Molho de tomate e a origem da vida

Eu adoro cozinhar. E a minha especialidade é molho de tomate. Herdei da minha avó e aprimorei com minhas tias italianas. Modéstia a parte, é um espetáculo. Hoje, enquanto dava a última fervida antes iniciar o longo processo de apuração a frio, vi elas lá, lindas, algumas ‘células de Benard‘. Bom, não eram exatamente como deveriam ser, mas com ‘um pouco de muita boa vontade’, podia-se até imaginar que, nas condições ideais, elas apareceriam, pra enfeitar o meu molho de tomate.
Mas acho que, além da emoção da despedida de hoje, eu me emocionei com o fato de, finalmente, entender o que são as ‘células de Benard’ e porque elas são tão importantes.
Não se preocupe se você nunca ouviu falar sobre isso, é justamente o que eu vou explicar aqui.
Em 1997, quando eu começava o doutorado no Instituto de Biofísica da UFRJ, fiz uma disciplina incrível, chamada ‘Filosofia da Ciência’, onde tive, entre muitas, uma aula incrível com um físico chamado Paulo Bisch, que tinha estagiado no laboratório do grande químico Ilya Prigogine, que tinha ganho o prêmio Nobel pelos seus estudos em termodinâmica e pela descoberta das estruturas dissipativas.
Se você é como os meus alunos e não sabe quais são as leis da termodinâmica, pode dar uma olhada aqui e aqui e aqui, mas o que você precisa saber mesmo é que elas são leis fundamentais do universo. E se alguma coisa vai contra as leis da termodinâmica, então essa coisa tem problemas.
Muito bem, acontece que a ‘vida’ é uma dessas coisas que aparentemente vai contra as leis da termodinâmica. Mais precisamente, contra a segunda lei da termodinâmica, porque nós somos seres altamente organizados e que ‘ganhamos’ organização ao longo do tempo, enquanto tudo no universo ‘perde’ organização ao longo do tempo. Como isso é possível? Com um gasto muito grande de energia. Assim, desorganizamos ainda mais o universo, para que possamos nadar contra a corrente nos mantendo altamente organizados.
Abre parênteses: já sei, você não entendeu. Olha, eu não vou te enganar, não dá pra entender de primeira mesmo. É um trem pouco intuitivo e difícil. Tem que ler mais coisas a respeito. Não desista. Fecha parênteses.
Bom, apesar de você não ter entendido direito, explicar como a vida se encaixa na 2a lei da termodinâmica foi relativamente fácil. Mas outras coisas pareciam não se encaixar de jeito nenhum. Uma delas são as células de Benard.
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Na verdade as células de Benard são apenas um exemplo dos ‘sistemas estáveis afastados do equilíbrio termodinâmico’, que era o que mais intrigava o Prigogine. As ‘células’ que vocês estão vendo são pequenos redemoinhos de água em uma placa. O que o Prigogine chama de ‘afastado do equilíbrio termodinâmico’ significa que tem uma fonte de calor, como o fogo da boca do fogão, esquentando alguma coisa, como a placa de petri com água, ou a minha panela de molho de tomate. Sem fonte de calor, mesmo dois corpos tenha inicialmente uma temperatura diferente, o corpo mais quente vai passar calor para o corpo mais frio até que os dois fiquem com a mesma temperatura. Isso é o equilíbrio termodinâmico. Mas com a fonte de calor… o corpo mais quente passar calor para o corpo mais frio, mas eles nunca chegam na mesma temperatura.
E é isso que acontece quando você esquenta a água pra fazer café ou chá: perto do fogo está mais quente e perto da superfície está mais fria (ou menos quente) até que… a água começa a ferver. Não é mais só o calor que sobre pela coluna de água. A água mais quente é menos densa e sobe para a parte de cima da coluna d’água (dentro da penala, ou chaleira). Já a água da superfície é mais fria e densa, e desce para o fundo da panela. Forma-se então um movimento de convecção (a água sempre desce por um lado e sempre sobe pelo outro). É literalmente uma ‘cachoeira’ de água menos quente e um ‘geiser’ de água mais quente, que se alimentam um do outro: quando o geiser chega a superfície da coluna d’água, passa calor para o ar e a água esfria. Esfria o suficiente para aumentar a sua densidade e precipitar na cachoeira que leva até o fundo da panela, onde o calor do fogo esquenta a água até ela perder densidade e subir no ‘geiser’ e repetir o processo. Vistos de cima, as ‘cachoeiras’ estão nos centros das células, a parte mais escura, e os ‘geisers’ estão nas extremidades das células.
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A regularidade dessas estruturas impressionou os químicos e físicos da época. Como poderia um sistema fora do equilíbrio gerar ordem? Isso parecia ir contra a 2a lei da termodinâmica. Mas na verdade não ia, porque na verdade a formação das ‘células de Benard’ permitia que mais calor fosse transferido, e mais rapidamente, da água para o ar. Ou da fonte para o ar através da água. Foi então que Prigogine teve a grande sacação: quando um sistema fora de equilíbrio (como a água dentro da chaleira sobre o fogo para fazer café) alcança um momento crítico, a ordem aparece para permitir uma troca de calor mais eficiente entre os dois sistemas. Ele chamou esse fenômeno de ‘auto-organização’ e as estruturas ordenadas de ‘estruturas dissipativas’ porque elas permitem que o sistema dissipe, transfira, mais calor para o meio.
Entender isso, o que eu só fiz anos depois, foi uma vitória. Mas para mim, já depois daquela aula, tudo tinha mudado. Deus estava definitivamente morto. Havia caido, para mim, o último bastião da magia. Não havia mais um ‘por que’ ou um ‘para que’ a vida tinha sido criada. A vida é uma estrutura dissipativa auto-organizada em um ponto crítico do sistema termodinamicamente aberto do nosso planeta. Que, guardadas as devidas proporções, e respeitada a licença poética, pode ser considerada uma chaleira cuja função é dissipar a energia vinda do sol. E, como todo estrutura dissipativa, o seu aparecimento é inevitável, dado que o sistema chegue ao ponto crítico.
Depois dai, deixo com Darwin, no trecho final do belo filme ‘Criação’, que terminei de assistir hoje.
“É da guerra da natureza, da fome e da morte, a coisa mais sublime que somos capazes de conceber, a saber, ou seja, a produção dos animais superiores, advém. Há grandeza nesta forma de ver a vida, que enquanto este planeta foi girando de acordo com a lei fixa da gravidade, a partir de um início muito simples, infinitas formas as mais belas e as mais maravilhosas, evoluiram e continuam evoluindo.”

Corrida por bom-bom

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Como dar uma aula diferente? Divertida? Não tem receita. Pode ser um sucesso ou pode ser um fracasso, mas você tem que tentar.
Pra mim, o maior problema das aulas de hoje é a destilação de definições. Todo mundo que dá aula adora dar definições para as coisas, ainda que elas raramente tragam uma significação imediata para o aluno.
Olha essa definição aqui:Matéria e Energia são dois estados diferentes de uma mesma qualidade fundamental: A Matéria se caracteriza pela massa de inércia, a Energia é capaz de produzir trabalho. Esse conceito de Matéria (corpos) e Energia (campos), está contido na teoria dos campos.”
Você entendeu? Nem eu! Como posso então explicar pros alunos?! Não é fácil. Algumas coisas são simplesmente difíceis e a gente tem que ir aprendendo aos poucos, com muitos, muitos exemplos.
Felizmente, hoje tenho um coisa mais fácil pra explicar: competição: “A essência da competição interespecífica é que indivíduos de uma espécie sofrem redução na fecundidade, sobrevivência ou crescimento como resultado da exploração de recursos ou interferência de indivíduos de outras espécies.”
Ainda assim a definição não te diz muita coisa, não é? Vamos tentar de novo: “No contexto da competição por exploração, o competidor de maior sucesso é aquele que explora mais efetivamente os recursos compartilhados. Duas espécies que explorem dois recursos podem competir e ainda coexistir quando cada espécies mantiver um dos recursos num nível que seja muito baixo para a exploração efetiva pela outra espécie.”

Ajudou? Não pra mim. Eu preciso ler esse trecho pelo menos umas 5 vezes antes dele começar a significar realmente alguma coisa. Mas pode ser pior: “Um nicho fundamental é a combinações de condições e recursos que permitem a uma espécie existir quando considerada em isolamento de qualquer outra espécie. Já o seu nicho realizado é a combinação condições e recursos que permitem a ela existir na presença de outra espécie que pode ser prejudicial a sua existência.”
Aff… já estou cansado só de me escutar dizendo isso. Só pra terminar: “O princípio da exclusão competitiva supõe que, se duas espécies de competidores coexistirem em um ambiente estável, elas o fazem como um resultado da diferenciação de seus nichos realizados. Entretanto, se não existir tal diferenciação ou se esta for impedida pelo habitat, uma das espécies competidoras eliminará ou excluirá a outra. Contudo, sempre quando vemos espécies em coexistência apresentando nichos diferentes, não é racional aceitar prontamente a conclusão de que tal princípio encontra-se em operação.”
Pronto, cansei das definições, vou ensinar competição de outro jeito: com uma competição.
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Vou dar cinco perguntas para os meus alunos e publicar essas perguntas aqui no blog, agora, na mesma hora que a aula começa. Quem, na turma, responder uma das perguntas primeiro, ganha um chocolate. Um Chokito pra ser mais específico. Mas pra competição não ser apenas intraespecífica, eu vou publicar esse post exatamente no mesmo momento em que a aula começar, e qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode tentar responder as 5 perguntas. Coloque o seu nome e endereço e se você acertar, eu mando o Chokito. Além disso, se alguém na internet responder antes dos meus alunos em sala de aula, eles, meus alunos, perdem um ponto na nota final.
As 5 perguntas são:

  • 1 – A competição interespecíca pode ser um resultado da exploração dos recursos ou da interferência direta. Dê um exemplo de cada e compare suas consequências para as espécies envolvidas.
  • 2 – Explique como os conceitos de nicho especializado e nicho fundamental nos ajudam a entender os efeitos de competidores.
  • 3 – Porque é impossível provar a existência de um efeito evolutivo da competição interespecífica?
  • 4 – Quando vemos espécies com nichos diferentes coexistirem é razoável concluir que este é o princípio da exclusão competitiva em ação?
  • 5 – Explique como a heterogeneidade do ambiente pode permitir que um competidor aparentemente fraco coexista com uma espécie que pode excluí-lo.

Agora eu quero ver se eles vão ou não vão entender o que é exclusão competitiva!
PS: Ahhh… não aguento…. tenho que colocar mais uma definição: “A competição intraespecífica é um dos fenômenos mais fundamentais em ecologia, afetando não apenas a distribuição atual e o sucesso de espécies, mas também sua evolução. Contudo, muitas vezes é extremamente difícil estabelecer a existência e os efeitos da competição interespecífica, sendo necessário, para tanto, um arsenal de técnicas de observação, experimentação e modelagem.” Que saco!

A primeira impressão é a que fica

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O que os mamíferos e as plantas com flores e frutos (Angiospermas) tem em comum? Não vale dizer que você tem são aquelas mangas da Mangueira que você tem no quintal.

 A pergunta é ampla e por isso possivelmente difícil de responder mas está no centro de uma polêmica que envolve você diretamente, seu passado, presente e futuro: o ‘Imprinting parental’. Imprinting‘ é o nome dado a capacidade que alguns genes (o genótipo) tem de forçar a expressão da sua característica (o fenótipo) no filho de acordo com a origem desse gene: paterna ou materna. Se o gene que se manifesta veio do pai, então a característica será uma. Se veio da mãe, a característica será outra. Você pode achar que isso é a mesma coisa que a relação de ‘dominância’ que você aprendeu na escola, quando o alelo ‘A’ que determina olho escuro era dominante sobre o alelo ‘a’ que determinava olho claro. Mas não  é, porque a dominância do ‘A’ se mantém independente dele ter vindo da mãe ou do pai. No ‘imprint‘ quem determina se a característica será manifestada não é a informação do gene em si, mas as ‘marcas’, um verdadeiro programa ou software, que não está gravado no seu código genético.

Abre parênteses: Se você não lembra mais o que são ‘alelos’, ‘genótipo’ e ‘fenótipo’ não tem problema: Você sabe que nós somos diplóides, ou seja, possuímos dois conjuntos de genes, um de origem materna e outro de origem paterna. Então cada gene do nosso corpo, que, você sabe, é responsável pela produção de uma proteína (bom, não é exatamente assim, mas serve para a nossa discussão hoje) possui duas cópias, uma vinda do pai e outra da mãe. Cada cópia de um gene para uma mesma proteína é chamada de ‘alelo’. Então, como cada gene determina uma proteína, a sequência de nucleotídeos desse gene (aquelas letrinhas A, C, T e G) é que é o ‘genótipo’ e o produto final da manifestação desse genótipo, que nesse caso é a proteína que ele produz, é o ‘fenótipo’. Em geral usamos o termo ‘fenótipo’ para uma característica visível, como ‘olhos castanhos’, ou ‘cabelo ruivo’, mas como cada uma dessas características é dada por proteínas, então podemos dizer, especialmente aqui, que a proteína é o fenótipo. Fecha parênteses.

 Os genes que você importou do seu pai e mãe funcionam em conjunto, na grande maioria dos casos, sendo expressos ao mesmo tempo, produzindo as proteínas que, também agindo em conjunto, ajudam a te fazer quem e como você é. 

Abre parênteses: Na ‘expressão monoalélica‘, o fenótipo também é determinado pela expressão de apenas um dos alelos, o do pai ou da mãe. A diferença é nesses casos essa definição é aleatória, ao acaso, e no ‘imprinting‘ ela acontece em resposta a uma programação. Fecha parênteses.

Em geral essa mistura é boa, porque com característica combinadas da sua mãe e do seu pai, você tem melhores chances de enfrentar os problemas de adaptação ao ambiente do que eles tiveram. (e esse é o grande argumento da reprodução sexuada). Mas alguns genes não são assim. Eles não gostam dessa ‘mistura’. Na verdade detestam ela e são capazes de brigar, e muito, para que sejam expressos sozinhos, sem nenhuma manifestação ou interferência da copia do mesmo gene do outro genitor.

Mas por que isso? Se a reprodução sexuada é importante justamente para termos as características do pai e da mãe; e é tão importante a ponto de só podermos reproduzir se conseguirmos um conjunto de genes do sexo oposto, por que os genes então os genes combateriam para eliminar esses mesmo genes que, tantas (nossa, tantas e tantas) vezes, passam por grandes desafios para conseguir?

A resposta a essa pergunta é longa, então eu vou dar apenas parte dela. É que apesar de homens e mulheres colaborarem para terem um filho, em cada evento em que isso acontece, não significa que essa colaboração atenda aos interesses maiores de um e de outro. As estratégias reprodutivas de homens e mulheres (machos e fêmeas) são muito diferentes e não são conciliatórias. Colaboração em meio a competição. Isso é o que melhor descreve o relacionamento entre os dois sexos do ponto de vista biológico. Já sei, você acredita em almas gêmeas, unha e carne, feitos um para o outro… Bom, acho que se você for discutir com seus amigos na mesa de bar vai encontrar muito mais exemplos de um grande amor que te passou a perna (quando você então deixou de considerá-lo um grande amor) do que de um grande amor que se confirmou como tal. Não só na sua experiência, mas como na dos seus amigos e amigas também. O fato é que machos e fêmeas precisam colaborar para produzir a prole, mas ambos estão com as antenas ligadas para se aproveitarem um do outro na primeira oportunidade.

E o Imprint parental é uma dessas estratégias. Uma ‘rasteira epigenética‘ que machos e fêmeas tentam passar um no outro logo depois da fecundação. Os ‘genes de imprint‘; trazem ‘marcas’ do seu genitor, seja ele o pai ou a mãe. Como as cicatrizes que o Lamarck achava que poderíamos passar de uma geração para outra. Essas ‘marcas’ são grupamentos metil que são adicionados no DNA durante a meiose para a formação do gameta. A ‘metilação‘ do DNA é um código, um programa, que vai influenciar na expressão desses genes ao longo do desenvolvimento do embrião. Ops, mas peraê, quer dizer então que podemos transferir informação ‘adquirida’ para as próximas gerações sem que elas estejam gravadas no código genético? Exatamente! São os mecanismos epigenéticos, mas isso é uma outra história, para ser contada um outro dia.

O ‘imprint‘ começa a ser programado no corpo do genitor, durante a espermato e ovogênes. Os ‘genes de imprint‘ são metilados diferencialmente, um programa que é capaz de resistir até mesmo a ‘limpeza do zigoto’ que é o grande evento de desmetilação que acontece assim que o óvulo é fecundado, para apagar todas essas ‘marcas’ hereditárias. Logo depois da grande limpeza, lá estão de volta os genes de imprint todos metilados novamente. São essas marcas epigenéticas, esses nucleotídeos metiladosque levarão a expressão diferencial dos genes.

Ops, peraê, divergi. 

Relendo o texto vejo que não respondi a pergunta que formulei 3 parágrafos atrás: porque sufocar os genes que nos esforçamos para conseguir misturar? E pior, que servem tanto para machos e fêmeas de mamíferos quanto de angiospermas?

O conflito entre machos e fêmeas vem do fato da fêmea carregar o filhote no ventre e ter certeza que todos os seus filhos, são seus filhos. Isso faz com que a infidelidade da fêmea seja pior para o macho do que a infidelidade do macho é para a fêmea. Ou você acha possível que uma fêmea crie a prole da infidelidade do macho achando que os filhotes são dela? Não tem como. Já o macho… pode muito bem estar criando um filhote que saiu da barriga da fêmea dele, mas que não é dele. Só para vocês terem uma idéia, em humanos essa taxa está em torno de 10-15%. Que é baixa, porque nós temos muitos mecanismos para iludir os outros, mas muitos mecanismos para evitarmos de ser iludidos também.

Em outros animais, esse percentual é muito maior. O imprint parental não pode ajudar a garantir a fidelidade, mas pode ajudar que ela seja menos profícua.

No embrião humano, as camadas externas são responsáveis pela formação da placenta. As plantas com frutos tem a estrutura chamada ‘endosperma’, que em geral é a parte suculenta do fruto, aquela que a gente come. Apesar das diferenças, o endosperma e a placenta tem a mesma função: transferir nutrientes da mãe para o embrião, seja ele um bebê ou um grão de milho. Uma placenta desenvolvida dá origem a um bebê maior e mais forte, que tem mais chances de sobreviver, mas enfraquece tanto a mãe quanto os outros filhotes que ela possa estar carregando na mesma gestação. Ainda que em humanos isso seja mais difícil, não é difícil de perceber a idéia por trás. Em muitos mamíferos, como os cãezinhos de estimação, a fêmea é capaz de carregar filhotes de diferentes machos em uma mesma gestação. Se um filhote carrega um gene do pai que estimula a formação de uma placenta grande, então aquele filhote receberá mais nutrientes que os outros, e nascerá com  mais chances de sobreviver. Para o filhote e para o pai dele é ótimo, mas para a mãe e os outros filhotes dela (meio-irmãos do ‘placentudo‘), é muito ruim.

Como a mãe tem sempre certeza que os filhotes são dela, ela quer mais é variar o macho, para ter uma prole diversificada, e com mais chances de ter seus genes se fixando na população. Para isso, ela quer garantir que os recursos energéticos que pode investir na reprodução, sejam divididos igualmente entre os filhotes, sem que ela aumente o risco de morte durante o nascimento ou seja prejudicada nas próximas gestações.

Para o macho, essa diversificação da fêmea não é interessante, porque criar futuros competidores para os seus genes. Então ele, além de cuidar para que ninguém mais fecunde a sua fêmea, coloca nos seus espermatozóides genes que vão explorar os recursos energéticos da fêmea e minimizar as chances de sucesso de outros filhotes dela que não sejam seus.

A mesma coisa acontece nas plantas com frutos. Os genes da planta macho querem um endosperma grande e suculento, para que os seus genes, presentes na semente, possam germinar com tranqüilidade. Já a planta fêmea, quer distribuir seus recursos em endospermas equivalentes para todos os frutos, garantindo a germinação de todas as sementes que ela produzir.

Sinistro, não é mesmo?!

Um ‘cabo de guerra’ até que a morte os separe.

Reik W, & Walter J (2001). Genomic imprinting: parental influence on the genome. Nature reviews. Genetics, 2 (1), 21-32 PMID: 11253064
Moore, T. (1991). Genomic imprinting in mammalian development: a parental tug-of-war Trends in Genetics, 7 (2), 45-49 DOI: 10.1016/0168-9525(91)90230-N

A invenção da morte

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Quando a Nina Simone diz “Ev’rytime we say goodbye, I die a little” (na verdade as palavras são de Cole Porter, mas ficam muito melhores na voz da Nina, não é?!) é uma metáfora, mas não está longe da realidade. A morte é tão complicada quanto a vida. Ela é certa, mas é difícil de determinar e de prever. Mais ainda de explicar.

A morte é uma variável discreta (morreu/não morreu) e não contínua (vivo/pouco morto/muito morto/ morto). E a morte é definitiva. Então o que é que está dizendo a Nina?
É que a morte pode acontecer em escalas diferentes. Assim como temos diferentes níveis de organização biológica (célula, tecido, órgão, organismo) para o qual podemos atribuir vida, também podemos dizer que houve morte. De certa forma, até mesmo a extinção é a morte de uma espécie.
A morte é sempre a mesma, mas não terá o mesmo significado, ou as mesmas conseqüências, dependendo do nível em que acontece.
A morte celular, que os cientistas chamam de apoptose, é um dos principais mecanismos da vida. Sem ela não poderíamos moldar as partes do nosso corpo durante o desenvolvimento. Da mesma forma que um escultor tira um pouco de argila daqui e coloca ali, os genes controlam ‘mãos invisíveis’, que tiram as células de um lugar para que possam aparecer outras células em outro. Uma das ‘mãos’, a que tira a argila, são as proteínas que se chamam ‘caspazes’. Elas funcionam em reações em cadeia, que chamamos de cascatas, apesar de se parecerem muito mais com aquelas cascatas de Champagne (onde os copos estão um em cima do outro fazendo uma torre e ao transbordar o copo de cima, você enche os que estão embaixo) do que com uma cachoeira. Quando chega um sinal dizendo que aquela célula precisa sair dali, as caspazes recebem esse sinal e disparam a cascata de reações que culmina na fragmentação de proteínas, material genético e, eventualmente, da morte da célula. Quando então a célula morre e a membrana também se fragmenta, são liberados sinais que servem para outras células fazerem o mesmo.
Abre parênteses. A “mão que constrói”, seriam proteínas que controlam o ciclo celular, a divisão de uma célula em duas (que viram quatro, e depois oito…), mas isso é uma outra história. Fecha parênteses.
A morte celular também é a nossa principal defesa contra os tumores. Se uma célula sofre uma mutação, um dano no seu DNA, e esse dano não pode ser consertado, então as caspazes entram novamente em ação, e levam a célula maligna para a forca.
Então, em nível celular, a morte é boa? Poderíamos dizer que sim. No mínimo irrelevante, porque não há perda de material genético. Todas as células do nosso corpo tem o mesmo DNA (ou quase). Se uma morre, ainda que o seu DNA não permaneça, as células vizinhas tem o mesmo material genético. E pra vida, é isso o que importa.
E aqui você, leitor, pode ficar zangado comigo, porque o que eu vou dizer é meio ‘remédio amargo’: duro de engolir. Mas para a natureza, quem você é e todas as coisas legais que você fez na vida, mesmo se você tiver sido Shakespeare ou Mozart, não importam. Porque tudo que você já fez, já passou, e o que importa, é o que está por vir. E para lidar com o que está por vir, você precisa de genes, de genes novos. O que importa são os genes que você deixa para a sua próxima geração. Para arrumar genes novos, você precisa arrumar um(a) parceiro(a) pra trocar genes, o que os cientistas chamam de reprodução sexuada, mas você pode conhecer por vários outros nomes, nem tão científicos assim. Sem um parceiro(a), a gente não consegue reproduzir. Até porque, não valeria a pena, mas essa também é uma outra história. O que importa dessa discussão aqui é que sob está ótica, a célula em si, mesmo organismo organismo como um todo, não é importante: o importante são os genes dentro dele.
Bom, e parece que é isso mesmo. Desde de que Dawkins publicou “O gene egoísta” em 1976 essa é a teoria dominante. Nossos organismos são apenas máquinas para propagar nossos genes.
Então a morte, aquela que importaria, é a morte do organismo, porque ai seus genes se perderiam, pelo menos se ele não conseguisse reproduzir primeiro. Se morrem apenas algumas células, tudo bem, porque as outras continuam tendo os seus genes. Você não morre ‘um pouco’, mas só algumas partes de você morrem. E isso faz de você quem você é.
Mas nesse ponto surge uma pergunta inevitável, ainda que estejamos sempre tão preocupados com a morte que nunca paremos realmente para pensar na lógica dela: porque se dar ao trabalho de reproduzir para ‘escapar’ da morte, se poderíamos apenas sobreviver?
Abre parênteses: Sim, porque dá um trabalhão reproduzir. Você não pensa no trabalho que dá porque não é a evolução trabalhando milhões de anos a fio para desenvolver o processo, e porque, no final das contas, reproduzir é gostoso. Mas você já pensou que é gostoso simplesmente para que você se dê ao trabalho? Essa história também vai ficar para outro dia, porque agora eu tenho que voltar para a minha pergunta original. Fecha parênteses.
A teoria do gene egoísta não explica porque nós morremos, ou porque devemos morre, ou mesmo porque existe morte. Mas deu a pista.
Os genes usam seus organismos para competirem uns com os outros. Desenham organismos que sejam eficientes para competir por abrigo, alimento, parceiros reprodutivos e ingressos para a final do campeonato. Mas essa não é a única forma dos genes competirem uns com os outros. Eles podem competir diretamente! Essa competição pode se dar de várias formas, mas hoje só vamos falar de uma, a mais importante, aquela com um material genético parasito, que nem organismo tem: os Vírus.
A a morte é uma brilhante solução para um problema complexo: os parasitas.
Abre parênteses, de novo: Vou ter que deixar pra falar disso de novo outro dia, e peço desculpas a vocês por estar deixando tantas coisas de lado hoje, mas o meu espaço, e o tempo e a paciência de vocês, é curto, e eu preciso chegar no meu destino. Fecha parênteses.
Não há como vencer a competição com os parasitas sobrevivendo, por isso a gente morre, deixando o corpo cheio de parasitas pra lá, e criando um novo corpo para o nosso material genético (com a ajuda de um parceiro(a) de alta qualidade, e de preferência um sistema imune diferente do nosso). Um processo muito estudado na física, chamado ‘resiliência‘. O furo na teoria estava no fato dessas coisas todas que eu falei: apoptose, caspazes, modelagem no desenvolvimento, resiliência… serem encontrados apenas em organismos superiores: os eucariotos. Mas os vírus são muito mais antigos, então porque a morte teria aparecido só nos eucariotos? Mas ela, a senhora com a foice na mão, é mais antiga que os eucariotos, é foi isso que Nick Lane, um dos descobridores, conta no artigo anexo.
Os organismos mais antigos da Terra, as cianobactérias, cujos fósseis remontam há 3,8 bilhões de anos, possuem um grupo de proteínas chamadas metacaspazes, disparam processos de apoptose em situações de estresse, principalmente durante infecções virais. Antes dos vírus se reproduzirem e romperem a célula liberando mais partículas virais para contaminar outras células, a cianobactéria se mata. Um ato nobre, vocês não acham? Mas muito antinatural. Na natureza não tem essa coisa de ‘ser bonzinho’ e ‘não cobiçar a mulher do próximo’. É cada um por si! E um organismo unicelular não pode fazer como a Nina Simone e ‘morrer só um pouco’. Então como explicar um organismo unicelular que ativa morte celular programada? A explicação de Lane está na alta redundância do pool genético de uma floração de fito e bacterioplancton. As cianobactérias são unicelulares, mas nunca estão sozinhas. Quando as condições ambientais são favoráveis, elas se reproduzem muito, em um curto intervalo de tempo, produzindo uma população enorme, um ‘bloom’, ou floração. Por isso, os organismos nesses blooms são praticamente clones, e, assim, da mesma forma que uma célula em um organismo multicelular entra em apoptose para que o organismo se livre de um câncer, uma cianobactéria entra em morte celular para livrar a floração de uma virose. A célula morre, mas a floração morre só um pouquinho.
A morte pode não ser definitiva, dependendo da escala em que observamos. Mas o problema de se morrer um pouquinho, é que pode-se continuar morrendo muitas vezes, por muito tempo. E isso não é bom.

Lane, N. (2008). Marine microbiology: Origins of Death Nature, 453 (7195), 583-585 DOI: 10.1038/453583a

Só sei que nada sei

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As vezes acontece: você comete um erro grosseiro em sala de aula. A agora? Como se retratar com aqueles 20 elementos que durante duas horas te olharam como se você fosse o ‘Yoda’, ou o ‘Dumbledore’, que é mais da época deles?
Você desce do tablado, guarda a vaidade no bolso e corrige o erro. Por maior que ele seja. Custe o que custar. Mesmo sabendo um monte de coisas, tem coisas que não sabe. Só que mesmo assim tem que dar aula disso. O professor, esse pode errar de vez em quando, mas a informação não pode estar errada, nunca.
A aula era de radiação e radioatividade, e eu estava explicando as radiações ionizantes: Particulas alfa (α) e beta (β), e radiação gama (γ). Entra o slide, um aglomerado de bolinhas de duas cores diferentes representam o núcleo de um átomo com seus prótons e neutros. Quatro bolinhas, duas de cada cor, são lançadas do núcleo. É a partícula alfa. Elas são compostas de dois prótons e dois neutros, por isso possuem massa (4) e carga positiva. Muda o slide, novamente o aglomerado de bolinhas de duas cores representando o átomo. Duas bolinhas são lançadas. Uma não tem nome, a outra chama pósitron e… por um instante, esqueço tudo que tinha estudado me deixo levar pela imagem. As partículas beta estavam representadas por bolinhas também, iguais as que representavam os elementos do núcleo. De repente tudo faz sentido e o pósitron é a emissão de um próton com carga positiva. Levo a confusão adiante e digo que a partícula beta altera o número atômico (que eu antes já havia confundido como A, que é o número de massa, ao invés de Z – esse sim o número atômico, que é o número de prótons que identifica cada átomo), porque emitia um próton. Fiz uma tremenda confusão. Preciso dormir mais, eu penso.
O erro passou desapercebido, porque, no fim das contas, não tínhamos feito nenhuma conta, o que mostraria o erro rapidamente. Mas erro tem perna curta que nem mentira, e ele voltou logo depois pra me assombrar.
Mostro a série de decaimento do Urânio, que emitindo diferentes partículas, muda de Z, de A e de átomo também, se transmudando até chegar no chumbo estável. No caminho, ele passe de Urânio a Tório e volta a Urânio. “Mas peraê, como pode ele passar de Urânio a Tório e depois a Urânio de novo se em cada partícula alfa e beta que ele emite está perdendo neutros e prótons?” Exatamente, não pode. Ou não poderia, no modelo equivocado que eu bolei (porque na verdade, pode sim, e vamos ver como). Tinha alguma coisa errada e não fui nem eu quem percebi. Foi o aluno que fez essa pergunta ai de cima. De repente tudo para de fazer sentido, e como aqueles meninos que trabalham de guia em cidade do interior de Minas ou da Bahia, que pedem dinheiro para conta histórias das cidades mas que se você interrompe ele tem que recomeçar do início porque a história está decorada e não aprendida, eu fico mudo. Devo ter ficado mudo por 15 segundo, porque pareceram 15 min, e em geral essa a gente perde uma ordem de grandeza da percepção de tempo quando entra em pânico (isso da ordem de grandeza do tempo é uma alegoria gente, vamos deixar bem claro).
Disse que não sabia explicar, mas ia descobrir. Sigo adiante. Termina tudo bem. Os objetivos que eu tinha estabelecido para a aula (conhecer as radiações, diferenciar radiação ionizaste, estabelecer o mecanismo de fissão e de efeitos biológicos) tinham sido alcançados. Fui pra casa tenso e chegando aqui vou descobrir o que aconteceu. E o que aconteceu é que eu cometi uma gafe gigantesca, maior do que os erros de português que vira e mexe aparecem aqui no blog. Dei uma explicação totalmente errada sobre o que é a partícula beta, que acabou se revelando incompatível com o decaimento do Urânio 238.
Na verdade a partícula beta tem a massa de um elétron, e pode ter carga negativa, sendo, no caso, o próprio elétron; ou positiva, quando se chama pósitron. É emitida por um nêutron, que no processo se transforma em um próton. E ‘Bazinga‘!!! O problema no decaimento do Urânio está solucionado. O Urânio 238 emite uma partícula alfa com 2 nêutrons e 2 prótons, seu núcleo de 92 prótons passa a ter apenas 90, se transmutando em um núcleo de Tório 234. Um nêutron do Tório emite uma partícula beta (elétron) e se transforma em um próton. Agora o núcleo do Tório passa de 90 para 91 prótons, se transmutando em Protactínio. Tudo bem se você nunca ouviu falar desse elemento, mas ele está lá na tabela periódica, bem antes do Urânio. E é justamente por emitir outro elétron (partícula beta) que um nêutron do Protactínio se transforma em próton. O núcleo de 91 prótons passa a ter 92… que é o número atômico do Urânio, só que agora com 4 nêutrons a menos (2 perdidos na partícula alfa e 1 transmutado após cada uma das duas emissões beta). Se ficou difícil de ver, está tudo na figura ai embaixo.
nuclear_decaimento_uranio_tabela.gifNão satisfeito, o Urânio 234 volta a emitir uma partícula alfa, perdendo mais dois prótons e nêutrons para voltar a ser Tório (agora 230). Tem sérios problemas de identidade esse Urânio. Agora o Tório não quer mais voltar atrás e solta uma partícula alfa também. Com menos dois prótons e 2 nêutrons se transmuta em Rádio que libera uma alfa e vira Radônio, que libera uma alfa e vira Polônio, que libera uma alfa e vira Chumbo (o 214). Uma tremenda libertinagem. Esse chumbo não é estável e quer voltar a ser Polônio. Para isso libera uma beta, perde um nêutron, ganha um próton e passa a Bismuto 214, que libera mais uma beta o leva de volta a Polônio 214. Talvez o negócio deles seja libertar alfas e betas como mocinhas aprisionadas, porque fazem toda essa gracinha de alfa-beta-beta chumbo-Bismuto-Polônio (agora o 210). Mais uma última emissão beta e o Polônio 210 deixa de existir permanentemente para dar lugar ao Chumbo 206, que é estável e encerra o decaimento.
No final das contas estou feliz. O día acabou e eu aprendi mais uma coisa.

Sobre como calculei a CL50 usando o 'Statistica'

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O calvário da biologia é a estatística.
Pra ser um bom biólogo, pra ser um bom cientista, você tem que saber estatística. E quanto mais, melhor. Só que… estatística é difícil! Bom, pelo menos pra mim.
Mesmo os conceitos mais básico, como ‘erro do tipo I e erro do tipo II’, ou de ‘normalidade’ sobre os quais eu até já escrevi, eu acho difíceis, e cada vez que necessito, tenho que pensar longamente sobre eles antes de ajustá-los as minhas observações.
E tem a matemática… sem ela, sua estatística vai ser muito limitada. Já vai ajudar, mas será insuficiente.
Mas, vocês sabem, eu sou um cara teimoso, e não me dou por vencido facilmente. Isso explica porquê eu passei a última semana, uma semana cheia de trabalho, gastando, todos os dias, várias horas, pra resolver um problema de estatística. Fiquei tão orgulhoso do resultado final que vou descrevê-lo aqui. Vai que alguém precisa?!
Bom, tudo começou quando eu estava revisando um artigo e descobri umas inconsistências nos resultados de uns testes de toxicidade. Os testes de toxicidade são bastante simples: a gente aplica a substância no indivíduo (em vários indivíduos, que não são pessoas mas mexilhões) e observa o efeito. Que, eventualmente, é a morte. Como aplicamos várias doses da substância, que nesse caso eram diferentes compostos de cloro, a gente pode calcular uma curva de dose-resposta, que, como o próprio nome diz, mostra o quanto o aumento do efeito em resposta ao aumento da dose. Certo?! Mais ou menos, porque a relação não é linear. Acontece que em doses pequenas da substância, o organismo não apresenta efeito algum, e em doses superiores àquela que matou todos os indivíduos expostos, o efeito se mantém (claro, não dá pra ter efeito maior do que todo mundo morto). Por isso é uma curva sigmoidal, aquela que se parece com um ‘S’. Resta a parte do meio dessa curva, que é o que nos interessa, porque nela a relação entre a dose e a resposta é linear. E por que isso é importante? Basicamente, porque o que é linear é mais fácil de calcular e de fazer previsões com base nesses cálculos.
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Mas o que a gente faz com a perninha inicial e a final do ‘S’, (ou, no jargão, a fase LAG e a fase LOG da curva sigmoidal)? Ignora? Deixa pra lá? Isso não é muito científico, então os cientistas resolveram apelar pra estatística e usaram uma ferramenta criada por um cidadão chamado Bliss, em 1934: a transformação em Probitos.
E o que vem a ser isso? Vamos lá, do começo. Os resultados de testes de toxicidade que medem mortalidade tem um agravante: medem mortalidade. Quer dizer, medem uma variável que é categórica e não contínua: vivo/morto.
Abre parênteses: esses são os dois únicos conceitos estatísticos que eu considero simples. Variáveis contínuas são aquelas que podem ser medidas em uma escala (como de 0 a 10, por exemplo, altura e peso) e categóricas são aquelas que dividem em classes (uma ou mais, como por exemplo sexo, cor dos olhos e também mortalidade. Fecha parênteses.
E com uma variável categórica da pra fazer bem menos coisas do que com uma contínua. Por exemplo, se a morte fosse uma variável contínua, como a pressão sanguínea, então eu poderia avaliar a efeitos intermediários. Quase vivo e quase morto, que são informações importantes. Será que aquele indivíduo que recebeu uma dose muito alta mas sobreviveu estava mais próximo de morrer ou estava vivinho da silva? Com uma variável discreta e binomial como a morte não dá pra eu responder isso. Pelo menos não sem estatística. E é ai que entra a transformação em probitos. Vamos imaginar que existe uma outra variável associada a morte, mas anterior, subjascente, a ela: a ‘quase morte’. A ‘quase morte’ é uma variável contínua e pode ser medida em uma escala que vai de ‘vivinho da silva’ até ‘mortinho da breca’, passando por todos os possíveis estágios intermediários. Qual é posição nessa escala de probabilidade, dadas as condições e os resultados do meu teste, um indivíduo que morreu na concentração 1? e na 2? e na 10?
É isso que a transformação de probitos me dá. A posição da minha variável discreta (qualitativa) na variável imaginária, subjascente, contínua (quantitativa). Ou pelo menos foi isso que eu conclui depois de uma semana debruçado sobre ela. A melhor explicação veio, como sempre, do livro eletrônico de estatística da Statsoft, que eu uso há muito tempo, e que continua sendo o único que me permite entender os conceitos. Talvez porque não venha com todos aqueles p, z, f etc.
O problema está resolvido e com a minha ‘variável contínua’ eu posso calcular a concentração de substância que afetaria 50% da população de animais expostos: A CE50 (que vira CL50 se o efeito em questão for letal). Vou deixar a discussão da validade da CL50 para outro momento, porque ela é longa, mas como é exigida para a publicação, não importa muito nesse momento.
Bom, o problema conceitual está resolvido, mas fazer o cálculo de probitos e estimar a CL50 não é nem um pouco trivial. A agência de proteção ambiental americana criou, muitos e muitos anos atrás, um software que calculava a CL50, mas que não evoluiu e continua em DOS. Gente… o DOS foi muito bom quando apareceu, mas atualmente… que descanse em paz! Qualquer erro de digitação tinha que repetir tudo. E usando MAC que nem eu… o transtorno é maior ainda. Além disso, o TKS não me deixava entrar todas as réplicas, técnicas ou biológicas, pedindo que eu agrupasse os dados para cada concentração. E abrir mão das minhas réplicas? Que deram tanto, mas tanto trabalho? De jeito nenhum!
Abre parênteses: O problema, posso dizer agora, não era só a falta de jeito de um software em DOS. Era que me faltava a compreensão real do que era a tal da transformação. Fecha parênteses.
Tinha de haver uma maneira de fazer isso em um pacote estatístico mais moderno, e eu transformei a tarefa de encontrar essa maneira na minha cruzada dessa semana. Não era possível que a única forma de calcular CL50 fosse com o famigerado TKS ou com o lamentável ‘probit’ (ambos em DOS). Escrevi para meus amigos que trabalham com ecotoxicologia e fazem testes de toxicidade para um monte de empresas, mas todos eles ainda usam o TKS. Não são pessoas doentes que nem eu, e estão plenamente satisfeitas com o DOS delas. Pra que mexer em time que está ganhando?
Sentei na cadeira, abri o meu emulador de Windows, abri o meu pacote preferido, o Statistica e me preparei pra batalha. Primeiro eu queria um botão ou uma expressão que me desse: ‘transformar a coluna 1 em probitos’. Mas não era tão simples assim. A probabilidade com base nessa ‘variável subjascente’ (a ‘quase morte’) só pode ser estimada com base na comparação entre número de vivos e número de mortos em cada concentração. Quando eu consegui achar a janela para a regressão por probitos, não conseguia entender que tantas variáveis eram aquelas que ele pedia. Enfim… como eu disse, foi uma semana de quebra-cabeça.
Mas enfim eu consegui. Calculei a CL50 dos experimentos no Statistica. Fiquei com tanto medo de não conseguir repetir o procedimento depois de dar certo a primeira vez, que tirei fotos da tela e montei um tutorial para mim mesmo (eu sei que daqui a meses ou anos quando tiver que fazer isso de novo, vou precisar rever toooooodos esses conceitos), que eu achei que poderia ser útil, pelo menos para meus amigos que ainda usam o TKS, e disponibilizo aqui: VQEB_tutorial_LC50_prob_stat_2011-Comments.
Update. Esse post deu origem a um trabalho com o epidemiologista Antônio Pacheco da FioCruz e foi publicado em 2013 na Marine Environmental Research

Em busca dos 7 lugares de pensamento

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Na semana que vem começam meus cursos na pós-graduação, além do curso de formação de professores a distância da UAB que estou ajudando a ministrar, e como uso cada vez mais a escrita na avaliação dos alunos, quis pesquisar sobre a principal ferramenta que uso para e escrever e ensinar meus alunos a escrever: os 7 lugares do pensamento, representados pelas perguntas ‘O que’, ‘Quem’, ‘Quando’, ‘Como’, ‘Onde’, ‘Por que’ e ‘Para que’. Eu aprendi sobre eles com a Sonia Rodrigues quando estava reaprendendo a ler e a escrever.
Só que separar o Joio do trigo em busca da informação acurada no Google pode ser uma saga, como eu já descrevi aqui. Dessa vez foi outra epopéia, que eu contarei aqui, junto com o que eu descobri. Vou contar ela do início. O meu início. A minha ‘trilha’ do texto (que eu agora, depois do texto terminado, admito que ficou longa, quase um artigo. Certamente mais do que um post deve ser. Por isso, resolvi avisar aqui, pra se o tempo encurtar, você não ir embora sem ler os dois últimos parágrafos).
A primeira vez que vi as 7 perguntas fora das aulas da Sonia, foi no livro ‘O Anjo Pornográfico’ do Ruy Castro, uma biografia do jornalista Nelson Rodrigues. A história começa no Recife com seu pai, o jornalista Mário Rodrigues, do ‘Jornal da República’. A história de Nelson, nesse ponto, se confunde com a história da evolução do jornalismo no Brasil. Foi lá que aprendi que as perguntas eram o ‘Lead’, uma técnica de redação, do qual eu já vou falar.
“No Brasil, durante muito tempo, jornalismo e literatura se confundiam e até a segunda metade do século XX, era considerado um subproduto das belas artes. (…) Não tinham uma técnica própria de contar história, (…) um paradigma, um modelo a seguir e os jornalistas se espelhavam na literatura, seguindo uma gama variada de estilos. (…) Além de literatos, havia no jornalismo uma certa tradição associada aos bacharéis de Direito, o que fazia do jornalismo também herdeiro de uma certa retórica ’empolada’. Logo, “os periódico brasileiros seguiam então o modelo francês de jornalismo, cuja técnica da escrita era bastante próxima da literária. Os gêneros mais valorizados eram aqueles mais livres, como a crônica e o artigo polêmico”
Essa introdução do artigo de Lígia Guimarães[1] sobre o processo de produção jornalística no Maranhão da uma boa idéia do jornalismo naquela época, do qual um dos ícones era o ‘Nariz de Cera‘:
“O ‘nariz de cera’ era o texto introdutório, longo e rebuscado, normalmente opinativo, que antecedia a narrativa dos acontecimentos e que visava ambientar ao leitor sobre os fatos que seriam narrados a seguir. Usava uma linguagem prolixa, cheia de preciosismos e pouco objetiva. Outra marca visível do padrão francês no jornalismo brasileiro era o excesso de títulos e uma ausência de lógica na hierarquia do material.”
Isso dava muita liberdade aos redatores para ‘criar’ a notícia, como relata o Ruy Castro:
“Quando chegavam antes da polícia, repórter e fotógrafo julgavam-se no direito de vasculhar as gavetas da família, surrupiar fotos cartas íntimas e róis de roupas do falecido. Os vizinhos eram ouvidos. Fofocas abundavam no quarteirão, o que permitia ao repórter abanar-se com um vasto leque de suposições. (…) De volta à redação, o repórter despejava o material na mesa do redator e este esfregava as mãos antes de exercer sobre ele os seus pendores de ficcionista.(…) Nas suas mãos [de Nelson Rodrigues], o atropelamento de uma velhinha na rua São Francisco Xávier, no bairro do Maracanã, toprnava-se uma saga digna do merlho sub-Anatole France
Era ótimo para ficção e nos deu, anos depois, “A Vida como ela é” de Nelson Rodrigues . Mas para a verdade do fato… não era tão bom assim.
Tudo isso mudou na metade do século com a introdução do ‘Lead‘. O ‘Lead‘ palavra inglesa que significa ‘guiar, conduzir‘, é o primeiro parágrafo da notícia, a abertura que deve apresentar aos leitores os principais fatos, seguindo a lógica da ‘pirâmide invertida’ (o mais importante vem primeiro).
Aqui a dificuldade da busca por informações precisas se mistura com o próprio objeto da busca: será que se as pessoas se ativessem ao fato na hora de escrever seria mais fácil encontrar a informação? Acho que sim.
Pra começar tentaram, ainda que sem muito sucesso, abrasileirar o termo para ‘lide‘, o que já te manda para algumas páginas completamente fora do escopo. Mas o grande problema mesmo é a disputa pela paternidade do ‘Lead‘ (ou lide se você preferir), como vocês podem ver nesse trecho do artigo ‘Jornalismo Narrativo’ de Felipe Gomes[2]:
“No Brasil, o ‘Lead’ foi implantado pela primeira vez na redação do jornal ‘Diário Carioca’ em 1951, e muito se acredita que pelas mãos do chefe de redação, Pompeu de Souza, considerado o ‘pai do moderno jornalismo brasileiro’. Mas, segundo Nelson Werneck Sodré, a reforma foi devida a Luís Paulistano, chefe da reportagem.”
Outros autores ainda tentam atribuir a mudança ao Jornal do Brasil, mas o texto do Ruy Castro confirma a introdução do Lead no Brasil pelo ‘Diário Carioca’:
“O Diário Carioca (…) em sua casa nova, iria promover uma revolução na imprensa brasileira, adotando a técnica americana de uniformizar os textos e implantando a novidade do ‘copy-desk’ – o redator encarregado de escoimar as matérias de verbos como, por exemplo, escoimar. Ninguém mais podia ser literato na redação, a não ser em textos assinados, e olhe lá. As reportagens do ‘Diário Carioca’ tinham de ser objetivas e, logo nas primeiras linhas, dizer quem, quando, onde, porque e como o homem mordera o cachorro. Se fosse o contrário (mesmo que atendendo as exigências das 6 perguntas) não interessava. Isso se chamava ‘Lead’ – no fundo, um simples qui, quae, quod com Ph.D em Chicago”.
O Lead não foi bem aceito por todo mundo. Ainda hoje, se peço aos meus alunos, principalmente àqueles que são professores para serem mais sucintos… os animos se inflamam e sou acusado de tudo que vocês possam imaginar.
“Na década de 50, a modernização do jornalismo brasileiro causava fortes discussões, acalentadas pela percepção de que a própria sociedade rompia com antigos padrões de cultura, política e comportamento. (…) A idéia da objetividade, que vinha agregada aos conceitos do Lead, chegava em detrimento do jornalismo em profundidade (que então crescia no Brasil). (…) A modernização do jornalismo se adequava aos processos industriais e atribuía ao passado a escrita tida como literária e desregrada, enquanto o jornalismo que se instalava procurava apresentar-se mais técnico, isento e regrado. Fortalecia a distinção entre informação e opinião.”
[2]
Mas a minha pesquisa não era sobre o ‘Lead‘ no Brasil. Não era nem mesmo sobre o Lead, mas sim sobre as 6 perguntas (que eu acredito que sejam melhor como 7, como aprendi com a Sônia, e como já discuti aqui). Ninguém sabe direito também quem inventou o ‘Lead‘ e as páginas na internet apontam em muitas direções. Um wikipedia da vida atribui ao jornalista americano Walter Lippmann na decadá de 1920-30, mas se ele foi alguma coisa, foi apenas o principal divulgador da ferramenta, já que era um árduo combatente do ‘tendenciosismo’ no jornalismo.
“O início do mito da imparcialidade, intrinsecamente arraigada ao modelo do ‘Lead’, teria raízes ainda mais distantes (…) a divisão entre informação e opinião teve início no dia 11 de maio de 1702, com o jornal inglês ‘The Daily Courant’. A primeira notícia redigida com a técnica da ‘Pirâmide Invertida’ teria aparecido no ‘The New York Times’, em abril de 1861″ diz um artigo do professor Luiz Costa Pereira Junior[3], que segue:
“o surgimento do atual modelo que impera no jornalismo impresso ocorreu durante a Guerra Civil dos Estados (1861-1865), como uma tentativa dos militares de superarem a falta de tecnologia da época. Com as dificuldades nas transmissões de dados via telégrafos, tanto entre meios de comunicação quanto nos próprios serviços militares, consolidou-se o artifício de inserir as principais informações da forma mais objetiva possível logo no topo da notícia. Naquela época, o telégrafo era a tecnologia mais utilizada para enviar informações para regiões mais distantes, mas, ainda assim, com falhas: comumente as informações chegavam incompletas ao destinatário. Nesse contexto, surgiu o paradigma da ‘Pirâmide Invertida’ e do ‘Lead’, cuja paternidade é reivindicada por norte-americanos e ingleses.”
Eu estava quase perdendo as esperanças quando encontrei a minha resposta. E não podia ser melhor. Resolvi replicar o artigo do professor Francisco Karam no Bioletim por que não achei os sites por onde encontrei o artigo dele muito confiáveis (até porque ele publicou em mais de um veículo), mas a maior parte das vezes a referência apontava para a revista mexicana Prensa. Ele diz que a origem do ‘Lead’ remonta a Roma antiga, quando Cícero, no seu livro ‘de Inventione‘ retoma idéias de retórica e oratória dos antigos gregos. Eu vou reproduzir alguns trechos aqui para encerrar a minha trilha, mas vale a pena ler o artigo completo.
“A origem do ‘Lead’ (…) não é responsabilidade exclusiva do jornalismo norte-americano ou inglês. Não surge do acaso ou por um simples arbítrio na articulação do discurso. (…) Em Roma, filósofos retomam a tradição grega da Retórica, entre eles o exímio orador Marco Túlio Cícero. Os retores, entre os quais Platão, Aristóteles e Protágoras (cerca de 400 anos antes da era cristã), na Grécia Antiga, já haviam consolidado a idéia de que o discurso deveria ser bem articulado e acessível às massas. Para que a exposição fosse completa exigia-se, no entanto, alguns elementos essenciais. Para o famoso orador romano, era preciso responder as perguntas quem? (quis/persona) o quê? (quid/factum) onde? ubi/locus) como? (quemadmodum/modus) quando?(quando/tempus) com que meios ou instrumentos (quibus adminiculis/facultas) e por quê (cur/causa). As proposições de Cícero, originadas na Retórica da Antigüidade Grega, foram paradigma da exposição de acontecimentos nos dois milênios seguintes. Em diversos momentos, ao longo de tal período, as circunstâncias do fato tiveram grande relevância na constituição de uma ética da palavra, sendo exemplarmente utilizada no discurso jurídico e na argumentação filosófica. (…) lembra que a retórica envolve o docere (transmissão de noções intelectuais), o movere (atingir os sentimentos) e o delectare (manter viva a atenção do auditório, sem se deixar dominar pelo aborrecimento, pela indiferença e pela distração). Por isso, a linguagem deve ter um caráter claramente acessível, já que se dirige não a mentes superiores, a espíritos puros, mas a homens de carne e osso, sujeitos portanto ao cansaço e ao tédio, vulneráveis a raciocínios demasiado difíceis“.
É isso, a ética da palavra. Que termo lindo! Ser ético na palavra é falar para ser compreendido, é assumir que parte importante da responsabilidade da compreensão da informação está em quem transmite a informação! É saber para quem está falando, ou então, falar para todo mundo! E para falar pra todo mundo, você tem que falar simples, falar conciso, falar objetivo. Por que? Porque assim todo mundo te entende! E ninguém desmaia de chatice.
P.S. Na minha busca, nenhum dos endereços WEB fornecidos nos documentos que encontrei funcionaram. Tive que usar o nome dos autores e trechos dos artigos para prosseguir com a busca e chegar aos originais. Por isso não coloquei os links, mas aqui vão os títulos e autores. Antes que alguém reclame, não são artigos científicos, por isso não sigo o padrão acadêmico de citação. Boa sorte na busca!
[1] Processo de Produção jornalística: do nariz de cera ao lead nos jornais de São
Luis. Lígia Guimarães, Pâmela Pinto, Reuben da Cunha Rocha Junior, Sarita Bastos Costa e Yane Botelho.
[2]Jornalismo Narrativo. Eficiência e viabilidade na mídia impressa. Felipe Sáles Gomes, Klenio Veiga da Costa e Renata Lourenço Batista.
[3] A crise e a historia da pirâmide invertida. Luiz Costa Pereira Junior.

Comigo ninguém pode

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Eu nunca fui muito de flores, apesar de ter uma tatuada no braço. Sempre gostei mais de plantas, ainda que eu seja uma negação em botânica. A razão é simples: as flores sempre murcham depois de uns dias, enquanto as plantas, se cuidarmos com um pouco de água e carinho, conseguimos manter por muito, muito tempo.
Por isso, quando uma namorada que eu tive, anos atrás, se mudou para sua casa nova, ao invés de flores, eu dei uma planta. Era uma planta linda, com grandes folhas verdes malhadas de branco.
O pai dela não gostou. Era uma ‘Comigo-ninguém-pode’, que, segundo ele, era planta de ‘macumbeiro’. Se essa não era realmente uma razão válida, existe a razão dele não gostar mesmo de nada que fosse dado a ela que não tivesse sido dado por ele – que, tenho de concordar, dava presentes lindos. Apesar de ter uma mãe ‘macumbeira’, eu não sabia de nenhuma propriedade especial daquela planta. Para mim era uma planta bonita, um presente que representava algo que, se cuidado, poderia durar. Mas hoje a gente sabe que existiam razões mais concretas para desmerecer aquele presente.
O Brasil tem uma grande variedade de plantas tóxicas, mas as duas espécies de Dieffenbachia spp (D. picta Schotte e D. seguine Schott) conhecidas como ‘Comigo-ninguém-pode’ são as campeãs de acidentes. Especialmente com crianças.
A ‘Comigo-ninguém-pode’ é muito enganadora. Bonita por fora mas perigosa por dentro. Seu veneno também é enganador, porque não é exatamente como um veneno. São mais como ‘espinhos’, muito pequenos, que estão do lado de dentro.
Coloco espinhos entre aspas porque não são exatamente espinhos. A seiva e os tecidos da ‘Comigo-ninguém-pode’ estão impregnados de cristais de Oxalato de Cálcio, que apesar de serem bonitinhos no microscópio eletrônico, quando entram em contato com as células, fazem um estrago enorme, ativando, na opinião dos pesquisadores do departamento de farmacologia da UFRJ, mecanoreceptores (neurônios sensíveis ao contato) e nociceptores (neurônios ligados a dor) diversos, que disparam uma resposta do tipo inflamatória, com a imediata formação de Edema (inchaço), ainda que não tenha a ver diretamente com o sistema imune.
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Os acidentes acontecem principalmente com crianças, mas alguns adultos desavisados também, porque levam a planta a boca e o edema acontece na língua e na glote, impedindo a respiração. E essa é outra razão pela qual essa planta é um problema tão grande. Como o inchaço era semelhante ao de uma forte reação alérgica, como aquela desencadeada por quem não pode comer camarão mas come, os médicos tratavam como alergia. Não adiantava nada. Um dia, em alguma uma emergência, alguém, sem saber mais o que fazer, deve ter resolvido colocar um anestésico apenas para aliviar o sofrimento do pobre coitado com a língua inchada. E qual não foi a surpresa quando o edema… diminuiu!
O Eugenol, presente no Cravo-da-Índia, é capazes de reduzir o edema causado pela planta. No estudo em anexo, eles ainda acreditavam que o papel dos critais de oxalato era apenas ‘carregar’ o veneno, que seria outro. Mas os resultados mais recentes, apresentados na excelente palestra do prof. Paulo Melo (Farmaco/UFRJ) no Instituto de Biofísica, mostram que mesmo após múltiplas e diversas lavagens, capazes de remover qualquer substância aderida, os cristais continuam afetando especificamente os neurônios do local exposto a planta. O que o Eugenol faz, assim como outros analgésicos tópicos, é bloquear os canais de sódio dependentes de voltagem dos neurônios, responsáveis pela produção das correntes elétricas que permitem a comunicação com o Sistema Nervoso Central. E sem comunicação com o cérebro, termina a produção das substâncias que induzem a resposta inflamatória (como o CGRP sigla em inglês para ‘peptídeo relacionado ao gene da Calcitonina’) . E o edema diminui.
Você consegue imaginar o estrago que faria na sua língua uma lambida em um cactus? É mais ou menos o mesmo estrago que fazem os cristais oxalato de cálcio na superfície das células da língua. Um cactus pelo menos tem os espinhos a mostra, a gente tem como evitar. Mas esses ‘espinhos’ da ‘comigo-ninguém-pode’ estão escondidos dentro dela.
Se você encontrar uma “comigo-ninguém-pode” pela frente, faça de tudo para se manter afastado.

Dip EC, Pereira NA, & Fernandes PD (2004). Ability of eugenol to reduce tongue edema induced by Dieffenbachia picta Schott in mice. Toxicon : official journal of the International Society on Toxinology, 43 (6), 729-35 PMID: 15109894

Pelas cores dos olhos teus

(“For the colors in her eyes” – See the comment section for an English version of this post)
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Não me canso de aprender coisas. Pelos mais diversos motivos.
Um detalhe dos belos olhos dessa bela moça me chamou a atenção: a íris do olho direito tem uma área de uma cor diferente. Enquanto os olhos são ‘medovača‘ (cor de mel em Sérvio), o quadrante direito superior é cinza.
Fiquei curioso e cheguei mais perto. Pra ver melhor.
Eu já tinha visto pessoas com olhos cada um de uma cor, mas apenas um parte? Nunca tinha visto. Primeiro fiquei interessado porque ela era linda, mas depois pensei que poderia ser um exemplo pouco documentado de aneuploidia ou de imprinting parental, que eu poderia usar nas minhas aulas de ‘relações gene ambiente’.
Fiz uma breve pesquisa e… não descobri nada! O Google aparentemente não sabe nada sobre ‘olhos de cores diferentes’. Tive que fazer uma investigação de verdade.
A região dos olhos que dá a cor a eles é a íris, já que a córnea é transparente, a pupila é preta (justamente porque os pigmentos da retina absorvem toda luz) e a esclera toda branca. A cor é dada principalmente pelo acúmulo de melanina, a mesma proteína que dá a cor a pele e aos cabelos, numa versão um pouquinho diferente apenas. Mas como a melanina só varia do preto ao marrom, o que dá a cor azul, verde, cinza e todas as variações entre elas? Bom, além da melanina, que está empacotada em compartimentos chamados melanossomos que modificam a cor dependendo da camada da íris em que se encontram, outros pigmentos gordurosos contribuem para as diferentes cores.
Aprendi que um olho de cada cor, ou heterocromia total, não é só uma condição rara, mas também é anormal. Quer dizer, na maior parte das poucas vezes que aparece, resultado de uma doença hereditária, como a ‘síndrome de Waardenburg‘, que é causada por uma disfunção da pigmentação vejam só, do ouvido, mas que também levam a despigmentação aos cabelos, pelos e olhos.
A cor dos olhos é muito mais complexa do que ensinam os nossos professores de biologia do ensino fundamental e médio, com aquela história de Aa (azão, azinho). Esses que seriam os alelos do gene EYCL3 (do inglês ‘eye color‘ – cor dos olhos), localizado no cromossomo 15, que determinaria a quantidade de melanina na íris e consequentemente se o olho seria castanho ou azul. Mas além da quantidade de melanina, ainda há a posição dos melanossomas e a quantidade de outros pigmentos. Pelo menos outros dois genes, também localizados no cromossomo 15, estariam envolvidos: EYCL1 e EYCL2.
(há um tempo queria escrever sobre o que determina realmente a cor dos olhos, mas ainda não tive tempo para decifrar o artigo na Nature)
Também aprendi que olhos cinzas são típicos dos Balcãs, que também é uma importante região produtora de mel, ainda que isso não tenha muita importância para responder a pergunta.
Aprendi ainda que existe uma pseudociência chamada iridiologia com enormes pretensões de precisão científica, mas que como as outras pseudociências, não sobreviveria a um exame mais criterioso (leia-se um estudo duplo cego). De acordo com esse mapa que eu encontrei (veja foto abaixo), a mancha no olho dela significa problemas no pescoço e pulmões, podendo envolver, respectivamente, os ombros e os seios. Mas olha como cada círculo quer dizer uma coisa e cada região quer dizer outra. É igual acreditar que Deus controla, ou mesmo monitora, todas as coisas que acontecem no seu dia-a-dia: é impossível que seja verdade.
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Quanto a chance de usar os olhos dela como exemplo nas minhas aulas de evolução ou biofísica, eu não podia estar mais enganado. Não há nenhuma evidência de que aneuploidia ou imprinting parental (que eu acabei estudando muito para escrever esse texto. Tanto que ficou muito grande e vou colocar o que aprendi em outro) estejam envolvidos no fenômeno.
Finalmente, aprendi que o caso dela é chamado de heterocromia setorial e, se não foi causado por um trauma (como uma pancada forte) ou uma infecção da íris, é um caso muito raro em humanos.
Podemos dizer que ela é uma raridade.

Comecei a ler… Almanaque da Rede

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Ontem fui assistir a Sonia Rodrigues falar sobre o seu novo livro, Estrangeira, na Livraria Saraiva do Praia Shopping. Eu não escondo de ninguém o quanto sou fã dela e o quanto aprendi com ela. Por isso, foi uma grata surpresa quando o Beto Largman pediu pra ela falar do Almanaque da rede, livro que a Sonia também está lançando.
O debate foi ótimo, porque a Sonia, além de escrever muito bem, fala muito bem. Comprei os dois livros e ganhei dois autógrafos, com dedicatórias. Comecei a ler “Estrangeira” no mesmo dia e fiquei impressionado, como só ela sabe deixar, com o sofrimento do amor.
Fui pro Almanaque da rede e ai fique impressionadíssimo. Como ela diz, na primeira página, “O que você tem nas mãos é a soma do que aprendi sobre escrever histórias e expressar opiniões. É o que aprendi nos livros que li e também nos livros, peças de teatro e roteiros que escrevi. Aprendi muito também nos jogos de Roleplaying game que pesquisei no doutorado em Literatura e nos jogos ‘Autoria’ que criei ou ajudei a criar.”
Tudo que você precisa pra re-aprender a escrever está lá. É, na minha opinião, ainda melhor do que o jogo ‘Autoria‘, porque o espaço pra escrever está lá, já que o livro tem um formato de agenda. “Um blog de papel”, como ela disse.
E aprender a escrever é isso: escrever, escrever e escrever! De nada servem as dicas se você não colocar a mão na massa. Todos os dias.
Mas enquanto ouvia a Sonia falar sobre transmídia, que é, como o nome diz, quando a história transcende a mídia e passa de um veículo para outro (como a personagem principal de Estrangeira, Eilenora, que tem perfil no facebook, um blog de verdade e está escrevendo uma graphic novel também) e discutindo com o público sobre o desafio de escrever para diferentes mídias, eu fui percebendo um monte de coisas.
Para a Sonia, escrever é escrever. Quer dizer, não existem diferentes formas de escrever, ainda que haja diferentes mídias. Claro que seu texto é de um jeito em um livro, de outro em um blog, no twitter ou quando escreve uma SMS. Mas o resultado não é ‘para’ a mídia e sim ‘por causa’ da mídia. Não deixe passar desapercebida a diferença.
O que é limitada é a mídia e não a forma de escrever. E se você escreve de um jeito para cada mídia, meu palpite é que você ainda não percebeu isso. Mas tá, e daí? Qual é o problema? O problema é que se você não percebeu isso, talvez seja porque não percebe as limitações das mídias.
Quais são as limitações? As vezes coisas simples, como o limite de caracteres do Twitter (140 caracteres) ou de um SMS (160 caracteres). E o Twitter está mostrando que é incrível o que você pode fazer com 140 caracteres se souber escrever.
A conclusão é que se você sabe escrever e sabe respeitar os limites das mídias, então poderá escrever, para sempre, em qualquer mídia que venham a inventar, o que quiser.
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Nessa hora (foto acima), Sonia estava novamente falando da “Estrangeira”, e foi então me toquei que, a mesma importância que respeitar os limites tem para ser criativo na escrita, tem para ser feliz.
Da mesma forma que muitas pessoas não conseguem escrever porque perdem mais tempo questionando o enunciado da pergunta do que trabalhando na história, muitas, as vezes as mesmas pessoas, passam mais tempo questionando a justiça das coisas da vida, dos limites que nos são impostos pelos outros, do que partindo pra outra, para serem felizes.
Perguntaram para a Sonia o que ela, com uma tese de doutorado em literatura e RPG, acha dos games. Lembrei, como muitas vezes lembro, da palestra do Roberto da Matta na FLIP: “O futebol salvou o Brasileiro! Ensinou ela a ter disciplina”. Sim, porque não importa o quanto o seu time deveria ganhar ou o quanto você queria que ele ganhasse. O jogo acontece entre 4 linhas, não vale colocar a mão e o que vale é bola na rede. Não importa o quanto você queira que o seu time ganhe, ou o quanto um minuto a mais ou a menos mudaria o resultado: o seu time tem 90 min pra ganhar o jogo. Nem mais, nem menos.
Nos games (sejam os videogames de hoje ou o WAR que eu jogava), ninguém pode mudar as regras e ninguém questiona a instrução. E todo mundo aceita. E por isso as pessoas superam as fases e os desafios.
Então porque nas perguntas de prova, entrevistas de emprego e, porque não dizer, no amor, as pessoas preferem ficar questionando a matéria do professor, a pergunta do entrevistador e, porque não dizer, as razões do amante. Tomam pau na prova, pé na bunda no emprego e… chifre. O resultado é que são menos felizes.
O “Almanaque da Rede” pode ajudar as pessoas a superar os desafios, respeitar os limites para escrever, escrever melhor e serem mais felizes!

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