Um ponto de vista sobre o aborto

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O aborto não é uma questão moral ou religiosa. É uma questão médica e científica. E se há uma razão para ele ser uma questão política, é essa: ser um problema de saúde pública, de saúde da mulher. E é uma vergonha ver nossos candidatos a presidente abrindo concessões e compactuando com crenças que colocam em risco a vida das mulheres.
Eu não sou médico e talvez devesse ficar quieto quanto ao assunto, mas acho que a ciência pode contribuir para esse debate, desmistificando a divindade da vida.
De tudo aquilo que a teoria da evolução nos ensinou sobre a vida, e ela nos ensinou muita coisa, uma eu considero extremamente importante. Que a ontologia imita a filogenia. Essas duas palavras complicadas querem dizer simplesmente que o desenvolvimento da vida imita a evolução da vida, e que quando o embrião e o feto de qualquer espécie está se desenvolvendo, ele passa por estágios que lembram formas ancestrais daquela espécie. É a teoria da recapitulação. Quer um exemplo? Durante o nosso desenvolvimento, no final do primeiro mês de gestação, os fetos humanos possuem arcos branquiais, como os peixes.
Uma outra semelhança é o próprio zigoto, a primeira célula do corpo, formada pela união do espermatozóide com o óvulo. Assim como a vida na Terra teria surgido de uma célula, cada nova vida também surge de uma célula.
Mas como surgiu a primeira celular?
Os filósofos gregos acreditavam que a origem era divina, e por isso não se preocupavam com o ‘como’ a vida apareceu e se contentavam apenas em classificá-la em ‘bichinhos’ e ‘plantinhas’. Mesmo hoje em dia, acredito que a física conheça melhor o que acontece com o início do universo do que a biologia o que acontece com o início da vida. Ainda assim, sabemos o suficiente para desmistificar o fenômeno: existem evidencias suficientes para mostrar que as primeiras células não tinham membrana plasmática, fruto de uma bioquímica de lipídeos complexa e que apareceu muito depois na evolução do metabolismo.
As teorias mais aceitas atualmente, não apontam mais para uma ‘sopa primordial’ feita de molecular orgânicas formadas por descargas elétricas em atmosferas de metano e CO2, mas sim para a origem de um código genético primordial a base de adenina (uma das bases nitrogenadas que formam o DNA), que tem estrutura química simples e é encontrado em TODO o universo. O suporte para esse código genético, que no DNA ‘moderno’ é um ‘esqueleto’ de açúcar e fosfato seria, acreditem, a superfície de cristais de argila. Parece que no final das contas a Bíblia não está tão equivocada ao dizer: “E formou o Senhor Deus o homem do barro da terra” (Gen 3, 7).
A bioquímica, termo que eu aqui uso no seu sentido etimológico, se formou a partir de uma química pré-biótica dentro de compartimentos rochosos de Sulfito de ferro no fundo do oceano. Ao que parece, as primeiras ‘células’ não eram de vida livre e tinham uma casca de pedra.
A ontogenia recapitula a filogenia. Ate hoje, todas as formas de vida que conhecemos são feitas de células (bom, isso pode causar arrepios nos virólogos, mas não vou entrar nesse mérito agora). E o que todas as células tem em comum é que são compartimentos, isolados do meio externo através de uma membrana semipermeável. E através dessa membrana, possuem os mesmos tipos de gradientes que existem (e existiram) no fundo do oceano Hadeano (a era geológica em que a Terra se resfriou), por bilhões de anos, há bilhões de anos.
Existem muitas evidencias que a vida surgiu no fundo do mar, em condições bem simples: um gradiente de eletricidade, que passava de um líquido hidrotermal reduzido (rico em elétrons) através de uma fina crosta terrestre para um oceano oxidado (que não quer dizer exatamente com oxigênio, o que não era ocaso, mas sim ‘pobre’ em elétrons); um gradiente de prótons do mesmo líquido hidrotermal que era alcalino para o oceano que era ácido e, finalmente, também um gradiente de calor, onde algo com 60oC passavam do líquido hidrotermal para o oceano.
Só isso? Bom, mais umas duas ou três coisas, mas isso era o fundamental.
A ontogenia repete a filogenia. O animado repete o inanimado. O conceito é que fenômenos complexos podem ser explicados por sub-fenômenos mais simples. Essa também é uma idéia antiga, um princípio descrito, vejam só, por um monge, no século XIV. Bom, é verdade que Guilherme de Occam era monge, mas naquela época, em que os poderosos dominavam haréns gigantescos, e apenas os primogênitos tinham ‘direito’ a se casar, um segundo filho não tinha muita opção, por lei ou por disponibilidade de parceiras, para se casar, restando apenas o monastério.
Mas como eu ia dizendo, o principio da economia da natureza, ou ‘navalha de Occam’ como ficou conhecido, foi muito bem enunciado por Einstein: “as coisas devem ser o mais simples possível. Mas não mais simples ainda”, e diz que sim, as coisas que vemos como complexas são frutos de coisas simples, porque a natureza é econômica (porque energia, a moeda da natureza) é uma coisa ‘cara’. E vai CONTRA a principal idéia da religião: de que algo complexo, como a vida e o ser humano, teria de vir de algo ainda mais complexo: Deus.
Duas palestras do TED que assisti recentemente, essa e essa, argumentam muito e muito bem em favor da simplicidade como fonte de complexidade.
Mas eu não espero que meus leitores leiam o excelente artigo de Martin & Russel que está anexo, ou que se debrucem sobre os escritos de Prigogine para se convencerem, ou apenas acreditarem, que a vida é uma inevitabilidade termodinâmica e não há nada de divino nisso.
Uma vez me pediram para escrever sobre aborto e eu tenho certeza que não era esse o tipo de resposta que estavam esperando. Mas eu guardei essa resposta para o final. Para mim, o principal argumento para convencer os religiosos da não divindade da vida, vem da freqüência com que os abortos naturais acontecem. Sim, porque abortos naturais são causados por Deus, não são?
Estimasse que 15 a 20% das gestações terminem em abortos espontâneos, aqueles que acontecem antes da vigésima semana de gravidez. Mas o número pode ser muito maior. Primeiro porque eles podem acontecer também depois da 20a semana, mas ai não recebem mais o nome de ‘aborto’: são natimortos ou óbitos fetais tardios. E depois, porque um percentual desconhecido acontece mesmo antes da 4a semana de gestação, em casos que a mulher nem mesmo sabe que está grávida e o aborto pode se passar por um ciclo menstrual um pouco mais dolorido. Com isso, os abortos espontâneos podem chegar a 50% das gestações! Provavelmente a causa mortis mais freqüente da humanidade!
Os abortos espontâneos ainda são responsáveis por 15% dos casos de morte materna por aborto (os abortos induzidos são responsáveis por 85%).
Homens e mulheres tem estratégias reprodutivas diferentes, ainda que colaborem para alcançar um objetivo comum. Mas é provável que por essas diferenças, os homens se preocupem mais com o risco de perderem suas parceiras do que com o risco de perderem uma gestação por aborto: espontâneo ou induzido.
Aposto que nenhum dos carolas que protesta contra o aborto induzido e a santidade da vida viu sua mulher se esvaindo em sangue por um aborto espontâneo.
Martin, W., & Russell, M. (2003). On the origins of cells: a hypothesis for the evolutionary transitions from abiotic geochemistry to chemoautotrophic prokaryotes, and from prokaryotes to nucleated cells Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 358 (1429), 59-85 DOI: 10.1098/rstb.2002.1183
Bruno Gil de Carvalho Lima (2000). Mortalidade por causas relacionadas
ao aborto no Brasil: declínio e
desigualdades espaciais Pan Am J Public Health, 7 (3), 168-172

Um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê

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Aaaaawwwwwmmmmnnnn… Minha amiga Leila, 36 anos, pós-doutorado em Genética, geme no cinema ao ver Taylor Lautner, o ator que faz o lobisomen Jacob Black, tirar a camisa no filme Eclipse. Ela e mais outras 332 meninas, várias com suas mães, pareciam estar apenas por esse motivo. Mas quando no dia seguinte, sábado a noite, eu estava guiando na estrada pra São Pedro da Aldeia e ouvi quase 1h de debate na BandNewsFM, com psicólogas, pedagogas e jornalistas sobre os ‘efeitos’ da saga nos adolescentes, eu achei que tinha de fazer alguma coisa.
Eu não vou criticar o filme. Particularmente, como fantasia e amor impossível, o ‘Feitíço de Áquila‘ é imbatível. E cá pra nós, a Michele Pfeiffer virando lobo é bem mais legal.
Mas o que eu poderia fazer de útil com todo esse afã em torno da saga ‘Crepúsculo‘? Explicar a bioquímica por trás do mito do Vampiro e do Lobisomem, é claro. Sou ou não sou NERD?!
Vocês já devem ter ouvido falar da Hipertricose Lanuginosa Congênita, aquela doença que deixa a pessoa com o corpo TODO coberto de pelos. Sim, ela poderia ter sido a origem do mito do lobisomem, mas o problema é que ela é muito rara e existem apenas 50 casos documentados no mundo. Se hoje com a internet ainda é difícil encontrar alguém com essa doença, imagina na idade média.
Um candidato mais forte para a origem do mito são as ‘Porfirias’, um conjunto de doenças que afetam uma via metabólica importantíssima para o organismo, porque produz um dos principais componentes do sangue: o Heme.
Digo um conjunto de doenças porque é mesmo: se for ao site da ‘Associação brasileira de porfiria’ poderá aprender mais sobre cada uma delas. Na verdade isso acontece porque a via metabólica que sintetiza o heme tem 8 etapas e dependendo de qual etapa apresentar problema, a porfiria será uma diferente.
Uma via metabólica tem reações em cadeia, em sequência, onde o produto da primeira reação serve de matéria prima para a segunda. Se dá um problema na primeira reação, o produto não é consumido pela segunda e se acumula. Apesar de simples, o problema é grande.
Vou usar os nomes das enzimas, porque assim meus alunos vão poder usar esse texto pra estudar, mas você, que não tem aula de biofísica comigo, vai entender de mesmo jeito, e nem vai achar chato.
Você se lembra do Ciclo de Krebs, não é?! Vai, desse todo mundo se lembra nas aulas de biologia do ensino médio. A Glicose dos alimentos é quebrada em pequenos pedaços chamados de Piruvato, que depois viram um composto super versátil chamado Acetil-CoA, que pode entrar em um ciclo que permite tirar dessa molécula vários elétrons para depois gerarem ATP (a moeda energética da célula) na famosa ‘cadeia transportadora de elétrons’.
Bom, isso tudo foi pra dizer que o primeiro composto da via metabólica da síntese do Heme, é a Succinil-CoA, que é um dos compostos intermediários do ciclo de Krebs. Juntamos esse composto com o aminoácido Glicina e temos o primeiro produto intermediário: o ácido delta-aminolevulínico (ou ALAd).
Depois o ALAd é desidratado, perde duas moléculas de água e vira um composto de nome bem estranho: porfobilinogênio. Esse composto possui um anél pirrólico, que nada mais é do que um pentágono de carbonos com um nitrogênio na ponta (olha a figura).
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Bom, na próxima etapa (que é dividida em duas) formamos um círculo de anéis pirrólicos. Juntamos 4 porfobilinogênio para formar o uroporfirinogênio III (primeiro o I e depois o III). Eu arriscaria dizer que esse é o composto chave, porque ele já tem cara de Heme, só falta colocar o átomo de ferro lá dentro.
E isso é feito na seguinte ordem: uroporfirinogênio III vira coproporfirinogênio III, que vira protoporfirinogênio III, que vira protoporfirina III, que ganha o Fe2+ e vira Heme. Foram oito reações mesmo, confere?
Bom, o 5o estágio, que é quando o uroporfirinogênio III vira coproporfirinogénio III. Essa reação é feita por uma enzima chamadade Uroporfirinogênio descarboxilase, mas vamos chamala de UROD que é como todo mundo chama. Essa etapa é crucial porfíria (a doença, caso você já tenha se embaralhado com tantos nomes) e para os nossos vampiros e lobisomens da idade média.
O trabalho das enzimas é meio chato. Elas são aqueles funcionários que aparecem em linhas de produção apertando parafusos, como num filme do Orson Welles, mas como elas sabem só fazer isso, elas em geral fazem muito bem. Bom, isso sem ninguém atrapalhar. Bom, as vezes a UROD vem com um defeito de fábrica, uma mutação genética que pode ser passada de pai para filho, e ai não há o que fazer: ela não consegue ‘apertar os parafusos’ direito e ai teremos Porfiria. As enzimas geralmente são mais chatas com exclusividade do que as mulheres e só o coproporfirinogénio III, e apenas ele, pode seguir na via metabólica para virar Heme.
Mas como eu disse antes, essas doenças genéticas são sempre raras (porque as mutações são raras) e dificilmente podem dar origem a qualquer mito que seja. O que mais, que não seja genético, pode atrapalhar a UROD?
A resposta é Dioxina. Ah, você não sabe o que é dioxina? É um composto orgânico muito tóxico que ficou famoso por causa do ‘Agente Laranja’ usado na guerra do Vietnã para desfolhar as florestas e mais recentemente por ter sido usado como arma no atentado ao candidato a presidente da Ucrânia em 2004 Victor Yushchenko.
Além da dioxina ser tóxica, ela está muito mais difundida no ambiente do que as mutações genéticas. A mais famosa é o TCDD. Esse composto quando entra na célula é ativa uma via metabólica especial, chamada de AhR (lembre-se de Arght!) cuja função é mandar para o xixi todas essas porcarias orgânicas que entram no nosso corpo. O AhR faz isso, nesse caso, em parte, através de um composto chamado CYP1a2, e é ai que mora o perigo.
O CYP1A2 é capaz de interferir na via metabólica do Heme, naquele 5o passo fundamental, convertendo o uroporfirinogênio III em uroporfirina III ao invés de coproporfirinogênio III. Se pelo menos as enzimas não fossem tão específicas… poderíamos fazer alguma coisa com esse composto, mas a verdade é que não podemos e a uroporfirina III começa a se acumular no fígado e na pele, causando todos os sintomas da porfíria:

  • Anemia profunda – que levava as pessoas a uma dieta de carne, muitas vezes crua, e até mesmo sangue
  • Fotosensibilidade – uroporfirina absorve a luz do sol, mas depois não sabe o que fazer com a energia, por isso ela produz radicais livres que atacam o tecido da pele, causando manchas e feridas. Causava ainda despigmentação da pele e sangramentos nos olhos e gengivas
  • Hirsutismo – pra minimizar o efeito da luz, o corpo responde produzindo pelos nos locais mais expostos e normalmente desprotegidos, como as costas das mãos, as bochechas e testa

Desses sintomas para o mito, realmente não precisa muito, não é?
Resta ainda uma pergunta. Mas se a Dioxina foi criada pelo homem na era industrial, como ela poderia afetar as pessoas na idade média? Acontece que a TCDD não é a única substância a ativar os mecanismos de biotransformação do AhR (lembra, o arght!) e a iniciar a produção do CYP1A2. Outros compostos como o benzopireno, o BaP, que se formam simplesmente com a queima de carvão e madeira (tá cheio de BaP na carne de churrasco que a gente come, no cigarro que alguns fumam e na fumaça de carro que todos respiramos) também ativam. E muito.
Na idade média as pessoas cozinhavam com fornos a lenha dentro de casa, e a concentração de Hidrocarbonetos poliaromáticos, a classe de compostos que ativam o AhR e da qual o BaP faz parte, devia ser alta o suficiente para induzir muitos casos de uroporfiria. Então parece que por causa dos fornos a lenha da idade média, hoje em dia temos que conviver com os gemidos das adolescentes por monstros criados pela poluição. Menos o Saci Pererê.
PS: Se você se interessou a ponto de querer saber mais, pode acompanhar esse “Lancet Student Seminar: Porphyria” ou esse artigo da Scientific American “Born to be purple”. Ambos em inglês.

Smith AG, Clothier B, Carthew P, Childs NL, Sinclair PR, Nebert DW, & Dalton TP (2001). Protection of the Cyp1a2(-/-) null mouse against uroporphyria and hepatic injury following exposure to 2,3,7,8-tetrachlorodibenzo-p-dioxin. Toxicology and applied pharmacology, 173 (2), 89-98 PMID: 11384210

"Seu cérebro de ostra!"

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Já ouvi pessoas fazendo esse tipo de ofensa umas as outras. Mas será que é realmente uma ofensa ter um cérebro de ostra? Ou pior, ostra tem cérebro?
A pergunta parece boba mas não é simples de responder. Pelo menos 3 dos meus amigos maiores especialistas em neurobiologia, incluindo o Dr. Stevens Rehen, a Dra. Marília Zaluar e a maior especialista do mundo em sistema nervoso de invertebrados, a Dra. Silvana Allodi, não sabiam, de cara, a resposta. Tive então eu que me virar pra descobrir.
A ajuda, mais demorada que inesperada, veio de um antigo livro de 1964 sobre (e entitulado) “A ostra americana Crassostrea virgínica” de Paul Galsoft. Essa é a prima norte americana da ostra de mangue, Crassostrea rhizophorae, que pode ser vista na foto acima e que eu tenho certeza que tantos de vocês apreciam na praia ou em restaurantes chiques. O livro traz um capítulo inteiro sobre o sistema nervoso das ostras.
Mas curiosamente, a primeira coisa que me chamou atenção não foi a solução do mistério. Foi a linguagem do texto. Vocês, que como eu acabam lendo muito sobre ciência, também não percebem a diferença gritante no estilo de escrita dos artigos e textos técnicos dos anos 40-60 para os atuais? Sem a pressão do ‘Publicar ou Percer’ nas costas, os cientistas eram ótimos contadores de histórias, e a ciência era muito melhor comunicada. Os textos eram sim mais longos, mas não por isso prolixos. Eram contextualizados e tinham o necessário para serem fluidos, como uma legibilidade (aprendi ontem essa propriedade dos textos) difícil de encontrar hoje em dia.
Galsoft começa falando que o sistema nervoso é bastante simples, com um gânglio cerebral na parte anterior (perto da ‘dobradiça da ostra, onde também está a boca) e um gânglio visceral na parte posterior (onde a concha se abre e onde estão tambémoutros órgãos importantes como as brânquias, o músculo adutor, intestinos, etc). Ambos estão conectados por uma longa fibra nervosa e deles partem diversos nervos para as outras partes do corpo.
Mesmo simples, ou talvez justamente por isso, é um lindo sistema nervoso. Não estou brincando… é L-I-N-D-O! Veja o esquema abaixo. Se fosse uma tatuagem nas costas de uma menina na praia todos estariam perguntando quem teria sido o designer de um tribal tão bacana (bom, talvez não usassem uma gíria antiga como essa). Mas tenho certeza, que jamais imaginariam que eram os neurônios da ostra.
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Diferente de outros bivalves, de vida (mais ou menos) livre, como mexilhões e vieiras, as ostras não possuem pé (sim, os mexilhões tem pé) e olhos (sim, os coquilles tem olhos) e seus únicos órgãos dos sentidos são mínusculos tentáculos na borda do manto.
Abre parênteses: o manto é um órgão dos bivalves com muitas funções: secreta a concha, participa da reprodução e ajuda a proteger os órgãos internos. Fecha parênteses
Apesar de pequenos, os tentáculos são muito sensíveis se retraindo com a passagem de sombras ou feixes de luz, e capazes de perceber mínimas quantidades de drogas, excesso de material particulado em suspensão variações de temperatura e de composição da água do mar.
Em uma seção de métodos, pouco frequente em um livro texto que não seja um manual, ele fala sobre a grande dificuldade de se estudar o sistema nervoso, e dá uma receita para se observar os nervos explicando também o porquê e o para quê de cada passo, como minha querida amiga Cristine gostaria que fossem todos os protocolos.
Ele diz: “Em preparações bem sucedidas, o nervo violeta escuro é visível contra a massa visceral semi-transparente.” E com uma impressionante sinceridade, impossível em um artigo nos dias de hoje, continua: “Na minha experiência o método se mostrou caprichosamente laborioso e não completamente confiável”.
Mas o mistério mesmo da história do ‘cérebro’ das ostras é o Órgão Palial. Pequenino, no formato (e no tamanho) de uma vírgula, – como esta aqui que passou, só que com muitos cílios na cabeça arredondada -, até 1964 nenhum experimento tinha sido capaz de explicar a sua função ou o seu funcionamento. Por isso, as especulações iam desde “um importante papel no controle da frequencia da respiração” até a “detecção de perturbações mecânicas” ou de alterações químicas na água.
E foi tentando elucidar esse enigma que me deparei com o final feliz, que não está no sistema nervoso, mas sim no circulatório. Como nas ostras o manto, além das funções que eu já listei, também dá uma mão na respiração, é necessário um complexo movimento de vai-e-vem do sangue (na verdade hemolinfa) nas veias e artérias dessa região. E para controlar esse movimento, a ostra possui dois ‘corações auxiliares’, que funcionam independente do coração principal. Mas fraco no inverno, e como bom carioca, mais forte no verão.
Então, se algum dia alguém disser que você tem cérebro de ostra, torça, pelo menos, pra ter coração também.

As aventuras de um carbono viajante

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Tudo começou bilhões de anos atrás, no interior de uma estrela muito, muito quente mesmo, onde meu pai, um átomo de berílio e minhas três mães de hélio se juntaram para me formar. Os elementos são muito altruístas e para que um nasça, outros tem que morrer. Então nasci eu, Célio Carbono da Silva.
Eu vivia tranquilo em um berçário estelar até que o alarme de incêndio tocou e a professora disse que nossa estrela tinha se transformado em um a supernova e iria explodir. Fiquei assustadíssimo, mas se você acha que os fogos de artifício no Ano Novo em Copacabana são legais, não tem nem idéia do que pode ser a explosão de uma estrela. Fomos, eu e meus primos de hidrogênio, ferro, nitrogênio, todos lançados no espaço sideral no maior fogo de artifício de todos os tempos.
Quando a força da explosão foi diminuindo, nós decidimos passar umas férias nesse novo planeta que estava se formando, a Terra. Era uma pechincha comparado ao que as agências estavam cobrando para as viagens nas caudas de cometas. Além disso, essa coisa de ficar dando voltinhas em torno do sistema solar parecia mais coisa de parquinho de diversão. Coisa para crianças e eu já era um rapazinho, com mais de 5 bilhões de anos.
Eu estava super bronzeado depois de uma temporada no mar de magma. Mas ai chegou o inverno (ou pelo menos começou a esfriar) e as coisas foram engrossando. Se não fosse aquele vulcão, eu poderia ter ficado preso por toda a minha adolescência em alguma rocha basáltica. Achei que não sobreviveria ao grande dilúvio que se sucedeu, mas descobri que era um ótimo nadador e me transformei no primeiro carbono dissolvido da história.
Foi nessa época também que tive meu primeiro caso com uma hidrogênio. Eu era bonitão e elas me perseguiam em grupo. Acabei me juntando com 4 delas, uma era a mais bonita, outra a mais simpática, tinha também a mais inteligente e uma aproveitadora (que só queria meus elétrons). Juntos formávamos uma bela molécula: o metano. Mas sustentar essa mulherada não era fácil e precisei arrumar um emprego. Fui logo convocado para participar do ‘efeito estufa‘, um movimento que, prometiam, mudaria o mundo.
Mais, depois, não se sabe bem como, tudo mudou… de verdade. Um grupo de moléculas revolucionárias, mas muito bem organizadas, começou um movimento chamado ‘vida’. Eles começaram devagar, se reunindo em cristais de argila e depois começaram a se multiplicar. Eles fundaram uma empresa chamada Biotech, construíram o primeiro DNA e a partir dai, nada nunca mais seria o mesmo. Eram tempos muito empolgantes. Pela primeira vez a Gaia teve de reconhecer que não era a única a comandar as coisas no planeta. Os revolucionários da vida começaram devagar, mas já estavam conseguindo modificar algumas coisas. Eu estava saindo de uma festa em uma fonte termal quando fui assediado por membros do movimento. Eu queria sim ser parte de algo maior e acabei me unindo a eles. Os organismos vivos estavam agindo 3 principais frentes de mudança: a oxigenação dos oceanos, a remoção de CO2 da atmosfera e a formação de reservas de combustíveis fósseis.
Eu era jovem e estava na flor da idade quando tomei uma decisão que mudaria a minha vida para sempre: me separei das meninas para fazer parte de uma macromolécula biológica. Eu era bom em matemática e informática e me deixaram entrar em uma molécula de DNA. Eu era o carbono 4 da guanina e segurava as pontas com meu brother carbono 5. Era uma boa posição, mas não tão privilegiada, já que eram os meus chefes, os nitrogênios, que faziam todas as ligações com as hidrogênios.
Eu não reclamava porque de vez em quando, dávamos a sorte de cair em um gameta e experimentávamos a maior de todas as invenções desses seres vivos: a reprodução sexuada! Vivi em vários organismos e com eles aprendi muito. Posso dizer que hoje sou um ser evoluído!
Nessa época os seres vivos estavam terminando um projeto ambicioso: o primeiro ser vivo inteligente. Eu era parte de um genoma duplicado, que tinha acumulado bastante redundância e era capaz de produzir muitas proteínas. Mas ainda assim, era necessário mais gente pra trabalhar. Eu estava meio cansado de toda aquela atividade intelectual e decidi pegar um pouco no batente. Pedi para ser transferido para uma proteína e me mandaram para trabalhar no heme, com meu primo ferro. Fazia alguns bilhões de anos que a gente não se via e eu mal acreditei na coincidência. Afinal, grande parte do Ferro tinha sido enviado para o centro da Terra, para trabalhar no núcleo. Ninguém sabia se aquilo era uma honra ou um castigo, mas o primo estava feliz na sua hemoglobina. Nossa molécula, o heme, era bastante estável. Um grupo de bons camaradas. E como trabalhávamos bem juntos, nunca nos separavam completamente, ainda que nos mudassem de um organismo para outro, de uma proteína para outra. Vocês sabem né, quantas proteínas possuem o grupamento heme. Um dia fomos trabalhar para um tal de citocromo p450. Era um trabalho bastante especializado.
Eu estava orgulhoso de participar do trabalho que os humanos estavam fazendo. Não chegamos a trabalhar em Adão e Eva, mas pude viver em Cleópatra (por pura sorte saímos de lá antes dela ser mordida pela serpente), em Gengis khan (que bebia horrores), Michelangelo, Darwin e Andy Wahroll (que dava um monte de trabalho com todos os alucinógenos que tomava). Eu estava feliz e jamais havia sentido tristeza ou inveja na vida até que ouvi falar de um primo distante que havia encontrado emprego em uma prótese de silicone. Aquilo deveria ser maravilhoso!
Eu estava vivendo no pulmão de Fidel Castro quando nossa tranqüilidade acabou. Fomos atacados por uma mistura tóxica de um ‘puro’ (os charutos cubanos) que o comandante tinha decidido fumar. Não sei se era porque já tinha fumado tantos, ou se porque nós estávamos mesmo já exaustos. Fomos atacados por espécies reativas de oxigênio por todos os lados e após alguns dias na UTI, ‘El comandante’ tinha se recuperado mas nosso heme tinha sido destruído. E com uma escarrada revolucionária, eu estava na rua, sem direito a indenização mesmo depois de milhões de anos de serviços prestados a vida, sendo os últimos milhares dedicados a humanidade. Eu estava apavorado, mas aquilo ainda era pouco para o que me esperava. O mundo não era mais o mesmo.
Parece que a tal da inteligência que os seres vivos tinham dado aos humanos ainda não estava completa e começou a apresentar sérios problemas de fabricação. Isso que dá ficar soltando versão beta no mercado. A essa altura já estava tarde para fazer um recall e foi inevitável o aparecimento do primeiro sintoma do câncer: a poluição. As manchas negras estavam em todos os cantos. Os humanos tinham descoberto as reservas de petróleo, onde meus tios trabalharam milhões de anos atrás e, como se tivessem sido feitas para eles, decidiram que poderiam queimar tudo a seu bel prazer. Não havia mais um ar que pudesse ser respirado, uma água que estivesse limpa e uma terra pra plantar. Tudo estava contaminado.
Os tais dos humanos escravizaram vários elementos em compostos estranhos chamados apolares. Eram drogas sintéticas, pesticidas, plástico, tudo com um objetivo apenas: criar mais humanos. Eu estava vivendo em um coco de gaivota (ou guano) na costa do pacífico do Peru quando fui escravizado por uma industria de PCB. Tentei fugir mas antes que pudesse escapar fui preso pelos guardas da prisão de Ascarel e enviado para um transformador de energia, na esquina de duas ruas do subúrbio. Tomávamos choques elétricos continuamente até que fomos anistiados por uma lei que proibiu o uso de PCBs. Sem saber o que fazer com os ex-prisioneiros, simplesmente nos deixaram ali, vazando. Foi quando aconteceu algo estranhíssimo, mesmo para mim, um carbono tão viajado. Bateu uma corrente de ar mais quente e nosso composto… começou a voar. Mais que um vôo, era um salto, porque quando chegávamos no alto da atmosfera e a temperatura diminuía, descíamos novamente. Fomos assim, subindo e descendo, até o pólo norte.
Vi minha primeira aurora boreal no mesmo dia em que o peixe onde nosso composto persistente tinha bioacumulado foi comido por um urso polar. Era uma situação insólita. Eu vivia morrendo de frio e todo engordurado. O nosso hospedeiro sofria por causa do efeito do PCB e também com o degelo. Acontece que meu antigo empregador, o efeito estufa, continuava atuando, com novos incentivos dados pelo governo mundial, que vivia uma neurose chamada desenvolvimento econômico. Tudo estava derretendo.
Eu estava muito deprimido e achava que era o fim de tudo. Ai encontrei Gaia em uma geleira. Ela estava tirando umas férias pra esquiar um pouco. Queria aprender Snowboarding antes da próxima era glacial. Perguntei como ela podia estar tão tranqüila com toda aquela bagunça instalada na casa dela. Ela riu. Disse que eu estava ficando velho e perdendo a memória. A Terra já tinha passado por outros maus momentos e tinha sempre se recuperado (ou eu já tinha me esquecido do impacto daquele meteoro 65 milhões de anos atrás?). Enquanto ela dava uma relaxada, tinha pedido a sobrinha dela, evolução, para continuar trabalhando. Esses humanos não durariam muito mais tempo. Talvez mais uma centena de milhares de anos. Mas, afinal, o que era isso para ela, uma respeitável senhora de 4,5 bilhões de anos? O melhor era sentar e esperar essa moda de humano passar.
Ela me lembrou que eu tinha sorte de ser uma elemento ciclável. Mas a energia continuava fluindo e por isso, tudo, mais dia menos dia, passa.
Resolvi dar um tempo com ela ali no ártico. A previsão do tempo era de degelo e disseram que ia ser a maior onda. E eu nunca tinha surfado.
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"Esse relâmpago fantasmagórico"

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Você provavelmente sabe que Roentgen descobriu os raio-X por acaso. E que eles levam esse nome justamente porque ele não tinha a menor idéia do que se tratavam aqueles prováveis raios, invisíveis, emitidos por uma engenhoca chamada ‘tubo de Crookes’ e que faziam brilhar, com um brilho amarelo-esverdeado, a distância, placas cobertas com platinocianeto de bário que estavam em um canto.
Vamos combinar, quem é que tem placas cobertas com isso em cima de uma cadeira em casa? Roentgen tinha. Mas vamos dar um desconto porque a casa também era o laboratório dele e essa era, já naquela época, uma conhecida substância fosforescente (e esse um fenômeno ainda longe de ser explicado).
Além do fato de Roentgen ter sido o primeiro contemplado do recém instituído premio Nobel de física em 1905, a sua descoberta traz outras curiosidades. Essa foi a tecnologia com menor tempo entre a sua descoberta e utilização prática. Isso mesmo considerando que esses raios eram tão misteriosos que raramente a primeira pessoa a observar um fenômeno foi aquela que visualizou a aplicação para o fenômeno.
A fluorescência a distância indicativa da emissão dos raios já havia sido observada pelo menos duas vezes antes de Toentgen. Primeiro pelo inventor dos próprios tubos catódicos, o brilhante físico inglês William Crookes e depois pelo também física Phillip Lenard, mas ambos desconsideraram o efeito como relevante e não dedicaram tempo a sua explicação.
Roentgen começou a testar o que os raios X NÃO podiam atravessar e segurando um cachimbo de chumbo contra uma chapa fotográfica durante a produção dos raios catódicos, descobriu que esse era um metal que bloqueava os raios X. Mas essa não foi a unica revelação. Como Roentgen estava segurando o cachimbo com os dedos, ao revelar a chapa fotográfica encontrou, além da sombra produzida pelo cachimbo, a silueta dos ossos de seus dois dedos.
“O que estou vendo não é um fenômeno científico, é do outro mundo, é definitivamente místico. O que meus colegas irão pensar desses raios X que, ao contrário da luz ou do ultravioleta ou mesmo das ondas Hertzianas, são capazes de revelar as partes mais escondidas do corpo humano, os ossos?”
Roentgen ficou tão assustado que não percebeu a enorme potencialidade de sua descoberta para a medicina.
Para ter certeza que os Raios X não eram uma alucinação, ele convidou sua mulher Bertha um dia depois do jantar para descer ao laboratório, colocou sua mão esquerda em cima de uma chapa fotográfica virgem e ligou seu tubo de Crookes. Em seguida, mostrou a Bertha a primeira radiografia jamais tirada (veja no detalhe. A mancha na imagem é a aliança de casamento de Bertha).
“Ah, meu Deus, estou vendo meus ossos. Dá impressão de que estou olhando minha própria morte”. Bertha também ficou horrorizada, e nem ela percebeu o que tinha em mãos.
Roentgen tinha consciência de ter feito uma grande descoberta científica e se trabalhou dia e noite, em completo segredo, durante as semanas que antecederam a reunião da sociedade físico-médica de Würzburg era porque queria evitar que algum dos muitos cientistas da Europa trabalhando com ‘Tubos de Crookes’ em seus laboratórios publicassem primeiro que ele os raios X.
Já o editor da revista teve uma percepção diferente do relatório apresentado por Roentgen, principalmente depois de ver a chapa da mão de Bertha e esse se tornou o artigo publicado mais rapidamente em toda a história da ciência: menos de uma semana.
Como se tratava de uma revista pequena, Roentgen mandou fazer separatas do artigo, acompanhadas das radiografias da mão de berta e dos pesos de chumbo e mandou para os físicos mais eminentes da Europa. Em menos de uma semana de novo, a foto era manchete de jornais como o Die Presse Alemão e o London Chronicles Inglês. A razão da publicidade era a incrível ferramenta diagnóstica para a Medicina, que o próprio autor não havia realizado totalmente, apesar de já ter percebido o potencial para estudar fraturas ou danos ósseos. Ainda no mesmo ano, um juiz norte-americano passou a aceitar as radiografias como prova na corte e abriu um outro filão de aplicação dos raios X.
Roentgen ainda publicou mais 3 artigos sobre os raios X, onde detalhava as propriedades desses raios e variáveis que afetavam essas propriedades. Nenhuma palavra sobre os usos médicos da sua incrível descoberta.
Até a descoberta dos raios X, os médicos podiam usar apenas os 5 sentidos para diagnosticar uma doença. Os raios X foram como um sexto sentido, uma visão além do alcance, e é difícil imaginar uma descoberta, ainda hoje, que tenha sido tão produtiva para médicos ou pacientes. Com o tempo, primeiro a absorção dos raios por sais de bário, e depois por outros compostos mais inofensivos, permitiu visualizar uma série de estruturas moles do corpo, como estomago e intestino. Era a radiografia de contraste. E em 1972, 50 anos depois de sua morte, um engenheiro de computação e um neurorradiologista ingleses criaram uma forma de bombardear raios X de múltiplos ângulos, focalizados em dinas seções do corpo. Essas laminas eram então integradas em um computador e conseguiam mostrar, pela primeira vez, de forma incrivelmente precisa, as partes internas do cérebro. Em menos de um século, a ciência transformara um papel brilhando no canto de uma sala nos escaner da Tomografia computadorizada.
Leitura complementar: O poder do Raio X – Revista Veja
Referências: Friedman M e Friedland GW. 1999. Wilhen Roentgen e os raios X. As 10 maiores descobertas da medicina. Capítulo 6. Companhia das Letras. 363pp.

Neurônios que perdem cromossomos… revisitado

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Esse é um dos textos pelo qual tenho mais carinho. Foi um dos primeiros que escrevi e ainda hoje bastante acessado pelos leitores. Também é referente a um trabalho lindo feito pelo meu querido amigo Stevens Rehen (o Bitty). Hoje, preparando uma aula sobre Aneuploidia (células que possuem número de cromossomos diferente do esperado) revisitei o texto, fiz algumas correções (inclusive de português) e acrescentei mais alguns resultados.

O texto é baseado no estudo publicado na PNAS em 2001, realizado no cérebro em desenvolvimento de camundongos e introduz a idéia de que ao contrário do que se pensava, nem todas as células do corpo possuem o mesmo número de cromossomo. O que significa dizer que nem todas as células possuem a mesma quantidade e, consequentemente, o mesmo DNA. Algumas (na verdade muitas, em torno de 33% no cérebro em desenvolvimento) podem possuir um pouco mais (porque acumulam um – ou mais – cromossomo) e outras um pouco comenos (porque perdem um ou mais). O corpo é na verdade um mosaico de células com diferentes quantidades de genoma. Neurônios adultos podem inclusive apresentar mais de um cromossomo sexual (como na foto acima).

Em 2005 o mesmo grupo publicou um novo artigo (DOI: 10.1523/JNEUROSCI.4560-04.2005), dessa vez mostrando que o mosaicismo dos cromossomos também acontece no cérebro adulto de humanos, com variações da ordem de 2-7% em indivíduos com idades que variam de 2 a 86 anos. Mas não é só: essa variação foi medida com base na perda ou ganho do cromossomo 21, aquele cuja trissomia (presença de 3 cópias) nas células do corpo, causam a grave Sindrome de Down. Só que nenhum desses indivíduos analisados apresentava qualquer sintoma de distúrbio ou doença neurológica! O cérebro humano maduro normal apresenta células com uma trissomia que, quando generalizada por todo o tecido, significa graves defeitos para o sitema nervoso central.

Apesar do óbvio potencial para participação dessas aneuploidias em doenças, em 2001 o grupo já havia sugerido que o mosaicismo poderia contribuir, em nível de organismo, para as diferenças fisiológicas e comportamentais que encontramos entre os indivíduos, de forma não explicada pela genética clássica (que não podem ser herdadas de pai para filho pelos mecanismos clássicos de transmissão da informação genética). No artigo de 2005 eles vão além, sugerindo que a aneuploidia seria um mecanismo para gerar variabilidade celular através da variação do número de cromossomos, uma teoria consistente com observações de que a presença, em larga escala, de polimorfismos de múltiplas cópias entre os indivíduos (o nome parece complicado, mas apenas significa que alguns de nós podem possuir muuuuuitas cópias de um determinado gene enquanto outros apenas uma, ou nenhuma), podem explicar a diversidade gênica, a susceptibilidade a doenças e ainda, fornecer ‘material’ para a evolução.

Partenogenética Maria

Madonna con bambino de Giotto
É Natal e o que um cético pode fazer? Na verdade não muito. Não resta mais nenhum mito para caçar, mas mesmo assim, as pessoas acreditam.

Anos atrás vi um excelente documentário na Discovery explicando historicamente todos os mitos da religião católica. Caiam por terra um depois do outro. Já se sabe que Jesus não nasceu em Dezembro, que a estrela era um planeta e até que Maria não era virgem.

Abre Parenteses: Essa era justamente a história que eu queria contar hoje, sobre como Mateus, ao traduzir o Velho Testamento do hebraico para o grego, trocou a palavra ‘bethulah‘, a correta tradução para o termo original hebraico ‘almah‘ (donzela) utilizado para descrever Maria (a donzela Maria), por ‘Parthenos‘ (virgem), gerando o mais poderoso mito da religião católica. Mas é incrível a quantidade de textos já falando sobre isso na rede. Fecha parenteses.

Já falaram tudo que poderia ser dito sobre a pseudociência na Bíblia. As pessoas continuam acreditando porque precisam. Ou por falta de alternativa, já que nem a ciênciologia, aquela ficção científica barata disfarçada de religião, conseguiu oferecer uma crença mais plausível, baseada em evidências.

Não restou muito o que falar e eu estava resignado a ficar quieto, com um grande esforço para respeitar a crença de grande parte da minha espécie. Até assistir o episódio de Natal do seriado House ontem. Uma garota chega com dores no hospital e descobre-se grávida. Dizendo-se virgem e noiva de um rapaz também virgem, ela procura por uma explicação para a gravidez, sob a argumentação irônica do médico resmungão. Um barato!

Foi dai que eu pensei na questão: será que Maria poderia ter se reproduzido por partenogênese?

Apesar de termos uma população que beira os 7 bilhões de habitantes e uma taxa média de nascimentos de 21 por cada 1000 habitantes (faça as contas, leve ainda em consideração que foram várias gerações até hoje, desde antes da época de Cristo, e você verá o quão grande é esse espaço amostral, e quão significativa é essa observação), nunca foi relatado um caso de partenogenese em humanos. O que para mim é suficiente para dizer que não existe. Nem por erro.

Mas na TV tudo pode e House consegue mostrar, para a satisfação do namorado que começava a coçar a testa, como um dos óvulos da garota poderia ter sido acometido com um carga dupla de cromossomos (veja como aqui) e por um evento elétrico ter iniciado a divisão, dando origem 9 meses depois a um bebê de uma mãe virgem.

O namorado acreditou. Claro, tem gente que ainda acredita em Papai Noel. Os resultados do teste de paternidade tinham sido falsificados para deixar os pombinhos acreditarem no que quisessem. Até que um incrivelmente raro evento científico, tão raro que nunca aconteceu, é mais plausível do que uma namorada traidora, que, convenhamos, acontece o tempo inteiro.

Mas nem a hipótese da partenogenese em humanos salva o mito da Virgem Maria. Nas espécies que se reproduzem assexuadamente por partenogênese (veja aqui) a população é inteiramente de fêmeas. Claro, elas só possuem cromossomas X para passarem adiante, e uma fêmea só pode dar origem a outra fêmea.

Jesus teria de ser menina. Ou… Maria não era virgem.

De grão em grão


Não dá pra aprender tudo de uma vez.

Essa foi uma coisa importante que eu aprendi e que me ajudou a aprender muitas outras coisas mais.

No nosso instituto, temos, todas as 4as feiras, palestras que tratam dos mais variados temas. Principalmente relacionados as ciências biomédicas.

A maioria das palestras são, eu diria, ‘avançadas’. São para especialistas. Talvez devesse ser diferente, talvez pudesse ser diferente, mas é assim. Isso faz com que muitos alunos não frequentem as palestras (e muitos professores também não). É no mínimo uma hora sentando ouvindo um grande farmacologista falar sobre venenos de cobras, outro falando sobre canabinóides e dor; um francês falando sobre acetilcolinesterases ou um americano falando sobre RNA polimerases, sem entender nada. Não é fácil. Nesse mundo saturado de informação, manter a atenção é muito difícil, mas ainda ter que lidar com a frustração de não entender nada do que o cara está falando, não é para qualquer um.
“Caramba… o cara viajou! E eu também… não entendi nada!” Cansei de ouvir os alunos reclamando. O resultado é que eles não vão as palestras.

Eu já fui um desses alunos. Mas não tinha jeito. Se eu fosse esperar os grandes pesquisadores pararem de se preocuparem com seus ‘pares’ e começarem a se preocuparem, ou pelo menos se preocuparem também, com seus alunos, na hora de preparar uma apresentação; eu teria de esperar um loooongo tempo. Tive que encontrar uma alternativa. Ou ela me encontrou.

Com um assunto diferente a cada semana, não dava para eu me preparar, antes de apresentação, para acompanhar uma palestra de especialista. Então, eu mudei a minha atitude com relação ao palestra. Parei de ir para entender o que o apresentador estava falando e comecei a ir para aprender alguma coisa nova. “O que será que eu vou aprender hoje?” Essa é a pergunta que eu sugiro que os alunos façam antes de entrar em uma palestra difícil. Você não se frustra porque não entendeu nada do que o cara está dizendo, e ainda sai feliz com alguma coisa nova.

Já aprendi que as acetilcolinesterases se organizam para formam um tetrâmero na superfície da membrana plasmática. So what?! Acontece que é super importante e… lindo! O tetrâmero das proteínas parece uma flor! Essas enzimas tem um papel importante na transmissão do impulso neurvoso que é a ordem para que o músculo se contráia. O sinal é elétrico, mas quando chega no músculo, vira químico. O neurônio se liga ao músculo através de uma sinápse. Nessa sinapse, o neurônio libera um transmissor, uma molécula chamada acetilcolina, que ativa os canais de sódio da membrana, que é o primeiro passo para que o interior da célula, que tem carga negativa, fique com carga positiva, e a célula muscular se contraia. Depois de abrir os canais, a acetilcolina precisa ser destruída, senão o canal fica aberto direto (deixando entrar o sódio que tem carga positiva) e a célula não consegue voltar para o seu repouso. A acetilcolinesterase destrói a acetilcolina!

Cada unidade da enzima possui subunidades, que são módulos para se ligar a membrana (que parece uma raiz), para se ligar umas as outras (um filamento que se parece com um ramo) e o sítio ativo (que são meio ovais e parecem uma pétala). As 4 unidades se enroscam pelo filamento, formando uma trança que serve de ramo para a ‘flôr’ que é formada pelas ‘pétalas’ ou os 4 sítios ativos das proteínas. Com o ‘ramo’ a enzima pode ficar balançando na superfície da membrana para degradar acetilcolinas de diferentes receptores. É uma forma muito eficiente, e bonita, de fazer o que precisa ser feito.

Ia contar outras coisas que aprendi sem ter que entender tudo, mas acho que vou aproveitar a deixa e criar uma coluna no blog, o ‘de grão em grão’ para contar pra vocês coisas que a gente aprender sem ter tido de entender tudo. Até a próxima.

Teste de relevância

A Posteriori

O lema do instituto onde eu trabalho é “Aqui se ensina porque se pesquisa” . Não tenho dúvida de que quem pesquisa, ensina melhor.

No semestre passado, enquanto explicava a toxicodinâmica de metais pesados para uma atenta turma de biologia, no meu desconhecimento de um exemplo adequado de ‘substituição específica‘ – quando o problema biológico é causado pela substituição de um elemento específico que faz parte da composição de uma enzima, por outro elemento qualquer que não faz parte dela – criei o meu próprio exemplo. Mas será que eu posso criar meus próprios exemplos?

A biologia não é como o direito, por exemplo, onde você pode exemplificar um contrato de compra de veículo usando um gol 1.0 ou um PT Cruiser, que dá no mesmo (ainda que não dê no mesmo para quem compra um ou outro). Lá, as regras que se aplicam a um objeto, se aplicam também ao outro. Na biologia, na maior parte das vezes, as regras mudam de acordo com os objetos.

Uma das proteínas, se não mais importantes, mais abundantes no nosso corpo é a hemoglobina, que tem a nobre função de transportar o oxigênio pelo corpo, viajando nos glóbulos vermelhos do sangue: as hemácias. A hemoglobina possui um núcleo estrutural e funcional, a molécula chamada “Heme” que tem o seu cerne, um átomo de ferro (Fe).

O ferro faz melhor, o que todos os outros metais podem fazer em alguma instância: trabalha tanto como doador, quanto como receptor de elétrons. No caso do ferro ele pode mudar de Fe2+ para Fe3+, e de volta para Fe2+, com muita facilidade. Essa habilidade é importante porque permite ao ferro fazer uma coisa bem difícil: pegar o oxigênio em um lugar e soltar em outro. Tudo bem que a abundância de oxigênio nos pulmões ajuda ele a pegar e a carência de oxigênio nos tecidos ajuda ele a largar. Mas em se tratando de divisão de elétrons com o oxigênio… doar é fácil, mas pegar de volta é bem difícil.

Calma, já vamos voltar ao problema do exemplo em sala de aula.

O ferro não está solto na molécula do Heme. Como vocês podem ver na figura abaixo, ele é ancorado por quatro nitrogênios. Só tem um elemento que o ferro gosta mais do que o nitrogênio e o oxigênio: o enxofre. E não só ele, mas todos os metais. Não é por acaso que quase todas as proteínas possuem os 3 elementos.


Não… não estou exagerando na bioquímica. O que eu estou fazendo é explicando a regra do jogo. Se você é advogado, psicologo, engenheiro ou tem outra ocupação, basta substituir essa regra por outra que a moral da história será a mesma.

Como eu estava dizendo, a regra do jogo é: os metais gostam de N, O e S. O ferro é o preferido, mas em determinadas condições (quando você está intoxicado) qualquer um deles pode entrar no lugar do ferro. E era exatamente pra explicar isso que eu precisava de um exemplo na hora da aula.

Talvez por que analisei a quantidade de Zn em mais de 1800 ostras da Baía de Sepetiba durante o doutorado, acabei falando que o Zn poderia substituir o Fe no Heme. Vou no quadro, desenho os 4 nitrogênios (como na figura acima), desenho o Fe, olho para a turma, espero uns 5 s, apago e coloco o Zn, olho para a turma de novo, dessa vez com olhar de “Tchan, tchan!!!“. Ai explico que Zn e Fe não tem o mesmo tamanho, que não trocam elétrons com a mesma facilidade… e algumas outras razões para que o Heme com Zn não funcione. Tudo era meio hipotético, mas pela cara deles, minha explicação funcionara e todos haviam entendido, hipoteticamente, uma ‘substituição específica‘.

Ótimo. Até que na prova eu pergunto um efeito dos metais pesados e os meus quase 60 alunos respondem, em peso: a substituição do Fe pelo Zn na anel porfirínico do Heme. Gelei! Todo mundo tinha tomado como verdade o meu exemplo fictício. E agora?! Lembrei da responsabilidade do professor como ensinada pela profa. Marlene Benchimol: “Um erro é multiplicado por muitos“.

Fui fazer então o que deveria ter feito antes da aula: estudar! Livro de toxicologia pra cá, livro de bioquímica pra lá… artigos novos, artigos antigos… e finalmente encontro. Ela… linda… a Zinco protoporfirina!

A ferroquelatase, a enzima responsável por colocar o ferro dentro do anel porfirínico durante a síntese do Heme, na falta de ferro (como por exemplo na anemia) coloca um atomo de Zinco no centro do Heme. Em certos animais, como as galinhas, que tem a atividade da ferroquelatase baixa (menor que nos camundongos) o Zn em excesso entra de forma não enzimática no Heme!!! Eu sei que vocês não vêem razão para tantas exclamações, mas é lindo!!! E é um exemplo perfeito, e real, do exemplo que eu havia criado em sala de aula!!!

Isso me fez pensar: a intuição é um pouco como a criatividade. Pegue as coisas que você tem armazenadas no seu cérebro e use bem de acordo com as regras que você conhece, e o resultado deve ser bom. Se você conhece muitas coisas, e sabe muitas regras, o resultado pode ser surpreendente. E quem faz isso bem? O pesquisador! Certo, você não vai acertar sempre (afinal, não há como saber todas as regras e nem todas as condições de reação), mas não vai fazer ‘bruta figura’ com os seus alunos. E eles todos vão se dar bem na prova.

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