ruído de respiração soprosa. A respiração soprosa ocorre por aumento da transmissão do som na caixa torácica e isso, geralmente, se dá por uma condensação do parênquima pulmonar que, dessa forma, conduz melhor a onda sonora. Nesse momento, o médico pode solicitar ao paciente que diga “trinta e três”. (Parêntesis: por que “trinta e três”? É pela vibração que provoca no tórax e para padronizar as auscultas. Em inglês e no alemão – onde foi descrito, é “ninety nine” e “neun und neunzig”, em espanhol “treinta-y-tres” ou “cuarenta-y-cuatro”. “Ointenta e oito” tem um som muito fechado. “Setenta e sete” e “cinquenta e cinco”, muito sibilantes, e ficamos no “trinta e três”. Fecha parêntesis).

Ao dizer “trinta e três”, o paciente faz com que sua voz trafegue pelas vias aéreas. Se houver algum local onde a transmissão seja acelerada por uma condensação parenquimatosa, e.g. uma pneumonia, o médico auscultará um “trinta e três” não abafado, mas bem nítido. É o que se chama pectorilóquia. Pectos-, latim, “peito”. Como em pectus excavatum (tórax de sapateiro), ou angina pectoris, “dor torácica de origem cardíaca”; -Ióquia, latim também, de falar. Donde colóquio (onde vários falam), ventríloquo (o que fala pela barriga), etc. Pectorilóquia é a “fala do peito”. E o que ela diz?

Imagem tomográfica mostrando broncogramas aéreos em uma tomografia

Imagem tomográfica mostrando broncogramas aéreos

Diz que há um local naquele pulmão onde o som chega, e para isso é necessário que um brônquio esteja aberto, e transmite-se tendo como meio um parênquima pulmonar “condensado”, ou seja, preenchido por conteúdo sólido e não pelo ar. Radiologicamente, esse som se revela num sinal chamado broncograma aéreo. O broncograma aéreo é o desenho por contraste de um brônquio com o tecido pulmonar densificado adjacente. É considerado característico de condensações e serve para diferenciar de outras doenças que causam densificações do parênquima pulmonar, em especial, das atelectasias. Nestas, os alvéolos estão murchos e não preenchidos por material inflamatório. Os brônquios, colabados. O som não chega à superfície da parede torácica com a mesma eficiência. É bem mais abafado.

A pectorilóquia é representada pelo sinal radiológico do broncograma aéreo que, por sua vez, tem como base a anatomia patológica do pulmão acometido. Um médico treinado, com uma manobra extremamente barata e eficaz (solicitar ao paciente que diga um número várias vezes) pode captar isso com a mão nas costas do doente (para sentir o frêmito) ou auscultando (diretamente com o ouvido ou mediatamente com o estetoscópio) e ter a visão radiológica e/ou da lâmina de microscopia representativa de sua doença. A pectorilóquia tem, portanto, uma representação fisiopatológica e anatomopatológica que provoca implicações no raciocínio clínico e gera consequências terapêuticas. Pensar medicamente é sentir a superfície, ver a profundidade e modificar a “história”. Pelo menos a “natural das doenças”.

Consultei

Carvalho VO, Souza GEC. O estetoscópio e os sons pulmonares: uma revisão da literatura. Rev Med (São Paulo). 2007 out.-dez.;86(4):224-31. (pdf)

O Nome do Doente. Poder e Identidade nas Práticas de Saúde no Brasil

Desenho de David Oliveira, escultor português. Vi no Street Anatomy.

Hoje, trazemos uma contribuição da professora Tatiana Piccardi da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com quem temos tido um contato enriquecedor e jubiloso.  O texto parte da nomenclatura atribuída aos agentes das práticas de saúde – pacientes e seus familiares incluso -, pelas formas contemporâneas da gestão em saúde, para fazer uma crítica da ética dos discursos envolvidos nessas práticas, concluindo que as novas terminologias podem ser “sinais e sintomas” dessas mudanças. Já comentamos sobre o assunto há alguns anos. De minha parte, deixaria o questionamento sobre se tais novas terminologias não seriam – elas mesmas – os vetores de tais mudanças, dada a possibilidade da linguagem de construir e constituir tais realidades. Bem, deixo que o texto fale por si. E ele é eloquente.

Por Tatiana Piccardi

Quando os discursos institucionais trazem à cena os agentes do sistema de saúde e os categorizam em grupos (gestores, profissionais de saúde e pacientes/familiares), apagam o fato de que esses grupos não se alinham com exatidão e não podem ser sequenciados como grupos paralelos entre si.  No caso dos gestores, sua menção os traz à cena como sujeitos alinhados a práticas políticas em saúde, práticas tais que, em tese, cabe a eles viabilizar em benefício do sistema. Trata-se, portanto, de sujeitos cuja subjetividade tende a ser apagada por força da atuação política. Sua fala é, assim, predominantemente institucional e se dá de cima para baixo.

Os profissionais de saúde, por serem os que interagem mais ou menos diretamente com os doentes e seus familiares, ocupam uma posição diferente nessa rede de relações. Ao mesmo tempo em que se alinham às prescrições de uma prática médica norteada por princípios objetivos e externos ao sujeito – inclusive políticos –, manifestam necessariamente sua subjetividade durante sua prática, sem o que não haveria a possibilidade mesma de interagir e se comunicar com seus pacientes e pessoas a eles relacionadas. Sua fala, portanto, oscila entre a fala institucional e a fala pessoal, ou seja, entre a fala prevista para o exercício da função e as falas espontâneas próprias das relações pessoais, em que as diferentes posições sociais dos sujeitos em questão não afetariam de modo predominante a interlocução.

O paciente e familiares, por sua vez, interagem com os médicos (e profissionais de saúde de modo geral) de forma predominantemente espontânea, o que significa dizer que sua prática, enquanto sujeitos enfermos que, em princípio, estão mais fragilizados e dependentes que seus interlocutores, ocorreria de modo a que a subjetividade fosse a tônica. Haveria por parte de tais sujeitos – antes de efetuar-se uma análise mais acurada – maior liberdade no falar e maior vazão dos sentimentos vários que permeiam esta prática interlocutiva.

Da perspectiva dos estudos da linguagem que se atêm ao estudo dos discursos produzidos nos diferentes campos da atuação humana, em especial os discursos ditos constituintes[1], o modo de articulação dos três grupos de agentes acima mencionados explica-se em função da força que os discursos político e científico exercem na esfera da saúde pública. Gestores e profissionais de saúde teriam sua prática fortemente determinada por tais discursos, que constroem uma certa identidade para tais sujeitos, que, por sua vez, a reforçam no sentido de marcar o pertencimento ao grupo.  Ocorre que o paciente e seus familiares não estão alheios a essa determinação. Sua espontaneidade e subjetividade explicitada não os coloca fora das coerções. Seu comportamento, inclusive linguístico/comunicativo, dá-se por coerção dos mesmos discursos, como o reverso necessário à prática de poder instituída pelos discursos político e científico.

Na interlocução com o médico (destaco o médico porque é na relação com ele que as coerções discursivas aparecem mais evidenciadas), o doente ocupa a posição assimétrica de “paciente”, de quem se espera todo um modo de comportar-se e reagir, em geral caracterizado pela subordinação ao médico e a suas prescrições, e pela não contestação à prescrição, uma vez que se subentende que o saber do médico se sobressai e ocupa lugar epistemológico superior aos saberes do paciente. Na relação com o sistema de saúde, personificado em gestores em diferentes níveis, o paciente ocupa a posição assimétrica de “usuário”, de quem se espera igualmente todo um modo de comportar-se e reagir, que se caracterizaria pela subserviência, uma vez que o saber burocrático do sistema não pode ser contestado.

As intricadas relações de poder no sistema público de saúde, de que inevitavelmente se impregna o SUS, não são novidade no âmbito das discussões sobre linguagem, conhecimento e poder. Michel Foucault há muitos anos discutiu a questão em sua obra. Em Microfísica do poder (2004), há textos que tratam especificamente das relações de poder na medicina. Em O nascimento da clínica (2006), desenvolve de modo brilhante as condições históricas que determinaram a ruptura que houve entre a prática médica do século XVIII e a prática médica que se inicia no final do século XVIII e início do XIX (período no tempo considerado marco para o que se convencionou chamar de medicina moderna).  Nesta obra, não se trata tanto, segundo o autor, de apontar as modificações havidas nos discursos médicos de um século a outro no que se refere à descrição das doenças e dos sintomas, ou mesmo de se avaliar as diferenças nas práticas médicas nos dois momentos, mas se trata, sim, de apontar as condições históricas que tornaram possível, de um século a outro, transformar de modo tão radical a relação médico e doente, a ponto de torná-lo secundário enquanto interlocutor, seja denominando-o “paciente”, seja denominando-o “usuário”.

Atualmente as condições históricas permitem rotular o doente de “cliente”, tendo-se em vista a crescente mercantilização da medicina na esfera privada. Ou ainda de “cidadão”, da perspectiva da gestão política que levanta a bandeira do direito à saúde. Permanece ainda assim assimetria. No primeiro caso porque, ao contrário do que ocorre em outras esferas do comércio, o “cliente” paga pelo que em geral não recebe; no segundo caso porque o “cidadão” não é respeitado como tal.  De qualquer modo, a nomenclatura para referenciar  o sujeito que procura atendimento médico no Brasil (paciente, doente, usuário, cliente, cidadão) é sempre problemática ideologicamente, sendo seu uso jamais neutro ou isento. O surgimento de novas terminologias é a contrapartida discursiva visível de profundas mudanças no modo como se relacionam os agentes do sistema de saúde.

Referências bibliográficas

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 6ª. ed., trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Forense, 2006.

________.  Microfísica do poder. 19.ed., org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 2004.


[1] Discursos constituintes são aqueles que, por sua tradição e força institucionalizante, são base para a produção de outros tantos discursos (os exemplos centrais são os discursos religioso, político e científico).

Foto do Street Anatomy.

Blog do David Oliveira.

Saturnismo

“Hence gout and stone afflict the human race;Hence lazy jaundice with her saffron face;Palsy, with shaking head and tott’ring knees.And bloated dropsy, the staunch sot’s disease;Consumption, pale, with keen but hollow eye,And sharpened feature, shew’d that death was nigh.The feeble offspring curse their crazy sires,And, tainted from his birth, the youth expires.”
(Description of lead poisoning by an anonymous Roman hermit, Translated by Humelbergius Secundus, 1829)
De gota e cálculo a raça humana padece; De semblante cróceo a icterícia esmorece; Paralisia, a cabeça treme e o joelho desce. E túrgido edema, do qual o bêbado padece; Consumptivo, pálido, de olhar vazio mas fulgente, E traços realçados mostram que a morte é iminente. A prole malsã execra seus antigos, loucos. E, maculados ao nascer, expiram-se moços.
(Descrição de envenenamento por chumbo, por um eremita romano anônimo, traduzida com graça e estilo pelo Igor Santos da tradução de Humelbergius Secundus, 1829)

 

Hoje aconteceu mais um fato a somar-se na intrincada rede que é a prática médica na saúde suplementar (é assim que o Governo divide a saúde: o SUS e o resto, este último chamado de “saúde suplementar”) que constitui e é constituída pelo comportamento do médico, dos pacientes e os interstícios ao qual ambos estão mergulhados, a saber, o mundo dos signos. Bem, a Medicina toda é assim. Um paciente veio procurar-me – logo eu, mero clínico a procura de seu lugar ao sol – com suspeita de intoxicação por chumbo. Eu sempre pergunto aos pacientes qual alma boa (ou não) lhes indicou minha pessoa e ele, para minha supresa, de modo franco, foi dizendo: “Bom, doutor. Na verdade, foi falta de opção mesmo.”

Eu, que já não me acho lá grande coisa, mesmo assim, fiquei surpreso com essa colisão frontal com a realidade, mas o paciente foi logo se explicando: “Não leve a mal, doutor. É que eu sempre gosto de procurar especialistas. Quando tenho dor de cabeça, vou a um neuro. Se tenho dor na barriga, um gastro. Otorrino, oftalmo, etc. Mas quando o médico da empresa me disse que podia ser intoxicação por chumbo, eu revirei a internet. Teria que ser um toxicologista mas não encontrei nenhum que faça consultório. Acabei optando por um clínico mesmo”. Claro que não levei a mal.

Na minha cabeça, enquanto o paciente falava, passavam inúmeras imagens, textos, parágrafos de livros (eu, algumas vezes, me lembro do local onde li ou onde estava tal foto, ali no canto superior esquerdo da página da esquerda… sou normal?). De repente, a sucessão de imagens parou e eu estava em Roma, a vecchia. Há quem diga que a deterioração moral e intelectual da elite de Roma estava ligada à intoxicação pelo chumbo que era adicionado ao vinho (e outros alimentos) à época, por ter sabor adocicado, corrigindo os fortes taninos, além de ser utilizado em utensílios domésticos.  O chumbo parece ter algum papel na queda do Império Romano. Júlio César, apesar de suas aventuras sexuais, não deixou muitos herdeiros e seu sucessor, César Augusto, além de ser totalmente estéril, não tinha o menor interesse sexual… Ahn? Como?

“Então, doutor. Eu acho realmente que tenho uma intoxicação por chumbo, pelo menos inicial. Mas, gostaria de investigar, porque na minha empresa, trabalho com um tipo de … e o médico disse que… e a minha mulher tá achando que….” Hmmm – disse, apoiando o queixo com os dedos em “L”. Vamos investigar.

O chumbo é um metal que deve ser dosado no sangue total já que adere à parede dos glóbulos vermelhos o que torna sua dosagem no plasma não confiável. Também por isso, causa uma anemia microcítica hipocrômica que faz diagnóstico diferencial com falta de ferro. Eu explico. A anemia causada pela falta de ferro faz os glóbulos vermelhos ficarem pequenos e desbotados. Igualzinho à intoxicação por chumbo. Temos que averiguar. Vou pedir também o ácido D amino levulínico na urina que pode mostrar se o chumbo encontrado no sangue está tendo algum efeito tóxico ou não. Vale a pena pedir Vitamina D e hormônio paratireoidiano (PTH) para checar alterações do metabolismo do cálcio… Ossos… radiografias…

Não encontrei nada de alterado no exame clínico. Fiz a solicitação de exames e pedi para o paciente remarcar tão logo tivesse seu resultado. Ele foi embora, pareceu-me, satisfeito. Impressão que confirmei com a secretária depois. No intervalo entre uma consulta e outra, sentei ao computador e fiquei pensando e escrevendo estas linhas…

Esse é um belo de um “furo” no raciocínio tecnicista da especialização desmedida da medicina atual, não? O paciente precisa de um super-especialista e não encontra. Nem pagando! A “mão invisível” do mercado da saúde suplementar ainda não está preparada para exceções anedóticas. Curiosamente, casos complexos são encaminhados aos hospitais-escola, invariavelmente pertencentes à rede pública, para serem desvendados. Por quê? Eu acho que é porque nesses hospitais, quando se consegue vencer as deficiências eternas, alguém “abraça” o caso. “Veste a camisa” e o paciente, cansado de procurar, tenta a sorte. Não que isso não exista na rede privada. Acho que existe sim, mas custa muito caro. Talvez nem todo mundo saiba, mas existe um vão entre os usuários da saúde complementar tão profundo e vasto quanto o que separa o SUS dela própria. Quando falamos de “convênios”, há pacientes tão desassistidos que preferem utilizar a rede pública, (se for ligada a algum hospital-escola, tanto melhor) a utilizar a rede própria da seguradora. Vivo isso diariamente e não sei como resolver.

Saturno é o planeta identificado com o chumbo, um dos primeiros metais descobertos e por isso, conhecido como o “pai dos metais”. Segundo o mito grego, Cronos (não confundir com Khronos – tempo) que romanizou-se para Saturno,  era um titã mórbido que castrou o pai – Uranus – e acabou devorando sua própria prole com medo de perder o trono. “A própria palavra saturnino significa especificamente o indivíduo com temperamento uniformemente sombrio, cínico e taciturno como resultado da intoxicação crônica pelo chumbo”. Soturno. O paciente não estava envenenado pelo chumbo, ainda bem. Mas, de repente, confesso que fiquei curioso em saber meus níveis plúmbicos…

~ o ~

PS. Veja a interessantíssima história das intoxicações pelo chumbo aqui.

UTI. Agradecimentos ao Igor Santos pela brilhante tradução acima.

O Batman e o Estudante de Medicina

Toda vez que médicos ou estudantes de medicina cometem algum ato hediondo contra a humanidade, sinto como se milhares de olhares virtuais se dirigissem a mim. Essa observação atenta deixa transparecer, por vezes, um certo ar reprobatório, em outras, permite perceber semblantes dúbios, num misto de dúvida e comiseração.

Quanto ao julgamento moral, não há como escapar. Tais atos acabam afetando toda uma classe de trabalhadores da Saúde e, dada a velocidade da informação, julga-se, condena-se, explica-se o inexplicável em escala mundial. Mas isso não me perturba. Me incomoda muito mais, esse olhar que pergunta: “Por quê?”. Ou “O que é que vocês veem, fazem, sofrem que, de súbito, um ou outro, aqui e acolá, rendem-se aos instintos mais sanguinários e crueis ?”. “O que é essa pulsão de morte que mora dentro de vocês?”.

Assim é, que um estudante de medicina chamado James Holmes de 24 anos matou 12 pessoas e feriu 59  no cinema onde estreiava o novo “Batman”, no estado do Colorado nos EUA. Em 1999, de modo incrivelmente semelhante, Mateus da Costa Meira, então com 25 anos, cursando uma tradicional faculdade de medicina em São Paulo, capital, disparou mais de 40 tiros contra a plateia no cinema de um shopping center que assistia o filme “Clube da Luta” na mesma cidade. As estórias de Eugênio Chipkevitch e Roger Abdelmassih já fazem parte de enciclopédias virtuais. Artigos são publicados com compilações de crimes perpetrados por médicos. Matamos calouros em trotes. Tudo isso sem falar nas horrendas “experiências” realizadas por médicos e cientistas nazistas.

À parte da sociologia dos fatos, qual seja, a das sociedades bélicas, facilidade ao acesso de armas, mentalidade do “kickass“, “Tiros em Columbine” (que aliás, faz 10 anos e continua atualíssimo), que deixo aos sociólogos e filósofos de plantão e; à parte das explicações psiquiátricas e psicanalíticas do que possa passar dentro da cabeça dessas criaturas, muito além de seu sofrimento difuso e profundo que deixo a quem de direito, vou ficar com alguns números.

O censo de 2009 mostrou que o Brasil tinha 330.825 médicos e 191.480.630 de habitantes. Isso dá, grosso modo, 1 médico para cada 580 pessoas. Entretanto, a distribuição é bem desigual. A figura abaixo mostra um quadro de 2007. O Brasil tem uma proporção de 900 pacientes para cada médico, segundo o autor. Segundo dados do CREMESP (pdf), a proporção de médicos na cidade de São Paulo é de 232 habitantes para cada médico. Em Santos, o número chega a 158, dados de 2009.

 

Com isso, quero deixar a pergunta: Médicos e profissionais da área da saúde cometem proporcionalmente mais crimes hediondos que a população não atuante nesta área específica? A resposta parece óbvia que não. Entretanto, os crimes praticados em especial por médicos têm um peso social muito maior dada a imagem que ainda resguardam no cotidiano das pessoas. O que acaba chocando não é o crime em si, já que, desgraçadamente, é mais um crime, mais uma chacina, mais uma bestialidade humana. O que chama atenção nos noticiários são dois fatos: O Batman e o estudante de Medicina.

Um real, outro imaginário. O Batman nos vinga. Haverá correlação? O massacre “cinematográfico” brasileiro ocorreu durante a exibição de um filme violento também. É um “n” muito pequeno para concluir, diriam. E discutiriam… Já a facticidade do “estudante de Medicina” choca porque vai no nervo exposto daquilo que nos mantém em pé e que não é a imaginação, o sonho, a virtualidade. Nem tampouco é facilmente quantificável, já que habita os recessos de uma subjetividade sobrescrita e desbotada a nós legada pela sociedade tecnológica e espetacular. O maior horror dessas estórias talvez não seja proveniente do fato de que o vilão “Estudante de Medicina” mata seres humanos comuns, mas sim porque aniquila um dos últimos resquícios de nossa humanidade: a Esperança.

Razão de Chances

Outro dia, me perguntaram a tradução para o português brasileiro do termo estatístico odds ratio. Acho que a mais utilizada é mesmo razão de chances. Essa nomenclatura tem um significado muito especial porque chance é uma forma de exprimir probabilidade. Probabilidade, por sua vez, pode ser a medida de uma incerteza ou de uma expectativa de ocorrência acerca de um evento. É interessante separar essas duas formas de probabilidade porque delas se originam os dois ramos principais do pensamento probabilístico, a saber, “probabilidade tipo crença” e “probabilidade tipo frequência”, respectivamente [1]. Outros autores usarão os termos “subjetiva” e “objetiva”, “epistêmica” e “aleatória” e, finalmente, “bayesiana” e “frequentista”, respectivamente. Em medicina, usamos muito a frequentista apesar de que abordagens “subjetivas” têm sido cada vez mais frequentes, hehe. (Sorry, pelo trocadilho infeliz, ver aqui e aqui, pitacos recentes sobre Bayes).

Risco, chance e probabilidade são conceitos dos quais temos noções intuitivas e que, muitas vezes, utilizamos indistintamente. Mas há diferenças importantes. Diferenças que devem ser conhecidas tanto por quem reporta os dados, como para quem lê um artigo científico que os usa. Imagine a seguinte situação retirada do livro do professor Júlio César [1]. Foram analisadas 793 quedas de moto em determinada cidade. Alguns motoqueiros estavam de capacete, outros não. Alguns sofreram ferimentos na cabeça e outros não. Podemos usar a tabela abaixo, para melhor visualizar os dados.

Uso de Capacete

Total

Não

Sim

Ferimento na Cabeça

Não

428

130

558

Sim

218

17

235

%Ferimento na Cabeça

33,75%

(218/646)

11,56%

(17/147)

29,63%

(235/793)

Total

646

147

793

Por esses dados podemos concluir que a probabilidade de motoqueiros terem ferimento na cabeça após uma queda nesta cidade é 29,63%. Já a probabilidade de um ferimento na cabeça com capacete é de apenas 11,56% e sem ele é de 33,75%. Esses números se referem ao conjunto dos acidentados. Pacientes gostam de perguntas do tipo: “Dr, qual o risco de EU machucar a cabeça se EU andar de moto sem capacete?” Uma resposta possível seria: “Segundo um estudo, ao andar de moto em determinada cidade sem capacete, o risco de se lesionar a cabeça em um acidente é 33,75%”. Risco, portanto, seria a própria probabilidade trazida ao nível individual. Aí, a pessoa que fez o estudo fica famosa e vai dar uma entrevista ao jornal local. Lá pelas tantas, a repórter gata pergunta: “Muito bem, doutor, sabemos que o capacete protege contra lesões encefálicas. Mas, quanto?” Você pode fazer a seguinte conta 33,75%-11,56% = 22,19% e dizer que há uma redução de 22% no risco. A repórter: “???”. Você vendo o desespero dela e querendo ajudá-la (e aproveitando para se exibir um pouco), mentalmente, faz outra conta 33,75/11,56; e ao vivo, responde na lata: 2,92. O que quer dizer esse número? Quer dizer que o número de lesões encefálicas em quem se acidenta de motocicleta e não usa capacete é quase 3 vezes maior (2,92) que em quem usa. Esse é o que chamamos Risco Relativo (RR). Fica bem mais fácil de entender, não? (Você poderia ainda fazer outra conta que é 1/22,19% = 4,5, que significa que para cada 4,5 motoqueiros usando capacete que caem, você previne 1 lesão encefálica. Esse é o number need to treat – NNT – muito utilizado em ensaios clínicos, mas aí a repórter ia se apaixonar). Quem usa capacete tem menos risco de lesão encefálica, associação agora devidamente quantificada. O RR é um número muito fácil de compreender e por isso é muito bom quando podemos informá-lo. A odds ratio (OR) e o risco relativo (RR) são semelhantes e as duas medidas de associação mais utilizadas em epidemiologia. Por essa razão, são extremamente importantes para as ciências da saúde, em geral, e para a medicina, em particular.

Chamemos de associações, as inferências sobre relações causais, mas usemos outro exemplo: Quem tem colesterol alto tem mais infarto do miocárdio? Estudos epidemiológicos tentam associar dislipidemia com eventos coronarianos. Como? De várias formas, mas especialmente com estudos chamados de observacionais porque os pesquisadores só ficam observando o que vai acontecer, sem intervir nos casos. (Estudos em que há uma ou mais intervenções são chamados, muito sugestivamente, de intervencionais ou experimentais). Voltando aos estudos observacionais, estes podem ser de dois tipos principais: transversais (cross-sectional) ou longitudinais. Os transversais são como uma foto de uma comunidade ou grupo de pacientes, ou seja, o tempo está parado e estático, não havendo seguimento dos indivíduos no tempo, portanto. São bons para avaliarmos a prevalência de doenças. Por outro lado, longitudinais são os estudos que requerem que os indivíduos sejam observados por um período de tempo. Esse “tempo” em que vou “observar” pode ser para frente ou para trás e aqui, por favor, não entre em pânico. Veja a figura abaixo (desgraçadamente em inglês, mas fácil de entender, retirada da referência [2])

Diferença conceitual entre estudos Caso-controle e de Coorte

É sempre bom começarmos do starting point. Notai que existem 2 caixas “contendo” indivíduos com uma determinada doença e sem ela. Se, para utilizarmos o exemplo acima, dosarmos o colesterol de todo mundo, saberemos quem tem dislipidemia (colesterol alto) e quem não tem, i.e., quem está ou não exposto ao fator que queremos estudar. Se eu seguir esses pacientes por um tempo, vou ver quem teve (develop disease) ou não (disease-free) infarto do miocárdio. E assim, terei feito um brilhante estudo de Coorte. Se, por outro lado, eu pegar os registros hospitalares, dos consultórios, ou quaisquer que sejam, de pacientes com infarto e comparar com pacientes que não tiveram infarto, posso tentar associar o colesterol elevado no passado com a presença de doença coronaria atual, retrospectivamente. Estarei então, fazendo um estudo caso-controle. Entendido isso, vejam só que interessante.

Em um estudo transversal (o da fotografia), eu posso calcular o risco de uma certa doença baseado na sua prevalência, ou seja, no número de pessoas com aquela doença naquele exato momento. Nos estudos de coorte (aqueles nos quais o tempo vai “pra frente”), eu posso obter o risco de desenvolvermos uma doença qualquer através da incidência. Ótimo, perfeito! Mas, e no estudos caso-controle? Como faço para obter o risco já que o tempo vai “pra trás”? Como vimos, o risco é a probabilidade de algo acontecer a nível individual. Se tivermos as incidências e prevalências de antemão, poderemos estimar o risco, mas isso nem sempre é possível ou é não confiável. Como diz o Luiz Cláudio do excelente MBE: “Quando o estudo é caso-controle, onde casos (desfecho já ocorreu) são selecionados no início do estudo de forma arbitrária, não dá para calcular a proporção de pacientes que virão a ter o desfecho. Ou eles já tiveram o desfecho (casos) ou eles não tiveram o desfecho (controle). Neste caso, como não dá para calcular probabilidade do evento ocorrer, se usa odds (chance)”.

Posto isso, qual a diferença entre OR e RR? O raciocínio é mais ou menos o mesmo. Entretanto, as duas grandezas não podem ser utilizadas indistintamente. A OR superestima a RR na dependência da incidência da doença estudada. Veja o gráfico abaixo retirado da referência [3].

Relação entre a OR e o RR de acordo com a incidência (Io) das doenças

De novo, o Luiz Cláudio nos ajuda: “Um erro freqüente é a leitura do odds como se fosse riscoOdds ratio de 3.8 não quer dizer risco 3.8 vezes maior. Isso não é risco, pelos motivos já expostos. No entanto, quando o desfecho é raro, com uma freqüência menor que 10%, as medidas do OR e do RR se aproximam. Mas em um desfecho freqüente, embora as duas medidas indiquem um fenômeno na mesma direção, o OR tende a superestimar a força de associação, quando comparado ao RR.”

Quando a incidência é baixa (Io = 0,01) a correlação entre as duas variáveis é boa. Mas reparem na curva da Io = 0,3 (30%). Quando o RR é 2, a OR é próxima a 4, quase o dobro. A propósito, a OR dos motoqueiros com cabeça quebrada acima é 3,89 contra o RR que é 2,92, como vimos.

Fórmulas

RR = p / q

OR = p (1 – q) / q (1 – p)

Consultei

[1] Pereira, Júlio César R. Bioestatística em Outras Palavras. São Paulo. Ed USP, FAPESP. 2010.

[2] A. Petrie J. S. Bulman and J. F. Osborn. Further statistics in dentistry. Part 2: Research designs 2. British Dental Journal 2002; 193:435–440

[3] Carsten Oliver Schmidt, Thomas Kohlmann. Int J Public Health 53 (2008) 165–167

Ver também o excelente medicina baseada em evidências citado acima.

Abraço ao André Souza do Cognando, motivador do post.

Ciência sobre a Divulgação da Ciência

Um recente comentário nesse blog diz respeito a uma questão que virou, ela mesma, motivo de investigação científica, e permanece atualíssima, como se pode notar. Parece mesmo que esse tal “diário de menininhas” acabou virando um veículo de importância para a população, seja “letrada” sob determinado assunto, seja considerada leiga. Por permitir comentários e perguntas diretas aos autores, os blogs acabam desempenhando um papel que permite a transposição dos grandes abismos entre decisões tecnocráticas, descobertas científicas, de um lado, e o entendimento geral da grande massa de não-técnicos de outro. Pelo menos foi o que algumas autoras concluiram.

Em um estudo que teve este blog como objeto ou, mais especificamente, comentários dos leitores feitos a partir de posts sobre a campanha de vacinação contra a gripe A de 2010, Fausto e col. concluiram que os blogs são ferramentas úteis para propagação de informações sobre saúde ao público não-especializado. Nas suas palavras “This approach enlightens the internet blogs as useful tools for searching about health information by the lay public, indicating that the official health campaigns should reinforce their strategies to disseminate health information in a simple and understandable way to the general public, in order to inform and influence individual and community decisions that improve health.”

Pelo que soube, o estudo foi bastante bem recebido no encontro sobre informação e saúde em Bruxelas, o que significa que mesmo em países onde as desigualdades são menores que as nossas, o acesso a informação clara e objetiva é fundamental e desejado. Gostaríamos de parabenizar as autoras Sibele Fausto, Fabiana Carelli, Lúcia Eneida e Helena Neviani pelo excelente trabalho e agradecer a divulgação. De minha parte, tê-las como leitoras é uma honra e tanto. Espero sempre poder corresponder às vossas expectativas.

Para concluir, como não poderia deixar de ser, vamos a um exercício de reflexão. Se esse é um blog de divulgação científica e torna-se, ele mesmo, objeto da ciência, quando escrevo um post divulgando a ciência que o estudou, estou divulgando o quê? O blog propriamente dito ou a ciência que o motiva? Apesar desta pergunta ter me incomodado alguns segundos, entendi que sua relevância era pequena e que este meta-post é bem mais um agradecimento/reconhecimento que uma divulgação aos meus poucos porém altamente seletos (e queridos!) leitores como ficou aqui cartesianamente demonstrado.

ResearchBlogging.org Fausto S, Carelli F, Rodrigues LE, Neviani EH (2012). The Brazilian blog Ecce Medicus and the information on H1N1 flu vaccine for lay people: a case study in Health Communication. Annals of the European Association for Health Information and Libraries Conference, 13th, Brussels, 224-226.  http://sites-final.uclouvain.be/EAHIL2012/conference/?q=node/1444.

 

O Homem Que Largava Livros

Ao L.A. com a gratidão das dívidas que não se pagam

 “O velho estava em pé e segurava o livro aberto como um revólver sem gatilho: o polegar entre as páginas, o indicador e os outros apoiando a lombada; e com esse arranjo fazia-o balançar com habilidade enquanto andava de um lado a outro, mas apenas porque era um livro pequeno, de capa vermelha e dura. Com as lentes bem à ponta do nariz, seguiu lendo:

Caso por mim percorresse um arrepio,

um calafrio, seja de frio ou de desejo,

se alguém houvesse em contato com minha pele,

fosse mão ou mesmo pele-a-pele,

sentiria o frêmito, e também a onda que se cria

e toma o corpo ou parte dele,

já que é o arrepio e não 

o suor que se estila

a língua viva do couro que o embebe?


E fechou o livro com um movimento rápido provocando um estampido que ecoou na sala. Olhava agora em panorâmica pela classe. Por cima das lentes e com certo escárnio pelo susto que acabara de provocar nos distraídos, viu o movimento dos cabelos negros escorridos da moça em queda com o ruído do livro, repousarem numa serenidade já lisa e piscou lentamente.

– Que tal? – provocou.

– Essa é a pergunta mais bonita que já vi, professor!  – respondeu alguém. O velho não viu quem pois cerrara os olhos com a resposta. Do prazer professoral que lhe correu a espinha.”

~ o ~

Mais um livro terminado. O destino deste também não seria a estante. Imagine só! Livros eram para ser lidos e folheados e manipulados apenas e talvez. Quem sabe até farejados. Este – tão bonito! – teria o destino dos outros. Sim, era isso mesmo, decidira. Levantou-se – não sem uma certa dificuldade – da cadeira de imbuia que rangeu, mas não se co-moveu, e foi até a escrivaninha. Abriu uma ou duas gavetas e apanhou um carimbo grande e sua respectiva almofada embebida por tinta cor de vinho, bordô. Folheou algumas páginas e, com uma ponta de língua de fora, fez o que planejara fazer. Soprou depois e, satisfeito com o resultado, deixou o livro em cima da mesa, junto com os outros dois.

~ o ~

Vinha ouvindo The Kooks.

I’m not saying it was your fault. Although you could have done more…

Os fones brancos desaparecidos nos tragi bilateralmente. Havia ainda um brinco nas reentrâncias da orelha direita. O fio branco sumia pela gola da blusa. 

I know she knows that i’m not fond of asking. True or false it may be… 

Virou rápido no fluxo das pessoas e encarou a escada rolante. Sentiu o granito frio e o bafo quente do metrô em contraste mas ainda assim, era frio. Chegou à plataforma com as portas ainda abertas e mergulhou na massa de corpos sem rosto que se espremia no vagão.

In such an ugly way. Something so beautiful. That everytime i look inside
Vagarosamente, o trem teve a multidão dissipada e ele, tendo permanecido encostado à porta, distraído, resolveu sentar-se. No banco de cor diferente do outro lado havia um livro. Ele olhou em torno e já não havia mais ninguém. Tomou-o e pensava em deixá-lo com algum funcionário quando, folheando as páginas amareladas, leu o que parecia um carimbo com cores avermelhadas e um pouco apagadas pelo tempo.
Um arrepio solitário lhe subiu pela gola da blusa e terminou na orelha. A esquerda.